O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Livros, livrarias, leituras: suplemento do jornal Valor - Joao Luiz Rosa (2/06/2017)

Um enredo de suspense
Por João Luiz Rosa | De São Paulo
Valor Econômico, 2 junho 2017

  

 Equipe da Todavia: de baixo para cima, Flavio Moura (editor), Ana Paula Hisayama (diretora de direitos autorais), Andre Conti (editor), Alfredo Setubal (editor), Leandro Sarmatz (editor) e Marcelo Levy (diretor comercial)

Para muita gente, ir à livraria tornou-se um programa recorrente nas grandes capitais. As pessoas caminham por entre as estantes, folheiam os livros, se deixam encantar pelas capas coloridas. Às vezes, aproveitam para tomar um café ou fazer um lanche rápido. Amigos conversam, casais se encontram, pais distraem os filhos. Parece o pano de fundo ideal para o negócio de qualquer editor ou livreiro, não fosse por um detalhe: boa parte desses consumidores sai sem comprar nada.
O fenômeno explica, pelo menos em parte, por que tantas lojas de livros continuam cheias, embora as vendas estejam em queda. Existem mais leitores que compradores de livros no Brasil. Em 2015, 56% da população se declarava leitora - ou seja, havia lido pelo menos um livro nos últimos três meses -, mas só 26% dissera ter comprado algum livro nesse período, segundo a pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil". O descompasso se explica pelo fato de que, para ler, há quem procure bibliotecas ou peça livros emprestados. Também é preciso levar em conta o papel da Bíblia. Lida por 42% da base de leitores (o que a torna o gênero favorito no país), ela não exige compras frequentes.
A falta de consumidores preocupa, claro, a cadeia editorial. No ano passado, o faturamento das editoras brasileiras caiu 5,2% em relação a 2015, levando em conta a inflação do período, de 6,3%, segundo levantamento da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). Em termos nominais, sem considerar a inflação, ocorreu um aumento de 0,74%. Houve uma melhora em relação ao resultado anterior, que apresentara retração de 12,6% em termos reais, mas esse alívio não foi sentido por todo o setor. Isso porque o crescimento veio praticamente de uma única área - as vendas ao governo, que aumentaram 13,8%. "As compras governamentais ajudaram a equilibrar o desempenho geral, mas são capturadas por um número pequeno de editoras [aquelas que produzem livros didáticos e de referência]. Além disso, não passam pelas livrarias", diz Marcos da Veiga Pereira, dono da editora Sextante e presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel).
As livrarias, aliás, são o nervo mais exposto do mercado em queda. Desde que o comércio eletrônico começou a ganhar força, anos atrás, muitas redes passaram a investir no conceito das superlojas - espaços imensos e bem localizados capazes de abrigar cafés, restaurantes, auditórios, minilojas de eletrônicos etc. A princípio, a tendência parecia irreversível. O filme "Mensagem para Você" já brincava com o tema em 1998. Na história, Meg Ryan é a dona de uma pequena livraria em Nova York que se sente ameaçada pela chegada de uma grande rede comandada por Tom Hanks - uma referência clara à rápida expansão de grupos como Borders e Barnes & Noble.
Agora, os tempos são outros. A Borders faliu em 2011 e a Barnes & Noble reduziu de 798 para 640 o número de suas lojas entre 2008 e 2016. Em contrapartida, o número de livrarias independentes, fora das grandes redes, aumentou de 1.401 para 1.775 nos Estados Unidos de 2009 até o ano passado. Será que o modelo da superloja está perto do esgotamento?
No Brasil, algumas redes estão diminuindo o tamanho de suas lojas. A Livraria da Vila, com dez unidades no país, recentemente reduziu o espaço de duas delas em São Paulo - as dos luxuosos shoppings Cidade Jardim e JK Iguatemi. A primeira tinha 2,5 mil m2. A segunda, 1,7 mil m2. As lojas ficaram com pouco mais de 400 m2 cada uma. A Livraria Saraiva, com 110 lojas no país, está fazendo ajustes nas que estão com mais de 1,2 mil m2. Em São Paulo, uma loja de 1,4 mil m2 foi reduzida para 600 m2.
Mas é cedo para dizer que Meg Ryan tinha razão. Para os executivos das livrarias, cada rede tem seus próprios motivos para reduzir o tamanho das lojas - e seria um erro interpretá-los como uma tendência de mercado.
Na Saraiva, a redução tem atingido principalmente as seções de filmes e música, que foram muito afetadas pela concorrência dos meios digitais, como os serviços de streaming, diz Marcelo Ubriaco, vice-presidente da livraria. "Ainda somos relevantes nas duas áreas e não vamos tomar nenhuma atitude drástica, mas precisamos nos adaptar. Não dá mais para abrir espaços de 500 m2 para CDs e filmes."
   

Para Sergio Herz, presidente da Livraria Cultura, o que resta à loja física é proporcionar experiência ao consumidor


A situação é diferente na Livraria da Vila. "No nosso caso, foi uma decisão de voltar às origens, com lojas menores, mais aconchegantes", diz Samuel Seibel, proprietário da companhia, cuja primeira unidade, no bairro paulistano de Pinheiros, tem cerca de 700 m2. "Percebemos que as duas lojas [Cidade Jardim e JK] eram grandes demais, o que não fazia parte do nosso conceito. É preciso ser coerente com seu modelo [de negócio]. Saber de quanto espaço precisa para caber o que você quer oferecer."
Esse é, exatamente, o dilema das superlivrarias. Grandes lojas requerem gastos maciços com estoque, mão de obra, treinamento, aluguel, energia elétrica e uma longa lista de custos. Reduzir o tamanho pode ajudar a economizar no curto prazo, mas não no fim das contas não vai desestimular a frequência do consumidor? Por outro lado, vale a pena manter uma superestrutura apreciada pelos frequentadores, mas que não se traduz em vendas à altura?
A internet tem muito a ver com isso. "O cliente não precisa mais da loja física. O futuro das vendas está no comércio eletrônico", diz Sergio Herz, presidente da Livraria Cultura, com 18 unidades no país. "O nível de inteligência do mundo digital é tão alto que deixou o ponto físico praticamente acéfalo. O que resta à loja física é [proporcionar] experiência [ao consumidor]."
   

Para Otávio Marques da Costa, publisher da Companhia das Letras, o hábito de leitura mudou, mas não é um processo consolidado

Por experiência, explica o empresário, está a prestação de serviços. É o caso do Teatro Eva Herz, na loja da avenida Paulista, ou do restaurante Manioca, cujo acesso, no shopping Iguatemi, é feito por meio de uma loja da rede. Ambas as unidades estão em São Paulo. A estratégia da Cultura é dobrar as vendas de livros no site - dos atuais 30% da receita para cerca de 60% -, deixando aos pontos físicos a tarefa de fortalecer os vínculos do consumidor com a marca e proporcionar fontes adicionais de receita.
A dificuldade para o setor é como, em meio a uma das crises mais severas da história, aumentar o número de leitores em um país onde 30% das pessoas confessam não gostar de ler e outros 43% dizem "gostar um pouco", quase como uma concessão à literatura. Há consenso de que a crise é do varejo em geral, não só dos livros, embora o setor seja mais duramente atingido porque tem comportamento de mercado maduro - com evolução lenta ou retração - mas público pequeno, típico de mercados jovens.
Formar público não é fácil, nem rápido. Depende da adoção de políticas educacionais e de incentivo à leitura, que são responsabilidade do governo em suas várias esferas. Também é, em grande medida, uma questão de família. A mãe, ou a responsável do sexo feminino, é apontada como a principal influência no gosto pelo ato de ler, seguida pelo professor.
   

Seibel, da Livraria da Vila: de volta às origens

No dia a dia, o preço é frequentemente apontado como principal vilão das vendas. Nas rodas de amigos, alguém sempre comenta que livro custa caro no Brasil. Essa percepção, porém, é desmentida pelos números. Em uma década, entre 2006 e o ano passado, o preço médio do livro caiu de R$ 25,97 para R$ 17,09, em valores corrigidos pela inflação. Os dados se referem aos preços pagos pelas livrarias às editoras, não ao que sai do bolso do consumidor. Mas nesse caso também houve queda nos preços, até mais pronunciada dependendo do caso. Em 2004, um best-seller como "O Código Da Vinci" era vendido a R$ 39,90, diz Pereira, da Sextante. Com a inflação, um livro com características e tiragem semelhantes teria de custar, hoje, R$ 79,80, mas sai por cerca de R$ 50, uma perda de 40%, compara o empresário.
Fixar o preço de um livro é uma tarefa complexa. Há diversos custos incluídos - do papel ao pagamento dos direitos autorais, o que, dependendo do caso, requer fazer adiantamentos de três ou quatro anos para o escritor. Em geral, o preço é definido pela editora e vale para todo o território nacional, independentemente do custo do frete para o produto chegar às regiões mais distantes.
Com a estabilização econômica, anos atrás, o mercado passou a fazer correções discretas de preço ou, simplesmente, não repassar os custos para o leitor, diz Luís Antônio Torelli, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL). A expectativa era aproveitar o bom momento para ampliar a base de leitores. Nas livrarias, o acirramento da competição levou muitas redes a conceder descontos cada vez maiores. Quando a crise chegou, os preços estavam reprimidos e o espaço para aumentá-los desaparecera. "Foi uma armadilha", afirma Torelli.
Uma das possibilidades para aliviar a situação é a chamada lei do preço fixo. De autoria da senadora Fátima Bezerra (PT/RN), o projeto de Lei nº 49/2015, em tramitação no Senado, estabelece que, durante um ano, os preços de capa não podem receber descontos superiores a 10%. Com o PL, o objetivo é criar condições de competição mais parecidas entre livrarias independentes, com poder de negociação menor, e as grandes redes. "Em vários países onde foi aplicada, [esse tipo de lei] alcançou resultados muito positivos, com redução do preço médio, aumento do número de livrarias e da diversidade cultural", diz Rui Campos, fundador e sócio da Livraria da Travessa, rede com oito unidades, sete no Rio e uma no interior de São Paulo. Muitos profissionais do setor veem a legislação com simpatia, mas ainda não há consenso sobre sua aplicação no país.



Outra questão é o modelo de consignação. Enquanto na maior parte dos setores os varejistas compram os produtos dos fabricantes para revendê-los ao consumidor, no mercado editorial prevalece a consignação - as livrarias recebem os livros, mas só pagam as editoras quando os vende. O restante é devolvido à editora. "É um modelo de posse, mas não de propriedade", diz Eugênio Foganholo, diretor da Mixxer Consultoria, especializada em varejo. Sob essas regras, o risco diminui, mas também a margem. A ameaça é que a administração das empresas não seja tão inovadora ou agressiva quanto poderia, porque o risco envolvido é menor. "Não se pode generalizar, mas esse é um gene da cadeia que acabou se voltando contra toda ela", diz o especialista.
Esse risco de acomodação é especialmente perigoso diante das novas gerações, marcadas pelo uso contínuo da tecnologia. Com a disseminação da internet, especialmente dos acessos móveis via smartphone, o público passou a ter muito mais opções de lazer e comunicação, o que abriu uma guerra pelo tempo das pessoas, especialmente dos mais jovens, que se acostumaram a fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Serviços de música e vídeo, jornais, revistas, redes sociais - todos disputam a atenção do usuário. O livro enfrenta um agravante: sua leitura exige dedicação exclusiva, um hábito contrário à tendência predominante de fragmentação.
  

 Em São Paulo, a Saraiva reduziu uma loja de 1,4 mil para 600 metros

"A cada época, cada geração, é preciso entender quem são seus leitores, quem vai comprar o livro", diz Jorge Oakim, dono da editora Intrínseca. A posição contrasta com uma corrente de pensamento mais pessimista, quase apocalíptica, segundo a qual o livro e o leitor estariam com os dias contados. "Hoje, uma criança de 13 anos assiste a séries de TV com inúmeras tramas paralelas, personagens secundários importantes, uma complexidade que não existia antes. É o tipo de coisa que pode ajudar a desenvolver uma forma de inteligência que não era estimulada até então", afirma Oakim.
A mudança de hábitos não significa, necessariamente, que haverá menos leitores. "As pessoas, hoje, estão mais aparelhadas para lidar com a dispersão. Elas leem mais, mesmo que de maneira fragmentada, entrecortada, nos intervalos", diz Otávio Marques da Costa, publisher da editora Companhia das Letras. "Não é um processo consolidado, mas o hábito de leitura mudou."
No exterior, muitas empresas têm investido em alternativas como o audiobook, na tentativa de criar espaços de introspecção em um mundo que estimula a dispersão. "[O audiobook] pode ser um complemento. Enquanto faz outra coisa, a pessoa 'escuta' um livro", afirma Costa. Só no ano passado, as vendas de audiobooks somaram US$ 2 bilhões nos EUA, com mais de cem editoras disputando o público.
   

“Criar um catálogo adequado é parte essencial do trabalho”, diz Palermo

No Brasil, muitos editores dizem que vêm encontrando, em bienais e feiras, um público jovem até mais interessado em literatura que as gerações anteriores. O setor tenta captar esse interesse. Nos últimos meses, vários livros escritos por "youtubers" chegaram aos primeiros lugares nas listas dos mais lidos. Há muitas dúvidas sobre se esse tipo de leitura serve de condutor para obras mais densas, mas a influência tem sido considerada um saldo positivo, tanto do ponto de vista comercial como de atração do público.
A Saraiva começou a testar, em algumas lojas, espaços destinados aos jovens. "Em vez de poltrona para leitura, estamos instalando mesas com tomadas", diz Ubriaco. A ideia é que eles se sintam à vontade em um ambiente onde seja fácil compartilhar informações e conectar seus dispositivos. A rede também não quer brigar com o comércio eletrônico. "Nossa visão é que são canais complementares. A ciência é acertar a complementariedade", afirma o executivo. A companhia percebeu, por exemplo, que muitos consumidores que faziam compras em seu site moravam na zona leste de São Paulo, o que a levou à decisão de abrir uma loja no Shopping Itaquera, que fica na região.
Transferir conceitos da web para as lojas físicas está no coração da estratégia da Livraria Cultura. A rede começou a aplicar um sistema de preço dinâmico no horário do almoço, quando muitas pessoas passeiam pelas lojas sem, necessariamente, comprar alguma coisa. Quando o cliente se identifica a um atendente, o sistema verifica seu perfil de compra e oferece preços promocionais. Com isso, o preço pode variar de loja para loja, de horário para horário e até de cliente para cliente. Os testes incluem 70 mil clientes por mês e vem rendendo bons resultados - a conversão média, ou seja, o número de pessoas que concretiza a compra, é de 3,5% e o valor médio da compra aumentou 40%. Além disso, a Cultura testa um site de livros usados (os valores se transformam em créditos para a compra de novos livros) e começou a negociar dados captados sobre o comportamento dos clientes - sem revelar, claro, quem são as pessoas - para outras empresas, como fazem as grandes companhias de internet.
  

 Pereira diz que compras do governo ajudaram a equilibrar o desempenho

A mudança nos hábitos do público tem levado a uma diversificação editorial, diz Daniel Mazini, diretor de livros impressos da Amazon no Brasil. "Trata-se de um reflexo da sociedade e não se aplica apenas aos livros. Hoje, as pessoas têm muito mais opções sobre o que querem consumir."
A Amazon lançou seu marketplace - um site no qual pessoas físicas e companhias podem vender livros novos ou usados - no início de abril. Desde então, mais de mil vendedores ingressaram na plataforma. "Há muitos livros de editoras que não conhecíamos e obras mais antigas", diz Mazini. O estoque da Amazon deu um salto. Em 2014, quando a companhia chegou ao Brasil, havia 90 mil livros em depósito. Mais recentemente, esse número aumentou para 150 mil. Com a criação do marketplace, o total aumentou para 250 mil quase da noite para o dia.
Criar um catálogo adequado é parte essencial do trabalho. "No caso de autores internacionais, você precisa avaliar se ele é adequado ao seu mercado. Em caso positivo, pode comprar [o título] antes ou depois de o autor fazer sucesso em seu país de origem", diz Mauro Palermo, diretor-geral da Globo Livros. A editora publica a obra da italiana Elena Ferrante, uma das autoras mais comentadas dos últimos tempos. "Compramos a Elena no meio do caminho, quando começava a ganhar importância na Itália e na Europa." Os livros se tornaram best-sellers, mas se isso não tivesse ocorrido, entraria no catálogo de qualquer jeito, diz Palermo. "A primeira avaliação é se o texto é bom." 
   

"A cada geração, é preciso entender quem são seus leitores", diz Oakin

Nos últimos meses, algumas notícias deixaram o mercado alarmado. A Livraria Cultura abriu negociações com fornecedores para estender os prazos de pagamento, o que deu origem a notícias de que a rede poderia ser comprada pela Saraiva. Ambas as empresas vieram a público na época negar que o assunto estivesse em discussão. Depois, a Fnac Darty publicou um relatório no qual os negócios no Brasil apareciam como "operação descontinuada", o que foi interpretado como uma saída iminente da rede. Dias depois, a companhia informou que procura sócios no país.
A despeito dos problemas do setor, profissionais da área estão otimistas com a retomada do negócio tão logo a economia se recupere um pouco. Novas iniciativas mostram que existe espaço para ocupar. Uma revista dedicada exclusivamente a livros - a "Quatro Cinco Um" - foi lançada, e a Livraria da Travessa vai abrir uma unidade na nova sede do Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista, sua primeira unidade na capital paulista.
A maior novidade é a fundação da Editora Todavia. Criada por um grupo de profissionais experientes, vindos da Companhia das Letras, a empresa tem o apoio de três investidores de peso: Alfredo Setubal, presidente da holding Itaúsa; Guilherme Affonso Ferreira, do fundo Teorema; e Luiz Henrique Guerra, do fundo Indie. Os investimentos são pessoais, não das empresas.
"Sabemos dos percalços do mercado, mas a Todavia é um projeto de longo prazo", diz Flávio Moura, um dos sócios. "Não se pode olhar só para a conjuntura." Os primeiros quatro títulos da editora, mantidos em segredo, estão previstos para sair em agosto. Depois, o plano é lançar mais dois livros por mês até o fim do ano. Na segunda leva está previsto o lançamento de uma biografia do cantor Belchior, que morreu em abril.
Dado como morto várias vezes, não parece que o réquiem do livro vá ser tocado agora, seja por conta da crise ou de mudanças de comportamento do consumidor. O futuro, talvez, até convide mais gente à leitura. "Quem sabe com o carro autônomo, sem motorista, as pessoas usem o tempo das viagens para ler um livro", brinca Seibel.

Tatiana Salem Levy busca resistência ao pessimismo

Por Jacilio Saraiva | Para o Valor, de São Paulo
   

"Acreditar num mundo melhor é uma questão vital", diz a escritora Tatiana Salem Levy

Um mundo melhor passa pela leitura, literatura e pelo pensamento, segundo a escritora Tatiana Salem Levy, que lança "O Mundo Não Vai Acabar" (José Olympio, 182 págs. R$ 34,90), coletânea com mais de 30 crônicas. Colunista do Valor no caderno "EU&Fim de Semana" há três anos, a autora reúne no livro textos publicados no jornal entre maio de 2014 e janeiro de 2017, revistos e modificados, além de trabalhos inéditos. "Como a situação política no Brasil e no mundo está particularmente alarmante, achei importante selecionar escritos que relacionassem a literatura, a filosofia ou a antropologia com a política", afirma a escritora.
A obra é dividida em três partes. A primeira, "Tudo Nos Leva a Crer que Sim", trata de questões atuais, como o Brexit, a eleição do presidente americano Donald Trump, os atentados terroristas e o cenário nacional. A segunda parte, "Sem Memória, Não Há Presente", fala do tempo e do resgate de lembranças. Uma das maiores incapacidades do nosso país é conseguir ler e interpretar o passado, diz.
"Nunca conseguimos fazer um balanço do que foi a escravidão. Ao mesmo tempo, a ditadura aconteceu há pouco tempo, mas parece que nunca existiu", afirma. "A Argentina e o Chile souberam nomear e condenar suas ditaduras de uma forma que a gente nunca sonhou em fazer. Então, acho que o Brasil só vai melhorar o presente, apostar em ser de fato o país do futuro quando conseguir, antes, olhar para trás e ler o próprio passado."
A terceira parte do livro é centrada na literatura e na utopia. "Ouvimos cada vez mais que o mundo está acabando. Ou porque volta dois séculos na moral e fecha suas fronteiras, ou porque destruímos a natureza a tal ponto que acabaremos vítimas da nossa própria ambição", afirma Tatiana. "Mas, da mesma forma que a destruição faz parte da natureza humana, o sonho também faz. A capacidade de imaginar um mundo melhor e lutar por ele. Esse livro é uma resposta ao pessimismo que vem tomando conta de todos nós."
Autora dos romances "A Chave da Casa" (2007), "Dois Rios" (2011) e "Paraíso" (2014), além dos livros infantis "Curupira Pirapora" (2012) e "Tanto Mar" (2013), Tatiana tem obras traduzidas em mais de dez países, inclusive na Índia, Croácia e Suécia. Também é dela o ensaio "A Experiência do Fora: Blanchot, Foucault e Deleuze", fruto do mestrado em estudos de literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Nascida em Portugal, onde os pais se exilaram durante a ditadura militar brasileira, ela retornou ao país aos nove meses de idade. Há quatro anos, mora entre Lisboa e o Rio de Janeiro. "Mas, agora, do jeito que a coisa anda por aqui, provavelmente ficarei mais tempo em Portugal. Nunca tinha visto o Rio num estado tão calamitoso e Lisboa tão efervescente."
Para a ganhadora do Prêmio São Paulo de Literatura 2008, morar longe não influencia tanto no resultado do seu trabalho. "O que trago em mim do Brasil dá para muitos livros e é sempre a ele que volto quando escrevo", diz. "A diferença entre estar numa cidade ou em outra é que em Lisboa a vida é menos estressante, o tempo é mais qualitativo, rende mais. E isso é muito importante para a escrita. O tempo alargado de lá me ajuda a escrever."
Tatiana diz que tem outros projetos no cinema e na literatura, como um novo romance. "Mas está tudo ainda no começo", diz. "Segui carreira acadêmica durante anos, mas decidi largá-la. A coluna [no Valor ] foi uma forma de voltar ao que mais gostava de fazer na universidade: ler, pesquisar e escrever sobre o que leio", diz a autora, que estudou na Brown University, nos Estados Unidos, e na Universidade Paris III, na França. As experiências no exterior também a levaram a traduzir grandes obras. É dela e de Marcelo Jacques a elogiada versão para o português de "Nos Passos de Hannah Arendt", biografia de uma das mais importantes pensadoras do século XX, escrita pela francesa Laure Adler.
Na folga do trabalho de colunista e escritora, diz que tenta ler o terceiro volume da tetralogia de Elena Ferrante, "História de Quem Foge e de Quem Fica" (2016). "Falei tão bem sobre os dois primeiros livros, mas não estou conseguindo engrenar nesse terceiro", comenta. Também descobre mais sobre o autor carioca Victor Heringer. É com um texto que fala de um romance dele, "O Amor dos Homens Avulsos" (2016), que ela encerra a nova coletânea. "Além de escrever com muito domínio, Heringer propõe uma literatura do afeto, da ternura. Acredita que, onde há apocalipse, só o amor salva."
Sobre o título imperativo do livro, "O Mundo Não Vai Acabar", Tatiana defende que se trata de um grito de indignação com o presente, mas também com o derrotismo. "Acreditar num mundo melhor é uma questão vital", diz. "Talvez eu seja uma náufraga em pleno oceano, que fica falando de literatura enquanto o mundo agoniza. Mas fazer o quê, se acredito na capacidade da literatura de nos levar a imaginar, pensar e, a partir desse impulso, não deixar o mundo morrer?"

Paixão que chega ao fim

Por Cadão Volpato | Para o Valor, de São Paulo
   

O cenário da Nápoles do pós-Segunda Guerra Mundial, nos anos 50 e 60, é o pano de fundo da história de Lenu e Lila nos primeiros livros da "Série Napolitana", de Elena Ferrante

Para uma autora reclusa como Elena Ferrante, tem sido uma exposição e tanto. Quase ao mesmo tempo em que se conclui a publicação no Brasil de sua tetralogia napolitana, um repórter mais abusado resolveu desvendar o mistério que cerca a autora, cuja identidade real estava escondida até agora.
O repórter seguiu o clássico caminho do dinheiro, checou para onde iam os pagamentos da editora e aparentemente matou a charada, chegando ao nome de uma antiga tradutora da casa, cujos ganhos elevados seriam incompatíveis com a profissão. O nome real por trás de Elena Ferrante seria Anita Raja, mulher do escritor napolitano Domenico Starnone -acusado de ser Elena Ferrante ao longo dos anos.
O curioso é que isso acabou despertando a fúria dos fanáticos "ferrantistas", não muito interessados em deixar de acreditar na própria imagem mental que construíram da escritora tão amada. Na cabeça dos leitores fiéis mora mais do que uma figura, mora uma voz poderosa que se impõe sem remédio.
Uma vez, dizem por aí, submetidos ao feitiço da autora, os leitores caem no vício extremo, do qual não conseguem mais se recuperar. Ler Elena Ferrante acaba virando um vício que não tem cura. Os desavisados, aqueles que tentam se aproximar com cautela da mitológica escritora napolitana, apelam para um de seus romances mais fininhos, "Dias de Abandono" (Biblioteca Azul). Descobrem que cometeram um erro, pois o livro de 2002 é tão potente quanto os piores venenos, aqueles que costumam vir em pequenos frascos.
"Dias de Abandono" promove um mergulho abissal na alma de uma mulher ferida. Não dá para sair incólume da sua leitura. E aí será tarde demais. Aqueles que começaram por "A Amiga Genial" (também da Biblioteca Azul, como os demais volumes), já perderam as esperanças logo de cara: tiveram que aguardar a publicação de cada um dos outros livros, mesmo porque o conjunto se transforma em algo indivisível, e não resta outra saída a não ser esperar.
A coisa toda tem características de uma novela à moda antiga, em que um capítulo aponta para o outro e dele não se separa. Quem acompanhou desde o princípio essa história de amizade entre duas mulheres italianas - ou napolitanas, para ser mais preciso, já que Nápoles, assim como outras cidades da Itália, parece um outro país - foi capturado por uma voz de sereia incomum, a voz de um escritor de primeira grandeza, da espécie que se conecta com as nossas almas.
A amizade entre essas mulheres é feita de mel e fel, é humana como poucas vezes o leitor já encontrou na literatura, até mesmo aquela que pretende ser mais realista do que o rei. Ainda que seja tudo mentira, o que acontece entre Lenu, a narradora, e Lila, a personagem que de certa forma a espelha, é de uma honestidade brutal. Elas se amam e se odeiam, ficam juntas e separadas, e ainda assim mantêm-se próximas como um corpo único.
São mulheres em situações-limite. São personagens femininas num país corroído pelo machismo e dominado pelo crime dos homens. São mães devotas, mas também desnaturadas (mais desnaturadas que devotas). São invejosas e raivosas, egoístas e generosas, tudo isso reunido em parágrafos aliciantes, dos quais é impossível se desvencilhar.
Há quanto tempo não líamos histórias tão bem contadas e tão bem conduzidas, num ritmo elástico, ágil ou lento, reflexivo, introspectivo e ao mesmo tempo cheio de movimento e crueza? Talvez sejam esses alguns dos segredos desse romance dividido em quatro livros compridos, nos quais a palavra Camorra nunca aparece escrita com todas as letras, apenas o seu sombrio e poderoso significado de máfia napolitana. Neles, não há esquemas narrativos, mas figuras humanas, personagens com os quais é possível estabelecer conexões multifacetadas, sem as platitudes do "bem" e do "mal".
É um banho narrativo. Ninguém esperava, nessa altura do século XXI, que um Balzac desse as caras. Isso levando em conta a mais óbvia das constatações de quem se deixa expor ao universo belo e espinhoso de Elena Ferrante, seja ela quem for: não há a menor chance de a autora ser um homem. A Elena desse romance em quatro tomos é uma pessoa do sexo feminino que aprendemos a conhecer muito bem.
Seguindo pela ordem, a série começou a sair em 2011, com "A Amiga Genial", e prossegue com "História do Novo Sobrenome" (2012), seguida de "História de Quem Foge e de Quem Fica" (2013). As duas crescem juntas e seguem caminhos diferentes. Lenu sai de Nápoles, conhece outra vida e vira escritora, enquanto Lila permanece na cidade natal. Em "História da Menina Perdida" (Biblioteca Azul; trad. Mauricio Santana Dias; 476 págs.; R$ 49,90), o último volume, um fio de afeto e amor verdadeiro une e afasta as duas vidas.
Chegar às últimas linhas costuma ser um processo adiado, e a sensação final é a de que nos separamos de pessoas que aprendemos a amar. Pode-se, então, voltar ao começo desse quarto e último volume: "A partir de outubro de 1976 até 1979, quando voltei a morar em Nápoles, evitei restabelecer uma relação estável com Lila. Mas não foi fácil. Ela procurou quase imediatamente entrar mais uma vez à força em minha vida, e eu a ignorei, a tolerei, a suportei". Vão-se os maridos, os filhos e os amantes, uma vai embora e volta, a outra nunca sai do lugar, e mesmo assim a amizade permanece, disfarçada em desconforto e desprezo.
Lenu deixa Nápoles, mas Nápoles, a cidade da Camorra, da devastação do pós-guerra, do machismo indomável, da bagunça que remete ao caos do universo, não sai de dentro dela. Temos aqui o final de seis décadas de história da filha de um funcionário público e da filha de um sapateiro, um romance de formação de mais de 1,5 mil páginas que bate em diversas teclas, uma delas, talvez uma das principais, a da identidade.
Eis aí uma viagem surpreendente para os leitores de nosso tempo, desacostumados a grandes cargas de concentração. E aí nos vemos, de repente, imersos num "romanção" como já não se esperava mais: profundo, movido por ideias desafiadoras e imensos contrastes narrativos. Tarde demais. A voz misteriosa e familiar de Elena Ferrante já nos arrastou para dentro do céu e do inferno de Nápoles, sem perdão.

Uma grande estrategia para o Brasil? Eis a minha, modesta, como o pais - Paulo Roberto de Almeida

Já que se anda falando tanto de "grande estratégia" para o país, eis aqui a minha, que deve ter sido elaborada em torno de 2012 ou 2013, depois integrada a este livro, de onde retiro, justamente o capítulo.
Paulo Roberto de Almeida 

12. Uma grande estratégia para o Brasil?, 255-267

Sumário do capítulo: 

12. Uma grande estratégia para o Brasil?

12.1. O que é uma grande estratégia?
12.2. Antes da grande estratégia, breve descrição da situação do Brasil
12.3. O que constituiria uma grande estratégia para o Brasil?
12.4. Que tipo de estratégia deveria o Brasil seguir?


  
12. Uma grande estratégia para o Brasil?

12.1. O que é uma grande estratégia?
O Brasil possui uma grande estratégia nacional? Difícil dizer: não se tem registro de um documento único, aberto e conhecido, tratando dos elementos substantivos do que se poderia chamar de “ grandes objetivos nacionais”. Existem, obviamente, diferentes textos – de natureza e origens muito diversas, como a Estratégia Nacional de Defesa,[i] que vincula esse conceito ao de desenvolvimento, ou o livro branco dessa mesma área[ii] – que poderiam ajudar a compor uma definição unificada dessa estratégia, ou que poderiam integrar um documento dessa espécie; eventualmente, alguma autoridade do setor pode, a título pessoal, reunir elementos atinentes à defesa nacional com vistas a apresentar uma síntese de suas concepções a esse respeito, inclusive sob o conceito de “estratégia”[iii], embora isso não configure, exatamente, uma estratégia nacional mais ampla, objetiva, organizada de maneira sistemática, em torno dessa problemática.[iv]
Não pretendo passar por tal autoridade, mas invocando tão somente o direito de elaborar um exercício intelectual, permito-me alinhar, nos parágrafos seguintes, algumas ideias que imagino possam, ou devam compor um documento desse tipo. Registre-se, preventivamente, que este ensaio não tem por título “A Grande Estratégia do Brasil”, mas “Uma grande estratégia para o Brasil”, o que evidencia, justamente, seu caráter exploratório. A questão básica, a ser respondida inicialmente, antes de se tocar na situação brasileira, é a de saber o que é, exatamente, uma grande estratégia.
Formalmente, uma estratégia se articula em torno dos objetivos prioritários de um determinado país, o que alternativamente se designa por “interesses nacionais”. Estes, no caso do Brasil, constituíam uma preocupação constante da Escola Superior de Guerra, nos seus bons tempos de preeminência intelectual. Definidos os grandes objetivos nacionais, se trata, então, de examinar a equação permanente entre meios e fins, ou seja, a capacitação do país em alcançar seus objetivos, utilizando os meios e recursos disponíveis da forma mais eficiente possível.
E por que uma estratégia teria de ser “grande”? Não existe nenhum motivo especial para isso: trata-se apenas de um adjetivo, talvez exagerado, que visa, de certo modo, enfatizar o aspecto crucial para o país na determinação de suas políticas mais essenciais; neste caso, grande pode ser considerado como algo diferente de setorial (como poderia ser apenas defesa ou desenvolvimento). Grandes países, com grande interface ou exposição internacional, ou, ainda, países capazes de grande projeção internacional, costumam ter grandes estratégias. Talvez seja o caso do Brasil.
Os instrumentos clássicos para combinar esses elementos materiais e os objetivos “ideais” costumam ser identificados, na tradição clausewitziana, ou aroniana, como sendo uma combinação sempre variável entre as armas da guerra e as armas da política, ou seja: poder militar e diplomacia. Nada a ver, aqui, com qualquer teoria idealista do poder nacional, e sim com a expressão sintética de uma realidade imanente aos Estados: eles se relacionam com outros Estados, ou seja, no âmbito internacional, com base nos agentes primários de ação externa: os soldados e os diplomatas, atualmente (desde muito tempo complementados por uma fauna ainda mais variada, composta de comerciantes, missionários, representantes de causas globais no plano ambiental ou de direitos humanos, artistas, esportistas, etc.).
Ouso afastar-me parcialmente desse esquema clássico – o que já fiz em meu livro Os Primeiros Anos do Século XXI [v] – para introduzir o elemento “economia” nessa equação; esse conceito, entretanto, deve ser tomado num sentido amplo, ou seja: o fator econômico não tem a ver apenas com as capacitações do país no terreno militar, tecnológico, ou na sua projeção diplomática, mas adquire um status próprio, a ser considerado enquanto tal, e não apenas como suporte de um ou outro daqueles componentes clássicos. A grande estratégia, assim, é a realização dos objetivos nacionais prioritários, por meio de uma adequada combinação de meios, ou recursos, para atingir as finalidades pretendidas, e tanto os meios, quanto os fins, não precisam estar definidos unicamente, ou principalmente, pelas armas e pela diplomacia.
A justificativa da inclusão do fator econômico na equação estratégica, no caso do Brasil, é a de que, seja pelas características próprias do país no sistema político internacional, seja pela configuração presente desse mesmo sistema, poder militar e diplomacia já não podem atuar isoladamente de outros dados objetivos da presença de um país no sistema internacional; este sistema é atualmente caracterizado por uma interdependência econômica que não existia na época em que os autores clássicos formularam suas considerações teóricas em torno do que deveria ser a grande estratégia de um Estado. A globalização estava em recesso ou não existia, de fato.
Feitas essas considerações iniciais, vejamos o que conviria alinhar no campo dos principais elementos que poderiam compor uma proposta de grande estratégia para o Brasil. Alerto que se trata de uma elaboração inicial e preliminar, um mero exercício de reflexão; como tal, ele não fará o exame de eventuais documentos já existentes em torno dessa questão, mas, sim, se limitará a uma proposição de conceitos e de argumentos que derivam, unicamente, de minha própria elaboração intelectual. O foco, todavia, é, empiricamente, a situação brasileira, e não se cogita de elaborar a estratégia “ideal” para o Brasil, e sim uma estratégia possível para o Brasil atual, nas circunstâncias presentes desta segunda década do novo milênio.

1.2. Antes da grande estratégia, breve descrição da situação do Brasil
Previamente ao exercício propositivo, caberia delimitar o quadro conceitual do exercício, ele mesmo precedido por uma operação de descarte de algumas utopias ou paranoias que costumam frequentar este tipo de exercício. Essa contextualização e esses descartes só podem ser feitos com base numa visão concreta do que é o Brasil atualmente, e sobretudo de suas carências e limitações, em função, e a partir das quais se trataria de traçar, justamente, a proposta de uma grande estratégia.
Evidencie-se, por óbvio, que não estamos falando de uma grande potência: o Brasil não tem, a despeito das crenças de muitos, um papel relevante a cumprir no campo da paz e da segurança internacionais. Ousaria dizer, inclusive, que o Brasil sequer constitui uma potência média, uma vez que esse conceito implica certa relevância regional, no sentido de determinar equilíbrios e grandes orientações políticas e econômicas, sobre os quais essa “potência média” deveria, ou poderia, exercer suas escolhas básicas, esperando que outros atores regionais se alinhem a seus procedimentos e opções. Desse ponto de vista, a despeito de constituir um grande território e uma grande economia no quadro regional sul-americano, é evidente que o Brasil está longe de determinar as principais orientações políticas ou econômicas que poderiam ser adotadas pelos demais países da região; ele não é, sequer, um ator capaz de impor um quadro geopolítico determinado, com base em suas capacitações primárias no campo militar, para dentro ou para fora da região.
Mas o Brasil é um ator relevante malgré lui, ou seja, possui massa e presença de dimensões relevantes, embora não consiga determinar o curso dos eventos e dos processos no subcontinente, mesmo mobilizando as armas de sua política – a diplomacia – ou “ameaçando” (o que, aliás, seria difícil de concretizar) recorrer à política das armas – para a qual lhe faltariam os requisitos de base, justamente. Mesmo no terreno das proposições de política, não se pode dizer que o Brasil tenha constituído um manancial de iniciativas significativas, capazes de alterar, de maneira sensível, o peso e o papel da região no contexto mundial.
E quais são os dados essenciais em causa, isto é, aqueles atinentes às circunstâncias do Brasil?
O Brasil e a América do Sul – esta a única porção do planeta em que o primeiro pode atuar de alguma forma relevante – constituem “polos de poder” – se o conceito se aplica – absolutamente marginais do ponto de vista da geopolítica mundial. Dispensável dizer que o continente é um grande fornecedor de matérias primas e de energia para o resto do mundo, um papel que, teoricamente, pode ser exercido em caráter substitutivo por diversas outras regiões. O que poderia haver de exclusivo ao Brasil e à América do Sul, que seria de fato suscetível de afetar os grandes equilíbrios planetários, em quaisquer dos campos relevantes da geopolítica ou da geoeconomia do mundo? À parte ser um continente constituído de apreciável volume de pessoas, um contingente humano potencialmente consumidor de produtos e serviços de maior valor agregado produzidos em outras partes do mundo, a América do Sul fornece emigrantes para o hemisfério norte, produz quantidade apreciável de drogas e uma parte da criminalidade internacional associada a esses fluxos, mas que tampouco são exclusivos da região. Descarto, como não relevantes, certas teorias econômicas em voga no continente desde os anos 1950, ainda em uso aqui e ali, mas que não parecem ter contribuído para um processo dinâmico de crescimento.
O Brasil, a despeito do que se crê habitualmente, não é propriamente um país subdesenvolvido, ou sequer “em desenvolvimento”, como se declara também: trata-se de um país “rico” (pelo menos em recursos potenciais), mas com muitos pobres. Ele constitui uma economia quase totalmente industrializada, embora lhe falte certo grau de autonomia tecnológica suscetível de inserir essa economia nos grandes circuitos da interdependência produtiva mundial. A esse respeito, não existe nenhum impedimento técnico a que essa inserção se faça de modo bem sucedido, e em consonância com os interesses de sua população: os fatores impeditivos se situam inteiramente no âmbito das políticas econômicas nacionais, não no terreno do potencial de base de seu sistema produtivo. O processo que, atualmente, se classifica equivocadamente como de “desindustrialização” não deriva de uma incapacidade própria do país a se desempenhar de modo satisfatório no seu setor secundário – uma vez que o país possui empresários, técnicos e dotação de fatores capazes de manter sua plena capacidade industrial – mas deve ser atribuído, inteiramente, a políticas equivocadas de sua governança econômica, políticas que dificultam, ou até obstaculizam, um ritmo adequado de crescimento da produtividade e a manutenção da competividade de seu setor industrial: uma vez corrigidas essas políticas, o país poderia voltar a se exercer satisfatoriamente no terreno industrial, uma vez que possui requisitos suficientes para isso (e que já o fez no passado).
Cabe descartar, igualmente, concepções equivocadas quanto ao tipo de economia de mercado que o Brasil constitui, ou que poderia vir a conhecer, caso ele corrija as políticas atuais, no sentido de maior inserção nos circuitos da economia mundial. Alguns acadêmicos ainda trabalham com conceitos absolutamente inadequados, como o de capitalismo nacional, como se o Brasil pudesse ser outra coisa que uma economia capitalista, e como se esta pudesse ser estreitamente nacional, como certas mentalidades ainda insistem em recomendar. Daí derivam, justamente, propostas e políticas em total descompasso com os requerimento de um processo de desenvolvimento econômico e tecnológico plenamente inserido na modernidade da economia de mercado globalizada, como é inevitável atualmente. Tentativas de fazê-lo voltar ao tipo de stalinismo industrial praticado em outras épocas – como durante o processo de acabamento de sua industrialização, nos anos “gloriosos” do regime militar – são totalmente inadequadas ao estágio alcançado por sua economia, e só podem fazê-la retroceder a estágios e práticas já sepultados pela evolução “geológica” da economia planetária.
No plano da sua inserção regional, por sua vez, carecem de coerência as propostas que vêm sendo acompanhadas de iniciativas diplomáticas tendentes a conformar instituições e programas exclusivamente sub-regionais, e que duplicam os mandatos e agendas existentes em nível hemisférico ou mundial; essas iniciativas apenas traduzem o anti-imperialismo infantil, e o antiamericanismo primário, das forças políticas que determinaram, no curso da última década, a política regional e internacional do país. O mesmo tipo de voluntarismo se manifestou em outras instâncias e direções, como reuniões de cúpula bi-continentais, ampliando a audiência do governo no plano internacional – inclusive em função dos altos investimentos em publicidade centrada no protagonista principal –, mas com escassos resultados práticos, ou duvidosos efeitos do ponto de vista daqueles interesses nacionais valorizados nos círculos de planejamento estratégico.
Justamente, com respeito aos chamados interesses nacionais, caberia revisar as antigas listas da Escola Superior de Guerra, que começavam por enfatizar a defesa da soberania nacional, a proteção do território pátrio, a preservação da independência e da integridade do Estado, e continuavam proclamando objetivos grandiosos, embora genéricos, como a promoção do desenvolvimento do país, a industrialização, a melhoria das condições de vida da população e várias outras metas generosas. O trabalho de conciliar o atingimento desses objetivos com os meios disponíveis podia ser objeto de algum planejamento global ou setorial – como no Plano de Metas do governo JK, ou nos diversos planos nacionais de desenvolvimento dos governos militares – mas geralmente se visava mais alto do que as possibilidades reais, e havia sempre o desejo de preservar as bases autônomas do desenvolvimento nacional.
Deixando de lado, portanto, propostas tradicionais relativas aos interesses nacionais brasileiros, tentaremos traçar, na seção seguinte, os elementos constitutivos de uma grande estratégia para o Brasil, nas circunstâncias dadas do sistema internacional em vigor, e no contexto regional que é o seu. A ordem das prioridades é puramente subjetiva, embora corresponda a uma interpretação realista, o mais possível de caráter econômico, em torno das capacidades e limitações brasileiras no quadro das circunstâncias referidas acima.

12.3. O que constituiria uma grande estratégia para o Brasil?
A teoria realista das relações internacionais, assim como os exemplos conhecidos, na prática, de exercício da soberania nacional por Estados participantes do sistema internacional costumam considerar a inviolabilidade dessa soberania e o pleno controle dos instrumentos da defesa da integridade territorial e de segurança do Estado como constituindo os elementos essenciais para a sobrevivência do Estado e para o desenvolvimento normal de suas funções enquanto pessoa de direito internacional, legitimamente reconhecido por seus pares do sistema e inserido no quadro jurídico do mútuo reconhecimento de Estados membros da comunidade das nações (princípios formalmente estabelecidos no âmbito da Carta das Nações Unidas e seus instrumentos acessórios, de acesso livre e soberano por esses Estados). Tanto as digressões teóricas, quanto as políticas dos Estados envolvidas nesses exercícios tratam geralmente da política das grandes potências e de seus conflitos parciais e globais, estes últimos até a emergência da era nuclear (que reduziu, ou eliminou, o recurso aos enfrentamentos globais como meio de “solução” de suas controvérsias).
Não é preciso ser um grande especialista em relações internacionais, nem um teórico de qualquer escola nessa área, para constatar que o Brasil – e, com ele, grande parte da América Latina – é relativamente marginal nesse jogo de lutas entre grandes Estados. De resto, refazendo o itinerário histórico do continente, no último século, pode-se dizer que, depois do afastamento dos desafios nazista e soviético à estabilidade e a qualquer papel político de relevo, da região, nos grandes equilíbrios estratégicos, não existe, aparentemente, qualquer protagonismo do país e da América do Sul que possa contar para a paz e a segurança internacionais. Relevando-se os elementos negativos já destacados anteriormente – drogas, emigração ilegal e crimes transnacionais associados – o continente e o Brasil são praticamente neutros em qualquer jogo estratégico entre grandes potências, cujos cenários tradicionais foram a Eurásia, o Oriente Médio e a Ásia do Sul, agora deslocando-se para a Ásia Pacífico.
Em outros termos, o Brasil não enfrenta nenhuma ameaça real à sua segurança e estabilidade estratégica, nenhum desafio à sua soberania ou integridade territorial, nenhum risco de sofrer um ataque de vizinhos ou de protagonistas extracontinentais. Como é óbvio, os atores militares e alguns observadores geopolíticos sempre vão apontar para ameaças potenciais ou latentes para as riquezas ainda não exploradas da Amazônia verde e da Amazônia azul, bem como qualquer outro constrangimento à nossa soberania que possa ser causado sob escusa de direitos humanos, de ameaças a minorias indígenas ou questões de qualquer outra natureza, como justificativa para a manutenção de um grande instrumento de dissuasão e controle sobre a jurisdição do Estado brasileiro.
Muitos desses temores derivam de paranoias sem fundamentação empírica ou são pretextos para legitimar transferências orçamentárias e grandes investimentos em matéria de defesa, que não encontram embasamento em cenários geopolíticos reais. Suas fontes ou pretensas justificativas podem até ser possíveis, ou factíveis, ou seja, no domínio das possibilidades, mas não são efetivos e, portanto, não são prioritários. Pode ser patético, assim, assistir responsáveis políticos dessa área afirmar que o Brasil precisa defender-se de eventuais ataques das grandes potências, quando a referência implícita é feita contra potências capitalistas, de fato contra os EUA: presume-se que se trata de uma deformação ideológica temporária, a ser superada proximamente.
Esta é a razão para que o autor deste ensaio atribua baixa prioridade a supostas ameaças à soberania nacional como derivadas de fatores internacionais, ou vinculadas a forças externas, no trabalho de construção de uma proposta para uma grande estratégia brasileira. Não que elas inexistam, ou sejam irrelevantes, provavelmente mais no contexto estritamente regional do que no âmbito global; mas elas não parecem ser de suficiente monta para justificar uma estratégia inadaptada aos terrenos e às circunstâncias nos quais deve atuar o Brasil, com vistas a cumprir seus objetivos maiores de desenvolvimento econômico e social equilibrado e de plena inserção na ordem internacional. Feitas estas considerações preliminares ao objeto desta seção, vejamos, por fim, quais são os elementos de uma grande estratégia para o Brasil.
Quais são, numa análise realista, os componentes dessa grande estratégia? A resposta a esta questão implica necessariamente identificar os principais desafios colocados ao Brasil na realização dos supremos interesses nacionais. Quais são estes últimos, portanto? Em plena transparência de propósitos, não parece restar dúvidas de que o objetivo supremo da nação – ademais daquelas questões básicas de soberania, que já consideramos não prioritárias – é o atingimento de uma etapa superior no seu processo de desenvolvimento, de maneira a garantir bem estar e vida digna a todos os brasileiros, como condição da plena integração do país ao sistema internacional num status de potência capaz e plenamente dotada dos meios de ação para atuar positivamente nesses sistema, em conformidade com os propósitos da Carta das Nações Unidas e dos demais instrumentos da cooperação internacional.
Assumidos esses pressupostos empíricos, a questão real passa a ser: o sistema internacional, em sua conformação atual (ou até em configurações passadas), ou em seus desenvolvimentos previsíveis no futuro de médio e longo prazo, constitui um obstáculo fundamental ao atingimento daqueles objetivos superiores da nação brasileira? Do ponto de vista deste ensaísta, desde a assunção da independência nacional, parece claro que não. Ainda que o sistema internacional, especialmente no plano de sua estruturação econômica, possa ser acusado de assimétrico, desigual, injusto ou até perverso (mas isso segundo alguns intérpretes da ordem mundial), cabe lembrar foi nesse mesmo sistema que países notoriamente dependentes, ou humilhados, no passado, conseguiram desenvolver-se e assumir preeminência na ordem global. Tanto quanto o Brasil, os EUA foram colônia, e tanto quanto o Japão, a China também foi humilhada por imperialistas estrangeiros, durante certa conjuntura de sua história passada. Nada disso impediu o segundo país (mesmo antes de sua independência política) e os dois últimos de seguirem, em épocas e circunstâncias diversas, e por caminhos sempre únicos e originais, processos notáveis de crescimento econômico, de progresso material e de desenvolvimento social que os trouxeram ao primeiro plano das relações internacionais, a despeito em alguns casos, de condições internas ou externas eventualmente negativas e nas mais diferentes configurações da economia mundial de mercado na qual esses países estiveram inseridos, em maior ou menos grau, de formas distintas, ao longo dos últimos dois ou três séculos.
Que o Brasil não os tenha seguido no caminho da preeminência mundial, na qual eles se encontram inegavelmente inseridos atualmente, não pode ser atribuído, portanto, a qualquer conformação estruturalmente negativa do sistema internacional, uma vez que esse sistema – ou a “economia-mundo”, como preferem certos analistas – não possui qualquer unidade central encarregada de, por um lado, distribuir benesses para uns poucos e de, por outro lado, impor barreiras aos demais membros da comunidade internacional. Ao contrário: o sistema internacional, pelos estímulos dados pela via do comércio internacional – transmissor de ideias e de tecnologias – e dos livres fluxos de capitais – sob diversas formas, mas especialmente enquanto investimentos diretos –, bem como pela movimentação de pessoas e de competências, tem sido totalmente benéfico ao Brasil, como à maior parte dos países que conseguem se inserir nesse sistema, de maneira a tirar vantagem de suas possibilidades e minimizar suas eventuais dificuldades ou fatores negativos.
Retornando, pois, ao núcleo central da construção de uma grande estratégia para o Brasil, e tomando como pressuposto a seleção dos elementos verdadeiramente relevantes para a superação dos atuais (e históricos) constrangimentos à elevação dos padrões internos da nação, cabe indicar o fator primordial em função do qual o país não conseguiu se alçar à condição de preeminência a que parecem aspirar suas elites políticas desde a independência. Esse fator não é muito diferente da causa principal das diferenças entre as diferentes nações do mundo, historicamente e atualmente, que alguns creditam à exploração de nações ditas “periféricas” pelas chamadas “potências centrais”, numa reprodução simplista de certas teorias ultrapassadas ou simplesmente equivocadas desde o início.
Quais são, pois, as causas das desigualdades entre as nações e, no caso brasileiro, responsáveis pelo insuficiente desenvolvimento nacional, o que obstou a que o país alcançasse seus objetivos primordiais? Elas se resumem a um conceito básico da ciência econômica e absolutamente essencial nas práticas econômicas que acompanham o itinerário das nações que integram o sistema internacional: o de produtividade. Independentemente de fatores outros, como o estabelecimento de relações “especiais” entre uns e outros participantes desse sistema, a partir das quais possam ter resultado efeitos negativos, do ponto de vista do seu desempenho, para algumas partes, cabe de fato confirmar que são os diferenciais de produtividade entre as nações que estão na raiz de suas diferentes capacitações no plano do potencial econômico, da inovação tecnológica, das contribuições científicas e outros aspectos materiais ou culturais associados a esse desempenho.
Obviamente que o conjunto dos desafios brasileiros constitui um volume bem maior de problemas, e estes são bem mais diversificados, do que a “mera” questão da produtividade e dos obstáculos associados que se apresentam para a elevação de sua taxa de crescimento. Mas esse conceito resume, de modo amplo, o núcleo central do desafio brasileiro, tanto de caráter conjuntural – ou seja, base de eventual esforço de crescimento –, quanto de ordem sistêmica (o que tem a ver, por exemplo, com a acumulação de riqueza para enfrentar a curva demográfica do envelhecimento da população, ao final do período de bônus demográfico). Não são fáceis as soluções a esse grave problema da sociedade brasileira, e qualquer processo de correção da trajetória até aqui seguida exigirá bem mais do que simples medidas de políticas setoriais nas áreas mais relevantes, em especial no que se refere ao capital humano e os vetores de inovação tecnológica.
O “saneamento” dessas deficiências tomará, provavelmente, o espaço de uma geração inteira, ou mais, sem que no entanto exista garantia de que os problemas seja de fato corrigidos, na ausência de medidas apropriadas. E não se pode, ou não se deve esperar que o país “resolva” seu problema de produtividade no isolamento, ou como tarefa prévia, e descolada, das tarefas vinculadas aos diferentes processos de inserção internacional: tudo isso se fará em paralelo e simultaneamente. Nada disso impede que o eixo central da grande estratégia brasileira deva ser, de fato, a elevação substancial dos ganhos de produtividade, sem o que o país não poderá manter um ritmo sustentado de crescimento econômico, tendendo a permanecer em um baixo patamar de desenvolvimento social, o que obviamente o colocará em enormes dificuldades econômicas ao final do atual bônus demográfico.
Essa questão, absolutamente doméstica, totalmente interna, me parece constituir o pilar central de qualquer grande estratégia brasileira, digna desse nome, para superar os entraves que se colocam no caminho de sua, senão completa, pelo menos maior preeminência nacional, regional e internacional. Apenas cumprindo com tal qualificação, e consequente capacitação, poderá o Brasil exercer seus talentos econômicos, diplomáticos e outros, na escala certamente pretendida por suas elites políticas, militares e diplomáticas. Pode parecer incongruente que a projeção externa do Brasil, e a defesa de seus interesses no plano internacional – como geralmente se coloca como constituindo uma suposta estratégia nacional –, possa depender de fatores eminentemente domésticos, e prosaicamente internos, como são os vetores que influenciam a produtividade nacional (a começar pelo capital humano); mas este é, de fato, o ponto mais relevante para o exercício efetivo de sua projeção internacional e de outras missões daí decorrentes. Aceita esta premissa, cabe então verificar os demais elementos de uma grande estratégia nacional.

1.4. Que tipo de estratégia deveria o Brasil seguir?
Embora o núcleo central de “minha” grande estratégia seja constituído pelo problema da produtividade do capital humano no Brasil, a visão tradicional da questão costuma privilegiar os elementos diplomáticos, ou externos, da inserção do país no sistema internacional. Sendo assim, vejamos como considerar o tipo de estratégia que o Brasil talvez deva seguir nessa vertente. São muito variados os componentes de uma grande estratégia em sua vertente externa, uma vez que eles não dependem apenas das capacitações internas, mas devem se exercer num ambiente não determinado, muitas vezes não suscetível de modificações a partir de uma ação dada do Estado brasileiro, na sua interação com os demais atores do sistema internacional.
Admitindo-se que o peso do Brasil nas grandes questões de segurança estratégica global seja efetivamente reduzido, ou limitado aos poucos domínios nos quais fatores, dotações e iniciativas nacionais possam, realmente, fazer alguma diferença no plano mundial, cabe identificar, portanto, e de maneira realista, o terreno de atuação privilegiado do ponto de vista dos interesses brasileiros. Pode-se, obviamente, inserir o Brasil no grande jogo estratégico no plano global, quando se menciona a capacidade do país oferecer colaboração para a construção da chamada multipolaridade, com base nos instrumentos multilaterais atualmente disponíveis. O que se costuma apontar, neste terreno, é a candidatura do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, objetivo que parece constituir uma obsessão pessoal de alguns diplomatas e de vários militares, ademais de ser uma aspiração que frequente, habitualmente, as considerações de amplos setores da comunidade acadêmica, sempre com a justificativa que tal acesso contribuiria para “democratizar as relações internacionais” e para ampliar o grau de representatividade do sistema internacional”. Tal objetivo talvez mereça integrar uma grande estratégia brasileira, mas ele não parece apresentar relevância suficiente para ser considerado prioritário na presente conjuntura; fica na agenda e será tratado oportunamente.
 As prioridades têm a ver, portanto, com uma agenda na qual o Brasil possa atuar com pleno domínio de suas iniciativas, num contexto no qual essas iniciativas apresentem alguma diferença real no plano dos resultados. Tal contextualização nos remeteria, de imediato, ao entorno sul-americano e ao espaço econômico e político do hemisférico americano meridional, onde a presença e a atuação do Brasil encontram meios e condições para se exercer com força e impacto significativos. Não que do contexto regional sobrevenham, exatamente, ameaças à segurança e à estabilidade do Brasil, a não ser em aspectos marginais, stricto et lato sensi, como podem ser os problemas da droga, dos tráficos diversos, da lavagem de dinheiro em escala transnacional e outros crimes associados.
Imagina-se, por pura observação do entorno regional, que não existam, a partir dele, fatores relevantes que possam colocar em perigo a soberania e a integridade do Brasil enquanto nação. O que é absolutamente contrário a uma grande estratégia do Brasil no contexto regional – e mesmo alhures – seria, na verdade, representado por alianças espúrias com ditaduras anacrônicas, com caudilhos de opereta, com violadores dos direitos humanos e dos valores democráticos, ou uma tolerância indevida em relação a promotores de bizarras políticas econômicas e sociais, que possam afetar, por exemplo, os interesses econômicos nacionais no quadro de processos de integração, ao estilo do Mercosul ou esquemas similares.
Admitindo-se que o Brasil seja um país capitalista, ou seja, uma economia de mercado baseada mais na iniciativa privada do que no planejamento e indução estatais – embora isso não fique muito claro, em função do ativismo governamental em várias áreas de interesse relevante para o setor privado –, seria presumível supor que Estado e governo (representados por regras impessoais e por políticas públicas e por medidas setoriais) atuem sempre no sentido de garantir o tipo de ambiente no qual os negócios privados e sua projeção no entorno regional – bem como alguns exemplos seletivos de cooperação intergovernamental – possam ser estimulados e impulsionados com base em regras claras, estáveis, com respeito aos contratos e garantias associadas (de solução de controvérsias, por exemplo), de molde a produzir retornos ampliados ao país e a seus empreendedores.
Em face e a partir dessa constatação, que é absolutamente de senso comum, os responsáveis governamentais deveriam elaborar uma (ou mais de uma) estratégia – pequena ou grande, não importa muito neste momento – que seja capaz de definir a ação prioritária do Brasil na busca do atingimento dos objetivos tidos por relevantes nesse contexto. Toda estratégia implica um conceito unificador, ou mais de um conceito, também suscetível de definir o que se considera relevante na ação externa do país. Alguns conceitos vêm sendo aventados, nos últimos anos como capazes de estabelecer esse sentido prioritário. O conceito de “aliança estratégica”, por exemplo, foi um tanto quanto abusado no período recente, devendo ser usado com extrema parcimônia, a menos de descaracterizar totalmente seu alto significado político.
No âmbito regional, e numa incabível (para as tradições diplomáticas) atitude paternalista, foi também sugerido o conceito de “diplomacia da generosidade”, ou de “não indiferença”, ambos utilizados de forma bastante parcial, em função de critérios políticos, que por sua vez estavam marcados por inclinações claramente ideológicas. Não se trata do melhor tipo de relação que se pretende estabelecer com vizinhos ou  parceiros igualmente soberanos, dotados de autoestima condizente ou compatível com o estatuto de que gozam no concerto político regional. Procedeu-se, por outro lado, à criação de diversos organismos que duplicam as funções de outros existentes, apenas que com redução do escopo geográfico para afastar supostas “tutelas imperiais” e “intromissões” julgadas indevidas, já que a intenção era realmente a de impor uma nova orientação política a antigas alianças, num inacreditável novo determinismo geográfico auto-imposto, necessariamente redutor em suas possibilidades.
O Brasil tem todo interesse, como sociedade, como economia e como Estado cioso de sua segurança nacional, em ampliar, reforçar e consolidar o processo de integração regional, especificamente pela conformação de um amplo espaço de livre comércio no âmbito sul-americano e pela concretização de diversos tipos de vínculos físicos entre os países da região, nas áreas de transportes, comunicações, energia, defesa e preservação do meio ambiente, prevenção e minimização de desastres naturais, bem como em todos os outros terrenos da cooperação cultural e política.  Esse processo teria de ser feito com a perspectiva de resultados concretos, sem o investimento sobre os meios políticos que têm caracterizado as iniciativas retóricas no contexto sul-americano nos últimos anos. 
No plano mais geral da conduta política do país no âmbito multilateral, é também do interesse do Brasil colaborar com a manutenção de um ambiente aberto aos negócios, com fluxos comerciais e financeiros livres e desimpedidos de obstáculos indevidos ao pleno exercício das competitividades nacionais, no quadro de uma ordem política de pleno respeito ao direito internacional e, tanto quanto possível, isento de ameaças graves à paz e à segurança internacionais, o que implica plena adesão aos esquemas vigentes de não proliferação de armas de destruição em massa, bem como, sempre que cabível, contribuir para a contenção dos focos principais de instabilidade geopolítica. Essa é a visão positiva, ou otimista, da participação do Brasil num sistema caracterizado pelo cumprimento dos dispositivos substantivos da Carta das Nações Unidas e dos protocolos complementares relativos a seus capítulos principais, tanto no que concerne a paz e a segurança internacionais, quanto a cooperação multilateral e bilateral ao desenvolvimento.
Pelo lado negativo, ou não recomendado para uma estratégia de cooperação voluntária com os princípios fundamentais do direito internacional e de suas próprias disposições constitucionais, está claro que o Brasil deveria abster-se de aliar-se a “parceiros estratégicos” cujo perfil político ou econômico contrapõe-se a, ou não condiz, simplesmente, com aqueles valores e princípios, que são, basicamente, os de direitos humanos, democracia e pleno respeito às liberdades e os direitos individuais.
Não é preciso insistir na evidência de que apoiar ou aliar-se politicamente a ditaduras e regimes autoritários, sustentar Estados que cometem grosseiras violações dos direitos humanos, bem como abster-se de condenar tais atos, por razões de puro oportunismo político ou comercial, ou ainda, por adesão a ideologias anacrônicas, já condenadas pela história, tudo isso conforma uma deplorável renúncia aos próprios princípios constitucionais brasileiros, além de constituir notório desrespeito ao espírito e à letra de diversos instrumentos internacionais subscritos pelo Brasil.
Uma grande estratégia não precisa renunciar a determinados princípios éticos para existir e ser efetiva; mas a falta deles pode ser um indicador de que seus formuladores tampouco os defendem, se por acaso se aventurarem a conceber alguma.


[i] A END encontra-se disponível neste link do Ministério da Defesa: www.defesa.gov.br/projetosweb/estrategia; analisei o documento nestes dois artigos complementares: “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Meridiano 47 (n. 104, março de 2009, p. 5-9; link: http://sites.google.com/a/mundorama.net/mundorama/biblioteca/meridiano-47/sumariodaedicaono104-marco2009/Meridiano104.pdf?attredirects=0); “A Arte de Não Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de Defesa”, Revista de Geopolítica (Ponta Grossa, PR; vol. 1, n. 2; Jul.-Dez. 2010, p. 5-20; link : http://www.revistageopolitica.com.br/ojs/ojs-2.2.3/index.php/rg/issue/view/2).
[ii] Cf. Ministério da Defesa, Livro Branco da Defesa; link: http://www.defesa.gov.br/projetosweb/livrobranco/lbdndigital/.
[iii] Ver, por exemplo, Celso Amorim, “Uma visão brasileira do panorama estratégico global”, Contexto Internacional (vol. 33, n. 3, 2011; link: http://www.scielo.br/pdf/cint/v33n2/a01v33n2.pdf).
[iv] A Universidade de Yale, por exemplo, possui, desde 2000, um programa de estudos e pesquisas sobre grande estratégia, do qual participam alguns grandes nomes da área, como os professores John Lewis Gaddis (autor de uma biografia autorizada de George Kennan), Paul Kennedy (o estudioso da ascensão e queda dos impérios) entre outros grandes nomes (ver informações sobre o programa: http://iss.yale.edu/grand-strategy-program).
[v] Cf. Paulo Roberto de Almeida, Os Primeiros Anos do Século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Paz e Terra, 2001).
Pas mal, diraient les Français...
Pretty good, would say the Americans.
Wonderful, très bien, I would like to add, et ajoutter quelque chose:
On me demande de inclure un autre, I have to upload another paper.
This is serious?
Paulo Roberto de Almeida


A economia politica das relacoes economicas internacionais do Brasil: paradigmas e realidades, de Bretton Woods 'a atualidade


177

VIEWS


20

ATTENDEES


1

COMMENT


quinta-feira, 1 de junho de 2017

Manifesto "Diplomacia e Democracia" - minha opiniao, Paulo Roberto de Almeida

Eis o manifesto que andou circulando pelas redes, depois que foi apoiado por um jornalista de esquerda da FSP.
Ao final, dou a minha opinião sobre ele, ao ler, de colegas, que ele não teria "nenhum caráter político-partidário", o que considero uma grande ingenuidade.
Paulo Roberto de Almeida


DIPLOMACIA E DEMOCRACIA
(lido em 1/06/2017) 
Nós, servidoras e servidores do Ministério das Relações Exteriores, decidimos nos manifestar publicamente em razão do acirramento da crise social, política e institucional que assola o Brasil. Preocupados com seus impactos sobre o futuro do país e reconhecendo a política como o meio adequado para o tratamento das grandes questões nacionais, fazemos um chamado pela reafirmação dos princípios democráticos e republicanos.

2. Ciosos de nossas responsabilidades e obrigações como integrantes de carreiras de Estado e como cidadãs e cidadãos, não podemos ignorar os prejuízos que a persistência da instabilidade política traz aos interesses nacionais de longo prazo. Nesse contexto, defendemos a retomada do diálogo e de consensos mínimos na sociedade brasileira, fundamentais para a superação do impasse.

3. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, a consolidação do estado democrático de direito permitiu significativas conquistas, com reflexos inequívocos na inserção internacional do Brasil. Atualmente, contudo, esses avanços estão ameaçados. Diante do agravamento da crise, consideramos fundamental que as forças políticas do país, organizadas em partidos ou não, exercitem o diálogo, que deve considerar concepções dissonantes e refletir a diversidade de interesses da população brasileira.

4. Para que esse diálogo possa florescer, todos os setores da sociedade devem ter assegurado seu direito à expressão. Nesse sentido, rejeitamos qualquer restrição ao livre exercício do direito de manifestação pacífica e democrática. Repudiamos o uso da força para reprimir ou inibir manifestações. Cabe ao Estado garantir a segurança dos manifestantes, assim como a integridade do patrimônio público, levando em consideração a proporcionalidade no emprego de forças policiais e o respeito aos direitos e garantias constitucionais.

5. Conclamamos a sociedade brasileira, em especial suas lideranças, a renovar o compromisso com o diálogo construtivo e responsável, apelando a todos para que abram mão de tentações autoritárias, conveniências e apegos pessoais ou partidários em prol do restabelecimento do pacto democrático no país. Somente assim será possível a retomada de um novo ciclo de desenvolvimento, legitimado pelo voto popular e em consonância com os ideais de justiça socioambiental e de respeito aos direitos humanos.

============

Minha opinião: 

Minha opinião pessoal sobre o “manifesto” (título significativo, não é?).

Ele tem, sim, um caráter político que transparece no uso de conceitos e adjetivos aparentemente neutros, mas caracteristicamente de oposição política ao atual governo.
Não tenho nada contra chamar o governo do que se pretende, abertamente (corrupto?; continuista?; inepto?; em suma, ineficiente para introduzir as reformas necessárias para colocar o país num itinerário de crescimento sustentado, com mudança estruturais e distribuição social dos resultados desse crescimento).
Mas, não se trata disso; por trás de sua aparente neutralidade, o texto em questão não menciona em nenhum momento as forças que estão, declarada e deliberadamente, DIVIDINDO a sociedade brasileira, segundo uma publicidade viciosa e deformada, mentirosa, sustentada por sindicatos mafiosos, que usam o dinheiro de todos nós para trazer militantes para as ruas, que acabam se confundindo com mercenários destruidores do patrimônio público.
Isso é o mínimo que acho desse texto deformado, mal intencionado, por trás de um democratismo mal digerido.
Mas, acho que todos têm o direito de se manifestar, mesmo os divisionistas, os aliados dos mafiosos, os desonestos subintelequituais, assim como os verdadeiros democratas, as pessoas interessadas na superação das divisões atuais — que são, SIM, fabricadas com intenções políticas — e todos aqueles interessados num país que funcione segundo os velhos princípios do Estado de Direito, e de manifestações pacíficas, não as financiadas por organismos profundamente identificados com partidos políticos e com todos aqueles que pretendem defender a organização criminosa que criou no país aquilo que eu chamo de A Grande Destruição.
Não há uma frase sequer contra os corruptos e delinquentes políticos que produziram o presente estado de anomia e de confusão. E que se valem da ingenuidade de muitos para avançar causas que são apenas aparentemente democráticas, mas que são defendidas por agrupamentos políticos que a mim aparecem claramente nas entrelinhas.
Também acho que a ADB não precisaria ter se manifestado, mas uma vez que os que assinaram esse texto deformado o fizeram em nome da classe como um todo, acredito que a ADB também tem o direito de manifestar a posição de sua diretoria, e ela o fez de uma maneira totalmente equilibrada, aliás condenando o caráter político do manifesto, o que eu também condeno. 
C’est mon opinion et je la partage, como diria um dos dois policiais do Tintin...
----------------------------
Paulo Roberto de Almeida

SAE critica a política externa: documento fustiga posturas da diplomacia brasileira

Posso dizer que sou familiar e convergente com algumas dessas críticas, pois eu já as fiz em diversos trabalhos e livros publicados. Eu até iria mais longe na avaliação negativa, não exatamente em relação ao Itamaraty e sim com respeito ao lulopetismo diplomático, a versão externa de um governo aloprado em todos os aspectos.
Paulo Roberto de Almeida

Documento do Planalto aponta fracasso da política externa brasileira
IGOR GIELOW, DE SÃO PAULO
FSP, 01/06/2017 02h00

O Brasil carece de uma "grande estratégia", a política externa fracassou nos governos FHC, Lula, Dilma e é apenas "agenda pontual" no de Michel Temer.
Isso ocorre porque há uma "falha sistêmica" de formuladores, e a queixa dos diplomatas de que a área não é prioritária ou não tem recursos serve para "resguardar seu papel" —eles afinal "trabalham para que a política externa permaneça fora dos debates políticos mais amplos".
As duras críticas acima fazem parte do texto "Brasil, um país em busca de uma grande estratégia", da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, e será lançado nesta quinta (1).
Em 20 páginas, fora introdução, às quais a Folha teve acesso, são alinhavados pontos de discussão, números e exemplos factuais.
Os autores, o secretário Hussein Kalout e seu adjunto, Marcos Degaut, são apontados como responsáveis pela avaliação na introdução feita pelo secretário-geral da Presidência, Moreira Franco.
Isso ajuda a circunscrever o efeito da previsível reação ao relatório, mas trata-se de documento público e chancelado pela Presidência. A variável sobre seu impacto reside no fato de que ele emerge em meio à crise política que engolfa o governo Temer.
Os autores não poupam seu chefe. "O governo Temer decidiu concentrar esforços numa espécie de diplomacia presidencial voltada para consolidar a legitimidade da nova administração e tranquilizar investidores."
Enquanto isso é válido, argumentam, "também será inegável que se trata de agenda pontual e conjuntural, que ainda não integra um projeto coerente". Temer já teve dois chanceleres desde 2016.
"O Brasil não foi bem-sucedido em nenhum dos quatro eixos principais de sua política exterior —a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a integração sul-americana, a política comercial extrarregional e a atuação no âmbito dos Brics."
Na questão da reforma do Conselho de Segurança, o relatório relata os sucessivos fracassos, desde os anos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002), em atingir o objetivo. A expansão de representações, pedra de toque de Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010), é vista como infrutífera. A integração regional, ineficiente.
A falha dos governos petistas em criticar violações dos direitos humanos, seja na Venezuela chavista ou no conflito entre Rússia e Ucrânia, passando por outras omissões notáveis (ação saudita no Iêmen, guerra civil síria), é apontada com destaque.
O governo Dilma Rousseff (PT, 2011-2016) é particularmente admoestado pela falta de interesse da mandatária na área externa, mas os autores rejeitam colocar toda culpa nela pela decadência da imagem externa.
Mais que isso ou falta de dinheiro, a ausência de planejamento e "o baixo perfil da atuação diplomática" traduzem "uma falha sistêmica, na medida em quem todas as instituições governamentais, o setor privado e a sociedade civil revelaram-se incapazes de formular e executar uma grande estratégia".
Sem citar a palavra Itamaraty, o relatório afirma que os atores principais da política externa "terminam adotando posições defensivas com o propósito de resguardar seu papel proeminente".
Emulando o que dizem muitos diplomatas reservadamente, o texto diz que a classe busca ficar fora do radar do debate político e do interesse do público.
Questões comerciais são esmiuçadas, e a obrigatoriedade de negociar acordos comerciais em bloco com o Mercosul é vista como "amarra". O desempenho do Mercosul no setor, com três acordos irrisórios (Egito, Palestina e Israel), é comparado ao do Chile (20 acertos, inclusive com China, Europa e EUA).
Sobre Brics, bloco "que não disse a que veio", ao fim o Brasil hoje é "dependente da China" com uma pauta comercial pouco diversificada.
Por ser "histórico defensor do multilateralismo", diz o texto, o país "parece ignorar transformações em curso no comércio" e tem perdido oportunidade de negócios —alusão à Ásia e ao Pacífico.
Como todo relatório de conjuntura, não há receituário de soluções. O texto é o primeiro de 12 do tipo, caso a série tenha continuidade.

Comentários:
Cloves Oliveira (07h22) há 8 minutos
Um dos problemas está na escolha dos embaixadores. Nada contra o Inst. Rio Branco, mas manter o monopólio dele na escolha de embaixadores é um equívoco. Se o chanceler não precisa ser diplomatas de carreira, por que os embaixadores?Temos que começar a enviar pessoas proeminentes das mais diversas áreas da atividade humana, inclusive esportes. Por que o Pelé ou o Guga não poderiam servir nas embaixadas? Seria uma tremenda promoção para o país. A política externa começa com boa governança interna.