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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Dívida pública: deterioração de sua administração - Maria Lucia Fattorelli e Rodrigo Ávila

 

GASTO COM DÍVIDA PÚBLICA SEM CONTRAPARTIDA QUASE DOBROU DE 2019 A 2021

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GASTO COM DÍVIDA PÚBLICA SEM CONTRAPARTIDA QUASE DOBROU DE 2019 A 2021

Maria Lucia Fattorelli

Rodrigo Ávila

Em 2021, o governo federal gastou R$ 1,96 trilhão com juros e amortizações da dívida pública, o que representa um aumento de 42% em relação ao valor gasto em 2020, que por sua vez já tinha sido 33% superior a 2019. Portanto, nos últimos dois anos, os gastos financeiros com a dívida federal quase dobraram. Apesar desses vultosos pagamentos, em 2021 a Dívida Pública Federal aumentou R$ 708 bilhões, tendo crescido de R$ 6,935 trilhões para R$ 7,643 trilhões1.

Assistimos a um verdadeiro saque das riquezas nacionais para alimentar o Sistema da Dívida, enquanto todos os outros investimentos necessários ao nosso desenvolvimento socioeconômico são deixados de lado, sob o falacioso argumento de que não haveria recursos. Recursos não faltam em nosso país! Além de cerca de R$ 5 trilhões em caixa2houve “Superávit Primário” em 2021, no valor de R$ 64 bilhões3Mas todo esse dinheiro está reservado para o rentismo!

O gráfico do Orçamento Federal Executado (pago) em 2021 evidencia o privilégio do Sistema da Dívida:

  • POR QUÊ OS GASTOS COM A DÍVIDA CRESCERAM TANTO EM 2021?

A explosão do crescimento da Dívida Pública Federal em 2021 é explicada pelas seguintes razões:

1º) JUROS ELEVADOS:

Enquanto o mundo todo está praticando taxas de juros próximas de zero ou até negativas há anos, o custo médio da dívida divulgado pelo Tesouro Nacional em 2021 foi de 8,91% ao ano, custo bem mais elevado que a média da taxa básica de juros Selic, uma vez que a maior parte da dívida está indexada a outras taxas de juros bem superiores.

Os juros consumiram bem mais que o valor de R$ 256 bilhões4 informado pelo governo no SIAFI a título de juros da dívida! Este valor está extremamente subestimado, o que se evidencia pela simples estimativa calculada pela multiplicação do estoque da dívida federal no final de 2020 (de R$ 6,935 trilhões) pela taxa média divulgada pelo Tesouro Nacional5 (8,91% a.a.), que resulta no valor estimado de no mínimo R$ 618 bilhões.

Essa estimativa conservadora, que sequer considerou os juros decorrentes de novas dívidas surgidas em 2021, escancara a falta de transparência do governo em relação ao efetivo gasto com juros, o que reforça a urgente necessidade de realização da auditoria da dívida.

O gasto com juros tem sido, historicamente, o principal fator de crescimento da dívida pública, e em 2021 a situação se tornou ainda mais grave diante da disparada da Selic pelo Banco Central6, sob a falsa justificativa de “controlar inflação”.

2º) EMISSÃO EXCESSIVA DE TÍTULOS DA DÍVIDA PÚBLICA FEDERAL 

O volume total de operações de crédito realizadas pelo governo federal em 2021 (em sua imensa maioria resultantes da emissão de títulos públicos) alcançou o patamar exagerado de R$ 2,031 trilhões7!

Caso esse montante tivesse sido empregado em investimentos para o desenvolvimento socioeconômico do país, estaríamos vivenciando outra realidade!

Essa montanha de dinheiro foi consumida da seguinte forma:

– R$ 1,670 trilhõese destinaram aos gastos com juros e mecanismos financeiros da própria dívida;

– R$ 307 bilhões ficaram parados no caixa do governo federal, aumentando o chamado “colchão de liquidez” que serve para dar garantias aos rentistas e deixar os bancos tranquilos de que o dinheiro para o pagamento dos próximos juros já se encontra armazenado em caixa. Para se ter uma ideia do absurdo que vivemos neste país, enquanto faltam recursos para garantir as necessidades básicas de grande parte da população que está nas ruas, vivendo de ossos e restos, e o governo alega diariamente que não há dinheiro para um auxílio emergencial para todos, corta investimentos em saúde, educação pesquisa etc., o saldo de dinheiro disponível na Conta Única do Tesouro Nacional ao final de 2021 atingiu R$ 1,736 TRILHÃO!8

– Apenas R$ 54 bilhões decorrentes da emissão de títulos da dívida foram destinados para áreas sociais, o que demonstra a falácia do argumento neoliberal, copiado por alguns outros economistas, no sentido de que a dívida pública estaria financiando áreas sociais como a Previdência Social por exemplo. Na verdade, no Brasil a dívida tem servido para SUBTRAIR recursos das áreas sociais: além de consumir praticamente todos os recursos advindos da emissão de novos títulos, ainda absorve recursos provenientes de outras fontes, que poderiam ser destinados a investimentos em áreas sociais. Conforme dados do próprio governo, R$ 291 bilhões dos gastos com a dívida em 2021 foram financiados com outras fontes de receita, tais como lucros do Banco Central (R$ 121 bilhões) e Royalties do Petróleo (R$ 41 bilhões). Esse elevado volume de Royalties do Petróleo destinado ao pagamento da dívida também revela o impacto direto do Sistema da Dívida na vida do povo, que sofre com o altíssimo preço do gás de cozinha e demais combustíveis, como diesel e gasolina, enquanto o lucro da Petrobras enriquece acionistas e a parcela destinada ao governo é consumida no gasto com a dívida.

3º) ATUAÇÃO DE MECANISMOS DO SISTEMA DA DÍVIDA 

Enquanto países desenvolvidos continuamente tomam empréstimos para investir na economia, gerando resultado em termos de desenvolvimento socioeconômico, geração de emprego e renda – no Brasil novos títulos têm sido sucessivamente emitidos para pagar juros e amortizações de dívidas anteriores, além de alimentar outros mecanismos do Sistema da Dívida. Além de não servir para financiar o nosso desenvolvimento socioeconômico, como já declarado inclusive pelo TCU9, o Sistema da Dívida transfere sistematicamente renda e riqueza dos mais pobres para os muito ricos, acirrando a injustiça social e o atraso tecnológico.

Dentre os mecanismos que alimentam o Sistema da Dívida no Brasil, sobressaem os operados pelo Banco Central e sua política monetária suicida, que consome centenas de bilhões de reais anualmente, responsável pela geração e crescimento exponencial de dívida ilegítima10, devido às taxas de juros historicamente elevadas, à remuneração diária da sobra de caixa dos bancos11, escandalosos contratos de swap12, entre outros.

Todos esses mecanismos “geram” dívida pública, ou seja, o seu estoque aumenta, mas o dinheiro não é empregado em investimentos de interesse da sociedade que vai pagar a conta da dívida, mas retroalimenta o próprio Sistema da Dívida.

4º) A FALÁCIA DA “ROLAGEM”

Um dos expressivos fatores que provocam o crescimento exponencial da dívida pública é representado pelo mecanismo da contabilização de grande parte dos juros como se fosse amortização, conforme já denunciado pela Auditoria Cidadã da Dívida13 desde a CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados (2009/2010).

Alguns liberais desconhecem esse mecanismo inconstitucional (fere o Art. 167, III, da CF/88) e criticam o gráfico do orçamento executado divulgado pela Auditoria Cidadã da Dívida, que corretamente soma os gastos com juros e amortizações, tendo em vista que grande parte dos juros é contabilizada pelo governo como se fosse amortizações (ou “refinanciamento”), vulgarmente chamada de “rolagem”.

Em 2021, como já mencionado, o custo estimado dos juros da dívida pública federal foi de R$ 618 bilhões, mas o governo somente contabilizou R$ 256 bilhões na rubrica dos juros14, ou seja, cerca de pelo menos R$ 362 bilhões referentes a juros estão sendo indevidamente embutidos na rubrica das amortizações, e são propagandeados como se fossem “rolagem”.

O falacioso discurso de que estaríamos apenas “rolando” a dívida dá a impressão de que a situação não estaria se agravando e que essa “rolagem” não teria efeito orçamentário ou econômico, pois rolagem significa a mera troca de título que está vencendo por outro. Na realidade os dados comprovam o contrário: nova dívida está sendo contraída, o estoque está aumentando, e os novos títulos públicos emitidos são consumidos pelo Sistema da Dívida, inclusive para pagar gastos com juros (despesa corrente), e isso não pode ser chamado de “rolagem”.

Em 2021, por exemplo, verificamos que quase R$ 1 TRILHÃO de gastos com a chamada dívida nada tem a ver com a chamada “rolagem”, tendo em vista que no mínimo R$ 618 bilhões foram gastos com o pagamento de juros e R$ 291 bilhões de amortizações foram financiados com outras fontes de receita que nada têm a ver com emissão de novos títulos públicos.

Além disso, o montante passível de ser considerado como “rolagem” ou “refinanciamento” deve ser considerado no custo do serviço da dívida pública, por isso está somado no gráfico. Quando o governo toma um empréstimo, ele está fazendo uma opção política sobre o que fazer com o dinheiro: investir na sociedade, ou pagar uma dívida repleta de ilegitimidades, que jamais foi auditada com a participação da sociedade civil. Conforme colocado acima, em países desenvolvidos, novos empréstimos são continuamente utilizados para investimentos sociais (inclusive com juros negativos), enquanto no Brasil são utilizados para continuar enriquecendo os muito ricos, o que tem nos condenando à calamidade social, à injustiça e ao atraso tecnológico. Portanto, os que dizem que a “rolagem” ou “refinanciamento” não teria nenhum significado econômico estão tentando evitar o debate sobre como o endividamento público tem prejudicado o país.

  • NECESSIDADE DE AUDITORIA COM PARTICIPAÇÃO SOCIAL

O gráfico divulgado anualmente pela ACD incomoda analistas ligados aos beneficiários da dívida pública (representantes de bancos, consultorias e comentaristas de grandes empresas de telecomunicações financiadas por instituições financeiras) que, evidentemente, se recusam a enfrentar o injustificado e sigiloso gasto financeiro com o Sistema da Dívida, e ficam alegando que o problema das contas públicas estaria em gastos com Previdência e servidores públicos.

A centralidade da dívida pública é inegável, pois essa dívida está por trás de todas as contrarreformas, teto e corte de gastos, insanas privatizações, funcionando como um dos principais pilares do modelo econômico produtor de escassez em nosso rico Brasil.

O conformismo diante do imenso gasto com a chamada dívida pública sem contrapartida em investimentos de interesse do povo e a falácia de que todo o gasto com o Sistema da Dívida seria mera “rolagem” impede o enfrentamento do problema e a mudança de rumo, condenando o país ao atraso e o nosso povo à miséria.

Tenta-se silenciar o necessário debate sobre o Sistema da Dívida no Brasil, sob argumentos equivocados (de “rolagem”, ou que bastaria emitir moeda15) que se prestam a manter os privilégios dos bancos e grandes rentistas, cujos nomes são inclusive mantidos em sigilo!

Por tudo isso, é urgente a realização da auditoria integral dessa chamada dívida, com participação da sociedade, pois a auditoria é a ferramenta que possibilita documentar a ilegitimidade do Sistema da Dívida, que não tem servido ao povo, e virar esse jogo!

AUDITORIA JÁ! COM PARTICIPAÇÃO SOCIAL!

É HORA DE VIRAR O JOGO!

2 Em 31/12/2021, haviam em caixa R$ 4,7 trilhões, sendo R$ 1,736 trilhão na Conta Única do Tesouro (Fonte: https://www.bcb.gov.br/content/estatisticas/hist_estatisticasfiscais/202201_Tabelas_de_estatisticas_fiscais.xlsx, Tabela 4, Linha 44 ); R$ 988 bilhões em Operações Compromissadas e Depósitos Voluntários Remunerados (sobra de caixa dos bancos mantida e remunerada pelo Banco Central, que deveria estar circulando na economia na forma de empréstimos a juros baixos a pessoas e empresas; Fonte: mesma Tabela 4 acima, linhas 50 e 52); e R$ 2,02 trilhões em reservas internacionais (US$ 362,2 bilhões multiplicados pelo câmbio de R$ 5,5799; Fonte: Série Temporal nº 13621 do Banco Central) 

3 Resultado referente à União, estados e municípios. É importante considerar todos os entes federados, pois grande parte do superávit de estados e municípios é destinado ao governo federal, na forma de pagamento das dívidas destes entes com a União.

5 Custo médio informado no quadro 4.2 da planilha disponível em https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO_ANEXO:15422

10 Ver artigo “O déficit está no Banco Central e não nos gastos sociais”, disponível em https://bit.ly/2YJf6P7

15 Alguns economistas alegam que a dívida pública não seria um problema para o país pois ela seria paga preponderantemente em moeda nacional (que pode ser emitida pelo Estado), e por isso não haveria nenhuma restrição orçamentária para o governo. Ou seja, o pagamento de trilhões de reais da dívida pública para a classe capitalista rentista não significaria a redução de investimentos sociais para os trabalhadores. Na prática, ao dizer que haveria riqueza ilimitada ao mesmo tempo para trabalhadores e capitalistas, tais economistas estão simplesmente negando a existência da luta de classes, ignorando que todas as riquezas são produzidas pelos trabalhadores. Inclusive, de acordo com estes mesmos economistas, existe um limite para a emissão de moeda, que é a capacidade instalada de produção da economia. Portanto, emitir moeda e entregar aos muito ricos significa sim a apropriação da riqueza nacional – que é produzida somente pelos trabalhadores – pelos rentistas da dívida pública.

domingo, 5 de junho de 2022

Biblioteca Oliveira Lima de Washington - Roberta Jansen (Estadão, 2018)

 

Astrofísica da Nasa assume reitoria de universidade nos EUA e resgata acervo de diplomata brasileiro

Duília de Mello quer recuperar a biblioteca do diplomata, historiador e jornalista Manoel de Oliveira Lima (1867-1928)

Roberta Jansen, O Estado de S. Paulo 

21 de janeiro de 2018 | 06h00 

RIO - Pesquisadora da Nasa, especialista na análise de imagens do Telescópio Espacial Hubble, Duília de Mello acaba de assumir a vice-reitoria da Universidade Católica da América, em Washington. Por ser brasileira, recebeu de seu chefe uma incumbência inusitada para uma astrofísica: recuperar a biblioteca do diplomata, historiador e jornalista Manoel de Oliveira Lima (1867-1928). No porão da universidade, ela encontrou nada menos que 58 mil itens, entre livros raros, manuscritos, cartas, mapas e obras de arte, que formam um dos mais importantes acervos do mundo de história do Brasil. Uma autêntica ‘brasiliana’ – como são chamadas as grandes coleções sobre o País. 

Além de livros raros, como a primeira edição dos Lusíadas, fazem parte da coleção milhares de cartas trocadas com intelectuais da época, como Lima Barreto, Euclides da Cunha e Monteiro Lobato. De dentro de um livro aberto aleatoriamente, surgiu uma carta assinada por Machado de Assis. “Toda hora encontramos algo novo”, afirma a pesquisadora, entusiasmada com o projeto inesperado. Diversos quadros de Taunay (1755-1830) e Antonio Parreiras (1860-1937), e um Frans Post (1612-1680) avaliado em nada menos que US$ 4 milhões, também pertencem ao acervo. 

Manoel de Oliveira
Duília de Mello. Formando uma autêntica ‘brasiliana’  Foto: TOMMY WIKLIND

Toda a coleção foi legada à universidade pelo diplomata, enterrado em Washington, sob lápide onde se lê apenas “aqui jaz um homem que ama os livros”. Um epitáfio à altura do intelectual corpulento, bigodudo e polêmico, que colecionava livros e desafetos.  

A biblioteca estava fechada e praticamente abandonada até o início deste ano, quando foi reaberta por Duília. Agora, ela busca patrocínio para criar um Centro Oliveira Lima onde todo o acervo possa ser acomodado de forma correta e acessível a pesquisadores e ao público.  

Formado no Curso Superior de Letras de Lisboa em 1897, o pernambucano Oliveira Lima começou a trabalhar para o Ministério das Relações Exteriores do Brasil em 1890. Trabalhou como diplomata em Portugal, Bélgica, Alemanha, Venezuela e Estados Unidos. Foi o encarregado de negócios da primeira missão diplomática brasileira no Japão e um dos primeiros brasileiros a escrever um livro sobre o país.  

Como historiador, escreveu a biografia de d. João VI, tida até hoje como uma obra de referência sobre o rei português que transferiu a corte para o Brasil. Como jornalista, escreveu para o Estado entre 1904 e 1923, assinando inclusive uma série de colunas sobre a Primeira Guerra Mundial, enviadas da Europa. Foi professor da Universidade Harvard, nos EUA, e da Sorbonne, em Paris. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL)

Amigo de grandes intelectuais da época, como Gilberto Freyre, Machado de Assis, Lima Barreto, entre outros, Oliveira Lima tinha uma profícua correspondência com vários deles. Também se notabilizou por seus grandes inimigos públicos, como Joaquim Nabuco e o Barão do Rio Branco. Sobretudo, foi um bibliófilo, um grande colecionador de livros raros, obras de arte, manuscritos e recortes de jornais. 

“Apesar de toda a sua produção e do reconhecimento que tinha na época, Oliveira Lima não é tão conhecido no País quanto deveria ser”, afirma o professor do Departamento de Literatura Brasileira da USP Ricardo Souza de Carvalho. “Mas é um dos mais importantes historiadores brasileiros dos séculos 19 e 20”, atesta. 

Manoel de Oliveira Lima
Trajetória. De Pernambuco, onde nasceu, a Washington, um homem que amava os livros

Coordenador do Laboratório Líber de Tecnologia da Informação, da Universidade Federal de Pernambuco, Marcos Galindo destaca a importância de Oliveira Lima como jornalista. “Ele escrevia sobre política internacional, sobre literatura, artes”, enumera o especialista. 

“Fui para Washington estudar as cartas, ele tinha cerca de 1.500 correspondentes, praticamente toda a intelectualidade do Brasil e da América Latina”, conta a socióloga Nathalia Henrich, biógrafa de Oliveira Lima, que ajuda Duília na catalogação do material. “Mas aí eu me deparei com os scrapbooks, os álbuns de recortes em que ele reunia notícias de jornais, cópias de artigos, cartas, fotos, cartões-postais, menus; uma janela para entender o que estava acontecendo no Brasil e no mundo.” 

Já Duília confessa não conhecer Oliveira Lima, mas destaca a importância do acervo. 

“Eu sou uma astrofísica, não entendo muito disso”, diz Duília. “Mas sei que não posso deixar um tesouro histórico desses num porão, sem catalogação e preservação adequadas: quero criar um espaço que seja uma biblioteca, um centro de estudos e também um local de reunião de intelectuais brasileiros na capital americana.” 

QUEM É - Manoel de Oliveira, escritor

 Manoel de Oliveira Lima (1867-1928) foi um diplomata, historiador e jornalista brasileiro. Viveu no Japão, na Europa e nos EUA e legou à Universidade Católica, em Washington, um acervo de 58 mil itens. 

Flora, a parceira que ficou em segundo plano

Mulher de Oliveira Lima falava cinco idiomas, era arquivista e escrevia as cartas e os manuscritos do diplomata

A astrofísica Duília de Mello, vice-reitora da Universidade Católica da América, em Washington, quer dar um destaque especial ao papel fundamental da mulher de Manoel de Oliveira Lima, Flora Cavalcanti de Albuquerque (1863-1940), na construção do acervo da biblioteca. O Centro Oliveira Lima terá, entre seus grandes alicerces, homenagear a memória de Flora e seu legado. 

Filha da aristocracia de Pernambuco, Flora falava cinco idiomas fluentemente. Era fotógrafa, arquivista, bibliotecária, responsável pela organização de todo o acervo de Oliveira Lima e como o marido também amava os livros. 

“Se não houvesse a Flora, não haveria a produção do Oliveira Lima”, garante a socióloga Nathalia Henrich, que está escrevendo a biografia do diplomata e trabalhando na catalogação do acervo. Segundo a especialista, todas as cartas de Oliveira Lima eram escritas por Flora, bem como os manuscritos originais de seus livros. “Imagino que ela desse muito palpite enquanto ele ditava, mas nunca recebeu a devida coautoria.”


Martin Wolf: doze “teses” sobre o estado do mundo (Financial Times)

 Marx tinha escrito ONZE teses sobre o estado do mundo em sua época; a 11a justamente incitava os filósofos a parar de interpretar o mundo, para passar a transformá-lo. Ele tentou, não conseguiu, mas deixou sementes. Um de seus seguidores, Lênin, tentou durante anos, sem conseguir. Já tinha quase desistido do empreendimento, em seu exílio na Suíça, quando o Império Alemão veio inesperadamente em sua ajuda, em 1917: fez um “pacote”, blindado, e providenciou entrega em Petrogrado. Daí começou verdadeiramente a transformação, mas para pior. Até hoje nos ressentimos da mais gigantesca transformação do mundo no século XX. Putin está tentando consertar a coisa, com a mesma brutalidade e corrupção que existia na Rússia czarista, que o Lênin queria derrubar e que o Putin se empenha em restaurar. 

Vamos examinar com calma as 12 “teses” do Martin Wolf.

Paulo Roberto de Almeida 


Twelve propositions on the state of the world

Global leaders face formidable challenges, from dizzying technological progress and geopolitical tension to climate change

Martin Wolf

Financial Times, Londres – 3.6.2022


 

How do we make sense of the world? Time spent in Davos last week crystallised my answers in the form of twelve propositions. 

 

Proposition one: the world is menaced “by the sword, by famine and by pestilence”, as Ezekiel warned: first Covid, then war on Ukraine and then famine, as exports of food, fertilisers and energy have been disrupted. These remind us of our vulnerability to unpredictable — alas, not unimaginable — shocks. 


Proposition two: “it’s the politics, stupid”. James Carville, Bill Clinton’s campaign strategist famously said that it’s “the economy, stupid”. The primacy of economics can no longer be assumed. Ours is an age of culture wars, identity politics, nationalism and geopolitical rivalry. It is also, as a result, an age of division, within and among countries. 

 

Proposition three: technology continues its transformative march. The Covid shock brought with it two welcome surprises: the ability to carry out so much of our normal lives online; and the capacity to develop and produce effective vaccines with amazing speed, while failing to deliver them equally. The world is divided in this way, too. 

 

Proposition four: the political divides between the high-income democracies on the one hand and Russia and China on the other, are now deep. Prior to Russia’s invasion of Ukraine, the survival of an overarching concept of “one world” seemed at least conceivable, however difficult. But wars are transformative. China’s offer of a “no limits” partnership to Russia may have been decisive in Putin’s decision to risk the invasion. His war is an assault on core western interests and values. It has brought the US and Europe together, for the moment. It should be decisive for Europe’s attitude to China: a power that supports such an assault cannot be a trusted partner. The march towards totalitarianism in both of these autocracies must also widen the global split. 

 

Proposition five: despite the rise of China, the west, defined as the high-income democracies, is hugely powerful. According to the IMF, these countries will still account for 42 per cent of global output at purchasing power parity and 57 per cent at market prices in 2022, against China’s 19 per cent, on both. They also issue all the significant reserve currencies. China holds more than $3tn in foreign currency reserves, while the US holds almost none. It can print them, instead. The ability of the US and its allies to freeze a large proportion of Russia’s currency reserves shows what this power means. Yet western power is not just economic. It is also military. How would Russia’s vaunted military have fared against Nato’s? 

 

Proposition six: yet the west is also deeply divided within countries and among them.Plenty of its politicians were enthusiastic supporters of Putin: Marine Le Pen was one of them. In Europe, Viktor Orbán is the most vocal survivor of this troupe. In the US, xenophobic authoritarianism — “Orbanism” — remains a leading set of ideas on the right. Donald Trump’s assault on the fundamental feature of democracy — a transfer of power through fair voting — is also very much alive. Many of these people view Putin’s nationalist autocracy as a model. If they get back into power, western unity will collapse. 

 

Proposition seven: over the long run, Asia is likely to become the dominant economic region of the world. The emerging countries of east, south-east and south Asia contain half of the world’s population, against 16 per cent for all high-income countries together. According to the IMF, average real output per head of these Asian economies will jump from 9 per cent of that of high-income countries in 2000 to 23 per cent in 2022, mostly, but not only, because of China. This rise is likely to continue. 

 

Proposition eight: the high-income democracies will have to up their political game if they are to persuade emerging and developing countries to side with them against China and Russia. Few countries like these autocracies. But the west has lost much support with its failed wars and inadequate help, notably during Covid. Most emerging and developing countries will try hard to stay on good terms with both sides. 

 

Proposition nine: global co-operation remains essential. However deep the rifts become, we share this planet. We still need to avoid cataclysmic wars, economic collapse and, above all, destruction of the environment. None of this is at all likely without at least a minimum level of co-operation. Yet is that at all likely? No.

 

Proposition ten: The rumours of globalisation’s death are exaggerated.Americans are inclined to think their perspective is the global norm. Frequently, it is not, as on this. Most countries know that extensive trade is not a luxury but a necessity. Without it, they would be miserably impoverished. The more likely prospect is that trade will become less American, less western and less dominated by manufacturers. Trade in services is likely to explode, however, driven by cross-border online interaction and artificial intelligence. 

 

Proposition eleven: given the immense political and organisational challenges, the chances that humanity will prevent damaging climate change are slim. Emissions fell in 2020 because of Covid. But the curve remains unbent.  

Proposition twelve: inflation has been unleashed in a way not seen for four decadesIt is an open question whether central banks will maintain their credibility. High inflation and falling real incomes are a politically noxious combination. Upheaval will follow. We in the west have to manage profound changes and lethal conflicts at a time of division and disillusionment. Our leaders have to rise to the occasion. Will they do so? One can only hope so.


sábado, 4 de junho de 2022

Assis Chateaubriand e o Conceito do Direito - Marcílio Franca (A União, PB)

Meu amigo e grande intelectual, especialista em Direito da Arte, Marcílio Franca, ficou muito feliz ao encontrar um livro "desaparecido", ou quase indisponível no mercado, e o fez por meio da digitalização de uma das maiores Brasilianas conhecidas, a Biblioteca Oliveira Lima, situada na Catholic University of America, à qual o grande historiador brasileiro, diplomata entre 1891 e 1913, doou seu imenso acervo bibliográfico e artístico em 1923, continuando a ser professor na CUA até sua morte, em 1928.

Ele relata aqui seu prazer de reencontrar o livro no acervo agora disponível, e, mais especialmente, o "duelo" entre dois intelectuais paraibanos engalfinhados pela mesma cadeira de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito do Recife. Para quem conhece Assis Chateaubriand apenas pela sua carreira de magnata da imprensa brasileira, desde os anos 1920 até a era militar dos anos 1960, ou pela biografia de Fernando Morais, Chatô, o rei do Brasil, ficará contente de saber que ele foi, antes de seu sucesso empresarial, um intelectual de primeira grandeza.

Reproduzo aqui, o texto do seu artigo, publicado no mais que centenário jornal A União, de João Pessoa, PB, e mais abaixo, partes da página do jornal que trouxe este belo artigo.

Paulo Roberto de Almeida 


Assis Chateaubriand e o Conceito de Direito

 

Marcílio Franca[1]

A União, João Pessoa, PB, 4/06/2022

 

Ele tinha estrela. Em 1915, com apenas 23 anos, Assis Chateaubriand, nascido na mesma e discreta Umbuzeiro (PB) de Epitácio e João Pessoa, venceu o já célebre intelectual Joaquim Pimenta, cearense de Tauá, então com 29, em um ruidoso e renhido concurso público para professor de filosofia do direito e direito romano da Faculdade de Direito do Recife. 

O certame mobilizou os círculos eruditos locais. Apesar de jovem, Chateaubriand já tinha alcançado fama como excepcional estudante da “Casa de Tobias Barreto”, advogado e também como jornalista, atividade à qual se dedicava desde os 15 anos. Contava com o apoio de João Barreto, o filho de Tobias, e do jornalista Annibal Fernandes. Pimenta, por seu turno, era um combativo articulista da imprensa cearense e pernambucana, polemista hábil e exímio filósofo. Era benquisto entre acadêmicos e a mocidade, e já ostentava a livre-docência em direito.

O concurso não foi fácil. Ultrapassada a fase escrita, Chatô dissertou, nas provas orais, sobre "O Interdito Uti Possidetis". O ponto sorteado por Pimenta cuidou da "Nomologia e seus Sistemas: Arbitrarismo, Naturalismo Físico e Fenomenismo". Havia ainda a submissão e discussão das teses. Pimenta apresentou um escrito intitulado “Cosmogonia do Direito Romano”, em que apontava as fontes pré-históricas do direito e discutia os sistemas jurídicos de povos primitivos. Chateaubriand submeteu a julgamento a tese “Conceito do Direito”, há tempos desaparecida de bibliotecas, sebos e livrarias e sobre a qual não havia maiores notícias, sequer nos bem conservados arquivos da Faculdade de Direito do Recife. 

A surpreendente vitória do jovem Chateaubriand na Congregação recifense, graças ao voto de minerva do diretor Sofrônio Portela, foi notícia de capa em todos os jornais da capital pernambucana. Com o governo estadual, a estudantada e a opinião pública majoritariamente a favor de Joaquim Pimenta, que decidiu recorrer a meios políticos e jurídicos contra o certame, Chatô partiu para o Rio de Janeiro a fim de garantir a sua nomeação. 

Além do primeiro lugar e do bom trânsito de que já gozava entre alguns políticos da capital federal, Chatô armou-se também de seis pareceres de juristas consagrados: Pedro Lessa, Afonso Celso, Afrânio Melo Franco, Esmeraldino Bandeira, Manuel Vilaboim e Epitácio Pessoa. Mesmo contrariando os interesses do general Dantas Barreto e do seu sucessor no governo de Pernambuco, o governador Manoel Borba, o presidente da república Venceslau Brás decidiu pela nomeação de Chatô. Foi assim que Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello tomou posse como professor da Faculdade de Direito do Recife em 05 de janeiro de 1916.

Paraibano e professor de direito, eu andava há muito tempo, sem sucesso, à procura de “Conceito do Direito”, a tese vencedora de Chatô. Esta semana, graças ao estimado embaixador Paulo Roberto de Almeida, fiquei sabendo que a fabulosa Biblioteca Oliveira Lima, de Washington, considerada por Gilberto Freyre "a catedral de estudos brasileiros nos EUA”, disponibilizou mais de um milhão de páginas digitalizadas do seu acervo. 


 E eis que, em meio a livros, monografias, decretos, sermões, panfletos, programas de concertos e de teatros que vão desde o século 16 até meados do século 20, encontro o livro perdido de Chateaubriand - uma pequena jóia de Teoria Geral do Direito, com pouco mais de 50 páginas, muito bem fundamentado em autores estrangeiros e nacionais, em que são esmiuçados conceitos basilares da juridicidade, como direito objetivo, direito subjetivo, coação, moralidade, sujeitos e objetos do direito. No opúsculo, Chatô demonstra, sem margem para dúvida, grande habilidade para a arena acadêmica - carreira que viria a trocar definitivamente pela vida advocatícia, jornalística e empresarial logo em 1917, ao transferir-se para o Rio de Janeiro. 

Bom, a bela surpresa de encontrar na Biblioteca Oliveira Lima a obra que há tempos eu procurava só não foi maior que a alegria de ver que “Conceito do Direito" foi publicada, em 1915, pelas oficinas gráficas do tradicional jornal público paraibano “A União”, a sempre jovem senhora que, desde 1893, ocupa um papel relevante na cultura brasileira, conservando e difundindo a nossa memória. 



[1] Professor Visitante da Universidades de Pisa (Itália), Professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e Procurador do Ministério Público de Contas da Paraíba, onde coordena a Força-Tarefa de Proteção do Patrimônio Cultural. Árbitro da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, para as áreas de direito da arte e do patrimônio cultural, árbitro da Corte de Arbitragem para a Arte (CAfA, Rotterdam, Países Baixos) e do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL (Assunção, Paraguai). Pós-doutorado em Direito no Instituto Universitário Europeu de Florença (Itália). Foi Professor Visitante em Turim (Itália) e Ghent (Bélgica).









Dois projetos de nação: o autoritário e o democrático - José Eduardo Faria (Estado da Arte)


O PROJETO DE NAÇÃO E O LABIRINTO VISTO DE CIMA

JOSÉ EDUARDO FARIA (ESTADO DA ARTE), 3/06/2022

BRASILPOLÍTICA

 

Deixada de lado desde o advento da globalização dos mercados entre o final do século 20 e o início do século 21, período em que a ideia de governo inerente ao Estado keynesiano foi substituída pela ideia de governança subjacente ao Estado liberal, a expressão “projeto de nação” foi recolocada novamente na agenda por duas iniciativas colidentes entre si.

(Projeto de Nação do Instituto Villas Boas)

 

A primeira iniciativa tem origem nos meios militares — mais precisamente, do grupo que apoia o governo Jair Bolsonaro e acredita, de alguma forma, se manterá no poder até 2035. Ela foi tomada pelo Instituto General Villas Bôas, criado pelo grupo do general Eduardo Villas Bôas, que foi o comandante do Exército entre 2015 e 2019, em parceria com o Instituto Federalista e o Instituto Sagres — Políticas e Gestão Estratégica Aplicadas. Com o título Projeto de Nação, coordenado por um general e revisado por três militares, dois embaixadores e dois professores, ele apresenta um cenário prospectivo do país até 2035, a partir de seis perspectivas: “temas estratégicos e incertezas críticas, consultas áugures (especialistas e outros públicos), cenários prospectivos, “cenário foco”, objetivos nacionais (políticos), diretrizes político-estratégicas e óbices”.

A segunda iniciativa foi tomada por dois economistas, Fabio Giambiagi e Ricardo de Menezes Barboza, que aproveitaram a comemoração dos 70 anos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para lançar um livro no qual técnicos de carreira de diferentes áreas decidiram apresentar uma agenda econômica e socioambiental. Com o título Labirinto visto de cima — saídas para o desenvolvimento do Brasil e publicado pela Editora Lux, a obra foi redigida por especialistas que analisaram a transição de uma economia fechada rumo a uma economia mais integrada ao mundo, porém com baixo crescimento ao longo das últimas décadas e incapaz de aproveitar todo seu potencial de desenvolvimento.

O lançamento desses dois trabalhos às vésperas do início da campanha presidencial certamente balizará as discussões e as propostas de alguns candidatos ao Palácio do Planalto. Seu denominador comum é a identificação e análise dos gargalos estruturais que têm impedido o Brasil de sair do labirinto em que se encontra e a apresentação de propostas para removê-los. Evidentemente, as duas iniciativas refletem o ethosdas corporações a que seus autores pertencem. Enquanto a primeira expressa o viés estamental dos militares, especialmente do Exército, a segunda apresenta o pensamento das novas gerações de profissionais do desenvolvimento lotados num órgão de excelência da administração pública, como é o caso o BNDES.

Se o ponto comum dos dois trabalhos é a ideia de um “projeto de Nação”, mencionada expressamente no primeiro e subentendida no segundo, no restante só há divergências. A começar pelo fato de que, enquanto um trabalho prima por seu rigor técnico e sólida fundamentação, o outro é inteiramente comprometido por uma visão de mundo ideologizada e limitada — uma visão nacionalista e fortemente autoritária, que condiciona a transformação do país à “revitalização dos valores morais, éticos e do civismo”, ao fortalecimento do “sentimento de Pátria”, ao “combate à revolução cultural”, à “promoção do sentimento coletivo de Nação” e à “valorização dos vultos históricos do Brasil, sem viés ideológico, a fim de resgatar a identidade nacional”. Por isso, a distância entre as duas iniciativas é abissal.

Embora toque em pontos importantes para o desenvolvimento socioeconômico, o primeiro trabalho não só carece de objetividade, precisão técnica e propostas sofisticadas, como também não consegue deixar de lado o mantra da denúncia da “ideologização nociva”, ao mesmo tempo em que propõe como alternativa visões ingênuas, simplórias e distorcidas da realidade atual. Por exemplo, enquanto o livro dos técnicos do BNDES chama atenção para a necessidade de iniciativas voltadas à ampliação da exposição da economia brasileira à abertura do comércio internacional, o documento dos militares, explicitando o nacionalismo de cartilha de seus autores, opõe-se a um fato concreto — a globalização dos mercados de bens, serviços e finanças, acelerada após a crise do petróleo na década de 1970.

(Fabio Giambiagi e Ricardo Barbosa (orgs.): Labirinto Visto de Cima)

“O globalismo é um movimento internacionalista cujo objetivo é massificar a humanidade, progressivamente, para dominá-la; [para] determinar, dirigir e controlar tanto as relações internacionais quanto as dos cidadãos entre si”. “No centro do movimento está a Elite Financeira Mundial, ator não estatal constituído por megainvestidores, bancos transnacionais e outros entes megacapitalistas […]. O argumento central do globalismo é de que lidar com problemas cada vez mais complexos, como crises econômicas, proteção do meio ambiente, direitos humanos e outros, requer um processo centralizado de tomada de decisões em nível mundial. É comum a Elite cooptar, aliar-se ou se alinhar com potências mundiais, organismos internacionais e ONGs […]”. No Brasil, “é visível a união de esforços entre determinadas entidades nacionais e o movimento globalista, inclusive com o apoio de relevantes atores internacionais, visando a interferir nas decisões de governantes e legisladores, especialmente em pautas destinadas a conceder benesses a determinadas minorias, em detrimento da maioria da população, a exercer ingerência em nosso desenvolvimento econômico,  usando pautas ambientalistas a reboque de seus interesses e não pela necessária preservação da natureza, e a provocar crises que enfraquecem a Nação em    sua busca pelo desenvolvimento”.

Entre outras afirmações inverossímeis, o documento afirma que, em sua “face mais sofisticada”, o globalismo deflagrou o “ativismo judicial político-partidário”, levando parte do Judiciário, do Ministério Público e das Defensorias Públicas a atuarem “sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente, a começar pela Constituição brasileira”. Essa é uma posição de quem desconhece o funcionamento do Judiciário, não acompanhou as mudanças do direito contemporâneo, não sabe que a interpretação de uma lei não é uma atividade mecânica e ignora as técnicas mais elementares de hermenêutica jurídica[1].

Problema semelhante também pode ser visto no capítulo do documento relativo à educação. Os técnicos do BNDES apontam a importância de investimento em capital humano, por meio de uma reforma educacional capaz de melhorar as condições de chegada das novas gerações ao mercado de trabalho formal. Ao beneficiar jovens dos setores mais desfavorecidos da sociedade, um ensino público de qualidade reduziria desigualdades sociais gritantes, classificadas pelos autores como “uma chaga moral da sociedade” brasileira. Já o documento dos militares, entre outras platitudes, como a proposta de melhorar “as técnicas pedagógicas de emprego de recursos tecnológicos”, fala em “aperfeiçoar a formação profissional, ética e cívica dos docentes”, em “coibir a ideologização nociva do ensino” e desprezar “propósitos de ideologias de qualquer natureza”. Em que medida essa linha programática não é, ela própria, uma ideologia autoritária, avessa à pluralidade valorativa que deve nortear o sistema de ensino? No caso do ensino superior, além disso, esse pessoal se esquece de que, por princípio, a universidade não deve ser voltada apenas para a tarefa de produzir profissionais destinados a exercer tarefas específicas, limitadas pela própria especialização, nem converter a ciência em força produtiva. Pelo contrário, por ser um centro de formação, de produção do conhecimento, de geração de cultura e de liberdade de criação, com capacidade de colocara e equacionar problemas, ela deve ser livre, laica e independente. Seu papel é articular saberes, desenvolver pensamento crítico, forjar lideranças intelectuais e, acima de tudo, descortinar horizontes — em vez de encurtá-los ou até de fechá-los.

Em seu livro, os técnicos dessa ilha de racionalidade, que é o BNDES, apontam medidas para melhorar a qualidade dos gastos públicos. Entre os problemas relativos à má qualidade dos gastos públicos está a corrupção. Sobre este tema, o trabalho dos militares afirma, mais uma vez, que a maneira de combatê-la é… “coibir a pregação ideológica radical nos três níveis da educação”, reduzindo a corrupção e a improbidade na administração pública a uma simples questão ideológica. Para assegurar a retomada do crescimento, os técnicos do BNDES também propõem “uma nova construção política” com base em quatro itens: alterar a regra do teto de gastos; promover um aumento “modesto” da carga tributária; formular “uma política social inteligente e adequadamente dosada”, por meio de programas para beneficiar trabalhadores informais; e medidas de ajuste para reforçar a austeridade fiscal. Um pacto com esses objetivos só pode ser obtido por meio de amplo diálogo com todos os setores sociais, baseado nas regras democráticas e no respeito às prerrogativas do Legislativo.

Neste ponto, o documento dos militares parece avesso a esse diálogo amplo. O texto parte da premissa de que é preciso “fortalecer a democracia por meio de reformas institucionais que saneiem as disfuncionalidades do Estado, neutralizem a corrupção, o poder de ideologias radicais de qualquer natureza e valorizem o civismo”. Propõe o aperfeiçoamento dos sistemas político e jurídico, a fim de que a “a liberdade” possa ser “exercida com responsabilidade”, sem, contudo, explicitar quem é que define o que é responsabilidade. Defende a neutralização do “poder político e social das correntes de pensamento radical, sectárias, não democráticas, que dividem a Nação”. Afirma que a percepção de liberdade no país está sendo “confundida com liberalidade e sem cidadania e espírito cívico”. Diz que o “sistema jurídico” está submisso a lideranças corrompidas, motivo pelo “não garante leis iguais para todos e permite que elas sejam manipuladas por grupos poderosos”. Aponta como óbice para a democracia a “falta de lideranças atuantes e de movimentos sociais organizados que contribuam […] para que a grande maioria da população adepta da liberdade econômica com responsabilidade social e conservadora evolucionista, faça valer sua vontade e seu pensamento político”, desqualificando assim os demais movimentos sociais como interlocutores. E, de modo obsessivo, volta a tratar como problemas a “revolução cultural que vem comprometendo a coesão nacional” e o “enfraquecimento do sentimento de Pátria e de Nação, com tendência à divisão da sociedade, pela crescente submissão dos interesses da coletividade nacional aos que atendem aos anseios de grupos minoritários”.

São afirmações perigosas. De um lado, porque são retrógradas, desprezando o pluralismo do mundo contemporâneo. Se ficasse fora dessa revolução cultural, o Brasil seria um país isolado, como uma Coreia do Norte. De outro lado, porque essas afirmações justificam a tutela da sociedade por um estamento que se arvora, sem legitimidade, em uma autoridade moderadora acima das instituições democráticas. Esse pessoal se esquece de que a República brasileira é fruto de um golpe militar, origem que viciou o regime político-democrático desde seu início. Como lembra José Murilo de Carvalho, aquela “intervenção militar tornou-se um modelo, quase uma norma recorrente ao longo da República. Esta origem criou entre os militares a ideia de que eles são os pais da República. Que eles são os responsáveis pela República e herdaram o direito, como corporação, de intervir na política quando assim o desejarem”[2].

Além de uma visão de mundo da altura de um rodapé, esse é o maior problema do documento dos oriundos de uma corporação que, desde 1889, têm dificuldades para conter ao desejo de ir muito além de sua missão constitucional específica. Ele cheira a naftalina, dada sua associação ao preâmbulo dos Atos Institucionais 1, 2 e 5 da ditadura de 64, nos quais os militares se diziam autorizados a legislar em nome de uma “autêntica ordem democrática”, porém assumindo-se como instrumento de neutralização de quem fizesse oposição à “ordem revolucionária”. O problema é que, quando esse tipo de Estado define o inimigo, ele se converte em Estado totalitário. Quando um regime político quer que todos cantem pelo mesmo missal, não há democracia. Quem mudar de hino terá de sair da igreja, espontaneamente ou pela força. Nesse sentido, falta aos autores do projeto de Nação dos militares o que os técnicos do BNDES, ao entreabrirem o encontro entre o pensamento econômico e a realidade do mundo atual, têm de sobra — capacidade de compreender a história como processo, levando em conta a tensão entre continuidades e rupturas. Em seu livro, eles defendem ideias e instituições para melhorar a realidade, o que traz novos problemas — e estes, para serem enfrentados, exigem pesquisas, estudos e embates acadêmicos com atores que são expressamente desqualificados pelos autores do documento dos militares.

Essa é a distância abissal entre as duas iniciativas que recolocam na agenda a ideia de definição de um projeto de país. No limite, o documento dos militares — o estamento que almeja estar por trás do Estado e que, apesar de ser uma instituição permanente, deixa-se confundir com o atual governo, que é transitório — caminha na linha do pereat mundi, fiat ordo, sob comando deles, é claro. Já para os técnicos do BNDES está claro que economia e democracia são coisas sérias; suas propostas manifestam a consciência de que a responsabilidade política é uma via de mão dupla, tendo como marco fundamental um Estado que ouve e responde ante os poderes constituídos e os setores articulados da sociedade e que se prepara para atender às demandas e pressões da sociedade.

 

Notas:

[1] Ver, nesse sentido, meu artigo “Judicialização da política, ativismo judicial e tensões institucionais”, in Journal of Democracy, edição de novembro de 2021.

[2] Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, publicada em 5 de novembro de 1989, p. 13.


(Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 03 de junho de 2022: https://estadodaarte.estadao.com.br/projeto-nacao-labirinto-cima-jef/ )

 

Lançamento digital, livros de Paulo Roberto de Almeida: Apogeu e Demolição, O Itamaraty Sequestrado

 Lançamento digital de dois livros meus, pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, na companhia de colegas também autores: embaixador Sergio Florencio, acadêmico Arnaldo Godoy e diplomata Paulo Fernando Pinheiro Machado.