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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

terça-feira, 23 de junho de 2020

O Mercosul e o regionalismo latino-americano: ensaios selecionados, 1989-2020 - novo livro Paulo R. de Almeida

O Mercosul e o regionalismo latino-americano
ensaios selecionados, 1989-2020

Paulo Roberto de Almeida
Doutor em ciências sociais.
Mestre em economia internacional.
Diplomata.



Brasília
Diplomatizzando
2020

Sumário: 

Prefácio – O Mercosul e a integração latino-americana
Prólogo – A América Latina: entre a estagnação e a integração (1989)

Primeira Parte
O Mercosul em sua fase de crescimento
1. Mercosul: o salto para o futuro (1991)
2. Mercosul e Comunidade Econômica Europeia (1992) 
3. Dois anos de processo negociador no Mercosul (1993) 
4. O Brasil e o Mercosul em face do Nafta (1994) 
5. Mercosul e União Europeia: vidas paralelas? (1994) 
6. O futuro do Mercosul: dilemas e opções (1998) 
7. Coordenação de políticas macroeconômicas e união monetária (1999)
8. O Brasil e os blocos regionais: soberania e interdependência (2001)
9. Trajetória do Mercosul em sua primeira década, 1991-2001 (2001) 

Segunda Parte
Crises e desafios do Mercosul
10. O Mercosul em crise: que fazer? (2003) 
11. Relações do Brasil com a América Latina desde o século XIX (2004)
12. Mercosul: sete teses na linha do bom senso (2005) 
13. Problemas da integração na América do Sul (2006) 
14. Mercosul e América do Sul na visão estratégica brasileira (2007) 
15. O regionalismo latino-americano vis-à-vis o modelo europeu (2009) 
16. Seria o Mercosul reversível? (2011) 
17. Desenvolvimento histórico do Mercosul aos seus 20 anos (2011)
18. Perspectivas do Mercosul ao início de sua terceira década (2012) 
19. Os acordos extra-regionais do Mercosul (2012) 

Terceira Parte
Estagnação do processo integracionista
20. A economia política da integração regional latino-americana (2012)
21. O Mercosul aos 22 anos: algo a comemorar? (2013)
22. O megabloco do Pacífico e o Brasil (2015) 
23. O Mercosul aos 25 anos: minibiografia não autorizada (2016) 
24. Regional integration in Latin America: an historical essay (2018)
25. O Brasil isolado na América do Sul (2019)

Epílogo – Conflitos Brasil-Argentina, paralisia do Mercosul (2020)

Apêndices:
Livros publicados pelo autor
Nota sobre o autor 

Prefácio – O Mercosul e a integração latino-americana


Uma das temáticas mais frequentes em meus escritos, desde que dei início a uma coleta organizada de meus trabalhos de natureza acadêmica, e já em atividade profissional na carreira diplomática, foi a da integração latino-americana, em especial em conexão com o Mercosul, como reflexo de um precoce interesse intelectual pelo assunto, mas sobretudo como resultado do seguimento dessas questões no contexto da política externa regional do Brasil. Numa criteriosa seleção dos trabalhos enfeixados sobre os conceitos de “integração” e de “Mercosul”, detectei a existência de duas centenas de escritos tratando desses assuntos, sob os mais diferentes aspectos e formatos: ensaios históricos, artigos conjunturais, entrevistas e respostas a questionários submetidos por jornalistas e pesquisadores, resenhas voluntárias, capítulos em colaboração ou prefácios (a convite) a livros sobre esses temas, ademais de um breve papel como organizador de documentação sobre os primórdios do Mercosul e editor de periódico sobre o bloco em seus primeiros momentos, do nascimento a uma fugaz consolidação. 
De todos esses trabalhos, excluídos os livros sobre o assunto, selecionei pouco mais de um décimo do total para compor este volume, aqueles que me pareceram mais representativos de meu pensamento, de minhas pesquisas, ou dotados de certa resiliência temporal, para escapar ao julgamento implacável da conjuntura. Não entraram aqui, por exemplo, as muitas notas introdutórias que fiz ao Boletim de Integração Latino-Americana, que criei e dirigi, enquanto estive trabalhando sob a liderança do embaixador Rubens Antônio Barbosa nos primeiros anos de existência do bloco. Exclui desta coletânea, por natural, os diversos trabalhos que elaborei em seu nome, por fazerem parte de minhas obrigações funcionais naquele contexto, assim como também deixei de fora prefácios e resenhas a livros desse universo de estudo e de desempenho institucional. 
Muitos desses trabalhos se beneficiaram de uma prolífica, embora curta, estada em Montevidéu, entre 1990 e 1992, durante a qual eu dei início ao estudo dos problemas da integração econômica regional, inclusive no contexto de uma abordagem institucional comparada (no caso com a então Comunidade Econômica Europeia, que pouco depois se transformaria em União). O período passado em Montevidéu, país vizinho ao Brasil, permitiu-me, oportunamente, algumas rápidas incursões ao Brasil, para seminários ou mesmo para pesquisa, sempre resultando em trabalhos sobre as relações econômicas internacionais do Brasil, dos quais resultaria, algum tempo mais tarde, um livro de historiografia sobre a Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (já na terceira edição: 2001, 2004 e 2017). Mas, meu primeiro livro, hoje de livre acesso, foi exatamente sobre a grande iniciativa estratégica da diplomacia regional do Brasil: O Mercosul no contexto regional e internacional (1993). A ele se seguiram um segundo, já na fase de consolidação do bloco – Mercosul: fundamentos e perspectivas (1998) – e um terceiro, dirigido ao público externo: Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (2000). Entre eles, e mesmo depois, elaborei incontáveis artigos conjunturais e vários outros trabalhos mais permanentes, alguns dos quais figuram neste volume. 
Do ponto de vista diplomático, a curta estada em Montevidéu – trabalhando como representante alterno do Brasil junto à Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), sob a liderança e a convite do embaixador Rubens Barbosa – ofereceu-me uma excelente oportunidade de afirmação profissional, na medida em que eu deixava um foro negociador de caráter relativamente assimétrico, Genebra (no contexto da recém iniciada Rodada Uruguai de negociações comerciais multilaterais, então no âmbito do GATT, entre 1987 e 1990), para um outro foro, a Aladi, no qual a legítima expressão de nossos interesses se inseria num contexto de igualdade soberana entre as nações, senão de relativa preeminência do Brasil, em vista de seu peso econômico e comercial nas relações continentais. Com efeito, nas diversas instâncias negociadoras de Genebra, o Brasil, apesar de bastante importante (sobretudo no quadro das organizações internacionais de caráter econômico), era, na maior parte dos casos, apenas “mais um país em desenvolvimento” no meio de dezenas de outros participando do que era, até então, um “diálogo Norte-Sul”. Na verdade, assistia-se, na maior parte dos casos, a um diálogo de surdos (a caracterização é válida sobretudo para as demandas em favor de “transferência de tecnologia” no âmbito da Unctad ou da Ompi, por exemplo). Em Montevidéu, ao contrário, o Brasil aparecia quase como uma “grande potência”, em todo caso como um país razoavelmente avançado, senão já “desenvolvido”, num continente ainda marcado por profundos desequilíbrios sociais e regionais, desigualmente industrializado e historicamente especializado em algumas poucas commodities de exportação.
Grande parte dos trabalhos então elaborados – alguns poucos compilados neste volume – se referiam, assim, ao estudo e à exposição dos problemas da integração regional, ainda num contexto multilateral muito difuso, o da Aladi, pois que elaborados à margem do processo de integração bilateral Brasil-Argentina (que era dirigido diretamente das capitais), ou anteriormente à constituição do Mercosul, processo também negociado exclusivamente nas capitais, sem a “interferência” ou a participação da delegação junto à Aladi. Muitos desses trabalhos foram também elaborados para terceiros – até para ministros ou presidentes – no quadro dos compromissos funcionais ou atendendo a solicitações diversas para participação em seminários e colóquios. Praticamente nenhum deles chegou a ser divulgado em meu próprio nome, embora eu tenha resgatado para este volume um artigo que fiz para ser publicado pelo presidente Fernando Collor, por ocasião da primeira reunião de cúpula do bloco, após a aprovação e rápida ratificação do Tratado de Assunção, ao final de 1991. Alguns outros, deixados em “banho-maria”, me serviriam mais tarde, já em Brasília, a partir do final de 1992, no intenso trabalho que passei a desenvolver como organizador e divulgador de informações sobre os processos de integração regional, em especial sobre o Mercosul.
O novo e curto período de estada em Brasília (apenas um ano e meio, de 1992 a 1993), poderia ser praticamente caracterizado como “monotemático”, tendo em vista o monopólio que sobre ele exerceram os assuntos do Mercosul e os temas da integração regional de modo geral, não fosse minha tradicional vocação dispersiva nas lides intelectuais e um certo espírito touche à tout, que me levaram, a despeito dessas intensas obrigações funcionais centradas sobre o Mercosul, a continuar ocupando-me de questões tipicamente acadêmicas, geralmente em pesquisas históricas, das quais resultariam aquele primeiro volume sobre a diplomacia econômica do Brasil no século XX (embora contendo um longo capítulo final sobre o período republicano). Ao assumir em Brasília uma coordenadoria executiva – primeiro no Departamento de Integração, depois no que veio a constituir-se a Subsecretaria-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior – passei a ocupar-me de um sistema de informações institucionais e econômicas sobre os diversos processos de integração regional, montado sob minha direta supervisão e aberto o mais possível às demandas das associações empresariais, da comunidade acadêmica e estudantil, enfim da sociedade civil, num sentido largo. 
Esse sistema baseou-se essencialmente, mas não exclusivamente, num periódico de informações e num banco de dados em computador. A publicação foi montada muito rapidamente: em menos de dois meses de Brasília, eu compunha, editava e distribuía o primeiro exemplar do Boletim de Integração Latino-Americana, cujas dimensões e tiragem cresceram assustadoramente nos meses e números seguintes. O Editor, eu, também servia de redator principal, corretor de provas, além de habitual resenhista de publicações nem sempre restritas aos temas de sua área. No terreno informática, os progressos também foram rápidos, ainda que não de todo satisfatórios: impaciente com a lentidão da burocracia do Itamaraty em colocar à disposição dos interessados um banco de dados eletrônico, funcionando em sistema de rede aberta, tratei eu mesmo de instalar, com a ajuda de um programador, um BBS – um Bulletin Board System, como na época se chamavam essas geringonças –, um foro de informações sobre o Mercosul, aberto a consultas externas, sem qualquer discriminação. O único inconveniente para os usuários era a necessidade de uma chamada telefônica a Brasília, uma vez que não foi possível conseguir as necessárias “portas externas” para conectá-lo às redes acadêmicas. Nessa época, estou falando do início dos anos 1990, a cultura informática do Itamaraty podia ser cronologicamente situada no Jurássico, talvez até no pré-Cambriano.
Outro aspecto de minhas atividades “mercosulianas” era, de um lado, a preparação de textos (discursos, artigos, papers de informação) para os superiores hierárquicos, inclusive os chanceleres, e de outro lado, a participação em seminários ou mesas redondas, atividades que desempenhava com grande prazer intelectual e uma certa heterodoxia em relação aos tradicionais parâmetros da linguagem oficial ou da discrição diplomática. Devo confessar que, mesmo contando com quase três lustros na carreira, nunca resignei-me à continência verbal ou à timidez formal da maior parte de meus colegas de profissão Como jamais fui adepto da chamada langue de bois, sempre pensei que todos os temas, mesmo os mais sujeitos a discussão e controvérsia – como era o da integração com os países vizinhos –, deveriam merecer uma discussão sem preconceitos políticos ou econômicos. Esta foi a orientação que prevaleceu na linha editorial do Boletim – não sem algumas dificuldades eventuais – ou nas palestras que pronunciava em todo o Brasil ou no exterior. Creio, modestamente, ter contribuído em algo para certa abertura do Itamaraty em relação à sociedade à sua volta.
A intensa atividade profissional como “editor do Mercosul” impediu-me de assumir compromissos acadêmicos regulares, na Universidade de Brasília ou no Instituto Rio Branco (como tinha sido o caso na estada anterior, entre 1986 e 1987), com exceção da participação em seminários específicos ou da redação de artigos para revistas especializadas. Muitos outros trabalhos produzidos nessa segunda estada, também curta, em Brasília, se referem, mais propriamente, a temas de história diplomática ou de economia internacional e, portanto, não compilados neste volume, que é dedicado exclusivamente ao Mercosul e à integração regional. Numa outra vertente de meus interesses pessoais, a maior parte das resenhas de livros reportou-se evidentemente ao Mercosul, mas várias outras seguiram a curiosidade intelectual do momento. As resenhas de livros, em todas as áreas já foram objeto de outros volumes em edição de autor, livremente disponíveis em minhas páginas na internet.
Permito-me, por fim, relatar também, não sem uma ponta de orgulho, o começo de uma bela aventura: o salvamento, a recuperação e a continuidade de um empreendimento exemplar de nossa história diplomática e editorial, a Revista Brasileira de Política Internacional, que tinha ficado órfã, no final de 1992, com a morte de seu editor de longa data, Cleantho de Paiva Leite: fui o principal animador de sua vinda a Brasília, junto com colegas diplomatas e professores da UnB, tendo sido igualmente, em período ulterior, presidente do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais. Mas, isso já foi motivo para um outro volume de trabalhos, igualmente disponível livremente em minhas bases de dados. 
No momento, pretendo apenas coletar e tornar públicos alguns trabalhos sobre uma das grandes prioridades do Brasil em épocas pregressas, mas que permaneceram numa relativa obscuridade desde seu período de maior relevância, nos distantes anos 1990. A reconhecida excelência profissional da diplomacia brasileira resgatará, em futura ocasião oportuna, a aventura do Mercosul e a da integração regional, no momento relegadas a um injusto limbo político, numa conjuntura política em que se afirmam, abertamente, a oposição ao multilateralismo e uma adesão a tresloucadas seitas conspiratórias que pregam o combate ao “globalismo”, um monstro metafísico que essa franja lunática nunca soube explicar em que consiste. 
As próximas etapas de meu trabalho intelectual, e prático, serão dedicadas a esse trabalho de resgate, que aliás já começou. Meus livros mais recentes, se ouso terminar por uma nota de divulgação em causa própria, tiveram como respectivos títulos: Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019, em duas edições, livremente disponíveis a partir do blog Diplomatizzando), Marxismo e socialismo no Brasil e no mundo: trajetória de duas parábolas da era contemporânea (2019) e O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira (2020), os dois últimos em formato Kindle. Continuarei no meu quilombo de resistência intelectual...


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de junho de 2020


domingo, 21 de junho de 2020

A geopolítica do “vírus chinês” - Marcos de Azambuja (revista Piauí)

A geopolítica do “vírus chinês”

A disputa do século entre Washington e Pequim – e o que o Brasil tem a ver com isso

Marcos Azambuja
Revista Piauí, edição 165, junho de 2020

Mapa atribuído a Zheng He, grande navegador chinês do século XV: ao contrário dos EUA, que não temem agressão do Canadá ou do México, a China tem uma vulnerabilidade geográfica, que lhe traz preocupações reais com vizinhos poderosos, como a Rússia, a Coreia, a Índia e o Japão

O ofício do futuro é ser perigoso.ALFRED NORTH WHITEHEAD


É um lugar comum dizer que a história se faz por caminhos complexos e tortuosos, mas não é menos verdade dizer que ela também gosta e precisa de datas e palavras que sirvam como pontos de referência claros para os contemporâneos e para os que virão depois. São inúmeros, no correr dos séculos, os períodos de sinalização incerta e ambígua, mas uma coisa é praticamente certa: os anos de 2017 a 2020 não estarão nessa lista. Poucas vezes um momento histórico indicou, de maneira tão clara, sua intenção de ser lembrado como uma daquelas encruzilhadas em que as coisas deixam de ser o que eram e uma nova realidade aparece com todas as suas promessas e desafios. No caso, e pelo que se vê até agora, com mais desafios do que promessas.
Os Estados Unidos, nesses quatro anos memoráveis, promoveram a desconstrução da ordem internacional que eles próprios, com algumas interrupções e hesitações, vinham desenhando desde o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918. Enfraqueceram o Tratado do Atlântico Norte, sua principal aliança militar e política com os países da região. Reviram seu apoio ao sistema das Nações Unidas, amplamente construído por mãos norte-americanas, em São Francisco e em Bretton Woods. Saíram da Unesco e do Conselho dos Direitos Humanos, ambos entidades da ONU. Afastaram-se do Acordo de Paris sobre o clima e do acordo de controle nuclear com o Irã. Deixaram o Tratado Transpacífico, um acordo comercial entre países do Oceano Pacífico. Esvaziaram a política de criação de dois Estados em Israel e levaram sua embaixada para Jerusalém, dando reconhecimento formal à cidade como capital israelense. Buscaram aproximação com os regimes fortes da Rússia e da Coreia do Norte. Começaram uma guerra comercial com a China, seu maior parceiro e, depois deles próprios, a mais poderosa economia do mundo. Renegociaram seus tratados com o México e o Canadá que haviam criado a Alca, uma área de livre-comércio da região. Mudaram drasticamente as regras que regulavam o processo migratório para o país, começaram a construir um muro de separação com o México. Finalmente, os Estados Unidos também estão enfrentando agora, como todos nós, a mais agressiva pandemia dos últimos cem anos.
É difícil encontrar nos anais e em tempos de paz um processo de demolição tão abrangente. Como ilustração deste momento, escolho, arbitrariamente, um instante que me parece revelador e que foi capturado pelas implacáveis e onipresentes lentes e câmeras do nosso tempo. O presidente Donald Trump está na Casa Branca, tendo à sua frente um texto que vai ler para a nação. A menção que o texto fazia ao “coronavírus” é riscada e substituída – por sua própria mão – para que o vírus fosse simplesmente rotulado como o “vírus chinês”.
As palavras de Trump foram pronunciadas no dia 19 de março, quando a pandemia chegava devastadora à população norte-americana. A tentativa de associação explícita do vírus com a China destinava-se a fazer com que as duas palavras – “vírus” e “chinês” – ficassem ligadas de maneira indelével na memória coletiva. Como Catão, que exibe no Senado de Roma os figos recém-colhidos para mostrar a proximidade e a ameaça de Cartago, Trump procura transformar o novo coronavírus em arma e argumento contra a China. O mero fato de que, mais de 2 mil anos depois, eu ainda recorde aqui o episódio de Roma, em contexto tão diverso, é prova de como as palavras e os gestos podem ser longamente memoráveis e servem para definir momentos cruciais. Em termos puramente retóricos, a mudança intencional do nome do agente responsável pela pandemia era quase – como pretendia ser – uma declaração de guerra.
As palavras Covid-19 e coronavírus parecem ter sido aceitas de forma agora irreversível, mas, para isso, foi preciso que até mesmo os principais aliados dos Estados Unidos se recusassem a subscrever um importante documento do G7 porque incluía a expressão “vírus de Wuhan”, uma fórmula alternativa, e igualmente agressiva, que Washington desejava e promovia.
O que ajuda a entender a animosidade norte-americana é o fato de que a China, bem antes do tempo imaginado, ultrapassou a sua condição de economia complementar à dos Estados Unidos, que fornecia em condições imbatíveis uma enorme gama de bens e serviços, e passou a se apresentar, cada vez com mais credibilidade, como um poderoso rival no terreno que de fato importa e onde se definirá o controle do futuro – as tecnologias de ponta. A controvérsia não irá embora. Ao contrário, deve se agravar cada vez mais daqui para a frente.
A relação entre a China e os Estados Unidos – eixo central do mundo de hoje e, até agora, indispensável e vantajoso para a economia de ambos – vinha se deteriorando ao longo dos últimos meses, talvez um pouco mais. Mas, até então, o terreno principal do enfrentamento entre os dois gigantes era o das trocas comerciais. No centro das discussões, estavam os problemas ligados à propriedade intelectual e à competição desleal. A pandemia serviu para que se subisse o tom e se ampliasse a desconfiança entre os parceiros, que são, agora e cada vez mais claramente, adversários. Elevou-se neste ano, de maneira inquietante, o patamar do crescente antagonismo. Mas, antes de ir adiante e tratar especificamente disso, devo andar um pouco para trás.
Não encontro melhor caminho do que começar no ano de 1945, quando o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da era atômica inauguram um ciclo que se estende até hoje e que, apesar de importantes rupturas, guarda não poucos traços de coerência e continuidade. É um período marcado pela hegemonia dos Estados Unidos – desafiada até 1989 pela rivalidade militar e ideológica com a então União Soviética –, que se define por três parâmetros: a Guerra Fria, o fim dos impérios coloniais clássicos e o aparecimento na cena internacional de quase 150 novos países independentes, antes colônias, fato que mudou de maneira extraordinária o mapa político do mundo.
É, também, o período em que as armas nucleares excluíram, como opção racional, os enfrentamentos diretos entre Estados detentores dessa tecnologia, ainda que um número importante de conflitos periféricos desafiasse o controle das potências dominantes, interessadas em manter certas áreas sob sua influência. Nesse intervalo, emergem para a vida independente moderna alguns grandes atores, entre eles a Índia, o Paquistão e Israel, além da África do Sul, que se redefine com nova e acrescida legitimidade. E, finalmente, a China sai de um longo período de declínio e fragmentação para, reclamando ser vista como uma única entidade, ocupar seu lugar de direito na vida internacional.
Foi, sobretudo, um extraordinário período de acelerada incorporação científica e tecnológica. Penso que a época que agora está chegando ao fim será lembrada como aquela em que o homem passou, por sua ação ou omissão e pela primeira vez na história, a ter uma influência decisiva na sua própria sobrevivência como espécie. (As inquietações com o clima, com o meio ambiente e com o esgotamento dos recursos naturais, inexistentes ou marginais em 1945, são hoje uma preocupação absolutamente prioritária. A exploração espacial começou, deslanchou e hoje os céus são, literalmente, o limite. O fundo dos mares e dos oceanos oferece uma nova fronteira.)
Neste período, a ordem internacional democrática e liberal emergiu triunfante depois de décadas de desafio e turbulência. Parecia ser uma arquitetura tão estável que alguns até imaginavam que seu advento significava simplesmente o fim da história.
Este é o ciclo que está terminando. Agora, com sobressaltos, num mar de incertezas e enormes indagações, vivemos o que parece ser o nascimento de um outro ciclo no qual o poder dos Estados Unidos – um poder tão dominante que transformou os últimos cem anos no que se pode chamar, apropriadamente, de “século americano” – começa a ser ameaçado por novas formas de governo e de interação social, e pela volta da China ao lugar que o país ocupou, durante milênios, no tabuleiro do poder mundial.
O momento é talvez decisivo para o Ocidente, que terá de enfrentar um desafio direto à sua longa hegemonia, que vinha se estendendo e se consolidando desde que as Grandes Navegações, o Iluminismo e a Revolução Industrial deram à nossa parte do mundo a impressão de que podia exercer um poder duradouro em escala verdadeiramente global. Durante todos esses séculos, o Ocidente foi o centro e o motor da história. As duas grandes guerras do século XX, que chamamos mundiais, foram a culminância explosiva de crises que o Ocidente criou para si mesmo.
Não quero exagerar nem simplificar demais. Não ignoro o desafio que o Japão procurou oferecer na primeira metade do século XX até sua derrota em 1945 e, depois, seu impressionante renascimento. A própria China, humilhada e fragilizada, não chegou a perder formalmente a sua soberania e conseguiu mesmo, por seu incontornável peso, um lugar privilegiado como membro permanente do Conselho de Segurança da então recém-criada Organização das Nações Unidas. Tampouco estou esquecendo o dinamismo dos chamados “tigres asiáticos” a partir da década de 1970, e também tenho presente que a Coreia e o Vietnã deram a medida de como era caro e perigoso, mesmo para países muito poderosos, meter-se em uma guerra terrestre na Ásia. E a hora e a vez da Índia parecem estar perto de chegar.
Nos mares, a história não foi diferente. Ao longo dos séculos, o Mediterrâneo cedeu sua centralidade e influência ao Atlântico e, agora, o imenso Pacífico reclama sua hegemonia. Tudo parece indicar que iremos viver uma fase de menor fervor ideológico e ainda maior dinamismo tecnológico. A ciência vai tão longe e tão depressa que até a ficção científica parece superada por avanços e conquistas reais. Júlio Verne e H. G. Wells, assim como seus muitos sucessores, podem ser vistos hoje apenas como acanhados precursores. O mundo real, em várias frentes, parece ir mesmo além do que hoje pode ser imaginado.
Observo, naturalmente, com olhos brasileiros o que está acontecendo. O status quo é, certamente, mais confortável para nós do que aquele que agora começa a se desenhar. Temos, por ser parte dele, imensas afinidades com o mundo ocidental e nele estamos em casa. Participamos de sua história, de sua cultura e de sua política, e compartilhamos uma mesma tradição que se estende das práticas religiosas ao pensamento econômico.
A globalização aproximou maneiras de ser e fazer virtualmente em todo o mundo e reduziu diferenças, mas, apesar de tudo, ainda é mais fácil para nós pensar e atuar em algum idioma neolatino ou germânico do que em mandarim ou híndi. É bem mais simples nos orientarmos pelas ruas de Barcelona do que de Karachi. É verdade que o inglês é o novo latim, mas basta chegar a Cantão ou Bangcoc para descobrir que a chamada língua franca do nosso tempo é menos falada e entendida do que se supõe.
Teremos que nos acostumar a novos hábitos, aprender e decifrar ideogramas e nos familiarizar com tradições e narrativas que não são aquelas que conhecemos. Durante os muitos séculos em que o Ocidente ditou comportamentos e modas, eram elas, as imensas multidões que moravam do lado errado do Canal de Suez, que deviam fazer o esforço de aprender e copiar os estilos ocidentais, muitas vezes emigrar e vir aqui comer o “trigo alheio”. Agora, seremos nós a fazer o percurso em sentido contrário em busca de mercados, financiamentos e até mesmo empregos.
Tínhamos a impressão – e não era uma impressão falsa – de sermos o centro do mundo. Entre nós, um navio de longo curso era chamado de transatlântico, como se o nosso mar vizinho fosse o único em que se navegasse. Contávamos as horas pelo meridiano de Greenwich e parecia ser da ordem natural das coisas que fosse assim. O metro original, medida de quase todas as coisas, tinha nascido e morava em Paris. Aceitávamos sem surpresas que quase tudo se medisse por nossas réguas e nossos compassos.
Quando fui à China pela primeira vez, nos idos de 1975, os efeitos cumulativos da Revolução Cultural, do Grande Salto para a Frente e do radicalismo feroz da chamada Gangue dos Quatro ainda estavam dolorosamente presentes. O Brasil, ao contrário, vivia então um ciclo de acelerado crescimento econômico e, apesar do regime ditatorial, havia confiança no futuro. Na época, enquanto nós convivíamos com índices de crescimento aproximados aos da China de hoje, a China de então derrapava em taxas modestas e mesmo negativas de crescimento, como as do Brasil de agora. Em menos de cinquenta anos, tudo mudou.
A diferença de fuso horário entre Brasília e Pequim era e continua sendo de onze horas – e comemoro que, em um mundo em grande transformação, pelo menos isso não tenha mudado. Minha primeira noite no histórico Grand Hôtel de Pékin foi, como aconteceu em várias viagens seguintes, insone. Poucas horas antes, tinha cochilado, confesso, em cima de uma indefinível sopa durante um jantar formal interminável em pratos e brindes. Lá pelas sete da manhã, ou talvez um pouco antes, desisti de tentar dormir e fui para a minha janela, que dava para uma daquelas larguíssimas avenidas da capital chinesa. Vi então – e a imagem ficou comigo – uma miríade de bicicletas que rolavam em silêncio, pilotadas por muitas dezenas de milhares de chineses, todos vestidos com o que era virtualmente o uniforme do período maoista, e tive uma impressão, que perdura até agora, da imensidão do universo humano chinês e do seu não menor potencial.
Pequim então era cinza – desde a cor do céu até o tijolo das casas – e ainda se escutava o hino O Oriente É Vermelho, comemorando Mao Tsé-tung e sua obra em termos escandalosamente laudatórios. Na última visita que fiz à China, em 2012, as bicicletas haviam virtualmente desaparecido, o hino estava esquecido e o cinza fora substituído pelas cores reluzentes de uma cidade que parecia ter se reinventado e, magicamente, enriquecido. Do primeiro encontro com a China, lembro ainda que viajar de Cantão a Hong Kong representava muito mais do que atravessar uma fronteira política. Era observar aquela imensa diferença de riqueza e de modo de vida entre dois regimes e duas formas de organização econômica. Na minha visita mais recente, as diferenças eram quase imperceptíveis.
Atribui-se a Napoleão a seguinte frase: “Quando a China despertar, o mundo irá tremer.” Ele teria dito isso durante o exílio na ilha britânica de Santa Helena e, embora concorde com a profecia, desconfio da autenticidade da atribuição. (Eu mesmo tenho ocasionalmente usado o imperador para emprestar prestígio e autoridade a frases de origem duvidosa. Sábios chineses não identificados, bem como obscuros provérbios russos, são outros disfarces aos quais eu e outros tantos temos recorrido para dizer coisas às quais desejamos dar uma aura de profundidade ou um selo de autoridade. Os mortos não costumam reclamar.)
O fascínio do Ocidente com a China não é novidade. O nosso maravilhamento começa por volta de 1298, com a publicação do relato das viagens de Marco Polo. O outro momento decisivo de descoberta e contato ocorre na missão de lorde George Macartney, em 1792, a primeira da história. Com essa iniciativa, a Grã-Bretanha queria abrir a China para os seus produtos – e queria que isso acontecesse logo, por bem ou por mal. O imperador Qianlong disse que a China não precisava daquele comércio, desprezou os presentes que lhe eram oferecidos e não simpatizou com o emissário. O encontro marca também o primeiro choque entre dois impérios: o britânico, que estava em movimento e expansão, e o chinês, que vivia seu declínio. Em dois livros cuja leitura recomendo com entusiasmo, Alain Peyrefitte trata desse episódio crucial.
Com manobras astuciosas e dilatórias no final fadadas ao insucesso, a China procurou resistir ao insaciável apetite do colonialismo e do imperialismo ocidental e, depois, tardiamente, ao imperialismo nipônico. Por isso, foi alvo de ataques de uma violência que excederam mesmo os parâmetros do século XIX e da primeira metade do século XX, uma época especialmente tolerante aos abusos de poder pelas grandes potências. O retalhamento da China em áreas sob virtual jurisdição estrangeira, a ignomínia das guerras do ópio, a ferocidade da Guerra dos Boxers e a barbárie da invasão e ocupação japonesas devem ser vistos como alguns dos momentos mais repugnantes da história moderna. Não quero sugerir aqui que a China tenha sido apenas vítima inocente da violência de terceiros. Muito do que aconteceu na rebelião Taiping, ainda no século XIX, depois no longo enfrentamento entre nacionalistas e comunistas, e durante sua grande revolução, é igualmente terrível e indesculpável.
Como as coisas andam depressa, os novos tempos não têm ainda um nome de aceitação geral e, ao chamá-lo aqui de período pós-americano, tomo emprestada a expressão proposta pelo escritor e colunista Fareed Zakaria para descrever o mundo, como ele hoje se apresenta. Não disponho de outro rótulo melhor. A China, apesar de todo seu impressionante crescimento e projeção, ainda não reúne credenciais para pretender que os novos tempos tenham seu nome. A expressão pós-americano mostra, e isto me parece correto e essencial, que vivemos uma fase de transição que ainda não permite identificar com clareza suas coordenadas principais. Vemos apenas, com nitidez, o que deixou de ser.
Estou convencido de que o mundo, do ponto de vista militar, deverá nos próximos anos continuar com a configuração unipolar que o define. O poder norte-americano não deverá ser desafiado. Os Estados Unidos serão detentores, agora e no futuro previsível, de incontrastáveis meios de dissuasão e pressão. É sempre bom recordar que, além de sua própria e imensa projeção, os Estados Unidos são herdeiros e sucessores de três grandes impérios: o espanhol, o francês e o britânico, e a dispersão de suas bases e postos avançados corresponde, no Pacífico, no Atlântico e no Caribe, às fronteiras da influência desses impérios anteriores. A recente ampliação da presença chinesa em ilhas no Mar da China, espaço que Pequim prepara e virtualmente cria para seu uso estratégico, é coisa que não pode ser negligenciada, mas que, nem de longe, corresponde à profundidade e extensão da rede de instalações que definem o império norte-americano.
Acho que o desafio chinês aos Estados Unidos não deverá ser, até onde a vista alcança, militar e ideológico, como o que aconteceu com a antiga União Soviética. Será essencialmente comercial e tecnológico. O regime soviético nunca teve condições nem vocação para competir com os Estados Unidos em termos econômicos e comerciais, e o seu desafio se fazia em outros terrenos. A China, por seu turno, vai oferecer, isso sim, um desafio talvez insuperável em termos de produtividade e criatividade no campo da indústria, do comércio e dos serviços. Em um vasto espectro de atividades, a China se faz cada vez mais competitiva, prenunciando que as tensões com os Estados Unidos vão continuar a se agravar.
Quero acentuar – e acho importante repetir isso – a vulnerabilidade estratégica e geográfica da China. Os Estados Unidos nunca precisaram construir uma grande muralha e nunca foram invadidos e ocupados, ao contrário do que aconteceu com a China em mais de uma ocasião. Washington não teme uma agressão canadense ou mexicana (excluídas as preocupações migratórias ou policiais), mas a China tem preocupações reais com poderosos vizinhos: a Rússia, a Coreia, a Índia e o Japão. Isso sem falar no Tibete, que é um problema interno de difícil solução ou absorção. O futuro de Taiwan, por sua vez, é sempre um complexo desafio.
O sentimento de autoconfiança da China parece estar preservado no momento, ainda que o foco inicial da grande pandemia atual tenha sido em uma de suas províncias. A resposta chinesa depois de um breve período de procrastinação e mesmo negação da realidade parece ter sido extraordinária, mas só poderia ser feita na escala e na velocidade em que ocorreu em uma sociedade equipada com abundantes recursos e na qual o governo dispõe de instrumentos coercitivos extremamente eficazes – e não hesita em utilizá-los. Não subscrevo as teorias de conspiração que, como sempre acontece nessas circunstâncias, pretendem oferecer cenários dramáticos mas de escassa credibilidade para explicar o que ocorreu. O novo coronavírus causou muito sofrimento e prejuízos para a própria China e não vejo, até agora, provas de que tenha havido algum tipo de maquinação para produzir e liberar o vírus do qual o país foi a primeira vítima.
A cultura chinesa não privilegia a transparência. O conceito seria de difícil definição e talvez mesmo incompreensível para um sistema que cultua o sigilo, a disciplina vertical, o respeito pela autoridade e vê com visceral desconfiança os motivos e intenções do mundo exterior. É sempre útil ter em mente que a China, além de ser um grande país com todos os atributos de um Estado moderno, é, sobretudo, uma velha civilização e tem, de seu longo percurso, uma memória ininterrupta de quase 4 mil anos. A própria natureza e identidade do comunismo da China requer hoje qualificações tão profundas e extensas que chego mesmo a me perguntar se ainda serve de uma maneira rigorosa e abrangente para descrever o que a China de fato é e pretende vir a ser.
Ao longo de muitos anos tenho me colocado sempre a mesma pergunta: A China é ainda um país comunista convivendo com uma economia de mercado, ou é de fato um país capitalista governado por um partido formalmente comunista? No decorrer de décadas de observação, minha resposta tem variado. Desde Mao Tsé-tung, passando pelos anos de ascendência de Zhou Enlai e depois de Deng Xiao-ping, tenho oscilado e a mesma hesitação perdura até este momento em que o controle de Xi Jinping sobre o país parece se reforçar na busca de uma duração muito mais longa para seu mandato. Acabo sempre tendo que me refugiar nas palavras de Deng sobre a irrelevância que tem a cor de um gato desde que saiba apanhar ratos.
Há cerca de 50 milhões de pessoas de etnia chinesa que não vivem na China, nem em Hong Kong, nem em Taiwan. Estão espalhadas em um grande número de países (no Brasil, calcula-se que sejam cerca de 450 mil). Em graus diferentes, esses overseas Chinese, como são chamados, conservam uma importante fidelidade a suas origens. Ser chinês é mais do que pertencer a uma nacionalidade. É, também, ser parte de uma civilização profundamente conservadora, cujos membros se identificam pelo culto aos ancestrais e pelo respeito à família e às tradições. Essa grande diáspora chinesa aconteceu em diversas ondas ao longo de mais de mil anos e em muitas dessas comunidades no exterior, mesmo depois de séculos, seus membros ainda se identificam, no todo ou em parte, como chineses. Estou sugerindo aqui que é muito difícil deixar de ser chinês. Quem viaja pela Ásia e, especialmente, pelo sudeste do continente, pode constatar como a presença chinesa é demograficamente importante e, sobretudo, decisiva na economia e na administração de países como Tailândia, Malásia, Cingapura, Vietnã, Mianmar e até a Coreia.
Poderia ir muito além, já que a dispersão e a influência dos chineses é de fato global. Só nos Estados Unidos, segundo o censo de 2010, eram cerca de 3 milhões de sino-americanos, o que lhes confere um importante papel na construção da tapeçaria de raças e culturas que formam os Estados Unidos. A população acadêmica e universitária chinesa nos Estados Unidos é imensa, e seu prestígio intelectual é significativo. Nos negócios, desde os inumeráveis pequenos restaurantes de esquina até as grandes corporações, a presença chinesa é evidente e incontornável. Nas grandes cidades da China, a reciprocidade é visível, e os McDonald’s e Starbucks estão em todo lugar. Não preciso falar da atuação das grandes empresas. Minha convicção é que o comércio e os negócios, epicentro das atuais disputas, serão também o caminho para uma futura acomodação de interesses.
Não é fácil prever e desenhar um conflito de civilizações entre a China e o Ocidente, como se considera ser possível acontecer com o Islã. Há nos chineses e no mundo ocidental uma plasticidade e um pragmatismo que faz com que seja bem mais fácil encontrar terreno comum para colaboração e entendimento. Acredito, como dizia Montesquieu, que o “doce comércio” irá nos salvar. Não vejo as atuais e possíveis futuras tensões como uma incompatibilidade irremediável de práticas e valores. Na minha avaliação, estamos diante de grandes problemas e dificuldades, mas que são, por sua própria natureza, suscetíveis de serem quantificados e claramente definidos e, assim sendo, negociáveis.
Apesar de importantes hiatos, as relações entre a China e os Estados Unidos têm um fio condutor de busca de respostas pragmáticas, como deve e costuma acontecer entre duas imensas civilizações comerciais. As iniciativas Nixon-Kissinger junto à dupla Mao-Zhou Enlai, conduzidas em momento tão adverso, mostram o caminho que deverá voltar a ser explorado. O espírito de moderação parece estar temporariamente em falta em Washington, mas é da natureza das coisas que deva logo voltar. A China atravessa um perigoso momento de húbris, mas sua própria história é rica em lições que mostram como a excessiva autoconfiança pode preparar desastres um pouco mais adiante.
Não pretendo ter – depois de muitos anos e de longa reflexão – uma posição neutra sobre as relações entre o Brasil e a China. Sempre identifiquei, sem maiores complicações, o que parece ser a natural complementaridade de interesses econômicos entre os dois países. Somos e seremos cada vez mais produtores daquilo que a China precisa. E a China, cada vez mais, pode e parece querer fazer investimentos de grande importância estratégica para o nosso país. Desejo e espero que a relação se diversifique cada vez mais e nossa pauta de exportações possa ir além dos limites da lista atual.
Em anos recentes, e em mais de uma ocasião, visitei a China quase sempre em algum evento ligado aos Brics, o pequeno clube de cachorros grandes onde, para ser sócio, como costumo dizer, tamanho é documento. A China, a Índia e a Rússia se entendem e se desentendem há muito tempo. Nós e a África do Sul somos os new kids on the block, e cabe agora, aos cinco países, de tão díspares destinos, encontrar e definir alguns temas que possam servir como uma agenda comum. Gosto de participar desse exercício e acho que o Brasil deve continuar a ser um país de múltiplos vínculos e associações. Ficaremos desconfortáveis se seguirmos políticas estreitas contando apenas com uns poucos parceiros.
Antes que a diplomacia brasileira tomasse os caminhos erráticos e ingênuos que agora percorre, algumas verdades pareciam ser incontornáveis para nós. Éramos um país destinado a encontrar convergências com muitos – e não com poucos. Éramos naturalmente criadores de amplos consensos – e não parte de alianças sectárias. Usávamos a nosso favor as muitas dimensões da nossa identidade e não excluíamos, a priori, nenhum país ou ideologia idônea do nosso convívio e do nosso diálogo. Parecemos esquecidos de tudo isso.
Temo que o agravamento das tensões e disputas entre os Estados Unidos e a China crie condições que devem nos obrigar a navegar com cuidado em águas que ficarão perigosamente agitadas. Temos que cuidar dos nossos imensos interesses em jogo e agir com racionalidade e lucidez. O falso detetive chinês Charlie Chan, que ficou famoso em filmes de segunda linha nas décadas de 1930-40 e hoje talvez esteja merecidamente esquecido, dizia sempre o seguinte: “O espírito é como um paraquedas. Só funciona bem quando está aberto.” Essa é a recomendação que se deve fazer hoje aos que vêm conduzindo, com tanta imprudência, a política exterior do Brasil.

MARCOS DE AZAMBUJA

Diplomata, foi secretário-geral do Itamaraty e embaixador do Brasil em Buenos Aires e Paris. É coautor de História da Paz, da Contexto

Dani Rodrik: crise global e globalização - Entrevista a El País

Não estou de acordo com tudo o que escreve ou defende Dani Rodrik, considerado um excelente economista, e que agora vai ser premiado com o galardão espanhol Princesa de Astúrias, que vai receber em 16 de outubro em Oviedo, na Galícia.
Não estou de acordo, por exemplo, com esse conceito de hiperglobalização, como se os economistas tivessem o direito de criar um conceito e achar que ele representa a realidade. Isso se chama arrogância intelectual, ou seja, achar que a sua visão da realidade é a mais perfeita, a adequada, a correta, ou a única possível.
Quais são os critérios para achar que a globalização, que é um processo praticamente natural das economias de mercado – mas que pode, sim, ser retrasada ou estimulada por medidas de governos e de entidades internacionais –, estava derivando para isso que ele chama de "hiperglobalização", que seria, supostamente, uma globalização desenfreada, sem controles, sem critério, em face da qual os países, os governos, as empresas apenas poderiam se render, se entregar, sem fazer nada.
Isso não é verdade. As rodadas multilaterais de comércio NUNCA representaram exageros da globalização, ou da liberalização do comércio, que sempre foi limitada pela vontade dos governos, que sempre atuaram por pressão dos lobbies industriais, comerciais, financeiros, de agricultores, etc.
Ele diz não se surpreender em que essa coisa que ele inventou - out of the blue, ou seja do seu cérebro –, a hiperglobalização, esteja vindo abaixo, quando o que existe é uma pandemia, um desses cisnes negros que ninguém poderia prever. Se não houvesse isso, a globalização, seja hiper, seja normal, seja mini, continuaria igual, florescendo em alguns países, sendo reprimida em outros (como o Brasil, por exemplo), que não participa de qualquer cadeia de valor significativa (por protecionismo e stalinismo industrial), por decisão de seus dirigentes e por pressão dos lobbies industriais, mesmo os estrangeiros, que já estão aqui instalados há muito tempo (o setor automotivo, por exemplo, é "industria infante" há pelo menos setenta anos). 
Vejamos o que ele diz: 
"Não voltaremos à era de hiperglobalização dos anos 2000. Haverá mais regionalização no comércio e um uso muito mais ativo de políticas públicas, como a industrialização. E mais tensões em áreas tecnológicas, onde as nações tratarão de construir muros em torno de seus sistemas de inovação. Mas não estamos falando do desmoronamento do comércio global. Não voltaremos para os anos 1930 do século passado."
Ele está descrevendo "REAÇÕES", ou refletindo a realidade, não fazendo obra de economista; essa apregoada "regionalização" do comércio pode ocorrer como pode não ocorrer, e isso não depende nem dele, nem por vezes da vontade dos países, mas das decisões das empresas. São elas que impulsionam a globalização, mas nem sempre podem fazê-lo segundo sua vontade, mas segundo disposições existentes no plano nacional e no dos acordos comerciais bilaterais, plurilaterais ou multilaterais existentes, e sabemos que esses podem ser mais ou menos propensos a maior ou menor abertura e interdependência.
Na verdade, empresas são como indivíduos: querem tudo de bom, e rejeitam o que não é bom. Elas rejeitam a concorrência e adoram monopólios, uma situação em que só elas ganham, por isso querem abertura nos outros países, mas se puderem fechar os seus mercados nacionais o fariam sem qualquer constrangimento.
Achar que "políticas industriais" decididas por burocratas, por políticos, ou induzidas por lobbies setoriais são superiores ao livre jogo do mercado é outra ilusão que não me parece digna de um economista.
Como sempre, eu sou um cético sadio. Acho que os economistas devem fazer o seu trabalho decentemente, traçar os efeitos de determinadas políticas em termos de bem estar, mas não devem achar que suas preferências pessoais, por um mundo mais "solidário", mais socialdemocrático, mais distributivistas sejam melhores do que um mundo puramente anárquico, ao sabor dos mercados. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 21 de junho de 2020

EL PAÍS
Crise global e globalização

“A pandemia funciona como uma lupa que amplifica as tensões econômicas já existentes”, diz o economista turco Dani Rodrik, professor da Universidade de Harvard. Nesta entrevista ao El País, ele fala sobre o futuro da globalização após a pandemia, uma crise que explicitou a importância da articulação global ao mesmo tempo em que promoveu o fechamento de fronteiras e deixou clara a necessidade de uma indústria nacional saudável. Para Rodrik, os sinais de que a hiperglobalização não era sustentável já existiam há muito tempo. “A grande pergunta agora é se criaremos uma globalização mais saudável e inclusiva ou avançaremos para o unilateralismo de Trump, com políticas insensatas que não beneficiam nem ao país que as promove nem aos seus sócios.” O economista acha que a solução passa por enxergar a globalização como oportunidade de “construir em torno de bens públicos, como evitar a mudança climática ou lidar com as pandemias”, dedicando menos interesse a temas como o comércio internacional e fluxos de capital. “Vamos nos afastando dessa ideia de que cada país devia se adaptar à economia internacional. E devemos entender que é justamente o contrário: que a economia internacional deve servir aos objetivos de cada país.” >>


Pandemia do Coronavirus

Dani Rodrik, economista: “Esta crise nos ensina que nossas prioridades estavam equivocadas”

Professor em Harvard diz que a pandemia amplificou as tensões econômicas já existentes e afirma que autocratas como Bolsonaro e Trump têm respondido pior ao momento.


Luiz Doncel
El País, 17 junho 2020


Dani Rodrik passeava com seu cachorro na manhã de quinta-feira passada quando deu uma olhada na sua conta do Twitter. Foi então que soube que havia ganhado o Prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais de 2020, um dos mais importantes da Espanha. A esse economista turco-norte-americano, um dos mais influentes da atualidade, não lhe escapa a ironia de ser premiado por seus estudos sobre a globalização justamente quando este fenômeno recebeu o golpe mais duro de sua história. A pandemia do coronavírus, afirma ele no seu gabinete da Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard, funciona como uma espécie de lupa que amplifica todas as tensões latentes na economia durante décadas.
“Não me surpreende que a hiperglobalização esteja vindo abaixo. Faz anos que digo que não é sustentável. A grande pergunta agora é se criaremos uma globalização mais saudável e inclusiva ou avançaremos para o unilateralismo de Trump, com políticas insensatas que não beneficiam nem ao país que as promove nem aos seus sócios”, diz ao EL PAÍS, por videoconferência, esse professor que é presença habitual nos bolões de aposta do Nobel. Para ele, tanto Trump quanto Jair Bolsonaro são líderes populistas que se gabam de ter todas as respostas, algo que esta crise contribuiu para desmentir. “Não me surpreende que autocratas como Bolsonaro, Trump ou até certo ponto Boris Johnson estejam respondendo pior à crise do coronavírus” , diz (leia mais no quadro abaixo).
Foi sua primeira entrevista desde que foi anunciado como ganhador do prêmio que —se a pandemia não impedir— receberá em 16 de outubro em Oviedo, no norte da Espanha.
Pergunta. As tensões entre a China e os EUA e os problemas na OMC já deixavam antever o declínio da globalização. Mas a pandemia foi o terremoto definitivo. Trata-se de uma sacudida temporária ou deixará rastros mais profundos?
Resposta. Os sinais de que a globalização se desfazia eram evidentes antes de Trump. Mas sua chegada à Casa Branca exacerbou essas tensões. Não voltaremos à era de hiperglobalização dos anos 2000. Haverá mais regionalização no comércio e um uso muito mais ativo de políticas públicas, como a industrialização. E mais tensões em áreas tecnológicas, onde as nações tratarão de construir muros em torno de seus sistemas de inovação. Mas não estamos falando do desmoronamento do comércio global. Não voltaremos para os anos 1930 do século passado.
P. Não estamos então perante o ocaso da globalização.
R. A hiperglobalização era um estado mental. Vamos nos afastando dessa ideia de que cada país devia se adaptar à economia internacional. E devemos entender que é justamente o contrário: que a economia internacional deve servir aos objetivos de cada país.
P. Que parte desta mudança pode ser atribuída a esta crise?
R. Nos EUA, esta crise tornou ainda mais evidente o nível de desigualdade e a falta de um seguro de saúde para muitas pessoas. No mundo, mostra as incompatibilidades do sistema chinês com os da Europa e EUA. Mostra que devemos criar um novo modus vivendi. A pandemia funciona como uma lupa que amplifica as tensões econômicas já existentes.
P. Que lições devemos extrair desta crise?
R. Ela nos ensina como nossas prioridades estiveram equivocadas nas últimas quatro décadas. Quanto trabalhamos para ter mais globalização econômica, como investimos pouco em assegurar os bens necessários para a saúde pública. Se tivéssemos dado a mesma importância à Organização Mundial da Saúde que à OCDE ou ao FMI, teríamos nos saído melhor. A crise é um aviso de que a melhor globalização seria a que se construísse em torno de bens públicos, como evitar a mudança climática ou lidar com as pandemias no âmbito da saúde pública. E não ter dedicado tanto interesse a assuntos como liberalizar o comércio ou os fluxos internacionais de capital.
P. É também um chamado de atenção a seus colegas, aos quais você critica pela obsessão com os modelos matemáticos?
R. Não acredito que o problema seja usar a matemática, que é apenas uma forma de garantir que não nos enganamos. Mas ela é um problema se fizer que deixemos de nos fazer as perguntas fundamentais. Um bom efeito da crise é que empurra os economistas a nos fazermos essas perguntas importantes. Vemos isso na quantidade de pesquisa acadêmica que está sendo publicada. Acredito que os economistas estejam respondendo ao desafio.
P. Você falou da boa saúde do Estado-nação. Ele sairá fortalecido desta crise? Está de volta? Ou será que na realidade, apesar do declínio tantas vezes prognosticado, nunca foi embora?
R. Sim, a decadência do Estado-nação ocorreu mais em nossa imaginação que na realidade. Quando havia uma crise, quem estava lá? Os Governos nacionais. Mas agora é muito mais evidente. Chama a atenção o papel da política industrial, que parecia ter desaparecido. Os países na verdade se ocupavam dela, mas era algo do que não se falava. E agora tanto nos EUA como na UE estas políticas voltam com muita força. Porque é preciso competir com a China, mas também porque é preciso assegurar a produção para cobrir, por exemplo, as necessidades sanitárias. É uma mudança muito importante na narrativa.
P. Você foi muito crítico com a gestão europeia da crise anterior. Mas o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e os Governos nacionais agiram agora com mais rapidez e decisão. Vemos finalmente uma resposta comum à crise?
R. É certo que desta vez foi mais rápida e efetiva, em parte graças à experiência da crise anterior. O fundo de recuperação proposto pela Comissão Europeia é um passo importante. E parece que a ideia de mutualizar a dívida se infiltra na UE. Resta ver se será um primeiro passo em um processo que leve a uma união fiscal e política ou uma resposta única a esta crise. Mas que a França e Alemanha tenham chegado a um acordo e que a Alemanha tenha aceitado o fundo é ótimo sinal. Isso não aconteceu há 12 anos.
P. Isto o deixa mais otimista com o futuro do euro?
R. Honestamente, não sei. A Europa deve escolher entre uma união fiscal e política real, ou recuar em sua integração. Essa é a opção em longo prazo. A única forma de superar feridas como o Brexit é criar uma comunidade política transnacional onde as pessoas se sintam representadas. É um caminho longo, mas será preciso decidir se se deseja trilhá-lo. Se não, temo que o Brexit será o primeiro passo em um processo de desintegração econômica. Se não se avançar por esse caminho, a união não poderá se manter em sua forma atual.
P. Ao falar de seu famoso trilema, segundo o qual os países têm que escolher dois destes elementos: democracia, hiperglobalização e soberania nacional, você diz que em nenhum lugar isso é tão verdadeiro como a Europa. A qual destas pernas a Europa poderia renunciar?
R. Sempre fui a favor da integração política na Europa. Mas estou consciente de que esse caminho é mais difícil depois das decisões tomadas na crise do euro. Em lugar de ser abordada como uma oportunidade para construir instituições melhores, uns puseram a culpa nos outros, numa história de esforçados trabalhadores alemães frente a gregos indolentes e endividados. Isso inflamou as tensões nacionais e deu força aos populistas. A reposta a essa crise fez que a integração política agora seja mais difícil. O fundo de 750 bilhões [de euros; 4,37 trilhões de reais] tem como mudar isso? Tenho alguma esperança de que haverá a solidariedade de que a Europa necessita para avançar na integração política. Anima-me que a Alemanha tenha aderido. Estou mais otimista, mas ainda há muitas dúvidas.
P. A desindustrialização afeta a países como a Espanha, que assiste ao fechamento de importantes fábricas. E a crise atual agravará esse processo. Que respostas os Governos podem dar?
R. É muito difícil aumentar o emprego na indústria. Talvez seja impossível. Os empregos de qualidade que queremos não virão da indústria, e sim dos serviços. Para um país como a Espanha, virá do turismo, das finanças, da educação, da saúde… Será preciso pôr em marcha regulações que permitam ao mesmo tempo aumentar a produtividade e o emprego de qualidade.

“OS AUTOCRATAS COMO TRUMP RESPONDEM PIOR À PANDEMIA”

Dani Rodrik concorda quando Estados Unidos e Brasil são mencionados entre os países mais afetados pela pandemia. Tanto Donald Trump como Jair Bolsonaro são líderes populistas que se gabam de ter todas as respostas, algo que esta crise contribuiu para desmentir. “Não me surpreende que autocratas como Bolsonaro, Trump ou até certo ponto Boris Johnson estejam respondendo pior à crise do coronavírus”, responde. “Há anos publiquei uma pesquisa em que comparava países com sistemas mais democráticos e liberais com outros onde a classe política tinha maiores tendências populistas e autoritárias. A ideia de que esses regimes respondiam melhor a choques externos ao permitirem que seus líderes tomem decisões rápidas, por não terem que negociar e chegar a acordos, não se sustentava nas análises que fiz sobre crises ocorridas nos anos setenta e oitenta do século passado. Acredito que isto seja assim porque os sistemas mais democráticos usam melhor a informação, porque contam com mecanismos onde todos os setores da sociedade possam apresentar seus pontos de vista”, afirma o economista de origem turca. Ele não esconde sua avaliação negativa sobre líderes como o norte-americano Trump e o turco Recep Tayyip Erdogan, a quem criticou em diversos artigos por suas tendências autoritárias. “São regimes em que só importa a visão de uma pessoa. Nos EUA se viu como Trump desprezou a opinião dos cientistas. E isto é muito mais fácil de fazer em um regime autocrático”, afirma.