Sou colunista da revista Crusoé, o que implica em resguardar por certo tempo os direitos autorais da editora responsável. Considero que depois de duas ou três semanas seja razoável divulgar por este canal a íntegra dos meus artigos, vários deles de natureza conjuntural. É o que faço agora.
4511. “Diferenças entre a ‘velha’ e a ‘nova’ diplomacia de Lula”, Brasília, 16 novembro 2023, 3 p. Artigo para a revista Crusoé; publicado em 24/11/2023 (link: https://crusoe.com.br/edicoes/291/diferencas-entre-a-velha-e-a-nova-diplomacia-de-lula/). Relação de Publicados n. 1533.
Diferenças entre a ‘velha’ e a ‘nova’ diplomacia de Lula
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
revista Crusoé (24/11/2023 (link: https://crusoe.com.br/edicoes/291/diferencas-entre-a-velha-e-a-nova-diplomacia-de-lula/).
Países evoluem, geralmente no caminho do desenvolvimento econômico e social, da democracia representativa e das liberdades individuais. Nem todos eles: alguns conhecem ditaduras e mesmo totalitarismo, como a Alemanha de Weimar, nos anos 1930-40, enquanto outros passam por involução econômica e retrocessos sociais, e temos exemplos disso aqui mesmo, bem pertinho. As pessoas geralmente também vão mudando ao longo dos anos, do voluntarismo e do radicalismo juvenil para posturas mais sensatas, talvez conservadoras, com a idade madura, a família, filhos e netos, a percepção da complexidade social, enfim.
Espera-se que essa seja, por exemplo, a típica transição dos políticos profissionais, desde as posições extremadas do começo de carreira para uma convergência com posturas mais conciliadoras com outras forças e movimentos partidários. Nem sempre, todavia, é assim. Alguns acentuam velhos hábitos, outros aprofundam comportamentos sectários e certo radicalismo tardio, muitas vezes anacrônico. Isso parece ter ocorrido com Lula, a despeito de uma notável continuidade nas características básicas: o populismo, a modulação do discurso para cada plateia, as alianças preferenciais dentro do mesmo, velho, espectro partidário. Tais características são especialmente válidas no campo da diplomacia e da política externa.
Cabe aqui uma constatação inicial, visível desde o início do seu terceiro mandato: a diplomacia basicamente pessoal de Lula vem convertendo-se no principal problema para a diplomacia profissional do Itamaraty, que se esforça para manter um razoável equilíbrio nas relações com os principais parceiros externos. O personalismo do chefe da diplomacia tendeu a se reforçar no período recente, comparativamente aos dois primeiros mandatos. Na verdade, a diplomacia lulopetista foi exacerbadamente pessoal, em todos eles, mas ela acentuou o personalismo desde a campanha presidencial de 2022, levando ao exagero a própria noção de diplomacia presidencial. Vamos às evidências da mudança.
A antiga diplomacia lulopetista (2003-2010) também tinha uma grande carga de personalismo de quem se acreditava o melhor de todos os diplomatas, com seus improvisos que frequentemente desprezavam os discursos burocraticamente bem escritos pelo Itamaraty. Mas ela conseguia preservar certo equilíbrio de racionalidade ideológica entre os três grandes formuladores e executores: Lula, Amorim e Marco Aurélio Garcia, este mais conhecido entre os diplomatas como “chanceler para a América do Sul”, dada a sua dedicação aos partidos de esquerda da região, sem esquecer os amigos cubanos e alguns centro-americanos. A “pizza diplomática”, nessa época, era composta por seis fatias puramente diplomáticas, isto é, os temas tradicionais do Itamaraty, e duas fatias de diplomacia partidária, como as boas relações com os amigos socialistas, os bolivarianos, os antiamericanos de maneira geral. Lula deu o tom de suas grandes iniciativas naquele período: orientação mais política do que comercial para o Mercosul, tentativa de liderar a América do Sul na oposição ao projeto americano da Alca – que ele conseguiu implodir com a ajuda dos companheiros Chávez e Kirchner –, os grandes encontros de presidentes da América do Sul e seus contrapartes da África e dos países árabes, assim como a criação da Unasul, logo dominada pelos bolivarianos.
A política externa era em grande medida dominada pelas concepções lulopetistas, mas apoiadas no profissionalismo do Itamaraty, que se esforçava para oferecer ao “nosso Guia” – como Amorim se referia a Lula – as condições ideais para o desempenho de sua diplomacia pessoal. Ele tinha presença garantida em diferentes foros plurilaterais, aos quais comparecia como convidado ou parte legítima – G7 e G20, por exemplo – ou como um dos promotores originais: IBAS, com Índia e África do Sul, a Unasul e, logo em seguida, o BRIC, ao lado da Rússia, da Índia e da China, no que, ao início, era um foro de países dinâmicos na economia.
Ausente durante treze anos de seu projeto de liderança regional, impedido de exercer seus talentos no contexto de um diáfano Sul Global – um “ente” bem mais teórico do que um foro dotado de consistência efetiva –, Lula voltou ao comando do país prometendo retomar seus antigos projetos políticos, sob o slogan “O Brasil Voltou!” Talvez tenha até voltado, mas não exatamente da forma como Lula gostaria, pois nem sua presença no G7 de Hiroshima, nem as duas reuniões de cúpula sul-americana do primeiro semestre de 2023, lhe trouxeram os dividendos políticos esperados: Zelensky, no primeiro caso, concorrentes da esquerda sul-americana, no segundo caso, tolheram o brilho que ele esperava recolher nesses encontros.
O que se registrou, na verdade, foi uma acentuação do seu personalismo diplomático, doravante em estado puro, sem algum real substrato fornecido pela retórica mais comedida da diplomacia profissional. Lula passou a disparar invectivas e recriminações contra velhos e novos adversários, por acaso todos eles situados no campo ocidental. Sua “neutralidade” favorável à Rússia no caso da guerra de agressão à Ucrânia já era bem conhecida desses interlocutores ocidentais, que ficaram ainda mais chocados com sua postura enviesada em favor de uma “resistência palestina” que escondia mal a disfarçada ausência de condenação formal do terrorismo do Hamas, completamente “esquecido” nos primeiros pronunciamentos, do próprio Lula e, de forma ainda mais constrangedora, nas notas da diplomacia oficial.
A operação de resgate dos refugiados da Faixa de Gaza foi muito mais cercada das atenções presidenciais do que tinha sido o retorno dos refugiados de Israel, o que era de certa forma previsível; a recepção pessoal deu-lhe oportunidade para uma nova série de improvisos pouco diplomáticos sobre o “genocídio israelense”, que chocou um espectro ainda maior da opinião pública nacional e internacional. Lula ainda não parece ter percebido que invectivas daquele teor, sem o devido aconselhamento de conselheiros menos afoitos, prejudicam a si próprio, a imagem do país, assim como a diplomacia de ambos, a oficial e a personalista.
Na verdade, esse tipo de descontrole verbal não começou no caso da guerra Hamas-Israel, com um inédito acúmulo de tragédias humanas, mas vinha se manifestando desde antes da vitória eleitoral em 2022, quando Lula atribuiu igual responsabilidade aos dois contendores no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. Suas contínuas defesas de Putin têm mais a ver com a miragem de uma nova ordem internacional não ocidental do que com os interesses diplomáticos brasileiros de longo prazo.
O mesmo tipo de atitude pode ter continuidade de uma maneira ainda mais dramática do ponto de vista do Brasil no caso de uma eventual guerra de agressão da Venezuela contra a Guiana. Lula talvez desconheça o histórico envolvimento do Brasil nessa questão, pois que o Essequibo na mira do ditador venezuelano foi o foco da controvérsia arbitrada mais de cem anos atrás contra o Reino Unido. Ele não deveria permanecer indiferente a uma questão de Direito Internacional cuja violação criaria um conflito em terras anteriormente brasileiras.
Lula carece de preparação adequada para manejar a complexidade de uma diplomacia atuando em múltiplas frentes como é a do Brasil. Entre intromissões indevidas e omissões não justificadas, ele está destruindo sua reputação de estadista, assim como a credibilidade conquistada pela diplomacia ao longo de muitas décadas de construção de uma autonomia reconhecida por todos. A bizarra expansão do Brics conduzida por duas grandes autocracias e endossadas pela diplomacia personalíssima de Lula ameaça fissurar o edifício desenhado por Rio Branco e Rui Barbosa, defendido em anos sombrios pela coragem de um Oswaldo Aranha e confirmado no plano dos conceitos jurídicos por um intelectual da estatura de San Tiago Dantas. Lula 3 escolheu uma trajetória política que afasta a diplomacia nacional das concepções centrais dos grandes nomes de sua política externa. Até quando?
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4511, 16 novembro 2023, 3 p.