Existe algum risco de que a atual administração dos petralhas se converta em algo próximo do racional? Nenhum. Portanto, esqueçam. Mas eu já tinha descoberto isso em 2006, e vai aqui reproduzido um artigo de ocasião.
Paulo Roberto de Almeida
Prioridades
possíveis em uma administração racional
Paulo
Roberto de Almeida
Todo mundo tem a sua
pequena lista de tarefas urgentes e inadiáveis a serem feitas no Brasil: se consultarmos
os representantes do povo, eleitos para isso mesmo, eles já têm pronta uma
lista enorme de projetos a serem implementados com a máxima urgência possível,
com a particularidade de que são todos nas respectivas circunscrições
eleitorais, obviamente. Se perguntarmos a um conclave de universitários,
reunidos, por exemplo, numa dessas conferências anuais da SBPC, eles também
terão a sua lista de prioridades, geralmente vinculadas à ciência e tecnologia,
ao investimento em educação, incentivo à pesquisa, aumento de salário aos
professores – notoriamente defasados –, financiamento às universidades e coisas
do gênero. Se falarmos com os industriais, ou aos agricultores ou, ainda, aos
simples trabalhadores do campo e da cidade, cada uma dessas categorias terá uma
lista de medidas urgentes a serem tomadas pelo governo, sob risco de
desemprego, insuficiência alimentar, deterioração das condições de vida ou sabe-se
lá o que mais.
Recursos orçamentários
são, por definição, escassos, como mais de um governo “comprometido com o povo”
descobriu no dia ou nas semanas seguintes à vitória nas eleições. Não dá,
obviamente, para fazer tudo ao mesmo tempo ou sequer no tempo total do mandato.
Como já disse alguém, “não espere que eu faça em quatro anos aquilo que não foi
feito nos últimos 500 anos”. Elementar, não é mesmo? O problema é que as
pressões emergem de todo lado, cada grupo de interesses, cada categoria social
berrando pela sua fatia do orçamento e os políticos estão aí para isso mesmo:
para fazer chantagem com o governo de plantão, só dando o seu voto depois de
ter assegurado o financiamento para o seu projeto particular. O resultado é o
pior possível, com a fragmentação total do orçamento público em uma miríade de
pequenos projetos, quando não, o esquartejamento puro e simples dos recursos
escassos em uma variedade de pequenos gastos, que não resolvem qualquer dos
grandes problemas sociais do país, e mantém intactos os pequenos problemas com
sua resolução parcial mediante uma parte da verba originalmente pedida.
Pois bem, a intenção do
presente exercício é outra. Seria a de tentar concentrar os recursos
disponíveis mediante sua focalização nos melhores projetos disponíveis. O
critério básico é o de encontrar as prioridades sociais efetivas, isto é,
aquelas ações que redundam no maior efeito social possível, alcançando o maior
volume de pessoas que exibem carências detectáveis que redundam em perdas
sociais mensuráveis. A aplicação dos recursos disponíveis – por definição,
escassos, como sempre – tem de ser feita com a melhor eficácia possível no
dispêndio, o que os economistas usualmente chamam de custo-benefício, ou seja,
o maior retorno alcançável pelo dinheiro aplicado. Por fim, a ação visada
precisa apresentar eficiência; em outras palavras, estender benefícios ao maior
número com efeitos permanentes de bem-estar, contribuindo para a elevação dos
índices de produtividade social (direta ou indiretamente).
Com base nessa trilogia –
prioridades efetivas, custo-eficácia e eficiência – podemos traçar uma escala
de ações prioritárias que poderiam ser implementadas por um governo interessado
em corrigir as distorções mais gritantes existentes na sociedade brasileira,
quais sejam, a desigualdade, a má educação, a infraestrutura precária e uma
baixa produtividade geral no sistema produtivo. Não consideremos, aqui,
demandas de grupos ou, mesmo, a escassez de recursos. Vamos simplesmente supor
que temos um volume de recursos dado, mas que precisamos escolher apenas as
ações mais prioritárias dentre as prioridades governamentais, deixando para
depois as menos prioritárias. Numa segunda etapa, pode-se discutir a
disponibilidade de recursos. Não vamos, tampouco, considerar o sistema
político, mas sim uma organização a mais racional possível, que aja com base na
já mencionada eficácia e eficiência máximas dos investimentos feitos.
Escala de prioridades com o máximo
de retorno social e econômico
1)
Melhoria da qualidade da educação com gerenciamento eficiente dos recursos
(a) alcançar a cobertura
máxima de crianças escolarizáveis, entre 2 e 17 anos, o que implica ampliar a
pré-escola e redimensionar a rede escolar espacialmente; concentrar recursos no
básico (fundamental e médio) e no técnico-profissional;
(b) ampliar a permanência
escolar no ciclo fundamental público, estendendo o período de estudo efetivo na
escola; vincular programas do tipo bolsa-escola aos programas de assistência
social;
(c) aperfeiçoar a formação
dos professores dos ciclos infantil, fundamental, médio e técnico-profissional
públicos, com incentivos financeiros segundo o desempenho, medido pelo
aproveitamento efetivo do estudante (abolido o critério da aprovação
automática); recursos de tecnologia de informação devem estar concentrados no
professor e nos centros de documentação e bibliotecas das escolas;
(d) mudanças curriculares
de molde a reforçar o núcleo básico de estudos (língua nacional, ciências,
matemáticas e estudos sociais), com opções de disciplinas suplementares
disponíveis segundo os recursos apresentados, e decisão a ser tomada de forma
descentralizada pelos conselhos de educação em nível municipal e associações de
pais e mestres nos diversos centros escolares;
(e) eficiência na gestão
escolar, com estímulos financeiros e funcionais em função da melhoria no
desempenho (mais em escala relativa do que absoluta).
2)
Melhoria dos padrões de saúde da população mais carente
(a) ampliar a rede de
serviços básicos de saúde, num sentido preventivo e educativo; integração dos
serviços de saneamento básico para prevenir doenças infectocontagiosas e prover
água de qualidade a todas as comunidades;
(b) programa nacional de
nutrição e alimentação, com seguimento das crianças, integrado aos serviços
escolares; formação de recursos humanos em economia doméstica e produção local
de alimentos;
(c) rede integrada de
saúde familiar e de hospitais comunitários; equipes volantes permanentes para o
controle das doenças transmissíveis e contagiosas; vigilância integrada das
gestantes e crianças na primeira idade;
(d) programas permanentes
de riscos de gravidez – com ampla oferta de meios preventivos – e seguimento
integral em casos de parto não desejado; programas integrados de abrigo e
adoção de crianças;
(e) melhoria da gestão das
redes de saúde e hospitalar, para reduzir a corrupção e os desvios e aumentar a
eficiência dos recursos disponibilizados; transparência total das despesas
efetuadas, com seguimento integral das operações financeiras e transferências
de recursos via Siafi, aberto ao nível das unidades.
3) Eficiência na gestão
estatal, com redução da carga fiscal
(a) Reforma tributária
para a redução da carga total sobre o sistema produtivo, segundo programa
progressivo em dez anos, com redução de dez pontos do PIB, sendo meio ponto a
cada semestre;
(b) Combate à corrupção no
sistema público, por meio de redução ampla da mediação dos recursos pela via
política e ampliação da transparência dos gastos públicos, com seguimento
integral pela internet; elaboração e execução orçamentárias igualmente
disponíveis na internet;
(c) ampliação do sistema
de parcerias público-privadas (PPPs), para o maior número possível de setores
envolvidos nos serviços públicos (que não necessitam ser estatais);
privatização de atividades que não sejam tipicamente estatais ou públicas;
(d) consolidação da
independência da autoridade monetária como guardiã exclusiva da estabilidade da
moeda e da defesa do poder de compra da população;
(e) ampliação e
aprofundamento da legislação sobre responsabilidade fiscal, com desdobramento
dos mecanismos preventivos de controle de desequilíbrios potenciais;
(f) reforma administrativa com diminuição do número de
ministérios, redução dos gastos com os corpos legislativos federal, estaduais e
municipais e da própria representação política, hoje superdimensionada;
atribuição de diversas funções estatais a novas agências reguladoras
independentes; início progressivo do fim da estabilidade no serviço público,
com exceção de algumas carreiras de Estado, estritamente definidas; reforma do
sistema judiciário para melhoria de sua eficiência.
4) Reformas microeconômicas
para a melhoria do ambiente de negócios
(a) ampla reforma
trabalhista num sentido mais contratualista do que com base no diploma legal;
eliminação do imposto sindical e da justiça trabalhista, com amplo recurso ao
sistema arbitral e criação de varas especializadas na justiça comum;
(b) redução da
informalidade empresarial e trabalhista mediante reformas tributária,
regulatória e burocrática; redução dos custos de transação impostos pelo
Estado;
(c) descentralização dos
sistemas de compras públicas, com uso ampliado dos mecanismos eletrônicos de
oferta, aquisição e controle dos gastos efetuados;
(d) eliminação dos
tratamentos diferenciados entre setores, de maneira a eliminar distorções e
competição fiscal danosa aos orçamentos públicos e aos regimes tributários;
(e) ampliação da
competição interna e externa, com eliminação de cartéis e setores
oligopolizados, redução do protecionismo alfandegário e maior integração à
economia mundial, com abertura ampliada aos investimentos estrangeiros.
5) Segurança pública
(a) reformulação dos
aparelhos policial, penitenciário e de justiça, num sentido preventivo,
repressivo e restaurativo;
(b) diminuição da idade de
imputabilidade legal;
(c) redução dos casos de
prescrição de pena e ampliação dos prazos;
(d) integração do sistema
preventivo com os mecanismos de assistência social e de incorporação escolar,
para diminuir a delinquência juvenil e a criminalidade envolvendo crianças.
Creio que bastam esses
cinco conjuntos de tarefas como indicativo de um esforço concentrado numa
agenda transformadora, pois eles me parecem cobrir o essencial dos problemas
mais prementes do Brasil atual. Obviamente que se está falando em concentrar a
maior parte dos recursos nesses programas, exatamente definidos como
“prioridades prioritárias”, sem querer ser redundante. Se isso é verdade,
obviamente será preciso deslocar recursos de outros programas, que passam então
a ser prioridades secundárias ou “terciárias”. Alguns critérios simples para
operar essa “separação” entre “urgências relativas” podem ser usados, como por
exemplo:
1) preferir investimentos nos jovens (ou seja, escola e formação) do
que nos “velhos” (isto é, a previdência);
2) preferir investimentos na formação básica, média e técnico-profissional,
do que gastar sempre mais recursos com o ensino universitário, até agora
privilegiado;
3) priorizar a infraestrutura – e dentro dela as possíveis PPPs – do
que políticas setoriais que redundem em dar créditos e facilidades para setores
já privilegiados, como os industriais ou a agricultura capitalista;
4) priorizar o investimento na pesquisa tecnológica vinculada ao
sistema produtivo;
5) reduzir, sempre, os gastos com as atividades-meio – inclusive as
de natureza política, já superdimensionada – e concentrar os recursos nas
atividades diretamente finalísticas;
6) adotar o perfil competitivo para definir ofertas de serviços
“públicos” nos mais diversos setores, inclusive fazendo o Estado funcionar com
mecanismos similares aos de mercado.
Estes são alguns dos
critérios funcionais e operacionais que poderiam ser mobilizados para
estabelecer, e depois implementar, um conjunto bastante restrito, isto é,
extremamente seletivo, de políticas públicas a serem detalhadas em programas,
projetos e medidas dotadas de continuidade e de sustentação política durante
mais de uma gestão presidencial (se possível, estendendo-se por pelo menos dois
PPAs, ou mais), de maneira a produzir efeitos transformadores permanentes. Como
esses procedimentos envolvem ganhos e perdas para grupos sociais específicos,
recomenda-se trabalhar primeiro com um grupo restrito de “tecnocratas” com
vistas ao “desenho” global das medidas, para depois levar os temas à discussão
pública, com exposição clara quanto aos custos e benefícios de cada uma delas e
o sentido político que se pretende imprimir a cada uma.
Como disse ao início
deste trabalho, aliás, no próprio título, trata-se de escolher prioridades num
sentido absolutamente racional, visando ao melhor custo-benefício de cada uma
delas e seu maior efeito social possível. Custos e benefícios podem ser medidos
e discutidos de maneira racional, como convém a um governo inteligente e a uma
sociedade consciente de seus problemas e desejosa de encontrar as melhores
soluções possíveis, em bases igualmente racionais.
Por certo a política nem
sempre é racional, uma vez que feita de emoções e de apelos aos sentimentos
humanos. Mas é dever do estadista liberar-se das contingências do momento e das
pressões dos grupos particularistas para ver a sociedade da perspectiva da
próxima geração. A pergunta a se fazer é muito simples: como eu gostaria que a
geração passada tivesse me entregue o país? As respostas fluirão
naturalmente...
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
9 de julho de 2006.