O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Entrevista Everardo Maciel sobre desoneração da Folha Salarial - Ana Dubeux, Carlos Alexandre Souza (Correio Braziliense)

Everardo Maciel: "O governo erra com o veto à desoneração da folha"

O ex-secretário da Receita Federal no governo FHC critica a decisão do Planalto, defendida pela equipe econômica, de vetar a desoneração da folha de pagamento. E se diz preocupado com a política perdulária do atual governo, somada a interesses eleitoreiros.

"O retorno à forma de tributação anterior, a partir de 1º de janeiro próximo, implica aumento significativo da tributação sobre a folha de pagamentos, justamente em setores intensivos em mão de obra" - 

Ana Dubeux, Carlos Alexandre Souza

Correio Braziliense, 27/11/2023

Secretário da Receita Federal no governo de Fernando Henrique Cardoso, o pernambucano Everardo Maciel prevê tempos atribulados para a economia brasileira. Ele observa com muita reserva os movimentos do governo Lula, empenhado em aumentar a arrecadação a todo custo. Na avaliação de Everardo, hoje consultor tributário, professor e conferencista, as razões econômicas apresentadas para justificar o veto à desoneração escondem o interesse eleitoreiro de financiar projetos de visibilidade. E cita um pensamento de Norberto Bobbio para criticar a postura do governo: "Política não é tudo".

Na avaliação de Maciel, 76 anos, o atual modelo de desoneração pode ter falhas, mas é seguramente melhor do que o modelo anterior, defendida pela equipe do ministro Fernando Haddad. O ex-chefe da Receita entende como melhor solução derrubar o veto e discutir um modelo condizente com a realidade do século 21.

Quanto à reforma tributária, recém-aprovada pelo Senado e de volta à Câmara, Everardo Maciel é pessimista: prevê aumento de carga tributária, contencioso judicial e conflitos federativos. Ele espera estar errado — não se considera o dono da razão —, mas recorre a Roberto Campos para resumir o seu diagnóstico: "Não corre o risco de dar certo". Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida ao Correio.

O governo erra ou acerta quando veta a desoneração da folha a 17 setores produtivos, especialmente quando se considera essa medida afeta 9 milhões de trabalhadores, com possibilidade de gerar desemprego?

O governo erra. Há mais de 10 anos, para determinados setores — hoje, são 17 —, procedeu-se à mudança da base de cálculo das contribuições previdenciárias patronais, substituindo a folha de salário pelo faturamento. Não houve, portanto, desoneração no sentido estrito, mas mudança de base de cálculo. O retorno à forma de tributação anterior, a partir de 1º de janeiro próximo, implica aumento significativo da tributação sobre a folha de pagamentos, justamente em setores intensivos em mão de obra.

Qual a razão disso?

A verdadeira motivação do veto é aumentar a arrecadação para financiar projetos que não necessariamente importam para o desenvolvimento. Seria, além disso, ingenuidade dissociar essa motivação das eleições municipais do próximo ano. Pondero que não entendo como ilegítima a pretensão de buscar repercussão eleitoral por meio de políticas públicas. Quando, todavia, se recorre a aumento de arrecadação e se abdica de cortar gastos perdulários, que desafortunadamente são expressivos no Brasil, essa legitimidade desaparece. O grande pensador italiano Norberto Bobbio, em Elogio da Serenidade, ensinava: "Política não é tudo. A ideia de que tudo seja política é simplesmente monstruosa".

O ministro Fernando Haddad prometeu compensações para o fim da desoneração, mas só depois de concluída a reforma tributária. É possível?

Primeiro, é preciso dizer que o modelo de financiamento da previdência social por meio da tributação de folha de salários é tendente ao fracasso absoluto, pois há aumento da expectativa de vida, redução da natalidade e substituição da mão de obra por robôs, inteligência artificial e tudo o mais que se associa à revolução tecnológica, que assumiu caráter permanente. Não se trata de fenômeno local, mas universal. A mudança de base de cálculo operada há mais de 10 anos é consistente com essa realidade, cada vez mais robusta. Não afirmo que a mudança para o faturamento seja a melhor solução, porém, no caso específico, é melhor que a regra anterior. Ninguém no mundo tem uma solução pronta e acabada para um novo modelo de financiamento da previdência social. Creio, entretanto, que há um razoável consenso que o velho modelo tende à falência.

E quanto às compensações?

Quanto à promessa de compensação para as consequências do veto, entendo que é uma manobra claramente protelatória ou uma tática diversionista para acolher a derrubada do veto e, aí sim, "compensar" esse gesto, aparentemente generoso, com outras medidas visando, outra vez, a aumentar a tributação. O que entendo ser razoável: derruba-se o veto e, então, se discute uma nova regra que afaste a incidência sobre o faturamento.

O deficit das contas públicas para 2023 está bem acima do previsto, na casa dos R$ 177 bilhões. E o governo já fala em dificuldades para zerar o deficit em 2024. O governo Lula abusou dos gastos ou fez a conta errada?

O atual governo tem vocação claramente expansionista em relação ao gasto público, o que resulta na combinação da indisposição para eliminar os gastos, repito, perdulários com a voracidade para aumentar os gastos, perdulários ou não. Não faz tempo, ouvimos de uma autoridade governamental uma pérola da desrazão: "Gasto é vida". Montar uma política fiscal com base em metas é apostar no acaso. Metas são necessárias como parâmetros para avaliar a execução de políticas setoriais de gastos. Se essas políticas inexistem e de fato não existem, só restam duas possibilidades: recorrer-se à tosca ferramenta do contingenciamento ou pedir perdão, com razoável frequência, caso as metas não sejam cumpridas.

A poucas semanas do recesso parlamentar, há uma lista de questões delicadas em pauta. Elas podem atrapalhar os planos da economia em 2024?

Sim, podem atrapalhar a economia, especialmente, lamento dizer, se algumas delas prosperarem. O descontrole fiscal, a corrupção sistêmica, a instabilidade institucional e, a não menos importante, insegurança jurídica são questões que integram a agenda política nacional. A Argentina é hoje um exemplo extremo dessa terrível patologia social. Talvez, tivéssemos na mesma condição do país vizinho não fossem o Plano Real e as medidas a ele associadas, cuja capacidade de resistência às investidas populistas é admirável. O perigo, contudo, nos espreita.

A reforma tributária voltou para a Câmara e ainda terá um longo período de regulamentação. Qual sua expectativa?

Em minhas entrevistas, artigos e conferências, sempre apontei a impropriedade da solução da PEC 45 e suas variantes. Espero estar errado, afinal não tenho a arrogância dos que pretendem deter o monopólio das verdades absolutas, porém antevejo aumento da carga tributária, do contencioso judicial e dos conflitos federativos. Isso, como dizia Roberto Campos: "Não corre o risco de dar certo". Claro que temos problemas tributários, a maior parte deles resolvível por soluções relativamente simples. Para resolvê-los, todavia, não precisávamos montar uma geringonça.

Na COP28, o Cerrado e o Pantanal brasileiros estarão em evidência. Como o senhor enxerga as querelas sobre questão climática no Brasil?

O Brasil dispõe de um potencial não desprezível de recursos para enfrentar as mudanças climáticas, a exemplo do que existe nos biomas da Amazônia, do Pantanal e do Cerrado. O que precisamos é equilibrar a utilização desses recursos, à margem dos radicalismos conservacionistas e predadores. Estamos longe de produzir um protocolo para a preservação do meio ambiente, inclusive o urbano, que possa assumir protagonismo em termos internacionais.

O Brasil terá sossego nos próximos anos?

Infelizmente, no meu entender, não.


Simples regras para a boa qualidade da escola - Claudio de Moura Castro

 Simples regras para a boa qualidade da escola

 

Claudio de Moura Castro

 

 (,,,)

[Na] educação [o] segredo da qualidade é a religiosa atenção a todos os detalhes. E são muitos. É o feijão com arroz feito com obstinação. Não necessitamos teorias novas, complicadas ou miraculosas. Boa educação pode acontecer sem tecnologias revolucionárias na sala de aula. Mas é óbvio, cumpre corrigir os erros mais egrégios.

 

Para começar, sem gestão competente, nada de bom vai acontecer. O solo do pianista Nelson Freire encanta seu público, do primeiro ao último minuto. Mas se os carregadores do seu piano não se entenderem, brucutu, se vai para o chão! Se são muitos para a missão, é preciso coordenar. Portanto, gestão é essencial. Sem lideres capazes de comandar e boas regras instaladas, não há como produzir um bom ensino.

 

Uma escola precisa definir suas prioridades – poucas. E não pode ficar saltitando de uma para a outra. Todos têm que conhecê-las bem e embarcar nelas de corpo e alma. Essas são as primeiras regras da gestão. Não há boas escolas que não as pratiquem.

 

diretor é um elo crítico. É o comandante do barco, velando para que todos remem na mesma direção. Nas escolas bem dirigidas, as decisões fluem e o astral é bom. Porém, as escolas públicas carecem dos instrumentos para assegurar a boa marcha. Não podem punir e ou recompensar. Não escolhem os professores e nem podem se livrar dos fracos. Suas armas são apenas carisma e capacidade de sedução. É pedir demais deles.

 

Não fosse o bastante, os diretores são escolhidos pelos piores métodos. Ou são indicações políticas, passando longe dos melhores candidatos ou são eleições que politizam a escola e reduzem sua autonomia, tolhidas nas promessas de campanha. Não obstante, há hoje melhores métodos de escolha.

 

Sua Excelência, o professor. Em suas mãos acontece – ou não acontece – a boa educação. Infelizmente, sua preparação é equivocada. Nem aprendem o que vão ensinar e nem aprendem a dar aula. Talvez a maior prioridade hoje seja revolucionar a sua formação. 

 

E. Hanushek estimou que os alunos de um professor muito ruim ficam meio ano para trás. E os de um muito bom ganham um ano e meio. Ou seja, se trocarmos um muito ruim por um muito bom, o aluno ganha dois anos! Nada teria impacto comparável.

 

Porém, selecionamos mal. Tirar boa nota no concurso em nada contribui para sua eficácia. Diplomas de mestrado ou doutorado tampouco. Só se revela sua aptidão quando é testado em uma sala de aula de verdade. Daí que a seleção deveria ser após um estágio. 

 

Pior, a carreira não é atraente e charmosa. Os salários iniciais são baixos, atraindo poucos dentre os mais talentosos. Pior, a estabilidade garante que, por décadas, péssimos professores estarão na sala de aula. Some-se a isso regras lenientes para o absenteísmo. 

 

A avaliação é o GPS da educação. Se não sabemos se o ensino é bom, se melhorou ou piorou, como pilotar essa nave chamada escola? Hoje temos bons sistemas de avaliação – ainda que insuficientemente usados. Mas como o professor não aprendeu a fazer provas inteligentes, é fraquinha a avaliação pelas notas. Premia-se o decoreba.

 

Formal ou informalmente, qualquer empregado é avaliado ao longo da carreira. E o voto avalia os políticos. Os bons, avançam. Os trôpegos vão ficando para trás. Os professores da rede privada são informalmente avaliados pelos donos das escolas. Por que os sindicatos acham que a única classe que não pode ser avaliada é a dos professores da rede pública? 

 

Há uma ciência e uma arte de dar aulas. Faz um século, concebeu-se uma revolução na sala de aula. E de meio século para cá, tudo isso foi testado, através de pesquisas sérias. Por que a maioria das escolas ignora esse legado e segue usando métodos que vem da Idade Média?

 

Por exemplo, hoje sabemos: mais ênfase nas habilidades básicas (ensinar menos para aprender mais) O aluno aprende mais quando a aula é ativa. Só se aprende quando se aplica. Com bagunça não se aprende. 

 

Por que os erros não são corrigidos? Dentre observadores mais qualificados e serenos, há amplo acordo com relação ao que foi dito acima. Mas quase nada muda. Para obter os módicos avanços que conseguimos, ainda dependemos de líderes heroicos e obstinados. Nos países de boa educação, poucos conhecem o nome do Ministro.

 

Demos grandes saltos no passado recente, quando faltava tudo. Agora, a qualidade depende de medidas que pisam nos calos de muitos: mais esforço, mudanças penosas e, por aí afora. Para vencer tais resistências, é necessário que a sociedade exija impiedosamente uma educação de qualidade. Infelizmente, isso ainda não acontece. Toleramos a mediocridade. Por isso, temos uma educação medíocre.

 

 

Vidas Paralelas na educação brasileira: Cláudio Moura Castro e Simon Schwatzman

 Cláudio Moura Castro: 

A pedido de um periódico internacional de educação, preparei um artigo revendo a minha carreira profissional. Meio embaraçoso se auto-elogiar e, pior ainda, fazer meu culpa. Fiz o melhor que pude. Aí está

https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0738059323001918?fr=RR-2&ref=pdf_download&rr=82c6ea28df43628f

The many incarnations of a curious researcher

The author describes his early interests, meandering from areas such as woodworking, electronics, economics, and education. Not surprisingly, his career also takes many kinks and detours. From a researcher in a government think tank he moves to coordinate a joint research in ten Latin American countries. He then becomes the head of the Brazilian agency in charge of masters and doctoral programs (and scholarships). From there, he leads the social policy unit of the Planning Ministry. At the ILO, he directs a group devoted to vocational training policies. Then comes the World Bank and the Interamerican Development Bank (where he became Chief Educational Advisor). Returning to Brazil, he designs a new college and then joins another large proprietary institution. Next project is to rescue a failing medical school. In this zigzagging trek, with successes and failures, there are some constants: curiosity, research and collisions with the bureaucracy.

Section snippets

Youth decisions: tools or books?

Some people find out early what they want to do in their professional life and plan their future. I am not one of them. Sometimes I thought I knew what I wanted to do. But then changed my mind. In most cases, things just happened.

Some dreams were volatile, but curiosity never abandoned me.

My first passion was tools. Recently, I found my picture, less than five years old, sitting on a bed, surrounded by tools. From this addiction I could never recover. I was less than ten years when I got my

A zigzagging educational trajectory

Initially, becoming an engineer was the obvious career choice. However, as the eldest grandson of one of the firm’s proprietors, I was in line to become an executive. Hence, why study engineering and not business? In fact, what I liked was the shop and manual work, not engineering, with its threatening mathematics.

In the event, I enrolled in a Business School in Belo Horizonte (Minas Gerais). I found management studies down to earth and concrete, but not too exciting. In contrast, Economics

A college lifts itself by its bootstraps

My undergraduate program was, in itself, an educational adventure. In Belo Horizonte, a mediocre bookkeeping school was suddenly merged with the Federal University of Minas Gerais. What happened afterwards is a unique case of an old-fashioned and mediocre school transforming itself into the premier program in Economics.

After the merger, an inspired Director created a first-class library and selected the best freshmen to scholarships, under which they were assigned small offices, to remain all

“Mr. Castro, you read too much and understand too little”

While attending the succession of American universities, my ego suffered a major blow. The first time I was shown a syllabus, my gut and arrogant reaction was: “I have already studied all that”. It took me a long time to discover - the hard way - that "studying" is not "learning". I consider this sobering epiphany as the most powerful impact of graduate schools in my intellectual development.

Nicholas Georgescu-Roegen was the most inspiring and brutal professor in the department, but he was also 

First job: a researcher fearing to become a manager

The recently created IPEA became the prestigious research branch of the Planning Ministry. There, many of the “young turks,” returning with their shiny new masters and Ph.Ds., created a critical mass in the abrupt modernization of the federal government. This happened during the military government, when the “technocrats” had ample political power to do what they thought was right.

It was an ideal setting for policy research. Being so close to the upper echelons of the government, it offered

Managing education research in Latin America during its inchoate stages

ECIEL was a Latin American consortium for comparative economic research, attached to the Brookings Institute. When the decision came to move it to Brazil, I was retained as a consultant to develop a new project in education - in ten countries. Afterwards, I became the coordinator of this project.

It was a bumpy adventure, given the lack of scientific maturity of the region in such matters. Education research in countries such as Argentina, Chile, and Colombia had already matured. Dealing with

Teaching in the first masters’ programs

In the seventies, the first master’s programs were created in Brazil. They lasted two years, plus the thesis period. Soon after, I started teaching at the Vargas Foundation and the Catholic University, both in Rio de Janeiro. From an initial beginning in Economics, I switched to the recently created education programs.

In the ultra-soft environment of educators, a firebrand economist in their milieu was somewhat upsetting. I was accepted and even welcomed, but in ten years, never invited to a

Scholarships, evaluation and crisis in graduate schools

CAPES is an agency of the Ministry of Education in charge of allocating thousands of scholarships and the coordination of all graduate schools in the country. As it happened, it was the best performing branch of this ministry.

With the change of government, I was invited to be its general director. In my previous research, I was impressed by how inane the decisions of the Ministry of Education were. Therefore, I decided on an almost suicidal experiment: to accept the position, do what I thought

Social policies at the Planning Ministry: can success lead to extinction?

When IPEA was created, as an adjunct institution to the Ministry of Planning, another one was also created to deal with social policies - its acronym was CNRH. It attracted a serious and motivated staff – an uncommon case in public service.

My colleagues from Planning had asked me for a name to direct CNRH. I obliged, suggesting a recently graduated Ph.D. Unfortunately, my suggestion was accepted and he became a most inept chief, clashing with all the technical staff. This created a major

Bullying a well-behaved group of bureaucrat-researchers

With my dissertation, I began a long sequence of studies on vocational training. For that reason, some researchers from the ILO, working in this field, knew me. An invitation came, to lead its policy unit, around a dozen officers strong.

This was a serious and hard-working group, inured to the bureaucratic styles of the house. Reflecting its location in Switzerland, the ILO is dead serious in whatever it does. Watching the group, I saw as my role to spice up the atmosphere, promote more

The collision of dogma, expediency and bureaucracy in the World Bank

The more uncomfortable my situation became at the ILO, the more I explored the possibilities of a move. As I found out, job mobility in Europe works at a snail’s pace. But I had frequent contacts with the education and training staff of the World Bank. Hence, it was the obvious choice. But where in the Bank? Latin America was already trodden territory. Africa had proven to be quite frustrating. But I was offered a position to deal with the Arab World and the crumbling Soviet Union. As an extra

The IDB, a more simpático version of the WB

After six years at the World Bank, I was invited to migrate to the Interamerican Development Bank. Historically, the World Bank was created to rescue Europe after the Second World War. The IDB was born during the Cold War and the Alliance for Progress. Of course, the IDB had much to learn from its older brother. Therefore, formally, they are very similar. In fact, strictly speaking, they are not banks, but credit unions, in which the members are governments (represented by their Finance

The design, implementation, collapse, and rebirth of a college

Pitágoras began as a cram school to prepare students for the entrance exams. It was created fifty years ago by four engineers and a biochemist (presently, only three remain). Since it was a great success, the next move was to create a high-end K-12 school. Another success. Not much later, like a few other competitors, it began preparing textbooks, complementary materials, and tutoring for teachers from other private schools. This initiative can be described as a “soft franchise.” By the end of

When a great leader creates a school

Very soon after quitting Pitágoras, I joined Positivo. As it turns out, it had a similar trajectory. Coincidence? No so much, since both were aggressive and open-minded institutions, they fit my profile.

Forty years ago, five people created a cram school program in Curitiba. With the success of the initiative, they added a K-12 school and then a university. In due time, they also created a quasi-franchise to sell services to private and public schools – akin to that of Pitágoras. The ensemble of 

FASEH medical school: from near bankruptcy to victory

A highly respected ophthalmologist from Belo Horizonte purchased a proprietary medical school in a town nearby. It was then on the brink of being closed by the Ministry of Education. Considering that such schools are highly profitable, it takes tremendous incompetence to go bankrupt.

It is very difficult to obtain the authorization to open medical schools – this is why they are so profitable. Given that, locating it in an underserved location facilitates the approval. These rules are a mix of

A final balance sheet

Best of all, my career is not over yet. I still have plenty of energy for a wide range of activities. My professional life continues, a bit less strenuous than before. Fortunately, I am working on some interesting projects.

Conceiving a project, developing the details, and planning implementation, in themselves, are very exciting activities. Even if the initiative comes to nothing, the road offers plenty of rewards. Therefore, in tallying failures and successes, from the point of view of my...

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Simon Schwatsman: 

A pedido da International Review of Educational Development, escrevi um pequeno ensaio refletindo sobre minha experiência de participação em estudos e elaboração de propostas de políticas públicas nas áreas de ciência, tecnologia e educação. Como é para um público internacional, achei que deveria também descrever o contexto destas experiências, desde meus tempos de faculdade em Minas Gerais na década de 60. O artigo se chama “Lighting a candle” – acendendo uma vela – e o texto, em inglês,  está disponível aqui.

está disponível aqui

Eu concluo dizendo que não tenho certeza de ter tido sempre razão nas políticas que propus e nas ideias que defendi ao longo destes anos. O certo é que minhas proposições quase sempre ficavam em minoria. Minha explicação é que a escolha e implementação de políticas públicas é determinada sobretudo por uma combinação de inércia e preservação de interesses estabelecidos, e não pelo mérito das propostas, força dos argumentos ou qualidade das evidências. Pelas decisões feitas e não feitas, o Brasil tem um sistema educativo caro, inchado, ineficiente e muito resistente a buscar alternativas que poderiam levar a bons resultados se fossem postas em prática. Tomara que as coisas melhorem no futuro, o que compensaria ter passado tantos anos segurando uma vela acesa e algumas vezes queimando meus dedos.


domingo, 26 de novembro de 2023

Alberto da Costa e Silva: um gigante da cultura e da historiografia africanista brasileira: homenagem


Faleceu Alberto da Costa e Silva, um grande intelectual, um grande embaixador, que tive o prazer de ter em minha banca de tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, depois publicada como Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império, cujo prefácio foi assinado por ele. Isso foi antes que ele organizasse o fabuloso livro, para o qual tentei fazer uma segunda edição, como registro nesta ficha: 

3260. “O Itamaraty na Cultura Brasileira: projeto de nova edição, ampliada”, Brasília, 7 abril 2018. Proposta de terceira edição da obra, com adição de novos nomes; nota enviada aos responsáveis pela primeira edição e aos novos colaboradores; redação de carta aos antigos colaboradores; encaminhada ao embaixador Alberto da Costa e Silva. Obra original colocada à disposição neste link da plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/46849306/O_Itamaraty_na_Cultura_Brasileira_2001_).


O sumário da obra vai reproduzido abaixo: 


O Itamaraty na Cultura Brasileira - Celso Lafer, p. 15

Diplomacia e Cultura - Alberto da Costa e Silva, p. 26

Varnhagen, História e Diplomacia - Arno Wehling, p. 40

Ritmos de Uma Vida: Brazílio Itiberê da Cunha Músico e Diplomata - Celso de Tarso Pereira, p. 58

Joaquim Nabuco - Evaldo Cabral de Mello, p. 88

Pai e Filho - Sérgio Martagão Gesteira, p. 106

Aluízio Azevedo: A Literatura como Destino-  Massaud Moisés, p. 136

Domício da Gama - Alberto Venancio Filho, p. 158

Oliveira Lima e Nossa Formação - Carlos Guilherme Mota, p. 180

Gilberto Amado Além do Brilho - André Seffrin, p. 198

A Vida Breve de Ronald de Carvalho - Alexei Bueno, p. 214

Ribeiro Couto, o Poeta do Exílio - Afonso Arinos, filho, p.  232

Viagem a Beira de Bopp - Antonio Carlos Secchin, p. 252

Guimarães Rosa, Viajante - Felipe Fortuna, p. 270

Antônio Houaiss, A Cultura Brasileira e a Língua Portuguesa - Leodegário A. de Azevedo Filho, p. 288

Vinícius de Moraes O Poeta da Proximidade - Miguel Sanches Neto, p. 302

Poeta e Diplomata, na Música Popular - Ricardo Cravo Albin, p. 316

João Cabral, Um Mestre sem Herdeiros - Ivan Junqueira, p. 336

O Fenômeno Merquior - José Mario Pereira, p. 360

Os Autores, p. 380


Sua introdução, Diplomacia e cultura, é primorosa, e tomei agora o cuidado de colocá-la à disposição dos interessados neste link abaixo, embora já esteja incluída na obra completa, linkada acima: 


https://www.academia.edu/109893965/Diplomacia_e_Cultura_Alberto_da_Costa_e_Silva_2001_


Minhas homenagens a ele e a toda a sua família. Meu preito de gratidão por todo o trabalho intelectual que ele conduziu paralelamente a uma carreira brilhante.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 26 de novembro de 2023

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Diferenças entre a ‘velha’ e a ‘nova’ diplomacia de Lula - Paulo Roberto de Almeida (revista Crusoé)

 O mais recente trabalho publicado: 

4511. “Diferenças entre a ‘velha’ e a ‘nova’ diplomacia de Lula”, Brasília, 16 novembro 2023, 3 p. Artigo para a revista Crusoé; publicado em 24/11/2023 (link: https://crusoe.com.br/edicoes/291/diferencas-entre-a-velha-e-a-nova-diplomacia-de-lula/). Relação de Publicados n. 1533.


Diferenças entre a ‘velha’ e a ‘nova’ diplomacia de Lula

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

revista Crusoé (24/11/2023 (link: https://crusoe.com.br/edicoes/291/diferencas-entre-a-velha-e-a-nova-diplomacia-de-lula/).

  

Países evoluem, geralmente no caminho do desenvolvimento econômico e social, da democracia representativa e das liberdades individuais. Nem todos eles: alguns conhecem ditaduras e mesmo totalitarismo, como a Alemanha de Weimar, nos anos 1930-40, enquanto outros passam por involução econômica e retrocessos sociais, e temos exemplos disso aqui mesmo, bem pertinho. As pessoas geralmente também vão mudando ao longo dos anos, do voluntarismo e do radicalismo juvenil para posturas mais sensatas, talvez conservadoras, com a idade madura, a família, filhos e netos, a percepção da complexidade social, enfim.

Espera-se que essa seja, por exemplo, a típica transição dos políticos profissionais, desde as posições extremadas do começo de carreira para uma convergência com posturas mais conciliadoras com outras forças e movimentos partidários. Nem sempre, todavia, é assim. Alguns acentuam velhos hábitos, outros aprofundam comportamentos sectários e certo radicalismo tardio, muitas vezes anacrônico. Isso parece ter ocorrido com Lula, a despeito de uma notável continuidade nas características básicas: o populismo, a modulação do discurso para cada plateia, as alianças preferenciais dentro do mesmo, velho, espectro partidário. Tais características são especialmente válidas no campo da diplomacia e da política externa. 

Cabe aqui uma constatação inicial, visível desde o início do seu terceiro mandato: a diplomacia basicamente pessoal de Lula vem convertendo-se no principal problema para a diplomacia profissional do Itamaraty, que se esforça para manter um razoável equilíbrio nas relações com os principais parceiros externos. O personalismo do chefe da diplomacia tendeu a se reforçar no período recente, comparativamente aos dois primeiros mandatos. Na verdade, a diplomacia lulopetista foi exacerbadamente pessoal, em todos eles, mas ela acentuou o personalismo desde a campanha presidencial de 2022, levando ao exagero a própria noção de diplomacia presidencial. Vamos às evidências da mudança.

(...)

Lula carece de preparação adequada para manejar a complexidade de uma diplomacia atuando em múltiplas frentes como é a do Brasil. Entre intromissões indevidas e omissões não justificadas, ele está destruindo sua reputação de estadista, assim como a credibilidade conquistada pela diplomacia ao longo de muitas décadas de construção de uma autonomia reconhecida por todos. A bizarra expansão do Brics conduzida por duas grandes autocracias e endossadas pela diplomacia personalíssima de Lula ameaça fissurar o edifício desenhado por Rio Branco e Rui Barbosa, defendido em anos sombrios pela coragem de um Oswaldo Aranha e confirmado no plano dos conceitos jurídicos por um intelectual da estatura de San Tiago Dantas. Lula 3 escolheu uma trajetória política que afasta a diplomacia nacional das concepções centrais dos grandes nomes de sua política externa. Até quando?

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4511, 16 novembro 2023, 3 p.

 

Ler a íntegra no site da revista Crusoé (24/11/2023

link: https://crusoe.com.br/edicoes/291/diferencas-entre-a-velha-e-a-nova-diplomacia-de-lula/

Guerra Israel e Hamas tem bem mais de dois lados Thomas Friedman (OESP)

 Guerra Israel e Hamas tem bem mais de dois lados 

Thomas Friedman 

O Estado de S. Paulo, 24/11/2023

Relações de palestinos e israelenses é complexa e vai além de extremismos de ambos os lados; veja histórias de coexistência após o 7 de outubro 


 THE NEW YORK TIMES – Confesso que, enquanto observador de longa data do conflito árabe-israelense, eu evito agressivamente tanto os ativistas “Do rio até o mar” da esquerda pró-palestinos quanto os similarmente fanáticos partidários da extrema direita sionista que defendem a “Grande Israel” — e não apenas porque considero abomináveis suas visões exclusivistas para o futuro, mas também porque o repórter dentro de mim percebe sua cegueira para as complexidades do presente. Eles não pensam na mãe judia que me contou em Jerusalém de um único fôlego que havia acabado de conseguir uma licença para portar armas de fogo para proteger seus filhos do Hamas; e então como ela confiava no professor palestino-árabe de seus filhos, que levou as crianças para o abrigo antibombas da escola durante um ataque aéreo recente do Hamas.

 Eles não pensam em Alaa Amara, o comerciante árabe-israelense de Taibe que doou 50 bicicletas de sua loja para crianças judias que sobreviveram ao ataque do Hamas contra suas comunidades fronteiriças, em 7 de outubro, teve seu comércio incendiado dias depois aparentemente por jovens árabes-israelenses nacionalistas linha-dura e viu uma campanha de crowdfunding organizada em hebraico e inglês levantar mais de US$ 200 mil para ajudá-lo a reconstruir aquela mesma loja dias depois. Ao longo dos últimos 50 anos, eu vi palestinos e israelenses fazerem coisas terríveis uns aos outros. Mas este episódio que começou com o ataque selvagem do Hamas contra israelenses, incluindo mulheres, crianças pequenas e soldados, em comunidades na região vizinha à fronteira de Gaza e a retaliação israelense contra os combatentes do Hamas com base em Gaza que também matou, feriu e deslocou tantos milhares de civis palestinos — de recém-nascidos a idosos — é certamente o pior desde os tempos do Plano de Partilha da Palestina proposto pela ONU em 1947. Mas defensores de todos os lados que leem esta coluna sabem que eu não estou aqui para anotar o placar. Meu foco sempre foi encontrar uma saída para que esse show de horror olho por olho, dente por dente acabe antes que todos fiquem cegos e desdentados. 

 Com esse objetivo, eu gastei bastante tempo da minha viagem an Israel e Cisjordânia este mês observando e investigando as verdadeiras interações cotidianas entre árabes e judeus israelenses. Essas experiências são sempre complexas, certas vezes surpreendentes, ocasionalmente deprimentes e, com mais frequência do que alguém possa pensar, inspiradoras. Porque revelam sementes de coexistência espalhadas por todo lado e suficientes para que ainda possamos sonhar o sonho impossível: que algum dia possa haver uma solução de dois Estados para os israelenses e os palestinos que vivem entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão. 

 Portanto, nesta semana da Ação de Graças, eu lhes peço para reservar alguns instantes aqui comigo, para refletirmos sobre essas pessoas e alguns atos extraordinários de resgate que elas praticaram em 7 de outubro — que lhes darão mais fé na humanidade que as manchetes em torno desta história jamais sugeririam. Para colocar de outra maneira, um amigo certa vez descreveu minha visão de mundo como um cruzamento entre Thomas Hobbes e Walter Mondale. Por vários dias durante a minha viagem, eu permiti ao Mondale dentro de mim perseguir lampejos de esperança irradiando na escuridão. Esse processo começou assim que cheguei em Tel-Aviv, quando me sentei para conversar com Mansour Abbas, provavelmente o líder político israelense mais corajoso da atualidade. Abbas é um árabe-palestino e cidadão de Israel que calha de ser muçulmano e membro do Parlamento israelense, onde ele lidera o importante partido Lista Árabe Unida. 

A voz de Abbas é ainda mais vital neste momento porque ele não respondeu ao terrorismo do Hamas com silêncio. Abbas entende que, mesmo que seja correto ultrajar-se com a dor que Israel inflige nos civis de Gaza, reservar toda a nossa indignação para a dor de Gaza cria suspeições entre judeus de Israel e de todo o mundo, que notam quando nenhuma palavra é pronunciada a respeito das atrocidades do Hamas que desencadearam esta guerra. A primeira coisa que Abbas me disse a respeito do massacre do Hamas foi: “Ninguém pode aceitar o que aconteceu naquele dia. E nós não podemos condenar este ato e dizer ‘mas’ — esta palavra, ‘mas’, tornou-se imoral.” (Pesquisas recentes mostram uma condenação esmagadora da comunidade árabe-israelense ao ataque do Hamas.) 

 Abbas percebe as complexidades experimentadas por aquela mãe judia de Jerusalém que nunca perdeu a confiança no professor árabe-israelense de seus filhos e aquele dono de loja de bicicletas que imediatamente estendeu a mão para aliviar a dor de crianças judias que não conhecia. Ao mesmo tempo, contudo, Abbas falou a respeito da dor excruciante que árabes-palestinos e beduínos israelenses sentem ao ver parentes seus castigados e mortos em Gaza. “Uma das coisas mais difíceis hoje é ser árabe-israelense”, disse-me Abbas. “O árabe-israelense sente a dor duas vezes — uma como árabe, outra como israelense.” Há uma peculiaridade nessa vizinhança: se a gente olha somente para um ou outro grupo através de um microscópio, dá vontade de chorar — o massacre brutal de judeus, a maneira terrível que os colonos supremacistas judeus tratam os palestinos; a lista é infinita. Mas se olhamos para essas histórias através de um caleidoscópio, observando a complexidade de suas interações, é possível ver a esperança. 

Se você quiser noticiar de maneira correta a realidade de israelenses e palestinos, sempre leve um caleidoscópio no bolso. O que me traz às histórias dos árabes beduínos israelenses e o 7 de Outubro. Cerca de uma semana após o início da minha viagem, eu recebi um telefonema do meu amigo Avrum Burg, ex-presidente da Knesset israelense, cujo avô era rabino-chefe de Hebron em 1929. Ele me contou que seu amigo Talab el-Sana — um árabe beduíno israelense que serviu com ele na Knesset e deu o voto de Minerva que formou a maioria que permitiu a Yitzhak Rabin fazer o acordo de paz de Oslo — queria me levar para conhecer alguns “beduínos virtuosos”; cidadãos de Israel de língua árabe, muçulmanos, mas fluentes em hebraico, que tinham desempenhado papéis heróicos salvando judeus do ataque do Hamas. Se você quiser noticiar de maneira correta a realidade de israelenses e palestinos, sempre leve um caleidoscópio no bolso.

Os beduínos israelenses são uma comunidade nômade que reside principalmente no Deserto do Negev e formam parte da minoria árabe-israelense — 21% da população do país — que se espalham por cidades e vilarejos de Israel. Atualmente aproximadamente 320 mil beduínos vivem em Israel, cerca de 200 mil em comunidades reorganizadas pelo governo e outros 120 mil em favelas improvisadas e não reconhecidas. Muitos beduínos serviram ao Exército israelense, com frequência como rastreadores, em razão de seu profundo conhecimento da geografia decorrente de gerações vagueando pelo deserto. Bem, acontece que alguns beduínos israelenses que viviam próximo da fronteira ou trabalhavam em comunidades da região atacada pelo Hamas ajudaram a resgatar judeus; alguns beduínos foram sequestrados pelo Hamas junto com judeus e outros foram assassinados pelo Hamas porque o grupo terrorista optou por tratar todos que vivessem ou trabalhassem nos kibutzim israelenses e falassem hebraico como “judeus” — merecendo ser mortos.

 E depois de 7 de outubro, alguns desses beduínos que salvaram judeus israelenses passaram a notar olhares hostis e insultos em voz baixa de judeus israelenses assumindo automaticamente que eles seriam simpatizantes do Hamas. E todo esse tempo vítimas judias e beduínas do Hamas foram tratadas juntas em hospitais israelenses, onde quase a metade dos novos médicos é hoje árabe-israelense ou drusa, assim como 24% dos enfermeiros e aproximadamente 50% dos farmacêuticos. Sim, um árabe beduíno israelense pode salvar um judeu israelense na fronteira de Gaza de manhã, ser discriminado por judeus nas ruas de Beersheba de tarde e gabar-se por sua filha — médica formada numa faculdade israelense — ter passado a noite em claro cuidando de pacientes judeus e árabes no Hospital Hadassah. É complicado. 

 Conserto de abrigos El-Sana e Burg levaram-me a dois vilarejos beduínos para me apresentar rapazes que tinham salvado judeus. Acompanhou-nos o urbanista israelense Ran Wolf, especialista na construção de espaços compartilhados — centros de inovação, centros culturais e mercados — para uso de judeus e árabes palestinos israelenses. Nós paramos na residência de Wolf em Tel-Aviv, no caminho, para pegar umas garrafas de água, onde ele me contou a seguinte história: Após os foguetes do Hamas começarem a cair em Tel-Aviv em 7 de outubro, Wolf telefonou para o empreiteiro com que trabalha regularmente, Emad, um árabe-israelense de Jaffa, para lhe dizer que a porta do abrigo antibombas no porão de sua casa não fechava. 

“Esse problema estava acontecendo em muitos abrigos, e depois de 7 de outubro todos quiseram consertar”, afirmou Wolf. E quando perceberam que um pedreiro estava na vizinhança, seus vizinhos também lhe pediram para consertar suas portas. Emad é um bom amigo e se recusou a aceitar qualquer dinheiro por dois dias de trabalho”, afirmou Wolf. Tenha em mente, acrescentou ele, que Emad vive em Jaffa, ao sul de Tel-Aviv. Na guerra de 1948, o pai de Emad ficou em Jaffa e seu tio fugiu para Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza. “Então ele foi criado em Israel, mas metade da sua família vive hoje em Gaza”, afirmou Wolf. “E viu um míssil do Hamas cair a 200 metros da sua casa em Jaffa outro dia”, acrescentou. 

 Usem o caleidoscópio: hoje, refugiados palestinos de Jaffa que vivem sob o governo do Hamas em Gaza disparam foguetes contra palestinos de Jaffa que são cidadãos israelenses; e um deles consertou os abrigos antifoguetes de seus amigos em Tel-Aviv — de graça. Quando nós chegamos a Rahat, a maior cidade beduína em Israel, no Deserto do Negev, El-Sana, sentado no banco de trás do carro, conseguiu contar uma história ainda mais marcante. El-Sana contou que algumas das primeiras vítimas israelenses dos ataques de foguete do Hamas em 7 de outubro foram beduínos, muitos deles moradores de povoados não reconhecidos no Negev que não aparecem em mapas digitais. (O governo israelense não acompanhou seu crescimento populacional da mesma forma que na maioria das cidades judaicas.) 

 Essas localidades não têm abrigos antibombas públicos nem sirenes de alerta para proteger seus moradores quando os foguetes do Hamas começam a cair, mas — e é impossível inventar isso — El-Sana explicou que, quando o Hamas lança um foguete, o sistema antimísseis israelense Domo de Ferro traça imediatamente sua trajetória para determinar se o projétil de Gaza aterrissará num espaço povoado em Israel e matará pessoas ou em um lugar vazio ou no mar. Se o foguete rumar para algum ponto despovoado ou para o mar, o Domo de Ferro não desperdiça seus foguetes caros para interceptar projéteis baratos do Hamas. Seis beduínos foram mortos por um foguete do Hamas que caiu no vilarejo de Al Bat — entre eles, dois irmãos, de 11 e 12 anos — porque o povoado beduíno não figura em nenhum mapa oficial de Israel presente na base de dados do Domo de Ferro, explicou El-Sana. 

 Enquanto isso, outros oito beduínos que trabalhavam em comunidades judaicas próximas a Gaza foram assassinados pelo Hamas e pelo menos sete beduínos, todos cidadãos israelenses, foram, acredita-se, sequestrados e levados para Gaza. E dias depois alguns desses mesmos beduínos não hesitaram em ajudar a resgatar judeus israelenses juntamente com seus primos. Resgate de judeus El-Sana tinha me marcado uma entrevista no vilarejo de Al Zayada, um assentamento beduíno não reconhecido no Deserto do Negev, no lar não reconhecido de Youssef Ziadna, de 47 anos, um motorista de ônibus beduíno reconhecido por resgatar judeus em 7 de outubro.

 Ziadna contou que na sexta-feira, 6 de outubro, foi contratado para levar um grupo de jovens judeus para o festival ao ar livre de música trance Supernova Sukkot Gathering, em celebração ao feriado de Sucot, adjacente ao Kibutz Re’im, que é adjacente à fronteira com Gaza. “Quando os deixei, nós combinamos que eu voltaria no sábado às 18h para pegá-los”, disse-me Ziadna. Mas no início da manhã do sábado, “eu recebi um telefonema de um deles, Amit”, que lhe pedia para ir buscá-los imediatamente, afirmou. “Eles estavam sendo atacados, ouvia-se tiros por todo lado.” Ziadna disse que rumou imediatamente para a cena e, conforme se aproximou, viu “uma barragem de foguetes e muitos carros na direção contrária — escapando — piscando os faróis para que eu fizesse a volta. Algumas pessoas que tinham parado e saído do carro disseram que havia terroristas em Be’eri, então ‘vá embora daqui’. Eu saí do meu carro e me escondi na beira da estrada. 

Toda vez que eu levantava a cabeça atiravam em mim. Mas eu tinha prometido buscar essas pessoas, e estava a um quilômetro de distância”. Ziadna afirmou que quando o ritmo dos disparos diminuiu um pouco, ele conseguiu voltar para seu miniônibus e usar o celular para se encontrar Amit e seus amigos — e qualquer outra pessoa que ele pudesse resgatar. Em vez de voltar pela estrada, onde “eu sabia que eles nos matariam”, afirmou Ziadna, “eu fui pelos campos”. Como beduíno, Ziadna conhece intimamente o terreno que acabou salvando a todos.

 Ele conseguiu encontrar um atalho em meio aos campos e evitou a estrada principal, onde os terroristas do Hamas emboscavam quem fugia do festival musical. Muitos outros carros em fuga também deixaram a estrada principal e seguiram o miniônibus de Ziadna pelos campos, afirmou ele. O motorista contou para o Times of Israel, que publicou seu perfil, que levou cerca de 30 pessoas em seu veículo, cuja lotação máxima é de 14 passageiros. Ziadna disse que, alguns dias depois, recebeu um telefonema de um número que não reconheceu, mas que acreditou ser de Gaza, e uma voz lhe disse em árabe: “Você é Youssef Ziadna? Você salvou vidas de judeus? Nós vamos matar você”. Ele relatou a ligação para a polícia israelense. 

Esta é apenas uma das razões, afirmou o motorista, para ele ainda precisar de telefonemas diários com um psicólogo para tentar superar o trauma de 7 de outubro. Outro familiar em nosso encontro, Daham Ziadna, de 35 anos, afirmou que teve quatro parentes sequestrados pelo Hamas; um certamente foi morto e outros três ainda estão desaparecidos. Dois foram vistos pela última vez deitados no chão, num vídeo publicado pelo Hamas no TikTok, com dois combatentes armados ao lado. Para o Hamas, disse Daham, “todos que vivem em Israel são judeus”. Daham disse-me que alguns dias antes tinha ido ao banco sacar dinheiro no caixa eletrônico e cruzou dois judeus israelenses na calçada. “Um tinha sotaque russo. 

Quando eles se aproximaram, o russo falou, ‘Eis aqui outro árabe’. Eu lhe disse: ‘Esses “árabes” de que você fala estavam na fronteira de Gaza em 7 de outubro lutando pelo o Estado israelense — defendendo judeus e árabes. E são pessoas como você que destroem o país, destilando veneno’.” Árabes-israelenses vivem um cotidiano difícil, acrescentou ele: “Muitos judeus olham para nós como se todos fôssemos do Hamas, e quem apoia o Hamas olha para nós como se fôssemos judeus”. A alguns quilômetros de lá, em Rahat, El-Sana me apresentou para a família Al-Qrinawi, cujos integrantes tinham sua própria história marcante para contar. O porta-voz da família, Ismail, relatou-me o drama sentado com seus primos diante de um prato gigante de arroz, frango e grão de bico. Na manhã de 7 de outubro, conforme a notícia do ataque do Hamas se espalhou, eles souberam pelo grupo de WhatsApp da família que três primos que trabalhavam no refeitório do Kibutz Be’eri tinham sido sequestrados. 

Por volta das 10h, um familiar recebeu uma ligação de um número desconhecido, do telefone de uma mulher israelense chamada Aya Medan. Ela tinha encontrado um de seus primos desaparecidos, Hisham, e ambos estavam se escondendo juntos dos terroristas do Hamas no mesmo campo desértico próximo a Be’eri. Hisham usou o celular dela para pedir ajudar ao seu clã beduíno. Os outros dois primos tinham fugido em outra direção. Seu tio, o patriarca do clã, ordenou que quatro sobrinhos fossem resgatar os parentes no Land Cruiser da família, já que normalmente leva 30 minutos para chegar à região onde eles estavam — mas não naquele dia. 

Eles pegaram duas pistolas e saíram a toda. Quando nos aproximamos, descobrimos que todas as estradas estavam fechadas”, disse-me Ismail. “Então nós fomos pelos campos e atravessamos um vale profundo para conseguir desviar. Nosso carro quase virou.” Primeiro, “encontramos pessoas fugindo da festa”, afirmou ele. “Nós emprestamos nossos telefones para elas ligarem para os pais e garantimos que entrassem em outros carros, conduzidos por israelenses. Nós conseguimos resgatar 30 ou 40 pessoas da festa. Mas eu fiquei o tempo todo conversando com Aya, tentando localizar onde ela se escondia com Hisham”. 

 Estava demorando demais. Depois de duas horas e meia desviando de tiros e foguetes do Hamas, afirmou Ismail, eles conseguiram encontrar Aya e Hisham escondidos atrás de arbustos, bem próximo do Kibutz Be’eri. Eles tinham mandado uma foto de celular da área em que estavam se escondendo para facilitar sua localização. Minutos depois, relatou Aya ao Times of Israel, Hisham a tocou e disse, “Aya, eles estão aqui, eles estão aqui sim”. Os primos abriram as portas do carro, Aya e Hisham entraram, e o clã beduíno valeu-se novamente de suas habilidades off-road para levá-los à segurança. Ou quase. 

 O momento mais assustador do dia, disse-me Ismail, ocorreu quando eles voltaram para a estrada principal. Eles foram parados em um posto de controle improvisado pelo Exército israelense, por soldados assustados, incapazes de distinguir à distância entre amigo e algoz. “Os soldados israelenses cercaram nosso carro, todos apontando armas contra nós. Eu gritei: ‘Nós somos cidadãos de Israel! Não atirem!’.” Aya disse ao Times of Israel que um soldado israelense lhe perguntou se ela estava sendo sequestrada. “Não, eu sou de Be’eri, e eles vieram de Rahat nos resgatar”, disse ela. 

 Beduínos salvando judeus israelenses do Hamas sendo salvos por uma mulher judia de serem baleados pelo Exército israelense depois de resgatá-la… caleidoscópico. Enquanto eu entrevistava o clã Al-Qrinawi, a família me apresentou Shir Nosatzki, uma das cofundadoras do grupo israelense Você Tem Olhado para o Horizonte Ultimamente?, que promove parcerias entre judeus e árabes. Imediatamente após saber de seu resgate, seu marido, Regev Contes, gravou um vídeo de 7 minutos em hebraico para contar a história da equipe beduína de resgate para os israelenses. Segundo o relado, o vídeo teve centenas de milhares de visualizações em Israel. Eu perguntei a Nosatzki por que eles gravaram o vídeo.

 “Para mostrar que o 7 de Outubro não foi uma guerra entre judeus e árabes, mas entre a luz e a escuridão”, afirmou ela. Antes de voltarmos para Tel-Aviv, El-Sana insistiu que fôssemos ao seu restaurante de kebab favorito em Rahat. Sentados à mesa: um beduíno israelense que tinha servido na Knesset, o neto do ex-rabino-chefe de Hebron e um colunista judeu do New York Times, de Minnesota, que trabalhou como correspondente em Beirute e Jerusalém nos anos 70 e 80 — compartilhando reflexões em uma mistura maluca de hebraico, árabe e inglês. Entre os espetinhos de cordeiro e os pratos de hummus, nós chegamos à mesma conclusão: mesmo neste momento sombrio, nós tínhamos acabado de testemunhar algo enormemente importante — “sementes de coexistência na morte e na vida”, conforme colocou Burg, sementes que o Hamas se dedica a destruir. Essas sementes, acrescentou El-Sana, “deveriam nos dar esperança de que conseguiremos construir um futuro em comum com base em valores comuns que atravessam as fronteiras da etnicidade entre judeus e árabes”. Eles estão certos. 

Essas sementes, por menores que possam ser, nunca foram mais importantes do que neste momento. Por quê? Porque esta guerra Israel-Hamas, acabe quando acabar, já foi tão traumática para todos que desencadeará o maior debate desde o plano de partilha da ONU, de 1947, a respeito da forma que as relações e as fronteiras entre israelenses e palestinos devem se constituir. Eu tenho certeza disso — porque menos que isso significará guerra permanente. Eu já posso lhes dizer que haverá muitas vozes destrutivas nessa discussão: apologistas do Hamas, palestinos e árabes, que têm negado ou minimizado as atrocidades do grupo; colonos judeus supremacistas, ávidos para expandir sua presença não apenas na Cisjordânia, mas também, loucamente, até Gaza, e que não mostram nenhuma preocupação com o sofrimento devastador dos civis palestinos mortos na retaliação israelense; Binyamin Netanyahu, que sacrificará o futuro de Israel para permanecer no cargo e ficar fora da cadeia; e os idiotas úteis do Hamas no Ocidente, principalmente nas universidades, onde estudantes denunciam Israel e todo seu território como um empreendimento colonial enquanto entoam, “Do rio até o mar, a Palestina será livre”.

 (Poupem-me da explicação segundo a qual esta frase seria um apelo à coexistência: eu estava em Beirute nos anos 70 quando ela se tornou popular e posso lhes assegurar que não se tratava de um chamado por dois Estados para dois povos. E se você tem um mantra que requer 15 minutos de explicação, você precisa de outro mantra.) Com todas essas equipes de demolição esperando para trabalhar, nós precisaremos mais que nunca elevar as vozes autênticas da coexistência — líderes com a integridade desses beduínos israelenses prontos para fazer e dizer o que é certo não apenas quando a coisa não está fácil, mas também diante do perigo. O que me traz de volta à Lista Árabe Unida, de Mansour Abbas. 

 Vozes de coexistência Seu partido, falando amplamente, vem do mesmo braço da Irmandade Muçulmana na política palestina que o Hamas — mas em vez da violência e exclusão pregadas pelo Hamas, Abbas defende não violência e inclusão. Abbas foi um intermediador de poder importante para ajudar o ex-primeiro-ministro Naftali Bennett e o ex-ministro das Relações Exteriores Yair Lapid a forjar o governo israelense de unidade nacional em 2021. Netanyahu, sempre desagregador, derrubou aquele governo em parte com retóricas antiárabes e anti-islâmicas direcionadas a Abbas. Abbas entende que coexistir significa dizer o que é certo — não apenas quando é difícil politicamente, mas também quando é perigoso. Depois de ver os vídeos do ataque do Hamas, na Knesset, ele declarou à emissora de rádio árabe Al-Nas: “Eu vi um pai com dois filhos entrar no abrigo antibombas ao lado de sua casa, e jogaram uma granada dentro. 

O pai saltou sobre a granada e foi morto, e as duas crianças se feriram, mas sobreviveram. O massacre contraria tudo que acreditamos, nossa religião, nosso Islã, nossa nacionalidade, nossa humanidade”. As ações do Hamas “não representam nossa sociedade árabe, nem nosso povo palestino, nem nossa nação palestina”. Durante nossa entrevista, Abbas disse-me que nós precisamos de “uma nova retórica política” e não podemos ser atraídos para as jogadas do passado. “Essa narrativa ‘do rio ao mar’ não ajuda”, afirmou ele. “Isso é um erro. Se querem ajudar os palestinos, discutam uma solução de dois Estados e paz e segurança para todas as pessoas.” É por este motivo, acrescentou Abbas, que “eu estou trabalhando em um plano que começa com o fim da guerra atual e termina com a criação de um Estado palestino contíguo an Israel”. Abbas conhece bem as dificuldades do caminho adiante. Eu também não tenho ilusões. 

E concluo minha recente jornada com duas lições. A primeira é que esta guerra em Gaza está longe de terminar. Israel acredita que não haverá paz em Gaza enquanto o Hamas estiver no poder por lá. Mas a segunda é que, da mesma forma que a Guerra do Yom Kippur produziu o alvorecer do tratado de Camp David e da mesma forma que a desumanidade da Primeira Intifada e da reação israelense levou aos Acordos de Oslo, dos horrores do 7 de Outubro algum dia surgirá outra tentativa de construir dois Estados para estes dois povos autóctones. De outra forma, esse canto do mundo se tornará inabitável para qualquer pessoa em sã consciência. Hoje há gente demais com armas poderosas demais. E quando esse dia chegar, será necessário um construtor de pontes como Mansour Abbas — que entende a verdadeira natureza caleidoscópica dessa terra e a conexão autêntica de ambas as comunidades a ela — para germinar as sementes da coexistência que ainda estão por lá, apesar de enterradas mais profundamente que jamais estiveram. Abbas, Youssef Ziadna, a família Al-Qrinawi, Aya Medan, meus amigos Avrum, Talab e Wolf serão os resgatistas. 

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO