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quinta-feira, 16 de novembro de 2017

A leveza do liberalismo no Brasil (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Um artigo de 2002, quando as críticas dos companheiros eram idiotamente dirigidas contra um "neoliberalismo" totalmente inexistente, mas que podiam fazer sucesso nos meios acadêmicos, sempre idiotamente propensos a acreditar nas maiores bobagens divulgadas por máquinas de propaganda poderosas. Eu sempre me surpreendi com a capacidade desses gramscianos de academia de acreditar nesse tipo de bobagem.
Por isso escrevi esse artigo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de novembro de 2017


A indiscutível leveza do neoliberalismo no Brasil:
uma avaliação econômica e política da era neoliberal

Paulo Roberto de Almeida *

Introdução:
Segundo vários críticos do “capitalismo realmente existente” no Brasil, o País estaria vivendo, desde o início dos anos 90, sob um regime “neoliberal”. Não partilho dessa opinião mas, para todos os efeitos práticos, vamos admitir que isso seja verdade. Em outros termos, teria ocorrido, na história econômica brasileira recente, um corte fundamental – epistemológico, diriam velhos adeptos do althusserianismo – entre, de um lado, o que vem sendo pregado, adotado e realizado em termos de políticas econômicas há aproximadamente uma década – ou seja, abertura econômica, liberalização comercial, privatizações, retirada do Estado de velhos monopólios (nem tão velhos assim, pois que criados, em sua maior parte, a partir dos anos 60), interdependência financeira, negociação de acordos comerciais, admissão de investimento estrangeiro em setores anteriormente reservados unicamente ao capital nacional etc. –, isto é, tudo o que se costuma designar por “políticas neoliberais”, e, de outro lado, o que se tinha e conhecia anteriormente como políticas e práticas do regime “normal” do capitalismo brasileiro no século XX: restrições comerciais e protecionismo, lei do similar nacional, lei de reserva do mercado para informática, ausência de patenteamento para medicamentos e biotecnologia de forma geral, impedimentos constitucionais ao investimento direto estrangeiro em vários setores, enfim, o que se conhece na literatura corrente como “desenvolvimento econômico com autonomia nacional e preservação da soberania”.
Pois bem, ao ter de aceitar, a partir dos anos 90 e pelas mãos de seus dirigentes políticos, que a interdependência econômica constitui uma organização social dotada de maior racionalidade instrumental do que a autonomia semi-autárquica até então praticada, o Brasil passou a viver plenamente a era neoliberal, ou pelo menos passou a ter de suportar ou conviver com um regime neoliberal. Em todo caso, é disso que os partidários do modelo anterior, ou defensores da soberania nacional, acusam os sucessivos governos desde o início da presidência Collor. Admitamos, portanto, que isso corresponda à verdade e que de fato saímos do purgatório autonomista para o limbo neoliberal, sem nunca ter alcançado o paraíso do pleno desenvolvimento econômico e social.
Para atender aos requisitos do subtítulo deste trabalho – realizar uma avaliação econômica e política da era neoliberal no Brasil – nós precisaremos então colocar essa era neoliberal sob o teste da realidade, isto é, aferir o desempenho relativo e as realizações do neoliberalismo no Brasil, para confirmar se e como tais políticas e práticas se ajustam efetivamente ao cânone neoliberal. Será necessário, pois, formular uma série de perguntas e questões fundamentais que nos permitirão comparar a era neoliberal com as políticas e práticas de uma era anterior, assim como com realizações similares em nossa própria era, conformando portanto uma análise ao mesmo tempo sincrônica e diacrônica. Caberia contudo lembrar, desde o início, que o regime anterior sob o qual o Brasil estava organizado economicamente – seja durante o período militar, seja sob a República de 1946 – não se caracterizava exatamente pelo estruturalismo econômico – que seria, supostamente, o oposto do neoliberalismo atual –, mas por um sistema híbrido, que poderíamos caracterizar como de “liberal-intervencionismo”, praticado tanto sob os “czares econômicos da ditadura” (Roberto Campos, Delfim Netto, Simonsen etc.), como pelos ministros políticos da Fazenda na “república populista” que a precedeu.

Questões metodológicas iniciais:
Trata-se de perguntas mais de caráter metodológico, ou de interesse histórico-conceitual, do que propriamente operacional, não sendo absolutamente relevantes para a discussão que se vai seguir:

1. Teria ocorrido, no início dos anos 90, uma espécie de “complô neoliberal”, que tomou de assalto um sistema econômico indefensável, erodido por anos (décadas?) de fracasso inflacionário e abandonado pelos patrocinadores do ancien régime não-neoliberal, isto é, liberal-intervencionista?
Não é a opinião deste autor, que acredita que o mais provável é que tenha ocorrido uma transição natural e necessária do velho protecionismo-estatismo a um conjunto de princípios e práticas que começaram de fato a romper com o déjà vu daquele antigo regime.

2. A implementação – alguns diriam a irrupção – desses princípios e práticas neoliberais representou uma espécie de importação clandestina ou sub-reptícia, e de certa forma “forçada”, de “idéias fora do lugar”, isto é, uma ideologia estranha e intrusiva, talvez associada ao chamado “consenso de Washington”, ou ainda um tipo de “gripe espanhola ideológica”, que passou a contaminar irrevogavelmente o conjunto dos tecnocratas e economistas públicos do País?
Tampouco partilho desta opinião, e creio mesmo que existiam, no estamento tecno-burocrático brasileiro, como nas imensas coortes de economistas acadêmicos e práticos, suficientes elementos “neoliberais” (talvez embutidos, em outros casos já de forma aberta), o que justamente explicaria como o neoliberalismo tomou facilmente “de assalto” os bastiões do poder político no Brasil. Em outros termos, a antiga predominância ideológica do “estruturalismo” e da industrialização cepalina não teve de lutar nas trincheiras contra o inimigo ideológico neoliberal, mas foi gradualmente submergida a partir de dentro, por economistas e políticos já “assumidos” e comprometidos com os princípios essenciais do neoliberalismo.

O núcleo duro do neoliberalismo no Brasil e seu desempenho histórico:
3. Qual foi o desempenho efetivo do neoliberalismo nos anos 90?; cumpriu ele o que prometia, foi eficiente no fornecimento de seus serviços econômicos, políticos e sociais, enfim, correspondeu ao que se esperava dele?
            De modo geral, pode-se dizer que sim, com algumas insuficiências localizadas, talvez explicáveis pelo ambiente de crise financeira externa e pela própria magnitude dos desafios que o aguardavam desde o final dos anos 80. Não ocorreram grandes desastres do neoliberalismo, como podem ter ocorrido em países vizinhos ou em regiões mais distantes, mas tampouco os resultados foram espetaculares, pelo menos no julgamento imediato. Talvez uma perspectiva histórica de maior alcance nos permitirá, no futuro, aferir a amplitude das transformações ocorridas nos anos 90 – processo que já foi descrito, por partidários e opositores dessa realidade, como de “desmantelamento do Estado varguista” –, mas caberia registrar, no momento, a modéstia do crescimento ou a insuficiência aparente das transformações estruturais.
            Os resultados mais significativos foram no terreno da luta anti-inflacionária e da recuperação do poder da moeda como elemento de referência e reserva de valor, com os pequenos sobressaltos eventuais que seriam normais de se esperar de um país tradicionalmente acostumado (e drogado) a mecanismos indexadores e a uma certa permissividade emissionista. Mas, no campo regulatório as mudanças foram igualmente importantes, com diversas emendas constitucionais desmantelando décadas de uma cultura estatal enraizada na consciência coletiva (a ponto de grandes líderes políticos defenderem ferrenhamente a preservação do monopólio estatal na área de telecomunicações ou a manutenção de companhia estatal de minério de ferro como sendo de “alto caráter estratégico” para o País). No terreno da reforma administrativa e previdenciária, as mudanças foram menos completas ou definitivas, mas ainda assim os progressos do “neoliberalismo” foram sensíveis.

4. O neoliberalismo trouxe crescimento e desenvolvimento tecnológico ao Brasil?
            Os avanços tecnológicos e os aumentos de produtividade foram inegáveis, mas em termos de crescimento, a resposta tem de ser mais matizada. Vejamos: a taxa de crescimento não correspondeu ao que se poderia esperar de um “país emergente” como o Brasil, que tinha crescido na era militar e mesmo antes dela a taxas anuais que eram notoriamente superiores às do aumento anual da população. Caberia descontar os vários processos de ajuste conhecidos nos anos 90, resultantes dos programas de estabilização tentados em seu início e em meados da década, assim como os choques externos (a partir do México em 94-95) que impactaram bastante o fluxo normal das atividades econômicas nessa década.
O que os críticos costumam chamar de “fracasso do neoliberalismo” no Brasil refere-se portanto a essas taxas modestas, ou medíocres, de crescimento econômico, quando o País teria necessidade do dobro, ou do triplo, para absorver o exército industrial de reserva e acomodar todos os novos entrantes na população economicamente ativa. Em defesa do neoliberalismo se poderia argumentar que ele está mais preocupado com a estabilização macroeconômica do que com o atendimento de indicadores positivos no grau de ocupação da força de trabalho, mas essa não é a questão real. Se pensarmos na magnitude da obra de desmantelamento dos comportamentos indexacionistas e na da própria cultura inflacionária no Brasil, teremos idéia do quanto foi realizado na segunda metade dos anos 90: pela primeira vez em muitas décadas, talvez até historicamente na República, a moeda correspondeu a uma expressão de valor visível, aferida contabilmente, quem sabe até desfrutando da confiança dos brasileiros. Isso não é pouco como realização “neoliberal” e o desempenho do crescimento econômico precisa portanto ser medido segundo o critério da estabilidade, novo valor fundamental da política econômica governamental.

5. O neoliberalismo conseguiu reduzir as imensas desigualdades regionais e sociais existentes historicamente no Brasil?
            A resposta deveria ser não, mas ainda aqui seria preciso considerar, em primeiro lugar, que não correspondia à “missão histórica” do neoliberalismo a implementação de vastos programas de correção de desigualdades econômicas e sociais. Sua “agenda de trabalho”, digamos assim, estava concentrada no esforço, bem sucedido, como vimos, de estabilização macroeconômica e de estabelecimento das condições mínimas para a retomada do crescimento (este foi perturbado pela ocorrência de choques financeiros externos, como também constatamos). A correção das desigualdades sociais e regionais deve integrar uma vasta panóplia de políticas setoriais e estruturais, com componentes institucionais, fiscais, tributários, distributivos, compensatórios (enfim, várias outras medidas e políticas de caráter “intervencionista”), que superam em muito a modesta racionalidade instrumental do neoliberalismo.
            De toda forma, a redução ou eliminação do imposto inflacionário já correspondeu a um passo inicial na correção das desigualdades sociais no Brasil, uma vez que os índices inaceitáveis de concentração de renda estão em parte associados a esse “imposto”, ainda que outros fatores tenham de ser igualmente levados em conta (práticas altamente regressivas na área social e na alocação de dotações públicas, por exemplo). No campo das políticas regionais, por sua vez, a era neoliberal assistiu a um dos mais vigorosos processos de descentralização industrial e de redistribuição espacial de atividades econômicas já registradas em toda a história do País, equivalentes, talvez, ao ciclo do ouro, à expansão da economia cafeeira ou, de modo negativo, à própria centralização industrial no Sudeste nas primeiras décadas da era republicana. Trata-se aqui, como em outros campos, de algo que apenas poderá ser apreciado devidamente com o recuo suficiente do tempo. 

6. As políticas neoliberais melhoraram a qualidade da gestão macroeconômica no Brasil?
            Otimisticamente, e talvez mesmo inequivocamente, sim. Nunca, em qualquer época, a despeito do aparente e alegado “desmantelamento do Estado”, a gestão macroeconômica dispôs de condições tão favoráveis para o exercício daquela que talvez seja a função básica do governante: conceber, aprovar, implementar e monitorar a execução de um orçamento público, dotado dos requisitos normalmente associados a esse conceito. A importância dessa realização não é suficientemente apreciada mesmo entre a classe política, acostumada a décadas de orçamento fictício (quando não contribuía ela mesma para a erosão desse conceito essencial da administração pública), e menos ainda na oposição, bem mais permissiva em matéria de “investimentos sociais” ou mesmo partidária de se lograr um trade-off “aceitável” entre inflação e crescimento. O Brasil, pela primeira vez em muitas décadas, começa a medir a magnitude real dos recursos públicos, e portanto os limites ao exercício da “vontade geral” embutida na administração pública. A Lei de Responsabilidade Fiscal, peça central do “neoliberalismo”, desempenha papel importante nessa correção de rumos.

7. O neoliberalismo aperfeiçoou o desempenho geral do sistema econômico brasileiro?
            Certamente. Isso foi feito mediante as privatizações, desmonopolizações, criação de um novo ambiente regulatório em áreas tão diversas quanto a indústria siderúrgica, os serviços e telecomunicações, portuário e outras, o que por sua vez permitiu incrementar as atividades nas indústrias e serviços de informações e de tecnologias da comunicação. Ou seja, mediante uma série de ações ousadas nos campos da desestatização e da desregulação ‑ medidas que se situam no coração mesmo daquilo que os detratores ideológicos condenam no neoliberalismo ‑, este conseguiu elevar os padrões de qualidade de setores inteiros do sistema econômico brasileiro. A ameaça da “desnacionalização”, a alegada “cessão de soberania”, a “redução tarifária unilateral” e outras práticas consideradas nefastas pelos adversários ideológicos do neoliberalismo não foram consideradas tão “letais” a ponto de induzir a população brasileira a rejeitar de modo decisivo o “neoliberalismo”, que terminou amplamente vitorioso em 1994 e em 1998. Visto nessa perspectiva dos detratores, o neoliberalismo conduziu o mais formidável “assalto” ao Estado intervencionista que se realizou no Brasil praticamente desde a assunção da autonomia política em 1822. Em nenhuma outra época (no passado, obviamente) os agentes econômicos puderam realizar tão bem aquilo que constitui sua missão histórica indiscutível em qualquer regime capitalista digno desse nome: investir, recolher os frutos desse investimento inicial, reinvestir, expandir atividades.
            As muitas frustrações registradas no processo (até aqui parcial) de aperfeiçoamento do sistema econômico brasileiro não devem ser creditadas ao neoliberalismo, e sim ao seu contrário, ou seja: a excessiva intervenção remanescente do Estado na vida econômica, sob a forma de regulações e em especial mediante uma tributação tão extorsiva quanto irracional, pois que penalizando a cadeia produtiva e a atividade exportadora. O neoliberalismo precisa avançar nessas áreas, para que sua “missão liberadora” possa ser concretizada também nessas frentes.

8. O neoliberalismo fez piorar as condições gerais do panorama social brasileiro?
            Não exatamente, talvez até mesmo o contrário. O “neoliberalismo” (mas, de fato, este aspecto também faz parte do Estado intervencionista) melhorou o desempenho do orçamento público e continuou os investimentos sociais necessários à minimização do tremendo grau de iniquidade social que ainda caracteriza o Brasil. Com isso, os indicadores sociais apresentaram, na grande maioria dos casos, melhorias visíveis e mesmo rápidas, inclusive no que se refere ao consumo de bens correntes e duráveis. Na verdade, a eliminação do imposto inflacionário – que foi o fator singular mais importante na melhoria desses condições sociais – não deveria ser vista como fazendo parte de uma agenda exclusivamente neoliberal, mas deveria ser suscetível de integrar qualquer programa de ação das principais forças políticas e ideológicas do País. O fato é que, na nossa história política, a esquerda tem sido extremamente leniente e tolerante no que se refere à derrapagem inflacionária e ao deslize emissionista, mais em todo caso do que os neoliberais contemporâneos.
            O desemprego, que é a conseqüência do não crescimento sustentado nos últimos anos, tem sido apontado como o mais evidente fracasso do neoliberalismo no Brasil, ao lado da mais tradicional concentração de renda. O aumento da criminalidade nos grandes centros urbanos também poderia indicar uma deterioração geral das condições de vida, e portanto refletiria mais um dos fracassos do neoliberalismo posto em prática. Entretanto, um neoliberal convicto poderia responder que a elevação da taxa de desemprego se deve, precisamente, à não aplicação do receituário neoliberal, que no caso recomendaria a flexibilização da regras vigentes no mercado de trabalho, manifestamente regulamentado e onerado em demasia no Brasil. A criminalidade se explicaria, por outro lado, mais pelo não equipamento e organização das polícias – áreas as quais o neoliberal nunca apontou como carentes de desregulação ou “desestatização” – do que pelas condições de pobreza das camadas subalternas urbanas.

Questões de sustentabilidade interna e externa do neoliberalismo no Brasil:
9. O neoliberalismo agravou a concentração de renda e as desigualdades sociais?
            De forma alguma, no máximo ele foi neutro em relação a esses dois aspectos mais gritantes das iniquidades sociais extremamente graves do Brasil. O coeficiente de Gini tem sido teimosamente estável no Brasil, como a indicar que ele depende mais de fatores estruturais e de políticas setoriais e redistributivas, do que propriamente de políticas de ajuste fiscal ou de estabilização macroeconômica. De fato, ocorreu uma pequena melhora na primeira fase de implementação do Plano Real, mas depois o índice de Gini foi mais o menos o mesmo a que estamos acostumados há quase três décadas: em torno de 61 ou 62.
            Pode-se, portanto, condenar o neoliberalismo por não ter transformado o índice que revela todas as nossas mazelas “africanas”, mas não por agravar o panorama social do ponto de vista redistributivo. Poderia ele fazer mais e melhor numa área que costuma ser marcada por políticas ativas por parte dos poderes públicos? Certamente, mas aí temos de considerar não apenas a ação exclusiva do executivo federal, como também a nefasta mobilização dos mesmos privilegiados de sempre na defesa de sua parte na torta das despesas federais: categorias sociais, profissionais e corporativas entranhadas no aparelho de estado, assalto constante de grupos de interesse em programas de “apoio” a determinadas atividades econômicas, velhos conhecidos do estado cartorial quatrocentão que defendem como podem a parte que lhes cabe desse latifúndio imenso que é o Brasil. Na verdade, uma política mais ativa de redistribuição de renda em favor das camadas subalternas certamente passaria por uma “extração” mais penosa de recursos da classe média, a única em condições de ser ordenhada com relativa facilidade pelo poder público, o que coloca de imediato a questão da legitimidade e da sustentabilidade política desse tipo de “extorsão” sobre os mesmos pagantes de sempre, em condições de plafonnement da capacidade tributável da população incluída na base fiscal da Receita.
O neoliberalismo recomendaria, ao contrário, um alívio no grau de extorsão, mas é verdade que ele tem se revelado menos eficiente no redirecionamento dos canais redistributivos. Talvez essa correção das desigualdades devesse passar, então, pelo aumento extraordinário dos investimentos em educação e capacitação profissional, os únicos capazes de alterar verdadeiramente o perfil da distribuição da renda no Brasil, mas essa opção tem o inconveniente de ser irritantemente longa para os padrões conhecidos de impaciência com a “questão social”.

10. O neoliberalismo agravou a fragilidade externa do Brasil?
            Talvez, mas as respostas aqui não são conclusivas, uma vez que se deve separar fatores contingentes das políticas implementadas, fatores estruturais da características brasileira de desenvolvimento econômico e fatores conjunturais das crises financeiras dos anos 90. O fato é que, a partir da implementação do Plano Real em 1994, e da relativa valorização do real nos quatro primeiros anos do processo de estabilização, a balança comercial apresentou sensível deterioração, não sendo mais capaz de compensar, o que antes ocorria, o tradicional déficit dos serviços e rendas do capital em que incorre o Brasil desde que nos conhecemos como nação. Em conseqüência, o saldo negativo das transações correntes tornou-se enorme, e teve de ser compensado por entradas maciças de capitais externos, muitas vezes de curto prazo, mas também com muita ênfase em fluxos de risco, o geralmente mais bem vindo (não para a esquerda econômica) investimento estrangeiro direto. A dependência financeira externa tornou-se portanto maior e com ela o recurso aos juros altos para atrair ou reter capital volátil: os anos 90 foram, sem dúvida, os anos de déficits externos e de malabarismos cambiais, com o recurso eventual ao FMI para compensar os riscos de insolvência externa.
            Deve-se contudo observar que não há nada de intrinsecamente neoliberal (ou de keynesiano) na acumulação de déficits externos. Trata-se de elemento “estrutural” ou “conjuntural”, segundo as épocas, regimes de câmbio e controles sobre movimentos de capitais: diferentes economias podem acumular saldos negativos nas contas comerciais, de serviços ou de capitais, independentemente de sua interação com o mundo ou de seu coeficiente de abertura externa. Assim, pode ser lembrado que a mesma fragilidade financeira externa já tinha ocorrido no Brasil em outras épocas – durante a crise da dívida dos anos 80, ou na crise do petróleo dos 70, por exemplo – em condições de saldo comercial relativamente alto, o que não foi impedimento, contudo, para moratórias de fato. Não se pode assim imputar às políticas neoliberais dos anos 90 a responsabilidade por um quadro de desequilíbrios externos e de fragilidade financeira que já tinha ocorrido em épocas de “liberal-intervencionismo” ou de “estruturalismo claudicante”.

            Em resumo, nem todas as mazelas sociais e os problemas econômicos acumulados no Brasil “neoliberal” podem ou devem ser atribuídos ao neoliberalismo, em particular a pobreza generalizada, a corrupção, os baixos níveis educacionais, o não funcionamento da justiça, a esclerose administrativa, a insuficiência dos serviços de saúde e previdenciários, a criminalidade rampante, os surtos de dengue ou a decadência do futebol. Existem problemas seculares, outros criados ao longo de um regime republicano pouco propenso a estimular as virtudes cívicas dos cidadãos, alguns derivados da ditadura e vários outros criados nos anos de populismo constitucional-democrático, a maior parte deles “made in Brazil”, e não importados pela onda globalizante que conviveu com o neoliberalismo nos tormentosos anos 90. O funcionamento deficiente do nosso legislativo, a inoperância gritante da justiça, os absurdos do mercado laboral são males que, como diria Nelson Rodrigues, não se improvisam, mas resultam do acúmulo de anos e anos – que digo?, décadas – de erros gerenciais e de incapacidade das lideranças políticas em corrigi-los.
            Em resumo, qualquer neoliberal de boa cepa concordaria em que os mercados não podem tudo, e que um Estado eficiente e dispensador de bens públicos é essencial para o bom funcionamento desses mesmos mercados, sobretudo em seus aspectos regulatórios e concorrenciais. O tamanho do governo importa menos ao neoliberal do que seu modo de funcionamento e sua eficácia relativa, o que se choca em geral com a cultura de esquerda, que costuma ver em qualquer reforma administrativa e gerencial um ataque frontal contra direitos adquiridos, em especial o sacrossanto direito à estabilidade e a uma pensão mais generosa do que os salários de contribuição.
Enfim, a verdade é que o liberalismo, velho ou novo, ainda não fez suas provas no Brasil, pela simples razão de que ele quase nunca foi aplicado de forma consistente e persistente ao longo de nossa história. De fato, os verdadeiros desafios do neoliberalismo no Brasil ainda estão por vir e seu horizonte de aplicação deve ser visto mais em direção do futuro do que num retrospecto do passado recente.

À guisa de conclusão: a insustentável leveza teórica do neoliberalismo no Brasil

11. As idéias neoliberais tornaram-se dominantes na sociedade e na cultura brasileira?
            Ainda não, e de toda forma de modo nenhum nas universidades, que – com as honrosas exceções de sempre, em especial nas áreas técnicas (e em algumas faculdades de economia) – continuam a ostentar as mesmas idéias exibidas em meus tempos de curso universitário (final dos anos 60, início dos 70). Essas idéias se caracterizam por uma mistura curiosa de marxismo confusionista, nacionalismo instintivo, anti-imperialismo (ou melhor, anti-americanismo) evidente e uma natural propensão a atribuir ao Estado (de fato ao governo em vigor, invariavelmente descrito como neoliberal, independentemente das épocas) a origem de todas as mazelas que marcam nossa sociedade.
            Assim, a despeito de todos os furiosos ataques contra o neoliberalismo (como se ele de fato ocupasse o poder no Brasil), nossa ação pública, nas diversas vertentes do espectro político, continua a ostentar os mesmos vícios intervencionistas e dirigistas que caracterizaram o País desde sua constituição independente e de fato a própria nação desde seu nascimento no bojo do cartorialismo português. Não é certo, portanto, que as idéias do neoliberalismo tenham algum futuro brilhante pela frente, mas parece evidente que elas não têm nenhum passado no Brasil.
_______

Anexo:

A pontuação do neoliberalismo no Brasil

            Pode-se efetuar um score do neoliberalismo no Brasil? Como seriam os resultados de uma avaliação quantificada a partir dos critérios sob os quais uma economia passa a ser classificada de “neoliberal”? A pontuação abaixo realizada é talvez impressionista, tão boa quanto qualquer outra (sendo arbitrária, o leitor está convidado a efetuar sua própria pontuação e verificar os resultados). Ela foi construída com base numa avaliação pessoal de qual seria o desempenho do Brasil ao abrigo dos critérios originalmente propostos pelo economista John Williamson, em seu famoso ensaio “What Washington Means by Policy Reform?” (incluído no livro editado por ele mesmo, Latin American Adjustment: How Much Has Happened?, Washington: Institute for International Economics, 1990, pp. 7-20). Ainda que o neoliberalismo não deva ser considerado como uma emanação do chamado “consenso de Washington” (um conjunto de regras servindo mais como instrumentos de política de ajuste, do que como um conjunto de objetivos ou resultados elevados à categoria de dogma), esses critérios podem fornecer uma boa indicação do que representa uma política neoliberal “pura”.

Brasil, 1990-2001
pontuação na escala neoliberal
1) déficits fiscais
4
2) prioridades de despesas públicas
5
3) reforma tributária
0
4) taxa de juros
2
5) taxa de câmbio
5
6) política comercial
6
7) investimento direto estrangeiro
8
8) privatizações
7
9) desregulação
6
10) direitos de propriedade
7
Média aritmética simples
5,7

            Em outros termos, a pontuação do neoliberalismo no Brasil é bastante sofrível, para não dizer medíocre, insuscetível portanto de vê-lo aprovado em exames de primeira época de qualquer escola neoliberal digna desse nome. Isso apenas confirma nossa vaga impressão de que há, como advertido ao iniciarmos esta reflexão, uma indefinível leveza do neoliberalismo no País, tanto no plano teórico, como, sobretudo, no âmbito da praxis. Como ocorre em outras áreas de interpretação sociológica, nosso país não se encaixa bem em nenhum modelo pré-fabricado – segundo dogmas ideológicos muito estritos – de desenvolvimento econômico e social. Somos originais? Provavelmente. Era o que eu pretendia demonstrar...

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 862: 7/02/2002
Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, nº 10, Março de 2002; link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download/35906/21035),


* Sociólogo, especialista em relações internacionais; autor dos livros Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (Senac, 2001) e Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (Paz e Terra, 2002); pralmeida@mac.com;  www.pralmeida.org.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Ricupero defende preservacao de politicas sociais num novo governo, post-PT - Entrevista

O problema com esse tipo de preocupação, aparentemente necessária do ponto de vista social, é que o Brasil está consolidando um exército de assistidos e expectativas crescentes nas supostas bondades estatais que condenam o país ao baixo crescimento, e a população a uma postura típica de tutelados pelo Estado.
Não creio que existem neoliberais no Brasil, e mesmo que existissem, nenhum neoliberal conseguiria aplicar uma política neoliberal verdadeira no país. Não teria condições de sequer ser concebida, pois a patrulha ideológica, o Congresso mentalmente retartado e outras forças políticas se encarregariam de inviabilizar qualquer política nesse sentido.
Em qualquer hipótese, considero este alerta do ex-ministro uma restrição ideológica, pois parte de um slogan falso, "neoliberal", para condenar eventuais políticas de corte liberal.
Paulo Roberto de Almeida

Eventual governo Temer não pode ter neoliberal na Fazenda, diz ex-ministro
MARIANA CARNEIRO
FOLHA DE SÃO PAULO, 29/03/2016

Em 3 de setembro de 1994, uma conversa informal do então ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, vazou aos telespectadores que tinham parabólicas. À espera de entrar no ar num telejornal, Ricupero soltou a frase: "O ruim a gente esconde, o bom a gente fatura".

Era início do Plano Real, que entrara em vigor em julho daquele ano. Cada palavra poderia pôr em risco o ambicioso programa, e Ricupero perdeu o cargo.

Hoje, 21 anos após o episódio, Ricupero diz que falou "bobagens", mas incomparáveis às conversas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que vieram a público com a divulgação das escutas telefônicas da Lava Jato.

O ex-ministro afirma ainda que só a garantia dos direitos sociais à camada mais pobre da população será capaz de dar a um eventual governo de Michel Temer a calma necessária para uma retomada da economia.



Folha - O sr. foi afastado do cargo devido à revelação de uma conversa em que dizia "o ruim a gente esconde".

Rubens Ricupero - Meu caso é até parecido, porque eu não estava dando uma entrevista, eu estava conversando de maneira distendida, não sabia que a câmera estava ligada. E eu disse muitas bobagens pelas quais eu assumi a responsabilidade e me desculpei. Foi um erro grande e imediatamente telefonei ao Itamar [Franco] e pedi que fosse exonerado. Mas, comparado a isso, parece coisa de jardim de infância.
O que se revela nas conversas [de Lula] são ações ilegais, de obstrução da Justiça e, em alguns casos, crimes capitulados no Código Penal. Em um país mais "normal", a esta altura, o governo já teria caído.
As pessoas que foram capturadas nessas gravações são os que foram mais duros e cruéis comigo e com minha família naquele momento.

Na sua opinião, qual deverá ser o desfecho?

Vejo dois aspectos, um de curto prazo e outro mais estrutural, de longo prazo. O de curto é o que acontecerá com Dilma, Lula e o atual governo. Isso provavelmente vai se resolver entre agora e fins de maio, seja pelo impeachment, seja pela investigação no tribunal eleitoral.

Porém, mesmo que haja o impeachment e um novo governo se instale, há um segundo tempo. Não se resolverá o problema real, que é o sistema político brasileiro, o conjunto de regras que organizam os partidos, as eleições e o sistema de campanhas e votação. Por esse sistema, o poder se conquista e se mantém por eleições cada vez mais caras.

Qualquer pessoa que se sentar na cadeira de Dilma vai ter que lidar com dezenas de partidos no Congresso e criar uma base aliada. Com esse sistema fragmentado, nenhum partido é inocente. Há apenas gradações de inocência. Alguns são mais corrompidos do que outros.

Isso vale para o PSDB também?

Vale para todos, a não ser que haja um partido que se financie sem recursos do governo, da economia privada ou de lobistas. Mas isso não quer dizer que sejam todos sejam igualmente culpados.

Eu fui ministro duas vezes do presidente Itamar Franco (PMDB) e ele jamais fez esse tipo de política com o Congresso. É claro, ele era político e era capaz de distribuir cargos de acordo com a necessidade de constituir uma base. Mas ele não usava o poder público para obter recursos financeiros.

Para curar isso, seria necessária uma reforma do sistema eleitoral e de partidos, reduzindo o número de partidos e proibindo a reeleição.

O impeachment pode cessar a crise política e econômica?

Está cada vez mais claro que o impeachment é inevitável, embora não seja a solução que eu prefira. Eu preferiria uma solução que nascesse de eleições diretas. Mas, se de fato a decisão de [rompimento] do PMDB for tomada, é difícil imaginar que seja possível deter a marcha.

Ainda que ocorresse a manutenção deste governo, a situação econômica seria cada vez mais insuportável. A frustração com o impeachment levaria a um agravamento rápido das variáveis financeiras, o dólar subiria.
Mas o impeachment não elimina as incertezas. Suprime uma variável, que é ligada à permanência ou não de Dilma no poder. Mas as outras incertezas, relacionadas à investigação, não desaparecem.

E as incertezas econômicas?

Mesmo que ocorra um impeachment, que não é a solução desejável, pode haver condições para o início de uma recuperação econômica. O grande problema hoje é de credibilidade e se Michel Temer assume com algumas precondições básicas... O governo tem que deixar claro, desde o primeiro momento, que os pobres e vulneráveis, os mais dependentes de ajuda, não serão prejudicados.

Não se pode, por exemplo, escolher um ministro da Fazenda que seja totalmente insensível em matéria social e política. Não pode ter o perfil neoliberal clássico; tem que ser alguém que diga que as conquistas [sociais] serão preservadas. Neste momento, a variante social é muito importante e acredito que um político como o Temer deve compreender isso.

Há semelhanças entre agora e quando Itamar assumiu?

Quando Collor caiu, havia unanimidade contra ele. As manifestações em favor de Dilma e de Lula foram impressionantes, notáveis. Por isso, insisto nesses valores, que de fato têm consistência, que são os valores da inclusão social. Não se deve permitir que a mudança que se processa sacrifique esses valores. Não atentar contra os direitos dos mais vulneráveis é fator fundamental para criar situação de calma e de recuperação econômica.

Se isso for feito, ele [Temer] terá condições razoáveis de, em dois anos, reconstruir as coisas até que um novo presidente seja eleito.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Pinochet e Friedman, o ditador e o economista - Brian Doherty (Ordem Livre)

O Economista e o Ditador

Asd
O falecido autocrata chileno Augusto Pinochet é responsável por proibir a oposição política, por fazer "desaparecer" inimigos políticos (“desaparecendo” com alguns deles até em Washington, DC), por ordenar milhares de mortes e transformar estádios de futebol em sombrios centros polivalentes de detenção em que prisioneiros políticos eram torturados e mortos.
O falecido economista e jornalista Milton Friedman é responsável por insights inovadores em economia e apoiava a defesa pela liberdade dos indivíduos de escolher como viver suas vidas, livres da interferência do governo.
E ainda, tanto na vida quanto na morte, Pinochet e Friedman tem sido aceitos por muitos como dois lados “negros” de uma direita malvada em que o despotismo, a tortura, e  o livre mercado irrestrito estão intimamente ligados. O colunista do The New York Times Anthony Lewis declarou em 1975 que "a política econômica da junta chilena é baseada nas idéias de Milton Friedman (...) e sua Escola de Chicago (...) se a teoria econômica “pura” de Chicago pode ser realizada no Chile apenas sob o preço da repressão, deveriam os seus autores sentir alguma responsabilidade?" Tais atitudes assombraram Friedman até sua morte e além.
A reação de alguns dos conservadores usuais até a morte de Pinochet não ajudou a desmarcarar esta infeliz associação. Já que Pinochet era um autocrata pró-americano, que honrou um plebliscito e renunciou, parte da direita americana sempre teve um afeto doentio pelo general. A revista National Review realizou um simpósio e um relatório oficial organizado pelo ex-editor John O'Sullivan marcando o falecimento de Pinochet, sem muita indignação pelos crimes do ditador. O'Sullivan disse, explicitamente, em uma troca de acusações morais e bizarras que disputas partidárias costumam gerar, que é claro, Pinochet deveria sofrer por sua vilania – mas somente se Castro e Allende também o fossem.
Mas se os comunistas imorais são hipócritas por apenas se opor à tirania quando se trata de não-comunistas, como a direita é tão ágil em denunciar, no que se tornam os direitistas quando fazem isso, quando só parecem opor-se à tirania quando se trata de comunistas (ou muçulmanos)? Uh, bem ... Ei, olhem lá! Castro! Não o deixe escapar!
Sim, é verdade, Friedman deu conselhos a Pinochet. Mas não diziam respeito a como encontrar o melhor lugar no oceano para despejar os corpos dos inimigos políticos assassinados. Apesar das multidões enfurecidas de estudantes que perseguiram Friedman em todos os lugares de Estocolmo (a sua cerimônia de aceitação do Nobel em 1976 foi marcada pela presença dos estudantes) a Chicago porque eles o consideravam uma espécie de mestre-de-marionetes das sinistras políticas chilenas, a realidade das “ligações” de Friedman com Pinochet é muito menos dramática.
Durante anos, a Universidade de Chicago tinha um programa em parceria com a Universidade Católica do Chile no qual concedia bolsas para os chilenos estudarem em Chicago. Os conselheiros econômicos de Pinochet foram, assim, treinados pela Universidade de Chicago, e conhecidos como “Chicago Boys”. Mas o único contato direto de Friedman com o Chile foi quando ele foi convidado pelo seu colega, também professor da Universidade de Chicago, Arnold Harberger – que estava mais envolvido com o programa chileno – a dar uma semana de palestras e participar de debates públicos no Chile em 1975.
Enquanto esteve lá, Friedman teve um encontro com Pinochet, por menos de uma hora. Pinochet pediu a Friedman que lhe escrevesse uma carta sobre as suas opiniões sobre como a política econômica chilena deveria ser gerida, o que Friedman fez. Ele defendeu cortes rápidos e severos nos gastos do governo e inflação, bem como instituições mais abertas ao comércio internacional e políticas para "estabelecer o alívio de qualquer dificuldade real e angústia entre as classes mais pobres." Ele não escolheu essa como uma oportunidade de censurar Pinochet por qualquer uma de suas políticas repressivas, e muitos dos admiradores de Friedman, inclusive eu, teria se sentido melhor se ele o tivesse feito.
Mas essa foi a extensão de seu envolvimento com o regime chileno – e que se encaixa com um padrão recorrente na carreira de Friedman de aconselhar todos os que o quisessem ouvir. Não era um sinal de aprovação ao autoritarismo militar. Friedman, ao se defender contra as acusações de cumplicidade com, ou aprovação do governo de Pinochet, disse em uma carta em 1975 para o jornal da Universidade de Chicago que ele "nunca ouviu queixas" sobre ter dado ajuda e conforto para governos comunistas com quem tinha se comunicado, e que "eu não aprovo nenhum desses regimes autoritários, nem os regimes comunistas da Rússia e da Iugoslávia, nem os regimes militares do Chile e do Brasil. Mas eu acredito que posso aprender observando-os e que, na medida que a minha análise pessoal de sua situação econômica permita-lhes melhorar o seu desempenho econômico, é provável que isso promova e não retarde um movimento na direção de maior liberalismo e da liberdade. "
Se você acredita que é um dever moral boicotar criminosos no governo, sem restrições, então Friedman fez a coisa errada em falar com Pinochet e escrever-lhe uma carta. Mas se qualquer chileno teve uma vida melhor devido a qualquer reforma de livre mercado que Friedman ou os conselheiros de Pinochet treinados em Chicago ajudaram a tornar realidade, esse é um preço pequeno a pagar por qualquer dano à reputação de Friedman.
Mas será que algum chileno teve de fato uma vida melhor por causa das políticas de livre mercado? É uma questão de fé entre a esquerda que o Chile teve de fato a sua economia destruída pelo “Friedmanismo” galopante. Em um excelente artigo (não disponível online) que apareceu em 1983 na edição de agosto da revista Inquiry, durante a primeira recessão grave do Chile após algumas reformas de mercado iniciais, chamado "Será que Milton Friedman realmente arruinou o Chile?", Jonathan Marshall salientou que tanto Friedman, que foi muito rápido em declarar a vitória definitiva da reforma de livre mercado no Chile, e seus detratores, que achavam que suas políticas haviam levado a nação à ruína, estava esquecendo alguns detalhes importantes: "os próprios protegidos de Friedman abandonaram a economia de viés laissez-faire em certas conjunturas, e foram estes desvios, não um monetarismo doentio, que produziram o sofrimento do Chile."
Marshall salientou a grande insistência “não-Friedmaniana” do Chile no que se refere à fixação do preço do peso chileno em dólares americanos no início dos anos 80, acarretando em uma sobrevalorização do peso que devastou o mercado exportador chileno. Ele também notou que a continuação do sistema capitalista de camaradagem no Chile, no qual aqueles que contavam com influências tinham crédito especial do governo, bem como resgates quando os riscos do livre mercado os prejudicavam. Esses tipos de políticas, bem como um colapso mundial nos preços do cobre, a principal exportação do Chile, foram responsáveis pela recessão do Chile no início dos anos 80, não uma corrida maluca em prol do livre mercado.
De qualquer forma a tendência de reformas de livre mercado – especialmente quando incorporada com intervenções contínuas de vários tipos – não é garantia de resultados imediatos. Muitos das críticas (denúncias) populares da idéia de que as reformas de mercado ajudaram o Chile residem em procurar por pontos fixos do passado, como se eles resolvessem a questão sobre qualquer benefício no longo prazo. Se Friedman foi rápido demais em rotular a economia do Chile como um milagre instantâneo, como fez em uma coluna na revista Newsweek em 1982 (salientando que é um "mito" que "somente um regime autoritário pode implementar com sucesso uma política de livre mercado", já que um livre mercado é "o contrário" do autoritarismo militar), seus adversários foram bem mais rápidos em condená-lo como um desastre.
Alguns delas tiveram pontos fortes, particularmente sobre as taxas de crescimento nos anos 70 e 80 que eram, possivelmente, resultados tanto da recuperação do terreno perdido devido às recessões como produto do novo e sustentável crescimento de longo prazo. Mas as estatísticas da última década e meia mostraram um Chile que, no longo prazo tem superado, do ponto de vista econômico, a maioria da América Latina – inflação mais baixa, maior  crescimento real per capita do PIB, bem menor incidência de pobreza extrema e menos dependência do FMI.
Nenhum sucesso econômico do Chile serve de desculpa ou minimiza os crimes de Pinochet. Mesmo os defensores libertários ferrenhos de Friedman podem questionar a conveniência de sua associação, por mais breve ou tênue, com o ditador. Como o economista austríaco Peter Boettke me disse uma vez, muitos economistas de sua geração – muitos dos quais são libertários na sua essência – têm a noção de trabalhar em até mesmo algo inócuo como finanças públicas de mau gosto – como uma "ajuda para a máfia". Friedman não sentia tal repugnância visceral pelo governo ou por quem governa. Ele era realista sobre a política, e tentou lidar com o mundo como ele era – lubrificando com seu radicalismo político as engrenagens do poder do jeito que era possível.
Friedman estava pronto e disposto a dizer às pessoas responsáveis por todas as políticas erradas do mundo o que elas precisavam fazer para acertar as coisas, o que significava que ele tinha que dialogar com eles, fazendo ataques abertos a seus crimes imprudentes. Ele tentou mover o mundo em uma direção mais livre do ponto em que a realidade se apresentou.
"Não tenho nada de bom a dizer sobre o regime político que Pinochet impôs", disse Friedman em 1991. "Foi um terrível regime político. O verdadeiro milagre do Chile não é o quão bem ele foi economicamente, o verdadeiro milagre do Chile é que uma junta militar estava disposta a ir contra seus princípios e apoiar um regime de livre mercado projetado por seguidores dos princípios de um mercado livre... No Chile, o impulso para a liberdade política que foi gerado pela liberdade econômica e o conseqüente sucesso econômico ao final resultou em um referendo que introduziu a democracia política."
Poderia ter sido mais gratificante moralmente não ter nenhuma relação com Pinochet, simplesmente condená-lo de longe. Mas optando por deixar seus conselhos econômico  acima de revolução política, Friedman quase certamente ajudou o Chile a longo prazo – mas é importante lembrar que os "Chicago boys" foram mais responsáveis do que o próprio Friedman, e que eles não estavam seguindo suas prescrições implacavelmente ou sob a sua instrução direta.
Indubitavelmente, a decisão de Friedman de interagir com os funcionários de governos repressivos cria tensões desconfortáveis aos seus admiradores libertários; eu poderia, e na maioria das vezes, preferiria que ele não o tivesse feito. Mas dado o que provavelmente significou para a riqueza econômica e a liberdade no longo prazo para o povo do Chile, esta é uma reação egoísta. As políticas econômicas de Pinochet não amenizaram seus crimes, apesar daquilo que seus admiradores de direita dizem. Mas Friedman, como conselheiro econômico para todos os que o ouviram, não cometeu os crimes de ninguém, nem admirou nenhum criminoso.
* Publicado originalmente em 22/11/2012.
Brian Doherty é editor sênior da revista Reason e autor de diversos livros, entre eles, Radicals for Capitalism: A Freewheeling History of the Modern American Libertarian Movement.

quinta-feira, 12 de março de 2015

De onde surgiu o conceito de "neoliberalismo"? Nao, nao foi a esquerda que inventou nos anos 1980...

O substantivo neoliberal e o conceito de neoliberalismo têm um registro de nascimento, e ele é mais antigo do que supõem tanto os esquerdistas, que os usam como xingamento, quanto os liberais que preferem recusar esse conceito -- pela conotação negativa dada pelos esquerdistas justamente -- e usar simplesmente o de liberal, ou clássico, ou tout court.
Ele nasceu em 1938, por ocasião de um colóquio organizado em Paris em torno do livro do jornalista liberal americano (no sentido clássico, porque depois isso virou um xingamento também nos EUA) Walter Lippmann, que estava providenciando a tradução para o Francês de seu livro The Good Society (1937).
Nesse colóquio, os participantes reconheceram que, em face das transformações econômicas e políticas em curso -- crise do capitalismo, ascensão dos fascismos, dirigismo econômico, totalitarismo e várias outras coisas mais -- o velho liberalismo doutrinal precisava ser reforçado, ou adaptado aos novos tempos. Ninguém sabia bem o que propor, até que um alemão, refugiado do nazismo, Alexander Rüstow, sugeriu "neoliberalismo".
Ninguém sabia dizer muito bem o que era, mas pelo menos tinha uma conotação de novo.
De fato ficou meio esquecido até que no pós-guerra, Milton Friedman, um dos fundadores do Mount Pelerin Society, criada por Friedrich Hayek para estimular um retorno ao liberalismo clássico, escreveu, em 1952, um pequeno artigo tratando do "neoliberalismo", que depois foi integrado ao seu livro Essays in Positive Economics (Chicago: University of Chicago Press, 1953). O artigo deve estar disponível na internet, e eu o tenho guardado neste computador. Depois posto no Academia.edu e aviso.
Depois disso, o termo ficou meio esquecido, numa época de dominância praticamente absoluta do keynesianismo doutrinal e aplicado, ou seja teórico e prático, já que todos os governos eram keynesianos, inclusive os conservadores (os tories na Grã-Bretanha e os republicanos nos EUA).
Só quando a Margaret Thatcher desenterrou Hayek e começou a aplicar suas ideias na combalida economia britânica o termo foi recuperado pela esquerda já com uma conotação acusatória.
Ele inclusive passou a ser identificado com as chamadas regras do Consenso de Washington, quando estas não têm nada a ver, a não ser vagamento, com o espírito liberal, mas isso apenas por estupidez da esquerda, que repete slogans sem qualquer fundamentação e sem qualquer conhecimento de causa.

Retirei as informações sobre Walter Lippmann e seu colóquio do livro que estou lendo agora:
Edmund Fawcett (ex-editor da Economist): Liberalism: The Life of An Idea (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2014), p. 276 para ser mais exato.

Divirtam-se, portanto, e ninguém mais tem o direito de se enganar sobre o conceito, ou pelo menos o seu nascimento.
O copyright pertence a Alexander Rüstow.
Aliás, a informação já está na Wikipedia (vejam aqui: http://en.wikipedia.org/wiki/Alexander_R%C3%BCstow), de onde retiro este parágrafo:

In the 1930s, the climate in Germany became too unfriendly for Rüstow, and he obtained a chair in economic geography and history at the University of Istanbul, Turkey, where he worked at his magnum opus, Ortsbestimmung der Gegenwart (in English published as Freedom and Domination), a critique of civilization. In 1938 at the Colloque Walter Lippmann, it was Rüstow who created the term 'neoliberalism' to separate new liberalism from classical liberalism. Rüstow promoted the concept of the social market economy, and this concept promotes a strong role for the state with respect to the market, which is in many ways different from the ideas who are nowadays connected with the term neoliberalism.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Politica economica: aumentos gerais de impostos pelos Chicago-boys do poder...

Bem, só tinha um Chicago-boy, na origem, aquele mesmo que vinha do neoliberalismo e que estaria no extremo oposto do que os companheiros pretendiam fazer durante a campanha eleitoral, cuja política, aliás, eles denunciavam com horror, como sendo sinônimo de recessão, desemprego, redução de renda e de salários, enfim, todas aquelas maldades típicas dos capitalistas de olhos azuis. Esse aí virou neopetista.
Os outros Chicago-boys, esses já estavam no poder há doze anos, e se parecem muito com aqueles Chicago-boys dos anos 1920 e 30, se vocês me entendem...
Por uma dessas ironias involuntárias, a matéria é publicada pelo jornal do chefe da quadrilha, o Stalin Sem Gulag...
Paulo Roberto de Almeida

Aumento do IOF nas operações de crédito vale a partir desta quinta-feira

Correio do Brasil, 21/1/2015 16:02
Por Redação, com ABr - de Brasília
IOF
O decreto eleva de 1,5% para 3% o IOF
O Diário Oficial da União publica nesta quarta-feira decreto que aumenta a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) nas operações de crédito para as pessoas físicas. A medida entra em vigor esta quinta-feira.
O decreto eleva de 1,5% para 3% o IOF. O aumento faz parte do conjunto de quatro medidas anunciadas na última segunda-feira pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, em estratégia do governo para elevar a arrecadação e melhorar o superávit primário (economia para o pagamento de juros da dívida pública).
De acordo com o ministro, o objetivo é obter este ano R$ 20,6 bilhões em receitas extras. A maior arrecadação virá da elevação do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) sobre os combustíveis e do retorno da Contribuição para Intervenção no Domínio Econômico (Cide).
Outra medida é o aumento do PIS e da Cofins sobre os produtos importados. A alíquota subirá de 9,25% para 11,75%. O governo decidiu aumentar também o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para o atacadista e equipará-lo ao industrial.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O mito do neoliberalismo - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)

O mito do neoliberalismo

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1. Da pouco nobre arte de ser falaz
Falácia, segundo os bons dicionários, é a qualidade ou o caráter do que é falaz, que, por sua vez, é um adjetivo sugerido como sendo o equivalente de enganador, ardiloso ou fraudulento, ou, ainda, quimérico, ilusório ou enganoso. Pois bem, ao longo de minhas “peregrinações” acadêmicas, tenho tido a oportunidade de deparar-me com exemplos de afirmações, argumentos, postulações, teses ou artigos inteiros que correspondem ao caráter enganador ou, até mesmo, fraudulento contido nesse adjetivo. Comecemos esta série por um dos mais recorrentes em nossos tempos.
Como sabem todos aqueles que convivem com a literatura acadêmica na área de ciências sociais, nenhum conceito tem sido tão equivocadamente mencionado no ambiente universitário, nas últimas duas décadas, quanto o epíteto “neoliberal”, junto com o seu correspondente coletivo e doutrinal, o “neoliberalismo”. A incidência estatística de seu (mau) uso é tão notória, que se poderia falar de uma verdadeira epitetomania anti-neoliberal, dirigida contra todas as políticas econômicas associadas, de perto ou de longe, ao chamado mainstream economics, este representado pelas correntes ortodoxas de pensamento e suas práticas econômicas correspondentes.
Junto com o substantivo usado e abusado de globalização, ou, ainda, o tão mais detestado quanto praticamente desconhecido programa econômico do “consenso de Washington”, o neoliberalismo converteu-se, simultaneamente, em um xingamento e em um slogan de uso praticamente obrigatório por todos aqueles que pretendem desqualificar e condenar as políticas e as práticas da escola econômica convencional. Eles o fazem, supostamente em nome de uma outra orientação, de uma doutrina ou de uma escola, que seriam, alegadamente, heterodoxas, alternativas e até mesmo opostas às primeiras. Os argumentos e teses utilizados para esse tipo de condenação são pouco compatíveis com um trabalho analítico sério, ou seja, capazes de passar pelos testes da coerência, relevância, compatibilidade com os dados da realidade e passíveis de aferição, independentemente dos próprios argumentos que sustentam a acusação.
Nesse sentido, o neoliberalismo já se converteu em um mito acadêmico, isto é, deixou de significar uma realidade empírica, aferível por dados extraídos de alguma situação concreta, para passar a representar uma entidade nebulosa, definida de modo muito pouco precisa, aplicada a diferentes conjunturas de países e políticas vagamente caracterizadas como pertencendo ao domínio dos “livres mercados”, em oposição ao que seria uma regulação estatal mais estrita. Não se é neoliberal por vontade própria, mas apenas por ter sido assim catalogado por aqueles que detêm o monopólio dessa classificação, que são, invariavelmente, os opositores de supostas idéias “neoliberais”.
Por certo, existem muitos outros abusos acadêmicos em relação a diversos conceitos que são usados indevidamente no panorama pouco rigoroso das nossas “humanidades”, entre eles o de classe, o de imperialismo, o de burguesia e vários do mesmo gênero. Contudo, o manancial de falácias que brota sem cessar a partir do uso inadequado do adjetivo “neoliberal” é provavelmente o mais abundante e o mais disseminado de que se tem registro desde os anos 1980. São tantas as variedades de uso e as manifestações qualitativas – ainda que superficiais – em torno desse termo, que fica difícil ignorá-lo como o campeão absoluto de referências numa série analítica que pretende, justamente, examinar alguns exemplos de falácias acadêmicas. Seu uso é tão corrente e banal que pode ser espinhoso selecionar uma “falácia” representativa de toda uma corrente de pensamento que se propõe aqui submeter ao crivo da crítica argumentada e sistemática.
Encontrei, porém, no contexto de minhas leituras, um texto suficientemente representativo de uma falácia acadêmica associada ao dito conceito e perfeitamente ilustrativo do mito mencionado no título deste ensaio. Vou proceder à citação do texto em questão, submetendo o trecho selecionado à crítica que pretendo fazer de toda uma orientação doutrinal muito comum nos meios ligados à comunidade universitária que se move em torno das chamadas humanidades. Os únicos critérios que me guiam na releitura crítica do texto em questão são aqueles que se espera encontrar em todo e qualquer trabalho acadêmico: clareza na descrição ou exposição dos fatos, coerência na apresentação dos argumentos, relevância do discurso para a realidade de que se pretende tratar e sua adequação aos dados dessa própria realidade.
2. As novas roupas do velho imperialismo, em sua fase neoliberal
Deparei-me, num típico volume que deve figurar entre as leituras obrigatórias ou recomendadas de vários cursos dentro dessa área, com a seguinte afirmação:
“...o produto social da globalização, o neoliberalismo tem sido o mais dramático possível. Em pouco tempo esse novo regime de acumulação desagregou sociedades, tornou os ricos mais ricos e ampliou a pobreza em praticamente todos os cantos do mundo, especialmente as nações da periferia, onde a barbárie social vem esgarçando o tecido social e incrementando a violência em todos os sentidos.” (autor: Edmilson Costa; artigo: “Para onde vai o capitalismo? Ensaio sobre a globalização neoliberal e a nova fase do imperialismo”; in Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari (coord.), Relações Internacionais: Múltiplas Dimensões; São Paulo: Aduaneiras, 2004, p. 201-233; cf. p. 206.)
Existe ainda outra frase extraída do mesmo artigo que me parece adequada ao propósito de avaliar criticamente o mito do neoliberalismo em certo pensamento acadêmico contemporâneo, embora esta acima me pareça uma perfeita síntese de tudo o que existe de equivocado e falacioso no “pensamento” universitário em torno desse conceito onipresente e polivalente. Vejamos em todo caso o complemento ideal a ela:
“O neoliberalismo é a síntese de todo esse processo de mudanças profundas que estão ocorrendo no sistema capitalista: funciona como uma espécie de gerenciador ideológico, político, econômico, social e cultural dessa nova fase do imperialismo. Trata-se de uma ideologia primitiva para os tempos atuais, com postulados do século XVIII e meados do XIX, época do capitalismo concorrencial, mas com um apelo espantoso ao senso comum. A ideologia neoliberal procura manipular os sentimentos mais atrasados das massas, revigorando os preconceitos, açulando o individualismo, distorcendo o significado das coisas, reduzindo os fenômenos à sua aparência, de forma a ganhar os corações e mentes para o jogo do livre mercado e da livre iniciativa.” (Idem, op. cit., p. 219)
Não vale a pena alertar para a incoerência de se destacar o caráter “primitivo” de uma ideologia que, sendo de meados do século XIX, tem mais ou menos o mesmo grau de “primitivismo” que o marxismo, nem para a inconsistência de se vincular a defesa do livre mercado e da livre iniciativa a “sentimentos atrasados das massas”, já que a mesma ideologia estaria, supostamente, “açulando o individualismo”. Pedir um mínimo de coerência analítica seria exigir demais de um autor que, manifestamente, distorce o “significado das coisas”, reduz o fenômeno do liberalismo à sua aparência, com o provável objetivo de ganhar os corações e mentes de alguns estudantes para o livre jogo dos seus argumentos ilusórios. Passemos, portanto, a examinar cada uma das partes dessas afirmações, elas mesmas espantosas, em relação ao neoliberalismo, com a atenção que nos requer este exemplo consumado de fraude intelectual (se é verdade que este último adjetivo se aplica ao caso em questão).
3. O neoliberalismo como produto de uma imaginação confusa
Em primeiro lugar, o neoliberalismo nunca foi um “produto social da globalização”. Esta é um processo tão velho quanto os empreendimentos marítimos dos mercadores fenícios da antiguidade e as aventuras em mares desconhecidos dos navegadores ibéricos do final do século XV. Em suas manifestações mais comuns, ela vem sendo aceita tranquilamente até pelos mais empedernidos opositores desse processo, aqueles que, sob inspiração francesa, acreditam que “um outro mundo é possível” e que pedem por “uma outra globalização”, que deveria ser não assimétrica e, preferencialmente, não capitalista. Quanto ao neoliberalismo, a rigor, ele não tem nada a ver com a globalização, podendo ser teoricamente encontrado em diversos sistemas econômicos, bastando com que as práticas econômicas se ajustem ao que se tem, via de regra, como os fundamentos do sistema liberal: liberdade de iniciativa, pleno respeito à propriedade privada e aos contratos, defesa do individualismo contra as intrusões do Estado e, de modo amplo, um conjunto de instituições e práticas que buscam garantir, tanto quanto possível, a liberdade dos mercados.
A rigor, o neoliberalismo não existe, sendo apenas e tão somente um revival, ou renascimento, de uma velha escola de pensamento econômico e de orientações em matéria de políticas econômicas que se filiam ao antigo liberalismo doutrinal que surge na Grã-Bretanha a partir dos séculos XVII e XVIII. Aliás, nenhum “neoliberal” consciente e conseqüente se classificaria dessa maneira: ele apenas diria que segue os princípios do liberalismo (econômico ou político, não vem ao caso diferenciar aqui os dois sistemas, que não são idênticos, mas tampouco estranhos um ao outro) e ponto final; todo o resto seria dispensável. Neoliberal é, como já referido, um epíteto criado pelos opositores do liberalismo ou, se quisermos, um conceito que busca evidenciar, justamente, o retorno do antigo liberalismo, depois de um longo intervalo marcado por práticas e orientações claramente intervencionistas e estatizantes.
Mas continuemos. Deixemos de lado a caracterização de “dramático” aplicada a esse “produto”, pois isto corresponde a uma apreciação inteiramente subjetiva do autor, carente de qualquer fundamentação empírica. Esclareça-se, de imediato, que o “produto” não conforma, absolutamente, um “novo regime de acumulação”, que seria, supostamente, uma forma de organização social da produção e da distribuição de bens e mercadorias historicamente inédita para os padrões conhecidos do capitalismo. Ora, o liberalismo – e seu sucedâneo contemporâneo, que seria “neo” – está longe de ser novo e menos ainda de conformar um regime de acumulação, posto que configurando uma filosofia ou orientação geral nos terrenos da política e da economia. Acumulação é um termo geralmente associado ao pensamento econômico marxista, que denota formas genéricas de apropriação dos resultados sociais do processo de produção, o que pode ocorrer em regime de livre concorrência, de monopólio, de propriedade estatal ou de modalidades mistas dessas configurações produtivas. Aparentemente este autor demonstra pouco rigor na sua utilização do ferramental conceitual marxista; em benefício próprio, deveria ser mais cuidadoso com sua terminologia estereotipada.
Pretender, agora, que esse “novo regime” desagregou sociedades equivaleria a afirmar que o neoliberalismo foi responsável pela desestruturação de várias nações que conheceram a aplicação de políticas neoliberais. Olhando-se, honestamente, um mapa dinâmico do planeta, o que poderíamos constatar é que as únicas sociedades verdadeiramente desestruturadas da atualidade são algumas nações africanas que conheceram processos traumáticos de instabilidade política e social, algumas até atravessando guerras civis abertas e conflitos étnicos ou religiosos intermitentes, ou surtos violentos de conflitos tribais que se arrastam na quase indiferença das nações mais ricas do planeta, estas efetivamente “neoliberais” ou simplesmente liberais.
Com efeito, se podemos caracterizar algumas sociedades como mais liberais do que outras, estas parecem ser as nações do chamado arco civilizacional anglo-saxão (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia), sendo elas seguidas como menor rigor doutrinal (e maior pragmatismo) pelos países nórdicos ou escandinavos (Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia). Quanto aos países da Europa ocidental, essencialmente capitalistas em seu “modo de produção”, eles têm alternado práticas e políticas liberais – ou politicamente “direitistas”, para sermos simplistas – com outras tantas práticas e políticas mais social-democráticas, geralmente conduzidas por partidos de esquerda ou progressistas. No fundo, não se vê bem como distinguir essas políticas entre elas, a não ser no plano da retórica eleitoral.
Em nenhum outro continente ou região podemos distinguir países e sociedades verdadeiramente “neoliberais”, se formos rigorosos na utilização desse conceito. De fato, pretender que países latino-americanos, que empreenderam programas de ajuste e de estabilização macroeconômica depois de longas e recorrentes crises econômicas trazidas por processos inflacionários e de desequilíbrio no balanço de pagamentos, sejam ou tenham sido “neoliberais” – qualquer que seja o entendimento que se dê a esse conceito – representaria abusar em demasia desse conceito, retirando-lhe qualquer precisão metodológica e adequação à realidade empírica que nos é dada observar ao longo das últimas décadas.
Olhando com lupa, talvez se pudesse dizer que o Chile se apresenta como um país mais “neoliberal” do que a média dos latino-americanos. Ora, não se pode dizer que a sociedade chilena esteja “desestruturada”, a qualquer título. Colocando a lupa em outras sociedades da região, o que se observa é que existem, sim, alguns países bem mais desestruturados: os primeiros que aparecem são a Bolívia, a Venezuela e o Equador, com a possível inclusão da Argentina nesse conjunto. Pois bem, dificilmente se poderia dizer que eles estão assim por causa do neoliberalismo. Ao contrário. Em cada um deles, o que se observou, ao longo dos últimos anos, por acaso coincidentes com seus respectivos processos de desestruturação, foi, justamente, a aplicação de políticas dirigistas, estatizantes, intervencionistas, heterodoxas e, até, socialistas; ou seja, tudo menos políticas liberais. O autor deve estar com suas lentes embaçadas por preconceitos ideológicos, o que o impede de constatar a simples realidade de políticas econômicas que são efetivamente aplicadas nos diversos países considerados.
4. O neoliberalismo produz miséria e é sinônimo de barbárie?
O que dizer, em seguida, da suposta ação do neoliberalismo, que teria ampliado “a pobreza em praticamente todos os cantos do mundo, especialmente as nações da periferia”? Trata-se, mais uma vez, de afirmação desprovida de qualquer fundamentação empírica, não se podendo apoiá-la em praticamente nenhum exemplo de sociedade reconhecidamente “neoliberal”, qualquer que seja. A África, como vimos, afundou de fato na pobreza e na desesperança – embora ela venha crescendo novamente nos últimos anos –, mas essa evolução dificilmente poderia ser creditada à ação do neoliberalismo. Desafio o autor do texto selecionado a provar o contrário.
Quanto às duas nações “periféricas” que mais progressos fizeram na elevação gradual de uma miséria abjeta para uma pobreza aceitável, a China e a Índia, o que se observou, nas últimas duas décadas, foi um conjunto de reformas, várias ainda em curso, conduzidas justamente na direção de mecanismos de mercado, não de orientações estatizantes ou de planejamento centralizado. A renda per capita tem se elevado, progressivamente, em ambos os países, especialmente na China, que deu saltos espetaculares na redução da pobreza e na abertura de setores inteiros de sua economia à livre iniciativa e ao capital estrangeiro (todo ele capitalista e, supostamente, neoliberal). Quanto à Cuba socialista, ela conseguiu realizar a proeza de passar da maior renda per capita da América Latina em 1960 – não escondendo o fato de que ela era bem mal distribuída – para um patamar abaixo da média, em 2006, confirmando o consenso de que o socialismo é bem mais eficiente em repartir de modo relativamente igualitário a pobreza existente do que em criar novas riquezas.
Pode-se, talvez, alegar que as mudanças econômicas ocorridas na China vêm sendo feitas sob a égide do planejamento estatal e sob a firme condução do Estado chinês, que mantém controle sobre setores ditos estratégicos da economia do país. Essa realidade não elimina o fato de que todas as reformas operadas apresentam um caráter essencialmente capitalista e, portanto, tendencialmente neoliberal, ainda que não na versão “quimicamente” pura do modelo original anglo-saxão. O estilo ou a forma não pode sobrepor-se à essência do sistema, caberia registrar. Neste caso, nosso autor ou é cego ou é intelectualmente desonesto, ao não querer reconhecer esses dois processos de “enriquecimento capitalista”, que se desenvolvem sob os olhos de todo o planeta há aproximadamente duas décadas. Suas lentes estão completamente fora de foco ou muito sujas, aparentemente. Um pouco de estatística não lhe faria mal.
O fato de que, em vários desses processos – tanto em países desenvolvidos quanto em países em desenvolvimento –, os ricos estejam se tornando mais ricos não impede o outro fato concomitante de que os pobres estejam se tornando menos miseráveis. Quem não quiser tomar minha afirmação como um argumento de fé, pode conferir os dados apresentados por estudiosos da distribuição mundial de renda, como Xavier Sala-i-Martin, cujas evidências e conclusões já resumi neste artigo: “Distribuição mundial de renda: as evidências desmentem as teses sobre concentração e divergência econômica”, Revista Brasileira de Comércio Exterior (Rio de Janeiro: Funcex, ano XXI, n. 91, abril-junho 2007, p. 64-75; disponível: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1716DistMundRendaRBCE.pdf).
Se existem sociedades nas quais a “barbárie social vem esgarçando o tecido social e incrementando a violência em todos os sentidos”, como pretende o autor, elas estão longe de representar um modelo de “acumulação” ou de organização social da produção que seja liberal ou neoliberal, sendo mais efetivamente caracterizadas pelo autoritarismo político e pelo extremo intervencionismo econômico do Estado, quando não entregues à violência política, religiosa ou tribal, pura e simples, como parece ser o caso de alguns países do continente africano ou do Oriente Médio.
A afirmação carece, assim, de qualquer embasamento na realidade, sendo uma construção puramente mental de um autor manifestamente enviesado contra o que ele crê ser “neoliberalismo”, quando nenhum exemplo concreto desse sistema é discutido ou sequer aventado. Para um autor como esse, ser contra o neoliberalismo significaria se posicionar contra o livre comércio, contra o ingresso do capital estrangeiro, contra a administração em bases de mercado de inúmeros serviços públicos, contra a fixação dos juros e da paridade cambial pelo livre jogo da oferta e demanda de crédito e de moeda, enfim, preservar o controle estatal de inúmeras atividades com impacto social.
Se formos examinar, contudo, os dados econômicos relativos à renda, riqueza e prosperidade de um conjunto significativo de países, estabelecendo duas colunas, nas quais se colocaria, de um lado, os mais “neoliberais” – abertura ao comércio e aos investimentos, menor regulação estatal de atividades de produção e distribuição, fluxo livre de capitais e fixação dos juros e câmbio pelo mercado – e, de outro, os países menos propensos à abertura e mais inclinados à regulação estatal, e certamente quanto ao movimento de capitais – como são em grande medida os da América Latina, do Oriente Médio e da quase totalidade da África – teríamos uma correspondência quase perfeita entre maiores coeficientes de abertura, isto é, maior grau de “neoliberalismo”, e maior renda e prosperidade. O “quase perfeita” vem por conta de países de grande mercado interno – como os EUA – que apresentam pequeno coeficiente de abertura externa (apenas no que tange ao peso do comércio exterior no PIB), sem no entanto deixar de serem abertos às importações e atrativos aos capitais estrangeiros. Ou seja, a liberalização em comércio e em investimentos e um ambiente de negócios favorável à iniciativa privada constituem, sim, poderosas alavancas para a formação de riqueza e a distribuição de prosperidade.
5. O neoliberalismo é um mito, mas alguns ingênuos não sabem disso
Em qualquer hipótese, porém, o neoliberalismo é um mito, tanto pelo lado das acusações infundadas dos anti-neoliberais, como pelo lado dos promotores da própria doutrina liberal, uma vez que todos os Estados modernos, sem exceção, apresentam graus variados de intervenção no sistema econômico e de regulação da vida social. Uma série estatística sobre níveis de tributação e gastos públicos, ao longo do século XX, revelaria um avanço regular e constante da intermediação estatal nos fluxos de valor agregado e de dispêndio total, confirmando o papel sempre relevante do Estado na repartição setorial da renda total e na correção das desigualdades mais gritantes introduzidas pelos regimes puros de mercado. Aliás, falar em “Estado liberal” é uma total contradição nos termos, tanto o substantivo desmente o seu suposto adjetivo.
O que estava, contudo, em causa na análise conduzida neste ensaio de simples avaliação crítica de um dos mitos mais difundidos na academia não era, propriamente, a evolução econômica das modernas sociedades de mercado, e sim a afirmação – que vimos totalmente desprovida de qualquer fundamentação empírica – de que existe algo chamado neoliberalismo sendo ativamente praticado pelos Estados modernos e de que essa doutrina e prática seriam responsáveis por todas as misérias da sociedade contemporânea. Trata-se de uma das fabulações mais inconsistentes de que se tem notícia na produção acadêmica tida por séria e responsável.
Os dados disponíveis, revelados por organismos internacionais e por uma variedade razoável de organizações independentes, confirmam a melhoria sustentada dos padrões de vida em diferentes regiões do planeta, tanto mais rápida e disseminada quanto mais integrados estão esse países e regiões aos fluxos mundiais de comércio, tecnologia e investimentos. Assim, considerar que a “acumulação” neoliberal ampliou a pobreza em todos os cantos do mundo, aprofundou as desigualdades e provocou o cortejo de misérias que são registradas em áreas jamais tocadas por políticas e práticas neoliberais – qualquer que seja o entendimento que se dê ao conceito em questão –configura um tipo de fraude que só consegue ser repetido impunemente em salas de aula universitárias porque a academia brasileira é pouco responsável no “controle de qualidade” dos cursos da área de humanas e nos métodos de avaliação de docentes manifestamente despreparados para cumprir o programa do qual são encarregados. Para sermos mais precisos, estamos em face de uma desonestidade intelectual que só encontra paralelo em apresentações de mágicos de circos mambembes.
Termino por aqui minha primeira análise de uma falácia acadêmica detectada em livros utilizados em universidades brasileiras. De fato, o mito do neoliberalismo – que não guarda a mínima correspondência com a realidade verificável – oferece um exemplo concreto desse tipo de prática, mais comum do que se pensa, aliás, em nosso ambiente universitário. A um simples trecho selecionado de um artigo do autor aqui examinado pode-se aplicar o conjunto de caracterizações dicionarizadas e conectadas ao termo “falácia”: enganador, ardiloso, fraudulento, quimérico e ilusório. Outros exemplos certamente existem: eles também serão trazidos a exame no momento oportuno. Concluo com um aviso à maneira dos franceses: à suivre...

* Publicado originalmente em 09/03/2009.