CARTA CAPITAL
20/05/2014 - 15:30
Para Vera Thorstensen, da FGV, o Mercosul hoje é a prova da incompetência brasileira no comércio internacional
As maiores apostas do Brasil no setor comercial são a Organização Mundial do Comércio e o Mercosul, mas a primeira é um foro ultrapassado para a ampliação do comércio internacional e o segundo não passa de um acordo para proteger montadoras multinacionais. Este é o diagnóstico de Vera Thorstensen, coordenadora do Centro de Comércio Global e Investimento da FGV-SP sobre a posição internacional do Brasil. Nesta entrevista a CartaCapital, Thorstensen critica o que chama de "escândalo" do Mercosul, a proteção dada pelo bloco às multinacionais automobilísticas, as "maiores exportadores de recursos daqui", e defende acordos comerciais com países desenvolvidos, como os Estados Unidos e os da União Europeia. "Não adianta casar com pobre", diz ela.
CartaCapital: A senhora vem de uma experiência na OMC.
Vera Thorstensen: Estive por cinco anos no Centro para Estudos Europeus de Políticas Públicas, em Bruxelas, no Banco Interamericano de Desenvolvimento, em Washington e fui assessora econômica da Missão do Brasil em Genebra de 1995 a 2010. Presidi o Comitê de Regras de Origem da Organização Mundial do Comércio. Criei um centro que está indo muito bem, com seis advogados e dois economistas, nas áreas de regulação de comércio externo. A OMC como instituição está muito bem. O mais importante é que tem o tribunal. E este tribunal atua nos painéis, que são disputas, interpreta regras e resolve conflitos. A OMC como rodada (de Doha) está mal, mas como instituição está lá funcionando.
O que eu faço aqui: regulação. Há também uma área fortíssima de modelagem. E depois tem uma área de câmbio. Outra área é a de acordos regionais. Trabalho tudo com sistema multilateral de comércio, os sistemas regionais – e aí você põe desde os tratados Transpacífico e Transatlântico (Transatlantic Trade and Investment Partnership – TTIP, entre Estados Unidos e União Europeia, e o Trans-Pacific Partnership – TPP entre Estados Unidos, Austrália, Brunei, Canadá, Cingapura, Chile, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru e Vietnã) –, os grandes parceiros (India, China, Brics) e depois o Brasil. Em tudo que examino, analiso o que está acontecendo nos grandes parceiros.
CC: Qual a situação do Brasil em relação aos acordos comerciais?
VT: Política de comércio externo no Brasil não existe, virou apêndice de uma política industrial inexistente. Você não pode separar política industrial da comercial; como não tem a primeira, a segunda virou um remendo. Sintomas de que as coisas não estão bem: uma exportação que está diminuindo, uma importação que está subindo. O que o Brasil exporta é puramente commoditie para a China. Industrializados, o que conseguia exportar para o mundo não exporta mais, só para o Mercosul porque tem a preferência.
CC: Com quais países o Brasil deve fazer acordo?
VT: Com os grandes, não adianta casar com pobre. Ficar isolado é se afundar cada vez mais. Há o exemplo da Argentina. Para mim, ficar atrelado ao Mercosul é a morte, é afundar o Brasil de vez. Onde estão os problemas da indústria internamente? Falta de competitividade, excesso de impostos, de encargos trabalhistas em comparação com outros países, custos de energia dos mais altos, custos do atraso da infraestrutura. Como sai disso? Enterrar a cabeça no chão como a avestruz não resolve.
CC: E os acordos?
VT: Vamos ver o que está acontecendo com o mundo. Você tem 160 membros na OMC e a negociação parou. Por que? EUA e UE disseram: é muito complicado com 160 países e vamos fazer a “OMC Transatlântica”. Estão criando o TTIP, que é uma OMC transatlântica. O que o americano faz? As regras que tem na OMC já estão estão ultrapassadas, porque desde 1994 não tem negociação. Eles tentaram fazer alguma coisa em Doha, já desistiram e estão jogando tudo na Transatlântica. Há necessidade de criar regras novas de investimento, meio ambiente, de concorrência, trabalhistas, economia e comércio digitais, é tudo novidade e não vai sair na OMC. Os EUA não conseguem fazer isso em Doha porque ela está muito mais preocupada com os países em desenvolvimento. Então chamaram a Comunidade Europeia para a definição de um novo patamar de comércio. E tem propriedade intelectual (querem passar para 90 anos) e aí o pessoal chia, quebra de patentes e a cláusula investidor Estado. Tudo isso.
CC: Há impactos enormes para o Brasil.
VT: Brutais. Propriedade intelectual é um tema sensível para a gente e outro é o problema da cláusula investidor-estado. Leva o investidor estrangeiro aqui no Brasil para julgamento contra o Estado. O investidor tem direito a ressarcimento porque você mudou uma lei. O americano inventou isso por causa do México.
CC: É uma regra do Nafta...
VT: Mas a Austrália já disse que no TTP ela não aceita isso. Você não fazer nada com medo disso, não aceito esse argumento. O Brasil é forte e grande o suficiente. Se a Austrália conseguiu, porque nós não conseguiríamos? Os dois grandes acordos mencionados estão mudando a geopolítica. Não contêm só visão de comércio, há uma visão geopolítica também. O TTP é claramente Estados Unidos dizendo aos países para não ficarem amarrados à China. Eles produzem componentes, a China monta e exporta para o resto do mundo. Portanto a China foi fator para o TTP e o é para o TTIP, porque está tirando todo mercado de produtos industrializados da Europa nos Estados Unidos.
CC: Assim como tira mercado do Brasil na Argentina...
VT: Claro. Então você tem dois acordos novos que são importantes e estão estabelecendo as regras e o Brasil só está na OMC. Há uma proliferação dos acordos regionais e o Brasil está fora. O Mercosul estáshrinking, diminuindo. Há um acordo que nem ratificou com a África do Sul e envolve 400 produtos, outro com a Índia envolvendo 460 produtos de cada lado. Desde quando países em desenvolvimento conseguem exportar uns para os outros? Não conseguem, porque produzem as mesmas coisas. Então é dificílimo conseguir algum resultado significativo, esse é que é o problema. O Chile faz com os Estados Unidos porque são muito complementares, os africanos fazem com a UE. Mas Brasil e Índia não sairão desses 460 produtos, o restante é sensível demais. Como é que fica?
CC: Se bem que com o Mercosul funcionou bem depois da crise de 2008.O comércio do Brasil com o Mercosul caiu menos que com o resto do mundo.
VT: Não exportamos mais para o resto do mundo. Depois de quatro anos iniciais de boom, que não devem ser considerados em nenhuma estatística como alguns fazem, acabou-se a alegria, a preferência zero valeu. O correto é analisar logo depois de 1994, quando estabilizou. As exportações de manufaturados brasileiros estão desabando no resto do mundo, só sobem na Argentina e alguém acha isso uma maravilha? Isso apenas prova que só conseguimos exportar para a Argentina e não temos competitividade para exportar para nenhum outro país. É isso o que está acontecendo. O Mercosul hoje é a prova da incompetência brasileira. É muito mais sério do que se imagina. Não temos competitividade para exportar para mais nenhum lugar. O Mercosul não agrega nada. A gente exportava um monte de componentes de automóvel para os EUA, parou de exportar tudo. Alguma coisa está errada. O segundo grande desafio hoje são as cadeias globais de valor. O mundo inteiro, o que faz? Importa e reexporta. A China é exemplo, todos os asiáticos, a Europa inteira. E nesse quesito, o Brasil está lá na rabeira.
CC: Só tem uma empresa integradora, que é a Embraer.
VT: Vamos nos integrar ou não? O problema é trazer tecnologia. Quem é que manda nas cadeias globais? São as transnacionais. No momento em que você se integra nessas cadeias consegue trazer alguma tecnologia. E o Brasil, com algumas exceções, está muito atrás em termos de inovação tecnológica .
CC: Você tem tudo aqui, expertise de montadoras e autopeças.
VT: O problema é o seguinte, esta é a decisão: você quer que o Brasil seja um país exportador de agrobusiness, que vai muito bem, obrigada? Se essa é a decisão do governo, então abre a tarifa para tudo e zera de uma vez para importar o resto.
CC: O Brasil não é o Chile.
VT: O Brasil não é o Chile, tem que ter indústria, tem que ter agrobusiness e tem que ter serviço.
CC: E tem uma indústria.
VT: Claro. E olha que eu posso lhe dizer com a autoridade de quem foi Cepalina [referência à Comissão Econômica para a América Latina] e trabalhou no Befiex [programa brasileiro de incentivo à exportação]. No tempo em que estava no CNPq, trabalhei na lei de informática. Temos que reconhecer que não deu, tentamos mas não deu. Analisemos a exportação do Mercosul. 50% é o que? É automóvel e autopeça. É uma vergonha, o Brasil é um tratado que está defendendo multinacional, os maiores lucros das multinacionais são mandados para fora. Elas arrancam tudo do governo, por causa do emprego, teoricamente. No fundo, são os maiores exportadores de recursos daqui. Entra no Mercosul para ver o que é: é um acordo setorial, em que se protege as montadoras. Que são ineficientes, os carros brasileiros estão entre os mais caros do mundo, é um escândalo total. Você está defendendo um acordo de multinacional, primeiro. E segundo: o restante da pauta é máquina de lavar, linha branca. Porque não há competitividade para mais nada. Como dizer que o Mercosul é uma maravilha? E a China vai entrando, porque comprou uma quantidade imensa de títulos argentinos, e está enfiando muito dinheiro no petróleo em Vaca Muerta, a principal ocorrência de petróleo shale do pais. Hoje o investimento chinês na Argentina é um dos maiores, 15 bilhões de dólares por ano.
Eu participei da criação do Mercosul, com o todo idealismo possível e imaginável, acreditávamos que era importante. Era em primeiro lugar uma questão de segurança, vamos parar de enterrar as nucleares todas. Funcionou no início, depois parou de funcionar. Pior ainda, o Mercosul está com problemas, há pouca competitividade, os argentinos perceberam a atratividade dos negócios com os chineses. Ficamos brigando com a Argentina, conseguimos fazer uma aliança com a Venezuela, mas perdemos a Colômbia, o Peru. O Chile tem 50 acordos, o México tem 50 acordos. O Brasil está isolado no Mercosul.
CC: O Chile não é referência para nós.
VT: Nunca foi.
CC: Nem o México.
VT: Mas já perdemos Colômbia, Peru. O conceito do Mercosul está ultrapassado, é preciso fazer um aggiornamento [uma atualização]. Achar que a prioridade do Brasil é a América do Sul, não dá. Olha a tragédia: você está com pouca competitividade, um monte de problemas, e esses países todos estão fazendo acordos. A China chegou ao Peru, está fazendo investimentos maciços lá. Na Colômbia, está construindo um outro “canal do Panamá”.
CC: Concorrente do original?
VT: Exatamente. O resultado é que a China vai pegar esses países que exportam os minérios que ela quer e fazer o que? Vai enfiar toda a produção por esses países. E aí chego ao meu outro tema, o câmbio. A China está há 20 anos com o câmbio hiperdesvalorizado. Então todos os instrumentos e regras jurídicas que a gente inventou não funcionam mais. Tem que refazer. Por quê? Todos esses países já entram no Brasil com tarifa nula. Então você está no pior dos mundos.
CC: A China já tomou parte do mercado do Brasil na Argentina.
VT: O último ponto é o que fazer. O Brasil está na situação de se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. A gente está vivendo isso. Quais são as opções no mundo? Abrir ou fechar. Fechar, aumentar tarifas, esse tipo de coisa, é ir na contramão.
CC: Países desenvolvidos, no início, protegeram seus mercados.
VT: A China em todas as fronteiras organizou zonas francas. Investimento estrangeiro e tecnologia foram para lá. O roteiro de exportação da China, o Brasil não fez, que é abrir toda a fronteira e condicionar o investimento estrangeiro à exportação e à transferência de tecnologia.
CC: Que são as Zonas Econômicas Especiais
VT: É isso aí.
CC: Começaram com quatro, hoje são muitas.
VT: E é economia de estado, em todas as províncias.
CC: O governo controla toda moeda estrangeira.
VT: Outra coisa, China não é economia de mercado, é uma economia híbrida. E nós, fazemos o quê? Ficamos só com a Argentina e afundamos junto? Ou abrimos à chinesa? A estratégia que eu defendo é fazer acordo, não com pobre, não adianta fazer acordo Sul-Sul, sinto muito. Porque acordo com a Índia não dá, a Índia não quer abrir, porque a gente exporta as mesmas coisas. Com a África do Sul, o acordo é ridículo, são pouquíssimos produtos. Fez com o Egito, maior, mas não ratificou. O Brasil não tem acordo nenhum, gente. Sul-Sul não funciona. E qual é o problema do Sul-Sul? É muito de dominação, o Brasil acha que vai dominar, você não consegue tecnologia. Temos que fazer um aggiornamento rapidíssimo de tecnologia. E como é que você faz isso? Casando com pobre? Não. Obrigar multinacional a vir para cá e trazer tecnologia? Não fai fazer. Então o que é que tem de fazer? Tem de abrir, via acordos e fazer o quê? Fazer acordos com países ricos. O acordo do Mercosul com a União Europeia é a coisa mais prioritária. Só que metade do governo quer, metade não quer, porque a UE não vai abrir para a nossa agricultura. Não vai abrir muito mais do que isso, e você tem de pensar que o que queremos não é só agricultura. Se não fizermos acordo com a UE, perderemos as cotas europeias, os EUA são mais poderosos e vão comer as nossas cotas de laranja, soja, carne. Aí estaremos no pior dos mundos.
Deram um chega pra lá e a proposta está aqui. Agora, o que está acontecendo é que o governo está dividido, tem gente que acha que não deve fazer, eu acho um erro não fazer. Porque você ainda consegue pegar a tecnologia alemã, tecnologia francesa, tem países que podem ajudar o processo. De quê? De aumentar a produtividade e fazer o Brasil voltar a ter uma pauta exportadora mais decente. Caso contrário, vai exportar soja e minério de ferro, que é o que a China quer. Que incompetência política a nossa, de não conseguir exportar nada além do complexo de soja e do de minério de ferro. Eu acho isso uma grande incompetência, a gente não conseguir fazer isso com um grande parceiro.
CC: Tem como concorrer?
VT: Tem que chamar a China e dizer: exportar soja não, queremos exportar óleo. Há outro problema. Há lógica em fazer um acordo do Mercosul só com a União Europeia se esta faz um acordo transatlântico? EUA, Europa, estes dois estão casados. O mais importante para o comércio hoje não são as tarifas. Tarifa o câmbio come, a flutuação do câmbio é mais importante do que a tarifa. Essas tarifas de 10%, não valem nada. Estamos há 15 anos negociando, Brasil e UE, focando na briga por tarifa. Muito mais importante é barreira técnica e fitossanitária. Esta é a base dos grandes acordos e os Estados Unidos e a União Europeia estão se harmonizando nessa área. Já são 10 mil produtos na lista dos harmonizáveis. Acertam padrões de alguns produtos, por exemplo: a camisa não pode soltar tinta, etc. E em relação a outros, vão fazer equivalência no nível de proteção. E há os famosos reconhecimentos mútuos, que é a coisa mais importante. O europeu vai no instituto de lá, certifica que o produto foi bem feito e exporta sem ter de certificar nos EUA. São muitos milhares de dólares economizados.
CC: Fale mais um pouco sobre esse ponto dos reconhecimentos mútuos.
VT: Como é que você exporta um alimento pela primeira vez? É preciso provar que o seu suco de laranja não tem inseticida, adubo, químico. A carne brasileira não pode ser tratada com hormônio. Há especificações que equipamentos supersofisticados detectam. Hoje, a cada partida você tem que provar que aquele gado é são, que está dentro daquelas normas etc. Mas se há um acordo de reconhecimento mútuo, você vai aqui num laboratório conhecido teu, que já está reconhecido nos EUA e ele dá o certificado. Não tem que mandar toda a sua carga de tantas em tantas toneladas para aquele laboratório, o que demora, atrasa, fica parado no porto. Um inferno.
E tem toda parte de TBT. Você tem que pegar a mesa, o plástico e provar que não é cancerígeno. Quer dizer, se você, a cada partida, tem que provar, custa milhões para fazer isso. Toda parte que a gente chama de barreira técnica é isso, estabelecer e certificar que isso tem glúten, etc. Normalmente se faz a certificação aqui e tem de fazer lá também. São milhares e milhares de dólares gastos.
É mais complicado fazer tudo isso com os EUA porque os Estados têm autonomia. A Europa, não, a comunidade europeia é mais condensada. É difícil, mas eles vão fazer. Estão conseguindo trabalhar não por harmonização, mas por equivalência. Eu faço diferente, mas garanto que a sanidade é a mesma. Eles estão estabelecendo equivalências de controle. Com isso você tira de 10% a 15% do custo da exportação. A tarifa na média não chega a isso.
CC: Isso entre eles.
VT: Entre Europa e Estados Unidos. E nós estamos ainda no tempo do onça, negociando um acordo com a Comunidade Europeia baseado só em tarifas. O mundo mudou. Há duas coisas que destroem tarifa, barreira não tarifária, que é muito mais importante e câmbio.
CC: No caso do Brasil, que tamanhos têm as barreiras não tarifárias e tarifas?
VT: A média das tarifas brasileiras é de 10%, fora o pico de 35% para brinquedos e automóveis. Isso vai ter que baixar em 10 anos. Agora, o restante já está baixo. Você pode com a Comunidade Europeia tranquilamente fazer negociação, para alguns produtos dá já, em dois, três anos zera, e depois vai esticando, põe lá para alguns setores 15 anos; teoricamente o teto seria de 10 anos, mas você negocia.
CC: A quanto equivalem as barreiras não tarifárias?
VT: A redução de custo com diminuição de barreiras não tarifárias pode chegar a 20% ou até mais. No estudo Ecolys, sobre barreiras tarifárias, não tarifárias e alfandegárias, há setores em que a redução chega a 30%.