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sábado, 1 de setembro de 2018

O PT critica a politica economica do governo do PT (maio 2003) - Paulo Roberto de Almeida

Chegou um momento, no primeiro semestre de 2003, em que o próprio think tank do PT, a Fundação Perseu Abramo, começou a criticar a política econômica do governo. O boletim eletrônico Periscópio, da Fundação e da Secretaria Nacional de Formação Política do PT, publicou um artigo de análise crítica a propósito do documento da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, “Política econômica e reformas estruturais” (redigido pelo economista Marcos Lisboa). Enviei meus comentários ao boletim Periscópio, publicados na seção Cartas do n. 25, maio de 2003, com comentários dos editores ao final do meu texto. 
Registro efetuado sob trabalho n. 1047, como indicado abaixo:

1047. “Um debate sobre a política econômica do Governo PT: Ruptura ma non troppo?”, Washington, 11 maio 2003, 9 p. Comentário a artigo de análise crítica sobre o documento da Secretaria de Política Econômica do Min. da Fazenda, “Política econômica e reformas estruturais”, publicado no boletim eletrônico Periscópio, da Fundação Perseu Abramo e Secretaria Nacional de Formação Política, do PT. Encaminhado ao boletim Periscópioe publicado na seção Cartas do boletim (n. 25, maio 2003), com comentários dos editores ao final do texto. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/09/2018

Um debate sobre a política econômica do Governo PT
Ruptura ma non troppo?

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 11 de maio de 2003

No que parece se apresentar como o primeiro debate sério – pelo menos público – sobre a política econômica do governo do PT, cinco meses depois de sua inauguração, o boletim eletrônico Periscópio, da Fundação Perseu Abramo e da Secretaria Nacional de Formação Política do PT, publicou, em seu nº 25 (maio de 2003), uma análise crítica do documento da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, “Política econômica e reformas estruturais”, indicado nesse artigo como trazendo a assinatura do ministro Antonio Palocci e refletindo, portanto, a visão oficial do governo sobre a conjuntura econômica. Segundo as informações disponíveis, o documento foi de fato elaborado pelo Secretário de Política Econômica, Marcos Lisboa, já devidamente criticado por outros setores identificados com a esquerda do PT.
Intitulada “Os caminhos da transição”, essa análise crítica não traz assinatura direta de seus autores, mas segundo informação da própria página do Periscópio, os responsáveis pelo seu expediente são o professor de ciência política da UFMG Juarez Guimarães, como editor, a colaboradora Célia Coleman, com a assistência de Hamilton Pereira, presidente da Fundação Perseu Abramo, e de Joaquim Soriano, secretário Nacional de Formação Política do PT. 
Não pretendo fazer uma análise política global desse documento, mas tão somente formular observações tópicas sobre elementos que nele me chamaram a atenção e deixar algumas interrogantes para análise posterior mais aprofundada. Procederei segundo uma metodologia linear, destacando trechos do documento aos quais faço seguir meus comentários específicos, remetendo a próprio texto para controle das citações.
Desde já caberia destacar, no entanto, uma espécie de divergência conceitual e de enfoque analítico entre, de um lado, o formato assumido pelo “documento original”, concebido como uma síntese-apresentação das políticas defendidas e implementadas pelo Ministério da Fazenda, e como tal de cunho essencialmente econômico, e, de outro, a natureza da “análise crítica” propiciada pelos autores em questão, que se situa mais bem no plano de análise política. Essas diferenças de “essência” e de enfoque tornam por vezes impossível a uma terceira parte, como esta que aqui escreve, realizar um “diálogo” entre ambos os textos, já que eles parecem se situar em dois universos paralelos. 

A herança do passado e a conjuntura internacional
A análise crítica começa por reconstituir as condições de partida do governo Lula, mas o faz sem qualquer distinção entre as orientações de política econômica do governo anterior e o que foram resultados de uma conjuntura específica: “No campo econômico, o contexto criado pelo governo Fernando Henrique Cardoso impôs uma combinação perversa do fechamento das linhas de crédito internacionais, uma elevação explosiva do risco Brasil medido pelas agências financeiras, uma escalada de desvalorização do real e uma tendência altista da inflação, gerada em grande medida pela elevação do dólar e pelos reajustes contratados das tarifas públicas.
A rigor, apenas os reajustes definidos contratualmente das tarifas públicas podem ser creditados ao “contexto criado pelo governo FHC”, pois que todos os demais efeitos apontados como produzindo uma “combinação perversa” foram criados e alimentados durante o processo eleitoral, tendo sido provocados e desenvolvidos em grande medida devido ao crescimento do candidato do PT e seu possível impacto nas políticas econômicas em vigor à época, tal como percebido pelos chamados “operadores de mercado”, também conhecidos como “especuladores de Nova York”.
Há, de fato, uma perfeita simultaneidade entre a curva dos prognósticos eleitorais e a deterioração dos indicadores apontados como perversos: “fechamento das linhas de crédito internacionais, uma elevação explosiva do risco Brasil medido pelas agências financeiras, uma escalada de desvalorização do real e uma tendência altista da inflação, gerada em grande medida pela elevação do dólar…”. Pode-se não gostar desses efeitos, mas eles estão na exata direção inversa da política econômica do governo FHC, tal como pilotada pelo ministro da Fazenda Pedro Malan e pelo presidente do BC Armínio Fraga nos dois anos anteriores.
A análise crítica destaca em seguida alguns desses elementos de conjuntura no plano externo, deixando implicitamente entender que o governo Lula conseguiu vencer desafios momentosos: “…a posse e os primeiros cem dias do governo Lula coincidiram com o auge do processo de desestabilização do governo Chávez na Venezuela e a guerra contra o Iraque.” Cabe observar, porém, que o processo político venezuelano praticamente não atingiu o Brasil no plano econômico e todos os desastres econômicos antecipados em função da guerra contra o Iraque revelaram-se falhos e equivocados, antes mesmo dela terminar, ocorrendo, na verdade, a redução dos preços do petróleo e um impacto negligenciável nos fluxos de capitais financeiros em direção ao Brasil. 

O problema do método analítico e o “foco” da abordagem econômica

A análise crítica é precedida de uma apresentação sumária das principas proposições do documento da Fazenda, que pode ser considerada como objetiva e bem sucedida. Um primeiro problema metodológico se coloca ao início da análise crítica, quando os autores falham em revelar a perspectiva a partir da qual pretendem fundamentar essa análise: “A seguir, apresentam-se cinco considerações de ordem geral sobre a proposta acima a partir do campo analítico-normativo que vem sendo desenvolvido no Periscópio.
Na verdade, o “campo analítico-normativo que vem sendo desenvolvido no Periscópio” não está explicitado neste artigo, o que deixa o leitor comum sem saber quais seriam as pressuposições implícitas à abordagem de seus autores. Em contrapartida, a análise crítica coloca os requisitos para um debate civilizado sobre a política econômica do governo, mas o grande problema foi a quase total ausência de enfoque econômico explícito e mesmo de uma crítica interna às premissas implícitas ao documento original, preferindo os autores ater-se a uma abordagem de tipo político-sociológico.
A análise se desloca em seguida para o problema das “evidências empíricas” que se situam na base dos diagnósticos do documento original, que deveriam, segundo a análise crítica ser comprovadas de modo mais explícito, ou até qualificadas: “A noção central, por exemplo, que a diminuição da concentração de renda exigiria focalizar os gastos sociais do Estado para os mais pobres consta desde o início dos anos oitenta de estudos e recomendações do Banco Mundial, tendo sido contestada por inúmeros estudos acadêmicos qualificados. Será que a concentração de renda no Brasil não tem nada a ver com o valor do salário mínimo, com a concentração da propriedade fundiária, com a estrutura tributária regressiva, com os ganhos do capital frente ao trabalho, com os super lucros do sistema financeiro?
Essa visão crítica do documento da Secretaria de Política Econômica do MiniFaz, quanto ao “foco” dos gastos sociais, remete a uma “contestação” desse tipo de abordagem que segundo os autores teria sido feita “por inúmeros estudos acadêmicos qualificados”. Esses estudos não são entretanto referidos no texto, nem a crítica neles formulada é apresentada de maneira clara. Por outro lado, uma “contestação” adicional é oferecida mediante uma série de perguntas, mas não ocorre, infelizmente, alguma tentativa de respondê-las ou de indicar as vias alternativas àquelas focalizadas no documento original.
Caberia observar que não são apenas “estudos do Banco Mundial” que criticam o “desvio” dos gastos sociais em favor de setores relativamente “privilegiados” da população, mas também trabalhos elaborados no Brasil, pela equipe do IPEA, por exemplo, com base numa análise desagregada dos gastos previdenciários e de outros subsidios estatais, como a composição das alocações aos diversos níveis educacionais. Evidências amplas existem quanto à enorme concentração de despesas pevidenciárias em faixas de renda superiores ou quanto à distribuição distorcida das despesas educacionais (gastos no terceiro ciclo representando praticamente o dobro da renda per capita média nacional, ao lado de valores insignificantes para o primeiro ciclo, por exemplo). Estas questões precisam ser consideradas no debate nacional sobre a distribuição desigual da renda.
Por outro lado, as menções, na análise crítica, aos fatores negativos representados pelo “valor do salário mínimo, [pela] concentração da propriedade fundiária, [pela] estrutura tributária regressiva, [pelos] ganhos do capital frente ao trabalho, [pelos] super lucros do sistema financeiro” traduzem uma visão quase jornalística da realidade econômica nacional, não sendo condizentes com uma análise econômica série que tente identificar elementos imanentes ao padrão distributivo brasileiro, desagregando fatores causais ligados ao “estoque” de renda (ou de patrimônio), como a propriedade fundiária, por exemplo, de outros mais vinculados a “fluxos” criados a partir de movimentos cíclicos da atividade econômica, em grande medida determinados pelas políticas governamentais, como os “super lucros do sistema financeiro”, para ficar no terreno privilegiado pelos autores do artigo. Um dos grandes fatores determinantes dos padrões distributivos no Brasil, a qualificação técnico-profissional da população ativa, não é sequer considerada pelos autores do estudo analítico do boletim Periscópio.

A metodologia das ausências e dos silêncios

O ritmo e a direção da análise crítica, que pareciam encaminhar-se para um debate consistente sobre as alternativas de política econômica à disposição do governo, são logo em seguida quebrados por uma consideração de tipo bibliográfico e um lamento quanto ao recurso exclusivo a uma única “escola de pensamento”, como revelado neste trecho: “O próprio teor argumentativo do documento, a bibliografia utilizada e citada, a construção dos dados revela a característica fundamentalmente monológica do documento, isto é, ele passa por alto pelos grandes diálogos críticos, pelas grandes tradições interpretativas do Brasil, clássicas e recentes, por escolas as mais variadas do pensamento econômico internacional ou nacional. O seu grande diálogo é, na verdade, consigo mesmo, isto é, com aquelas verdades enunciadas e atestadas em um trecho de uma determinada escola de pensamento.”
A crítica aqui deixa o terreno substantivo para se deter na forma, ou na metodologia supostamente adotada pelo documento original, acusado de não passar, ou mesmo ignorar, as “grandes tradições interpretativas do Brasil” e de se fixar numa “determinada escola de pensamento”. Não se percebe bem onde estariam os pecados substantivos do documento, pois o fato de passar por cima de “diálogos críticos”, de “tradições interpretativas” ou de uma pluridade de “escolas” do pensamento econômico não permitiria, por essa simples razão, desqualificar, do ponto de vista do conteúdo, uma determinada argumentação. 
Essa argumentação, no entanto, deveria ser analisada (e aí sim, eventualmente desqualificada) com base em seus méritos (ou deméritos) próprios, em sua coerência lógica ou adequação intrínseca à realidade que pretende examinar, não em função de estar mais próxima ou mais distante de tradições, diálogos e escolas que sequer são identificadas e qualificadas também em seu mérito próprio. A crítica revela aqui uma inconsistência heurística que não seria sustentável num ensaio acadêmico submetido à análise de parecerista anônimo para fins de publicação. 
O enfoque da análise crítica passa então a privilegiar as lacunas supostamente existentes no documento, o que no entanto levanta o problema do campo escolhido para debate, se o do documento original ou aquele preferido dos autores: “Uma terceira observação diz respeito aos silêncios do documento. Quais são as consequências do aprofundamento do superávit primário, estabelecendo-se como piso o máximo praticado na era Malan? Há como se aumentar o salário mínimo substancialmente, enfrentar o arrocho do funcionalismo público, melhorar qualitativamente a saúde e a educação públicas, realizar uma reforma agrária mais ampla ou atacar de frente o atraso nos investimento de infra-estrutura ou mesmo recuperar o atraso nos investimento em habitação e saneamento com um tal recuo nos gastos do Estado? Qual destes objetivos seria possível?”
Esse tipo de procedimento, de “crítica pela ausência”, conforma um dos problemas mais graves da análise crítica, como revelado na passagem acima transcrita. A crítica não está dirigida ao que o documento contém, mas ao que ele supostamente deixaria de conter, a que se seguem perguntas selecionadas pelos autores da análise. Mas estas perguntas poderiam ser multiplicadas por dez, sem que fosse resolvido o problema da consistência lógica: ou seja, como fazer uma crítica “leal”, mas no próprio terreno argumentativo do texto contemplado, não em terrenos não cobertos (segundo a visão seletiva da análise crítica) pelo documento original?
Os objetivos indicados pelos autores são todos válidos em seu mérito próprio, mas caberia a eles destacar e “provar” a relevância dos elementos selecionados para a análise em apreço, não apenas apontar sua suposta ausência no documento da Fazenda. Assim, em que medida o fim do chamado “arrocho do funcionalismo”, a expansão dos gastos em educação, na reforma agrária e com infra-estrutura são relevantes para os objetivos focalizados no documento, comprometido, segundo resumo feito pelos próprios críticos, com a manutenção da estabilidade fiscal e a diminuição da “despoupança” estatal? 
Se esses elementos de política econômica são importantes para uma boa gestão econômica de governo, por que os próprios autores da crítica não respondem à pergunta por eles mesmos colocada?: em que medida esses “objetivos” (fim do “arrocho”, gastos com educação e reforma agrária, investimentos em infra-estrutura) contribuem para o atingimento das metas focalizadas no documento original da Fazenda?

Mais silêncios eloquentes: gritos e sussurros econômicos

Dando continuidade à “estratégia das lacunas”, os autores da análise crítica se detêm num problema de natureza econômica: “Chega-se a um outro silêncio espantoso do texto: nos anos noventa, o crescimento explosivo da dívida pública deu-se a partir basicamente da sua dimensão financeira (juros e amortizacão de dívidas); a maior parte do tempo houve superávit operacional isto é, aquilo que o Estado arrecadou foi sistematicamente maior do que o Estado gastou, excluídos seus gastos financeiros. A dimensão financeira da dívida sequer é mencionada no documento e esta omissão é compatível com a idéia de que os juros reais devem permanecer no mesmo patamar dos últimos anos.
Trata-se, contudo, de uma análise sujeita a caução, uma vez que outros estudos indicam que o elemento “juros” é responsável por apenas uma parte, e não a mais importante, do crescimento da dívida pública ocorrida no período. De toda forma, trata-se de uma equação parecida com a do ovo e da galinha, uma vez que os juros altos não representam apenas uma “perversidade” do modelo econômico anterior, mas são, como reconhecem inclusive economistas da antiga oposição, o resultado de uma situação objetiva que não foi ainda encaminhada de modo satisfatório pelo Estado brasileiro: a diminuição de seus requerimentos em termos de receitas (ou empréstimos) para justamente diminuir o patamar dos juros. 
Em todo caso, os autores da crítica fariam bem em apontar os caminhos para a redução da “dimensão financeira” da dívida pública, por eles considerada como o mal absoluto: se via redução “compulsória”, ou administrativa, dos juros ou se via redução dos requerimentos de financiamento do Estado. Não se compreenderia um silêncio tão clamoroso sobre um importantíssimo problema de política econômica.
Continuando sua estratégia de condenar o documento pelos seus supostos “silêncios”, os autores se referem agora ao tradicional problema da vulnerabilidade externa da economia brasileira que, desde os anos 1930 pelo menos, se resume a um problema de fragilidade financeira, aqui colocado na lista das lacunas: “Um terceiro silêncio: há um grande consenso entre economistas de distintas tradições, após várias crises cambiais sofridas pelo país, que a redução da vulnerabilidade externa da economia brasileira é um objetivo estratégico central a ser perseguido. O documento sequer problematiza de forma mais profunda esta questão.
Talvez seja de fato lamentável, mas se esta questão é considerada como “estratégica” e “central” e portanto digna de ser “problematizada”, então não se compreende o silêncio clamoroso dos autores em se recusar por sua vez a “problematizá-la”, oferecendo sua própria interpretação sobre as raízes profundas e as formas de superação dessa vulnerabilidade. Uma crítica que não se fundamenta a si mesma perde grande parte de sua legitimidade intrínseca. 

O problema da “lógica política”: um universo paralelo

Os autores da análise crítica deixam o terreno da “política econômica” para o terreno mais difícil das intenções políticas, por eles identificado como possuidor de uma “lógica” própria: “Uma quarta consideração, talvez a principal, diz respeito à lógica política que fundamenta as opções do documento. Elas precisam ser esclarecidas e debatidas.
Trata-se, contudo, de uma “exigência metodológica” que se situa na mesma linha das “ausências”, reais ou supostas, do documento: como ele não explícita sua “lógica política” os autores da crítica o farão por sua própria iniciativa, mesmo se o documento original não pretende ter, ou defender, uma “lógica política” específica, preferindo situar-se, presumivelmente, na modesta racionalidade da análise econômica, sem preocupar-se com esse tipo de “problematização” que costuma frequentar os textos sociológicos.
Como fazer, então, para “esclarecer” ou “debater” essa “lógica política”? Tudo depende da própria seleção dos autores da crítica, não dos argumentos contidos original e explicitamente no documento objeto de análise crítica. Pode haver algum elemento de arbitrariedade nesse tipo de procedimento, como qualquer especialista em metodologia poderia confirmar. 
Adentrando o terreno pantanoso da “lógica política”, os autores “descobrem” o que seriam as “reais intenções” do documento original: “Certamente a grande atração da estratégia do documento é fundamentar a viabilidade, a necessidade e o sentido virtuoso de um caminho de baixa intensidade de conflito com as forças políticas e econômicas que sustentaram o governo Fernando Henrique.”
Aqui, no entanto, o objeto escolhido para a crítica está inteiramente desfocado, pois que ao privilegiar a suposta “lógica política” do documento, a análise foge totalmente ao terreno no qual se situa o documento original da Fazenda, que se situa inteiramente no campo da análise e das possíveis alternativas de política econômica à disposição do governo. Que essas alternativas poupem ou não a antiga base política do governo anterior não estava em consideração no documento em análise, mas trata-se de uma extrapolação ou ilação dos autores da análise crítica em questão.
Mas, nessas condições, não há condições de diálogo entre ambos os textos, pois eles se situam e patamares diferentes, de fato incompatíveis entre si, o que torna impossível qualquer comentário crítico a partir de uma terceira posição. Simplesmente não existe um terreno comum de diálogo, mas dois universos distintos separados por anos-luz entre objetivos originais e intenções secundárias. Mais uma vez deve-se chamar a atenção para esse tipo de procedimento não compatível com as boas regras da análise textual.
A análise crítica se detém, em seguida, em alguns exemplos dessa “lógica política” na qual eles escolhem o objeto da caça e exibem triunfalmente a sacola vazia do caçador original: “Na estratégia proposta não há um conflito aberto com o FMI (ou com as agências internacionais que se pautam hoje pelo chamado ‘Novo Consenso de Washington’).
Não se tem idéia, exatamente, do que possa ser esse “novo consenso de Washington”, não explicitado ou explicado na análise crítica. Conhece-se o antigo “consenso”, publicado reiteradas vezes, e hoje objeto de um novo conjunto de ensaios analíticos, dito “pós-Consenso de Washingon”, que visa reafirmar e aprofundar o anterior. Em todo caso, o que se proclama como “conflito aberto com o FMI” afigura-se mais como um produto da imaginação dos autores da análise crítica do que como um dado da realidade, pois não se sabe de nenhum conflito emanando da Fazenda ou do FMI a respeito de políticas econômicas do governo brasileiro, existentes ou alternativas. Ao contrário, as últimas manifestações, de cada uma partes, revelaram total entendimento.
Para que a “problemática” em torno do FMI e do “novo consenso de Washington” fosse mais compreensível à maioria dos leitores, caberia aos autores da crítica deixar bem claro a que tipo de conflito se referem, quais seriam seus componentes e como ele poderia ser resolvido com a predominância de uma ou outra alternativa. À falta dessas definições, ficamos apenas no terreno do imaginário, ou das alucinações coletivas. 
Se os autores entendem que o documento da Fazenda deveria comportar uma “estratégia de conflito aberto com o FMI”, por honestidade intelectual e maior esclarecimento dos leitores deveriam dizer qual deveria ser, exatamente, essa proposta. Como não o fazem, a crítica perde muito de sua consistência lógica. 
Um segundo personagem, nacional e internacional, vem frequentar a análise: Em relação ao capital financeiro, estabelecem-se as mais nítidas garantias de que os seus interesses continuarão a ser contemplados e priorizados.” O chamado “capital financeiro” é um dos mais curiosos personagens que frequentam as análises ditas de esquerda. Trata-se de uma entidade quase fantasmagórica, pois não são identificados exatamente quem são, exatamente, o que fazem e o que pretendem essas figuras malignas da economia nacional (e internacional).
Obviamente existem os banqueiros, mas como todos sabem eles não “brincam” com o seu próprio dinheiro e sim captam os ativos de milhares (milhões) de depositantes e usuários do sistema bancário e financeiro para canalizar recursos para outras áreas, em primeiro lugar para o próprio governo, que mobiliza, como se sabe, grande parte da poupança (e dos fluxos) dos residentes. Os autores da crítica deveriam dizer claramente quais são os interesses desse setor e dizer como e por que o governo decidiu contemplá-los e “priorizá-los”. E talvez oferecer sua própria visão alternativa de como e em que condições esses interesses não deveriam ser contemplados e, ao contrário, “despriorizados”. Seria o mínimo de exigência argumentativa que se espera de autores que tem uma visão muito clara sobre as insuficiências substantivas e de lógica política do documento da Fazenda. 
Outras figuras também comparecem no cenário: “Ao grande capital industrial, propõe-se uma linha de políticas desenvolvimentistas mais ativas. Aos grandes proprietários do campo, compõe-se um roteiro de uma reforma agrária em escala reduzida.”
Insuficiente, não é mesmo? Mas, a análise crítica tampouco vai além dessas generalidades, e não nos diz como deveriam ser as linhas específicas de uma política industrial ainda mais desenvolvimentista e uma reforma agrária em escala ampliada. Se não o faz, a crítica se situa no mesmo patamar do documento criticado: carece de explicitações sobre pontos que ela julga fundamentais. 

À margem da lógica: extrapolando da economia para a mudança política

A seção final da análise crítica penetra num terreno que ultrapassa em muito as modestas virtudes prescritivas em matéria de política econômica do documento da Fazenda. Com efeito, ela começa por atribuir ao documento virtudes que ele aparentemente não tem, nem pretenderia ostentar: “O grande problema a ser respondido por esta estratégia de mudanças de ‘baixa intensidade’ seria, de um lado, a administração das tensões internas ao PT, da base política mais próxima do governo, dos movimentos sociais organizados e, de outro, das aspirações de mudanças profundas no país que se refletiram nas eleições de 2002.”
Parece-me contudo que esta questão situa-se inteiramente à margem, ao exterior mesmo, dos objetivos e propósitos do documento criticado, que não pretende tratar de “mudanças” de alta ou de baixa intensidade, e sim refletir sobre e expor os fundamentos de determinadas escolhas em matéria de política econômica. Em nenhum momento, o documento original se dirige a setores do PT, mas à sociedade como um todo e ele está sim dialogando com a sociedade sobre como realizar as mudanças profundas prometidas na campanha eleitoral. Apenas ocorre que as modalidades de mudança favorecidas pela equipe da Fazenda distanciam-se consideravelmente, cabe reconhecer de modo claro, daquelas modalidades que parecem preferir os autores da crítica. 
A análise crítica adquire então contornos explicitamente gramscianos – o que certamente é um direito dos autores, mas afigura-se incongruente com a natureza do documento original – para fazer algumas recomendações que soam como advertências: “Há experiências históricas de partidos de esquerda que foram derrotados em função de planos voluntaristas de mudança. Mas nas últimas décadas o mais comum é o fracasso de governos eleitos com promessas de mudanças profundas e que foram sendo progressivamente imobilizados por racionalidades continuístas.” 
Trata-se de nova extrapolação que se situa-se num universo paralelo ao do documento da Fazenda, não guardando com ele qualquer relação de parentesco lógico, substantivo ou metodológico. O documento original não pretende provar ou testar nenhuma tese sociológica ou realizar qualquer exercício de comparatismo histórico, neste caso de caráter diacrônico, mas tão somente oferecer os seus próprios fundamentos para aquilo que a análise crítica chama de “racionalidade continuísta”. Talvez se trate disso mesmo, mas o debate tem de situar-se no terreno próprio das políticas propostas, não na projeção utópica do futuro, ou seja, o que pode vir a acontecer caso tais políticas sejam praticadas durante um certo tempo. 
De fato, o que está implícito na crítica gramsciana aqui focalizada?: “…uma política econômica dotada de fundamentos liberais é a longo prazo incompatível com a própria natureza socialista ou mesmo social-democrata de um partido no governo. Uma política econômica de fundamentos liberais paralisaria o próprio ethos de mudança na cultura política, a vontade das pessoas, suas crenças, suas esperanças e, ao final, pressionaria para a mudança da própria identidade e bases sociais do partido que a conduz.
A primeira frase é incontestavelmente verdadeira, tanto do ponto de vista político como do histórico: políticas liberais são em geral opostas a orientações socializantes, mas isso não corresponde a nenhuma verdade revelada, na teoria ou na prática. Trata-se de uma banal e reiterada constatação, podendo ser encontrada em qualquer manual universitário. Deve-se entender que ela apenas figura no texto de análise como uma espécie de advertência de tipo político-ideológica, algo como: “atenção, essa política nos afasta do verdadeiro caminho que guia o partido”?
A segunda frase, porém, deve ser considerada como incorreta, em todos os sentidos, pois que uma política liberal pode, sim, representar um “ethos de mudança”, sobretudo num país caracterizado por anos ou décadas de políticas intervencionistas ou dirigistas. Ao contrário do que supõem os autores da anaálise crítica, uma política liberal não tem nenhum poder “paralisante” sobre pessoas, suas crenças ou esperanças, tanto porque já provou, na prática, que ela pode gerar debate e mesmo contestação, de tipo econômico ou ideológico, como a que acaba de configurar-se.
Por fim, pode-se até mesmo aventar a hipótese de que, se bem sucedida, essa política “liberal” – que na verdade deve ser considerada simplesmente como pragmática – terminará por mudar até mesmo o partido vitorioso nas eleições. Terá sido, talvez, um resultado inesperado da famosa lei das consequências involuntárias. 
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 11 de maio de 2003