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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

A diplomacia bolsolavista já eliminou as notícias para os diplomatas; agora quer eliminar os próprios jornalistas - João Paulo Charleaux (Nexo)

O jornalista relata sua inacreditável peripécia de quase dois meses completos para tentar obter do MRE bolsonarista uma resposta simples a uma questão aparentemente complexa para o ministério: explicar o que é a tal de "nova política externa", tal como declarada pelos próprios arautos dessa nova política externa, que na verdade nunca teve uma exposição completa, abrangente, satisfatória sobre seus principais componentes, suas bases e fundamentos, sua compatibilidade com a Constituição brasileira e com normas consagradas do Direito Internacional, tais como sempre respeitadas pelo Brasil e defendidas pelo "velho" Itamaraty, segundo seus princípios e valores defendidos ao longo de décadas.

Caberia talvez recordar ao jornalista que o tal chanceler eliminou, digo SUPRIMIU, os dois boletins diários, os clippings com notícias da imprensa nacional e internacional com todas as matérias que possam interessar os diplomatas,  muitas vezes lotados em postos com dificuldades de comunicação, sem acesso pessoal ou funcional à imprensa brasileira ou estrangeira, com a seleção de informações que é absolutamente relevante para o seu trabalho de INFORMAR a seus interlocutores locais, o que se passa no Brasil, ou no mundo, em temas que possam ser relevantes para a diplomacia brasileira e para uma boa qualidade de sua representação externa. Como esperar que os diplomatas possam manter a boa qualidade de seu triplo trabalho – informação, representação, negociação – sem estarem eles mesmos bem informados. 

Estas seriam boas perguntas a serem apresentadas ao chanceler: POR QUE FORAM CORTADOS OS DOIS CLIPPINGS DIÁRIOS? EM NOME DE QUAL MELHORIA? QUANDO PRETENDE RESTABELER O SERVIÇO?

O jornalista ainda aguarda ser recebido. Siga o fio, abaixo: acompanharei os desenvolvimentos.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3 de fevereiro de 2021


Como jornalista, tive incontáveis pedidos de entrevista negados ao longo da carreira. Isso é normal. Mas a última negativa é digna de nota, porque revela a essência do atual governo brasileiro. Hoje faz 50 dias que pedi uma entrevista ao . Veja só: 1/15

A proposta era simples: saber "qual o sentido da nova política externa brasileira", tal como havia sido chamada em seminário pelo presidente da @FunagBrasil , o sr. Roberto Goidanich. Se havia um conceito sobre "a nova ...", eu queria saber qual é. 2/15

A entrevista podia ser com o sr. Goidanich ou com qualquer outra autoridade do Itamaraty, incluindo o próprio chanceler @ernestofaraujo . Qualquer um que me explicasse o que é a "nova política externa brasileira", tal como anunciada. 3/15

No pedido, não impus nenhuma condição. A entrevista poderia ser por telefone ou por e-mail, na data escolhida, na forma escolhida. O resultado seria publicado no formato mais benéfico possível para a fonte: o formato pergunta-resposta. 4/15

Não havia pegadinha, armadilha, truque, nada. Eu não trabalho assim. A ideia era simplesmente dar a conhecer o que é "a nova política externa brasileira", na íntegra, sem intermediários, sem filtros, apenas com a entrevista 5/15

Meu pedido foi processado por uma assessoria que me pediu uma porção de detalhes, ao longo de uma troca de e-mails que durou 50 dias, enquanto os profissionais da comunicação pediam tempo para fazer as consultas correspondentes às autoridades superiores. 6/15

De um jeito torto, passaram a me perguntar quais seriam as minhas perguntas. Eu respondi que enviaria as perguntas literais tão logo o Itamaraty me disse se a entrevista aconteceria ou não. 7/15

Tive a impressão de que o Itamaraty estava querendo saber quais eram exatamente as perguntas, para alguém decidir se valia a pena dar a entrevista ou não. Respondi que enviaria as perguntas, se me confirmassem primeiro o interesse na entrevista e o nome do entrevistado. 8/15

Na prática, a chancelaria atual, que vive de criticar a imprensa publicamente, estava querendo escolher quais perguntas responder. Quem trabalha no meio – seja na reportagem, seja na assessoria – sabe que isso não existe. 9/15

A tratativa foi longa e, no dia 25 de janeiro, minha interlocutora disse que tinha recebido uma "sinalização positiva", mas não me revelou de quem, mas novamente me pediu as perguntas previamente. Chato, né? 10/15

Mandei um longo e-mail cercando o assunto, dando exemplo de muitas questões que eu gostaria de ver respondidas. Tudo parecia caminhar, até que quarta (27), o chanceler @ernestofaraujo  criticou a imprensa num post. Eu interagi com ele., como mostram os três prints aqui 11/15




Dias depois, recebi uma mensagem que dizia: "Tive nova atualização sobre seu pedido de entrevista. Foi-me dito que, no momento, não será possível realizar a entrevista solicitada por razões de agenda". 12/15

Acontece. O chanceler é ocupado. Respondi, então: "Obrigado. Considerando que a atual gestão vai até 1º de dezembro de 2023, caso não haja reeleição, gostaria de saber se não há nenhuma data possível nos próximos dois anos de agenda". E nunca mais tive resposta. 13/15

É duro ver o chanceler diariamente atacar a imprensa em público, enquanto nega nos bastidores qualquer contato que não seja propagandístico a seu respeito e a respeito de sua gestão à frente do Itamaraty. 14/15

Nunca tratei de bastidores do trabalho em público,. Normalmente não vem ao caso. É do jogo. Mas achei esse episódio ilustrativo demais para permanecer desconhecido. Tudo o que menciono aqui é público, nada em off. Não há nenhuma violação à privacidade de ninguém. 15/15

Após ter lido esta thread, o embaixador Paulino Franco de Carvalho Neto, secretário de Comunicação e Cultura do , me telefonou para dizer que o chanceler dará a entrevista. O secretário foi avisado de que eu publicaria este post, e assentiu.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Na Índia, Brasil é alvo de protestos por vetar quebra de patente de vacinas - Jamil Chade (UOL)

 Vinte anos atrás, na reunião ministerial da OMC, em Doha, que lançou a nunca concluída Rodada Doha de negociações comerciais multilaterais, o Brasil, junto com a Índia e África do Sul, parceiros depois no Brics, travou uma importante batalha diplomática em favor do licenciamento compulsório de patentes no caso de graves ameaças à saúde pública. A ameaça, então, era a da Aids, e o esforço teve sucesso na forma de uma declaração ministerial autorizando a derrogação de obrigações ao abrigo do acordo Trips da OMC, tratando de propriedade intelectual.

Vinte anos depois, sob a gestão ANTINACIONAL de um governo e de uma diplomacia ainda SUBORDINADOS ao derrotado presidente Trump, a desastrosa política externa do chanceler acidental ainda coloca entraves na OMC contra a aprovação da medida que permitiria grande avanço na produção de vacinas contra a Covid-19. DIPLOMACIA VERGONHOSA a do desgoverno Bolsovirus e seu patético chanceler sumisso.

Paulo Roberto de Almeida 

Na Índia, Brasil é alvo de protestos por vetar quebra de patente de vacinas
UOL Notícias | Jamil Chade
02 de fevereiro de 2021

Mais de 200 entidades e indivíduos que representam pacientes, médicos, cientistas e movimentos sociais da Índia e da África do Sul protestam contra o Brasil por conta do posicionamento adotado pelo Itamaraty no debate sobre o futuro das vacinas contra a covid-19.

Brasília, ao lado de governos de países ricos, vem bloqueando uma proposta dos países em desenvolvimento para suspender as patentes de vacinas e permitir que o imunizante seja produzido em sua versão genérica. Sem a patente, vacinas poderiam ser produzidas por laboratórios em outras partes do mundo, acelerando o acesso dos produtos a milhões de pessoas e por preços mais baixos.


A partir desta terça-feira, a campanha liderada pela sociedade civil pressionará o Brasil e outros governos para modificar sua postura diplomática diante da pandemia. Cartas serão entregues aos embaixadores do Itamaraty em Pretória e Nova Déli, alertando que a postura do governo brasileiro é "insustentável e autodestrutiva".

Desde o ano passado, os governos da África do Sul e Índia co-patrocinam uma proposta por suspender patentes de vacinas até o final da pandemia. Mas o governo de Jair Bolsonaro passou os últimos meses atacando a sugestão.

Nesta quinta-feira, uma reunião fechada na OMC (Organização Mundial do Comércio) em Genebra (Suíça) voltará a debater o tema. Países como África do Sul, Afeganistão, Paquistão, Zimbábue, Egito, Mongólia, Chade, Indonésia, Nepal, Bangladesh, Sri Lanka, Camboja e Venezuela apoiam à proposta, além de dezenas de outros emergentes. A OMS também é favorável à ideia indiana de quebrar patentes.

O projeto de democratizar vacinas conta com uma forte rejeição por parte dos países ricos, detentores das patentes. O Brasil, desde o começo do projeto, foi o único país em desenvolvimento a declarar abertamente que era contra a proposta, abandonando anos de liderança internacional para garantir o acesso a remédios aos países mais pobres.

Na busca por vacinas da Índia, Itamaraty reduziu críticas

Diante de uma dificuldade para conseguir vacinas produzidas pela Índia, o Brasil adotou um recuo tático em janeiro. Na reunião da OMC para tratar do tema, o Itamaraty abandonou suas críticas e optou por permanecer em silêncio. Mas Brasília tampouco saiu em defesa do projeto.

Nos últimos meses de 2020, o Itamaraty chegou a ser acusado por ativistas estrangeiros de estar inundando o debate na OMC de perguntas aos indianos como forma de arrastar a negociação e enfraquecer a proposta.

A campanha lançada nesta terça-feira coloca o Brasil em uma posição radicalmente diferente da que estava no começo do século. Há 20 anos, foi a ação internacional do Brasil que levou a OMC a estabelecer regras para permitir um maior acesso a remédios. Naquele momento, a luta era para enfrentar a aids. A liderança se transformou em um dos maiores ativos da política externa de FHC e Lula, aplaudido pelas mesmas entidades que hoje lançam uma campanha contra o Itamaraty.

Monopólios custam vidas

O protesto tem a participação da entidade Médicos Sem Fronteira, mas também contou com organizações como The Delhi Network of Positive People, Indian Drug Users' Forum (IDUF), ?International Treatment Preparedness Coalition (ITPC)-South Asia, Empower India, Focus on the Global South e Global Alliance for Human Rights, além de dezenas de grupos sul-africanos representando pacientes, médicos e pesquisadores.

Um dos atos da campanha está sendo a entrega de uma carta aos países contrários à proposta, incluindo Noruega, EUA, Japão e o Brasil. "A proposta de renunciar às patentes vem em um momento crítico da pandemia, buscando enfrentar estes desafios", defendem as entidades, no documento que está sendo submetido nesta terça-feira.

A embaixada do Japão chegou a chamar a polícia diante da presença dos ativistas que apenas queiram entregar uma carta ao governo de Tóquio.

Na avaliação das entidades, a suspensão das parentes permitiria que governos possam tomar medidas para "evitar monopólios que atrasam a fabricação doméstica, o acesso e custam vidas".

"Até hoje, mais de 100 países acolhem ou apoiam a proposta de alguma forma. Cerca de 400 organizações da sociedade civil globalmente e organizações internacionais como a Organização Mundial da Saúde, UNAIDS, UNITAID e a Comissão Africana de Direitos Humanos exortaram os governos a apoiar a proposta de derrogação com urgência", constatam.

"No entanto, em vez de demonstrar solidariedade global na luta contra a pandemia, apoiando a proposta de renúncia, um pequeno grupo de membros da OMC optou até agora por não apoiar a iniciativa", disseram.

"Agora está claro que quanto mais tempo o vírus circular em populações desprotegidas, mais provável é que ocorram mutações. Essas mutações podem afetar todos os países - inclusive os países que se opõem à proposta de renúncia - e prolongar a pandemia. Diante de tal crise, a oposição do Brasil é insustentável e autodestrutiva", atacam.

Aids como exemplo

Para as entidades, o Brasil precisa levar em conta o exemplo do que ocorreu no combate à Aids. Segundo eles, no final do século passado, os monopólios de propriedade intelectual sobre o tratamento do HIV atrasaram em dez anos o acesso de pacientes na África, Ásia e América Latina à terapia antiretroviral. "Isto levou a milhões de mortes desnecessárias desde o final dos anos 90 até meados dos anos 2000, quando as barreiras de patentes foram abordadas e os medicamentos genéricos contra o HIV se tornaram disponíveis", indicaram.

"Nesta pandemia, mais uma vez testemunhamos como a desigualdade estrutural na saúde global resultou em uma luta contínua para garantir o acesso aos medicamentos, vacinas e outras ferramentas necessárias nos países em desenvolvimento", afirmaram.

"A proposta de renúncia na OMC oferece uma oportunidade para evitar uma repetição trágica do acesso desigual às tecnologias de saúde que salvam vidas, experimentado no passado", dizem.

No documento, as entidades pedem que o Brasil "pare de obstruir a adoção da renúncia proposta na OMC e, em vez disso, expressar apoio a esta importante proposta durante as negociações formais". "Tantas vidas dependem dela", completam.

Para países ricos, quebrar patente não resolverá

Apesar da pressão, Europa, Estados Unidos e Japão insistem que a quebra de patentes não resolveria a questão do abastecimento de matérias-primas.

Eles também enfatizam que o atual sistema contém ferramentas suficientes para resolver quaisquer problemas relacionados à propriedade intelectual e que a implementação da proposta de renúncia minaria os atuais esforços para combater a pandemia. Um dos impactos seria afastar investimentos do setor privado.

Esses países observaram que embora haja financiamento público para pesquisa e desenvolvimento, a produção e distribuição das vacinas continua sendo um risco de investimento para o setor privado.

No mês passado, na OMC, um representante do governo indiano foi explícito em constatar que o "pior dos pesadelos" se confirmou diante da incapacidade de se encontrar um acordo: não há vacinas para todos. Nova Déli alertou que é justamente a falta de produção de versões genéricas da vacina contra covid-19 que impede o abastecimento global de um imunizante.

A Índia alerta que "um grande número de instalações de fabricação em muitos países com capacidade comprovada para produzir vacinas seguras e eficazes são incapazes de utilizar essas capacidades devido a novas barreiras de propriedade intelectual".

Esta é a prova, na opinião da Índia, de que o atual sistema de patentes não é suficiente para atender a enorme demanda global de vacinas e tratamentos.

Segundo o discurso da Índia, o que os países desenvolvidos disseram sobre a suficiência de tais acordos de licenciamento para aumentar as capacidades de fabricação se provou ser insuficiente. As licenças voluntárias, mesmo quando existem, estão envoltas em segredo, os termos e condições não são transparentes e o escopo é limitado a quantidades específicas, ou para um subconjunto limitado de países, encorajando assim o nacionalismo.

Jamil Chade

O passivo ambiental e diplomático do Brasil - Carlos Bocuhy (PROAM)

Tenho de agradecer ao autor deste artigo, Carlos Bocuhy, ainda que ele tenha exagerado um pouquinho quanto ao meu estado de "degredado"; não fui abandonado aos canibais numa praia deserta, nem condenado às galeras, apenas lotado no Arquivo, meu segundo lugar preferido no âmbito do Itamaraty, depois da Biblioteca: 

"O embaixador Paulo Roberto de Almeida, crítico do aparelhamento ideológico que vem tomando o Itamaraty, foi degredado aos arquivos no subsolo da chancelaria, após apontar que textos de Araújo são puro delírio, bem a gosto de Olavo de Carvalho, guru de Jair Bolsonaro e seus comandados."

Mas, ficou simpático, ser colocado ao lado do embaixador Ricupero, como crítico do PIOR DESGOVERNO de nossa história, e da horrorosa política externa ANTINACIONAL e ESQUIZOFRÊNICA. 

 

Carlos Bocuhy
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

O passivo ambiental e diplomático do Brasil

Carlos Bocuhy
O ECO, segunda-feira, 1 fevereiro 2021 14:16
https://www.oeco.org.br/colunas/carlos-bocuhy/o-passivo-ambiental-e-diplomatico-do-brasil/
Foto: Alan Santos/PR.

O governo brasileiro tem agido de forma irresponsável na área internacional e vem acumulando perdas substanciais para a área ambiental. A começar pelo naufrágio do Fundo Amazônia, cujos recursos não são mais aportados pela Noruega e Alemanha, e cujo saldo em caixa está paralisado pela incompetência estatal.

A diplomacia brasileira encontra-se mais e mais desacreditada no cenário internacional. O Itamaraty tornou-se um pária entre seus pares na agenda global, diante da condução exótica do chanceler Ernesto Araújo, denunciada no estudo que aborda “A conspiração globalista de Jair Bolsonaro nas relações internacionais”, produzido pelo Instituto de Relações Internacionais da USP e da Fundação Getúlio Vargas. Foram analisados 480 pronunciamentos, vídeos e discursos do chanceler, que realizou em dois anos o maior número de manifestações entre outros personagens do 1º escalão e do próprio Jair Bolsonaro. Internamente, Araújo é considerado “descolado da realidade” por seus pares, devido à sua ideologia e fanatismo por teorias de conspiração.

O embaixador Paulo Roberto de Almeida, crítico do aparelhamento ideológico que vem tomando o Itamaraty, foi degredado aos arquivos no subsolo da chancelaria, após apontar que textos de Araújo são puro delírio, bem a gosto de Olavo de Carvalho, guru de Jair Bolsonaro e seus comandados.

Para a área econômica, a atuação do Itamaraty não foi uma surpresa  e foi um desastre. A subserviência à figura do ex-presidente Donald Trump, objeto de impeachment e rejeição por lideranças americanas e internacionais; as sucessivas manifestações antagonizando a China, que consome grande parte das commodities brasileiras e detém poder na liberação de insumos e vacinas anti-Covid-19 para o Brasil, acabaram sendo motivo de chacota internacional e um tiro no pé dos brasileiros.

A antagonização da comunidade europeia afundou as tratativas de acordo com o Mercosul, uma distensão que se torna cada vez mais grave em função da degradação ambiental do cerrado e da Amazônia, em sua relação com os produtos agrícolas para exportação. Além disso, a OMC está apertando o cerco aos degradadores, ao sinalizar mecanismos de penalização a países que produzem às custas da destruição do meio ambiente. Com forte apelo ambiental, surge um novo regramento que visa evitar a concorrência desleal.

Agora, sem Trump no cenário, a política ambiental americana tende a apertar os acordos econômicos vinculando-os à regularidade ambiental, especialmente a climática. Joe Biden vem sendo fortemente pressionado por expressivos e articulados ativistas para tomar medidas que condicionem os acordos com o Brasil à conformidade de proteção da Floresta Amazônica.

Na área ambiental o Brasil perdeu liderança e protagonismo, desde que deixou de sediar a Conferência do Clima das Nações Unidas, em 2019. Passou por vexame nas reuniões posteriores, onde o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles foi de chapéu na mão pedir recursos, enquanto não fazia a lição de casa.

“Agora, sem Trump no cenário, a política ambiental americana tende a apertar os acordos econômicos vinculando-os à regularidade ambiental, especialmente a climática”

O isolamento e a perda de imagem do Brasil no cenário internacional tendem a aumentar, pois o exótico modelo ideológico de Bolsonaro e Araújo não apresenta condições para arrefecer, pelo fato de que a ação política populista de Bolsonaro, sem conteúdo construtivo e sem sensibilidade ambiental, tende a continuar a desmantelar mecanismos de proteção ambiental, antagonizar e buscar inimigos, estratégia única da qual se utiliza para se manter junto à sua base sectária.

Recentemente Araújo começou uma guinada para tentar sua sobrevivência política diante do desgaste que provocou para o Itamaraty nos últimos dois anos. Iniciou uma série de pronunciamentos de que haveria alinhamento com a política ambiental de Joe Biden. Mas recentemente o chanceler discursou na formatura de novos diplomatas no Instituto Rio Branco afirmando que era melhor ser um país pária do que se render aos interesses “globalistas”. Joga com a imagem do Brasil a seu bel-prazer, orientado aparentemente pelos fantasmas de sua obsessão. Ao mesmo tempo lideranças no Congresso Nacional elegeram Ernesto Araújo o pior ministro do governo, seguido por Ricardo Salles.

Os indicadores de credibilidade da política externa brasileira encontram-se profundamente abalados. O ex-embaixador Rubens Ricúpero afirmou que levaremos ao menos duas gerações para recuperar a credibilidade no cenário internacional. Não será diferente internamente. Centenas de normativas ambientais, os sistemas de gestão pública federais e os mecanismos de gestão participativa foram fortemente desfigurados.  Serão décadas para sua reconstrução, quando este momento de horror para a área ambiental brasileira passar. Há um ditado na área geológica que afirma que a história geológica vive grandes períodos de estabilidade e curtos períodos de horror.

Desde o início dos 40 anos de construção da Política Nacional de Meio Ambiente, estruturada em 1981, foram 39 anos de construção e agora dois de horror, onde foi gerado um elevado passivo externo e interno.

O desenrolar da história recente mostra que governos despreparados, com falta de empatia para com o ser humano e a cadeia da vida, mereceram apenas um curto voo de galinha ou o ostracismo. É natural que assim seja, dentro de um mundo em constante avanço civilizatório. As estruturas suprainstitucionais, como as Nações Unidas, foram criadas depois de períodos conflituosos e a era atual, frente à ameaça global das mudanças climáticas, trará transformações estruturais para a proteção ambiental como já apontam as Nações Unidas, a OMC, a Comunidade Europeia e o governo de Biden. As tendências apontam o início do fim da era do petróleo e da sobrevida do isolacionismo dos párias das mudanças climáticas.

Será necessário reconstruir o bom perfil do Itamaraty e retomar uma saudável e proativa política multilateral, que privilegie a solidariedade entre as nações. Os brasileiros terão que despender muito esforço para a reconstrução da imagem externa e reestruturação da gestão institucional e normativa, além de promover um intenso trabalho de recuperação ambiental do que foi destruído neste lapso antissustentabilidade da história do Brasil.

 

As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.

 


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Vacinação pode ser pontapé para conter ataques à liberdade - Paulo Gontijo (Estadão)

 Vacinação pode ser pontapé para conter ataques à liberdade

Além do coronavírus, precisamos vencer o vírus do autoritarismo, voltar a tomar as ruas

Paulo Gontijo, presidente do Livres

Estadão | 1/02/2021, 3h

O início da vacinação é o primeiro passo para o País sair da pior crise enfrentada por esta geração. Em momentos de grandes dificuldades, nossa espécie anseia por grandes líderes apontando caminhos de superação. Infelizmente, no Brasil, nós nos deparamos hoje é como gigantismo da estupidez guiando a desordem e provocando instabilidades.

Não há ação técnica coordenada entre União e Estados. Onde precisamos de um governo para preservar a vida dos brasileiros, há apenas um comitê eleitoral. No lugar de distribuir vacinas, distribuem-se palavrões em churrascarias e cenas grotescas lambuzadas de leite condensado. O preço é alto e permanecerá sendo pago em largas prestações.

Após meses de negacionismo, Jair Bolsonaro ensaiou falar o óbvio: a vacina é essencial para a retomada econômica. Mas antes que sentíssemos qualquer alívio, o presidente retomou a sua narrativa insana, defendendo a ideia de que basta ao povo coragem para voltar à normalidade e enfrentar o vírus que já vitimou mais de 220 mil brasileiros.

Há, porém, algo pior do que seus discursos irresponsáveis: o boicote à vacinação. Fruto de uma combinação entre aloprados ideológicos, generais incompetentes e a pura omissão, seja na diplomacia ou na falta de implantação de um sistema de gestão do programa de imunização. E assim seguimos patinando, com consequências graves para a vida de todos os brasileiros e também para a economia.

As piores repercussões humanitárias ainda estão a caminho. Há risco de reedições da catástrofe de Manaus. Segundo projeções do economista Daniel Duque, com o fim do auxílio emergencial e a segunda onda da doença a extrema pobreza pode atingir até 20 milhões de brasileiros e a pobreza, que antes da pandemia era a condição de menos de 25% da população, pode chegar a mais de 30%. Quando aplicadas no ano passado, políticas de transferência de renda foram consenso. Agora voltam ao centro das atenções. Interrompido sem uma transição minimamente estruturada, o auxílio emergencial acabou significando um custo fiscal muito maior em razão da desorganização, da falta de planejamento e do caos político do governo Bolsonaro.

Criar uma ampla rede de proteção com transferências diretas para os mais pobres e vulneráveis é uma política herdeira do pensamento de liberais como Thomas Paine, Stuart Mill, Friedrich Hayek e Milton Friedman. Indiscutível do ponto de vista social, essa necessidade ilumina um problema crônico e estrutural do Estado brasileiro: apesar de consumir 40% da riqueza nacional todos os anos com um orçamento trilionário, nosso poder público, engessado em despesas obrigatórias, não foi capaz de construir uma proteção minimamente robusta para os mais vulneráveis. Mudar essa realidade deveria ser o centro das preocupações políticas.

Neste momento, cabe às vozes liberais o cuidado com os mais frágeis no presente, sem lhes sacrificar o futuro. Nosso esforço de guerra contra a covid-19 não pode perder de vista o pós-guerra. A reconstrução da economia e do mundo que herdaremos será mais ágil, ampla e inclusiva na medida em que tivermos a capacidade de implementar políticas públicas que sejam fruto da urgência, mas não se contaminem pelo desespero. Não apenas é possível, como necessário, aliar sensibilidade social à responsabilidade fiscal, a reformas que aumentem a eficiência do Estado brasileiro, à proposta da Lei de Responsabilidade Social – elaborada pelo Centro de Debate de Políticas Públicas após debate surgido no movimento Livres –, que remaneja programas sociais já existentes em busca de mais efetividade.

Em direção oposta a esse esforço, porém, o que assistimos é a proposições para ampliar poderes de forma abusiva, diminuir a transparência ou simplesmente promover líderes do Executivo. São exemplos o alargamento de prazos das medidas provisórias e da Lei de Acesso à Informação, a injustificável menção a decreto de estado de defesa pelo procurador-geral da República e a ameaça aberta de insurreição antidemocrática em 2022 pelo próprio presidente, inspirado na invasão dos trumpistas ao Capitólio. Com isso, antes de avançar, é preciso assegurar que não vamos retroceder.

O alerta liberal contra excessos do poder estatal está mais pertinente do que nunca. Não à toa, nós, do Livres, ingressamos com ação civil pública para convocar Jair Bolsonaro a apresentar em juízo as provas que ele reiteradamente alega possuir sobre a suposta fraude eleitoral em 2018. Não há espaço para omissão. A credibilidade do sistema eleitoral é pilar da legitimidade da democracia liberal. Utilizar o prestígio da Presidência da República para minar as bases da democracia é um atentado à Constituição. Em meio a uma pandemia, faltam até palavras para classificar. Além do coronavírus, precisamos vencer o vírus do autoritarismo. Em ambos os casos, a vacina será o passaporte para que possamos voltar a sair de nossa casa, tomar as ruas e desfrutar, juntos, o prazer da liberdade. E, sobretudo, encarar a responsabilidade de defendê-la.

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,vacinacao-pode-ser-pontape-para-conter-ataques-a-liberdade,70003600643

Revista OIKOS lança duas chamadas de artigos para números especiais: O legado de Robert W. Cox; Dossiê: 30 anos do Mercosul

A OIKOS - Revista de Economia Política Internacional está com duas chamadas abertas para submissão de artigos:


Dossiê "O legado de Robert W. Cox para a EPI crítica: 40 anos de 'Forças sociais, Estados e ordens mundiais'" - realizar submissões até 31 de março de 2021. http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/announcement/view/6 

Dossiê: 30 anos do Mercosul - realizar submissões até 31 de agosto de 2021. http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/announcement/view/7


Atenciosamente,
Fernanda Brozoski

Dossiê: O legado de Robert W. Cox para a EPI crítica: 40 anos de 'Forças sociais, Estados e ordens mundiais'

Organizadores/as: Leonardo Ramos (PUC Minas) e Ana Garcia (UFRRJ)

Robert W. Cox é considerado um dos principais estudiosos em Economia Política Internacional (EPI), tendo contribuído não apenas para sua consolidação como um subcampo de Relações Internacionais, mas também para constituir e consolidar sua veia crítica. Nesse processo, Cox desenvolveu uma abordagem histórica única da ordem mundial e da economia política, inspirada por pensadores distintos que vão de Vico a Gramsci a Ibn Khaldun.

Num contexto teórico dominado por abordagens positivistas em Relações Internacionais, há quarenta anos, Robert W. Cox publicou um artigo seminal e desafiador. Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory de Robert Cox foi publicado inicialmente em 1981 pela revista Millennium e, posteriormente, em 1986 como um capítulo do livro Realism and its critics, organizado por Robert O. Keohane.

Social Forces apresenta variantes da teoria crítica da Escola de Frankfurt, bem como da teoria social de Antonio Gramsci, a fim de lidar com os processos de relações internacionais da época. Essa abordagem única ofereceu uma crítica ao neorrealismo de Kenneth Waltz, assim como à teoria do Sistema Mundial, atualizando a teorização crítica de Relações Internacionais e estabelecendo as bases para o futuro da EPI crítica.

Quarenta anos depois, as relações internacionais passaram por transformações importantes: o fim da Guerra Fria, os processos de globalização (e hoje também os processos de ‘desglobalização’), a ascensão das potências médias emergentes, a ascensão da China, a crise das instituições de Bretton Woods. Estas transformações ocorrem paralelamente ao surgimento de novas instituições internacionais - como o G20, BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai – que são alguns exemplos de agrupamentos cuja criação e funcionamento depende de países do chamado ‘Sul Global’.

Nesse contexto, surgem algumas questões: a teoria crítica é relevante para a EPI neste contexto de um mundo em transição? Como devemos interpretar e entender o legado da teorização de Robert W. Cox para as RI/ EPI contemporânea? A distinção entre problem-solving theories e teoria crítica ainda organiza o campo teórico das RI/EPI? O objetivo desta edição especial, e os artigos submetidos a ela, é lidar com questões relacionadas ao legado da teoria crítica de Robert W. Cox para a EPI em um sentido amplo. Partindo sempre que possível de uma perspectiva do Sul Global, recomenda-se os seguintes temas:

• O legado da teoria crítica de Robert W. Cox para interpretar e compreender as realidades do Brasil, América Latina e do Sul Global
• Epistemologia e metodologia crítica na EPI
• Gramsci, estado e economia nas relações internacionais
• Formas de Estado e forças sociais na EPI contemporânea
• Estruturas históricas e ordem mundial contemporânea
• Forças sociais hegemônicas e contra-hegemônicas
• Internacionalização do Estado e internacionalização da produção
• Internacionalização das finanças, hegemonia e instituições financeiras multilaterais
• Pax Britannica, Pax Americana e transições hegemônicas
• Organizações internacionais e regionais e a governança global no mundo contemporâneo
• Hegemonia, Estado ampliado e sociedade civil global
• Imperialismo, império e hierarquias

Propostas de trabalho devem ser submetidas até 31 de março de 2021 pelo site da revista Oikos: 

http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/about/submissions#onlineSubmissions

Instruções para autores: http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/about/submissions#authorGuidelines 


Dossiê: 30 anos do Mercosul

Organizadores/as:
Roberto Goulart Menezes (UnB), Karina Mariano (Unesp) e Raphael Padula (UFRJ)

O Mercado Comum do Sul (Mercosul) conformou um novo subsistema regional. Criado em 26 de março de 1991 pelo Tratado de Assunção, ele representou uma reação criativa do Brasil, da Argentina, do Paraguai e do Uruguai às transformações sistêmicas em curso desde meados da década de 1980 no capitalismo histórico. No momento de sua criação, dois fatores foram decisivos: no plano geopolítico, a Iniciativa para as Américas, lançada em junho de 1990 pelo executivo dos Estados Unidos; e no plano geoeconômico, o aprofundamento da “segunda onda do regionalismo".
O Mercosul inovou em relação às tentativas anteriores de integração na região ao ser pensado como espaço para a formulação de novas estratégias de desenvolvimento, instituiu uma Tarifa Externa Comum e dotou-se de uma personalidade jurídica internacional, permitindo aos seus integrantes realizarem discussões conjuntas nos fóruns internacionais. Nessas três décadas, o Mercosul tornou-se um dos principais processos de integração regional da América Latina.
As sucessivas crises econômicas ao longo dos anos 1990 (México, Ásia, Rússia, Brasil, Argentina) debilitaram as relações entre os sócios do Mercosul. Em sua primeira década de existência, o ano de 1999 pode ser considerado um dos mais críticos para o acordo regional devido a abrupta desvalorização do real. Temendo uma avalanche de produtos brasileiros, o governo argentino recorreu a mecanismos protecionistas, violando assim parte do acordo que instituiu o Mercosul. A situação piorou para o acordo regional quando a Argentina entrou em profunda crise econômica e social, durante o curto governo do presidente Fernando de la Rua em 2000.
A segunda década do Mercosul transcorreu em grande parte sob os governos da chamada onda progressista e dos primeiros anos do super ciclo das commodities. As expectativas eram de que o processo de integração pudesse avançar uma vez que as políticas externas desses governos, sobretudo, do Brasil e Argentina, sublinhavam a importância de se fortalecer a integração regional para além da dimensão econômica-comercial. Foi nesse período que se instituiu o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), para mitigar as assimetrias; lançou-se as bases para a participação social e o regionalismo aberto perdeu impulso, entre outros. No entanto, considerando os objetivos do Tratado de Assunção (1991), tais como a coordenação de políticas macroeconômicas, a livre circulação de capitais, pessoas e mercadorias, a agenda do Mercosul avançou pouco nesses compromissos.
Após a crise de 2008, a presença chinesa ampliou-se na região e os Estados Unidos sob a liderança de Barack Obama engajaram-se em dois mega-acordos (TPP e TPIP). Em 2011 foi criada a Aliança do Pacífico e em 2014 a crise econômica abateu-se sobre as principais economias da região. Com a eleição de Mauricio Macri em 2015 na Argentina e a eleição de Bolsonaro no Brasil em 2018, a agenda neoliberal se fortaleceu. Ambos governos passaram a apostar na finalização do acordo com a União Europeia como meio para projetar suas políticas internas. O Brasil, ao buscar o alinhamento com os Estados Unidos, acabou por relegar o processo de integração a um lugar menor em sua agenda externa.
Ao completar trinta anos, o balanço do Mercosul é positivo. No entanto, o desencontro entre as políticas externas dos seus países gera impasses na agenda do acordo regional e conflitos entre os seus membros.

Recomenda-se os seguintes temas:
- Teorias de integração regional e a experiência do Mercosul
- A institucionalidade do Mercosul
- Os acordos extrarregionais do Mercosul.
- A presença da China na América do Sul e o Mercosul
- A estratégia da política comercial dos Estados Unidos para a região e o Mercosul
- As políticas sociais no Mercosul
- A participação da sociedade civil no processo de integração
- O Mercosul e os demais processos de integração na América Latina
- As políticas domésticas e seus impactos no processo de integração
- Política externa e integração regional
- Regionalismo comparado
- Democracia e integração regional
- A agenda ambiental no Mercosul

Propostas de trabalho devem ser submetidas até 31 de agosto de 2021 pelo site da revista Oikos:

http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/about/submissions#onlineSubmissions

Instruções para autores: http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/about/submissions#authorGuidelines

A defesa da democracia contra a balcanização da nação - João Carlos Espada (ICP-UCP, Portugal)

No momento em que Portugal tem o seu sistema de assistência hospitalar ameaçado de colapso, pelo avanço da pandemia, depois que o país esteve na vanguarda da prevenção e dos cuidados em 2020, o professor João Carlos Espada, diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica de Portugal, me envia seu artigo semanal, na qual ele alerta não apenas contra os populistas de direita, iliberais ou claramente antidemocráticos, mas também contra o "progressivo coercitivo", ao estilo de Bernie Sanders.

Paulo Roberto de Almeida


João Carlos Espada                                        
Director, Institute for Political Studies, Universidade Católica Portuguesa                                     
President, International Churchill Society of Portugal
Latest books: The Anglo-American Tradition of Liberty: A view from Europe (Routledge, 2016/18); Liberdade como Tradição (Távola, 2019).

O dia da democracia /premium

1 Escrevo antes de conhecer os resultados oficiais das eleições presidenciais de ontem. Mas não hesito em prestar homenagem ao civismo dos portugueses neste dia da democracia.

Votei na Escola Raul Lino — o grande arquitecto da doce e conservadora Casa Portuguesa — no Monte Estoril. Cheguei às 14h10 a uma longa e ordeira fila que esperava cá fora. Tudo decorreu suavemente, sob a gentil e “unassuming” liderança de inúmeros jovens voluntários — vários escuteiros devidamente trajados, e várias jovens elegantes com batas brancas. Todos diziam “por favor” e “obrigado”, com um sorriso educado que se adivinhava por trás das máscaras.

Às 14h25,  eu já estava a sair. Com lágrimas nos olhos e voz embargada, agradeci a todos os voluntários que reencontrei no caminho de saída. Qualquer que seja o resultado, foi uma lição de civismo e de democracia. Foi o dia da democracia!

2 “O dia da democracia” foi também como o Presidente Joe Biden designou o dia da sua tomada de posse, a 20 de Janeiro — a data que a Constituição americana claramente define. Foi uma bela cerimónia, em que o novo Presidente proferiu um tocante discurso em defesa da tradição democrática americana e da reconciliação nacional.

“End this uncivil war!”, disse o Presidente. E este foi o título da manchete do conservador The Daily Telegraph  de Londres, na quinta-feira de manhã. A frase do Presidente democrata americano e o enfático apoio do conservador-liberal diário de Londres falam por si: a esquerda e a direita democráticas estão a re-descobrir a causa comum da defesa da democracia civilizada contra a guerra tribal — e não-civilizada, “uncivil” — entre facções rivais.

3 Existe de facto uma “uncivil war” em curso que tem de ser derrotada. O estilo terceiro-mundista do sr. Trump — a que chamei aqui repetidamente general tapioca — levou a incivilidade ao rubro. Felizmente, o general tapioca foi derrotado nas urnas e nos tribunais pela grande democracia americana. Como também já referi neste espaço, é ensurdecedor o silêncio dos apoiantes do sr. Trump, lá fora e entre nós.

Mas há outro tribalismo a alimentar a “uncivil war” na América e no Ocidente. Num longo e muito estimulante artigo na conservadora-liberal The Spectator de Londres, Stephen Daisley chama-lhe, a meu ver apropriadamente, “progressismo coercivo”.

Trata-se de uma cartilha ideológica politicamente correcta que quer redesenhar central e autoritariamente os modos de vida descentralizados e os valores morais livre e espontaneamente partilhados ao longo de inúmeras gerações. Foi o sentimento espontâneo de auto-defesa contra a ofensiva autoritária do “progressismo coercivo” que gerou os 74 milhões de votos no ungentleman sr. Trump — a maior votação até agora alcançada por um candidato republicano ou/e por um candidato derrotado.

4 Esta é uma questão crucial que não pode ser esquecida. Um estudo não partidário citado por Stephen Daisley refere que o sectarismo partidário nos EUA atinge hoje níveis de ódio e tribalismo semelhantes aos registados na Bósnia e no Kosovo. Isto simplesmente significa que a famosa “balcanização” pode estar hoje a ameaçar a democracia americana — e a revelar sinais também preocupantes em várias democracias europeias.

Isto significa também que, em todo o Ocidente, deve existir um esforço comum de combate à balcanização, ao tribalismo e à “uncivil war”. Por outras palavras, o “trumpismo” não deve agora ser combatido com o “progressismo coercivo” do estilo Bernie Sanders (nos EUA), ou Jeremy Corbyn (no Reino Unido) — ambos muito populares entre minorias militantes, mas amplamente e tranquilamente derrotados nas urnas.

Por outras palavras, os extremos tribais de cada lado devem ser combatidos pelos moderados de cada lado. E a causa comum da democracia liberal pluralista — o regime da regra, obra comum de partidos rivais — deve ser reafirmada pela direita e pela esquerda democráticas.

5 Isto implicará um vasto esforço político, mas também e talvez sobretudo cultural e intelectual. Será importante estimular o re-encontro intelectual de vozes moderadas da direita e da esquerda. E será crucial criar espaços de conversação entre essas vozes, em vez de balcanizar a gritaria tribal entre vozes sempre muito zangadas — e em bom rigor, apenas semi-educadas.

Face à gritaria estridente das minorias militantes, da esquerda e da direita radicais e mal-educadas, é sempre gratificante recordar em tom moderado as sábias palavras de Winston Churchill sobre a filosofia política de seu pai — um conservador liberal — e sobre o segredo da mais antiga democracia parlamentar do planeta:

“Ele [Lord Randolph Churchill] não via razão por que as velhas glórias da Igreja e do Estado não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os principais defensores dessas antigas instituições, através das quais as suas liberdades e o seu progresso tinham sido alcançados. É esta união entre o passado e o presente, entre a tradição e o progresso, esta corrente de ouro [golden chain], até agora nunca quebrada, uma vez que nenhum esforço indevido lhe foi imposto, que tem constituído o mérito singular e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.”


Aqui envio link para o meu artigo de hoje (1/02/2021) no Observador.

Eleições presidenciais: “Trust the people”


O legado de uma estadista - Editorial do jornal O Estado de S. Paulo sobre Angela Merkel (01/02/2021)

 O LEGADO DE UMA ESTADISTA!

Editorial - O Estado de S. Paulo, 01/02/2021 

“Nada de experimentos.” Com este lema, Konrad Adenauer, o primeiro chanceler da Alemanha ocidental pós 2.ª Guerra e principal artífice de sua reconstrução, conseguiu sua vitória eleitoral mais robusta em 1957. Este anseio por estabilidade se fez sentir de novo agora, quando o seu partido, a União Democrata Cristã (CDU), que governou a Alemanha por 50 dos últimos 70 anos, elegeu como seu líder Armin Laschet, o candidato mais alinhado à chanceler Angela Merkel. A era Merkel está no fim, mas o espírito de sua administração segue forte como nunca.

Desde que assumiram o comando em 2005, Merkel e o CDU consolidaram a posição da Alemanha como a principal economia da Europa, com finanças públicas sólidas e baixas taxas de desemprego. Primeira chanceler mulher da Alemanha, ela é a líder mais longeva da União Europeia (UE), foi frequentemente descrita como a sua líder de facto e também como a mulher mais poderosa do mundo e, após a eleição de Donald Trump, a “líder do mundo livre”.

O prestígio não foi conquistado em águas calmas. Ela enfrentou o colapso financeiro de 2008, a crise dos refugiados, o Brexit e agora a pandemia, mas, em contraste com seus pares – pense-se, por exemplo, nos destinos de Gordon Brown, David Cameron e Theresa May, no Reino Unido, ou Nicolas Sarkozy, François Hollande e Emmanuel Macron, na França –, a cada provação ela emergiu mais forte.

Na política externa, ela enfatizou a necessidade de cooperação internacional, fortalecendo os laços com a UE e a Otan. Na crise da dívida europeia, arriscou o dinheiro alemão, mas manteve a estabilidade do euro. Merkel liderou a UE nas sanções à Rússia após a anexação da Ucrânia e na crise dos refugiados se posicionou firmemente, quase sozinha, em nome dos valores europeus, recebendo mais de 1 milhão de exilados.

Em um perfil de Merkel, a revista The Economist delineou três marcas de sua gestão: ética, não ideológica; reativa, não programática; e desapegada, não engajada. “Sua fé luterana (‘uma bússola interior’) se expressa em seu estilo discreto e seus instintos: a dívida é ruim; ajudar os necessitados é bom.” Como disse seu colega do CDU Jens Spahn, “ela trabalha como uma cientista: lê muito, pondera os fatos e não tem preconceitos”. Merkel sempre mantém as opções abertas e evita polarizar os debates. “Sou um pouco liberal, um pouco social-cristã, um pouco conservadora”, definiu-se ela. Para a revista Der Spiegel, ela é inescrutável como as “esfinges, divas e rainhas”.

Com essas qualidades pessoais, ela transformou a aliança da CDU com a União Social Cristã (CSU) numa máquina eleitoral, conduziu a coalizão com os social-democratas e, a um tempo, ganhou a confiança dos conservadores e promoveu políticas caras ao progressismo liberal, como a abolição do serviço militar compulsório, o fechamento das usinas nucleares, o casamento gay e a assistência aos desfavorecidos.

A vitória de Laschet sobre Friedrich Merz mostra que o CDU optou por manter a orientação ao centro ao invés de uma guinada incerta à direita. As pesquisas de opinião estão massivamente a seu favor. Mas ele terá de manter a unidade e a integridade de seu partido, após flertes temerários nas coalizões regionais tanto com a extrema direita quanto com a extrema esquerda, e possivelmente precisará costurar uma aliança com os verdes, em ascensão, enquanto seus aliados tradicionais na centro-esquerda, os social-democratas, sofrem contínuo desgaste. Laschet é mais simpático aos verdes do que Merz, mas, por causa das suas relações com a indústria do carvão, não está tão perto daquele partido para disputar as eleições de setembro.

Com a saída de Merkel, as democracias liberais perderão uma protagonista decisiva no teatro global. Em tempos de ascensão do populismo, sua trajetória à frente de seu partido e de seu país são um exemplo de estabilidade, pragmatismo e decência. Laschet herda esse rico legado. Mas ainda terá de se mostrar capaz de colher seus frutos.