O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O Estado, sempre arrogante, zomba dos cidadãos ao esconder horrendo patrimonialismo - Malu Gaspar (O Globo)

A aristocracia do serviço público, nos três poderes e nas suas agências, continua a tripudiar com odinheiro extorquido da cidadania. PRA

Transparência nos olhos dos outros

Malu Gaspar

O Globo (22/08/2024)

Fazia tempo que não se falava tanto de transparência em Brasília como nos últimos dias, durante a queda de braço em torno das emendas Pix, que por pouco não desandou em conflito aberto entre Congresso, Supremo Tribunal Federal (STF) e Executivo.

Para quem ainda não se familiarizou com o tema, trata-se de uma fatia de pouco mais de R$ 8 bilhões do Orçamento que os parlamentares enviam direto para as contas de estados e municípios de forma automática, sem ter de dizer como o dinheiro é gasto nem antes nem depois de sua aplicação.

Na decisão que suspendeu a liberação dos recursos, o ministro do Supremo Flávio Dino foi claríssimo ao dizer que as emendas Pix ferem a Constituição por não obedecerem a critérios de eficiência, transparência e rastreabilidade.

Lógico que, na origem dessa discussão, está o Executivo tentando retomar o controle do Orçamento, de que o Parlamento capturou um naco na gestão Jair Bolsonaro. Ainda assim, em meio à troca de farpas entre os Poderes, o único princípio que ninguém contestou foi a transparência.

De Arthur Lira (PP-AL) a Rodrigo Pacheco (PSD-MG), passando pelos ministros do STF e pelos de Lula, todos se disseram favoráveis a critérios que obriguem os parlamentares a dizer com que e por que o dinheiro será aplicado e a prestar contas depois que ele for gasto.

Foi este o consenso que se produziu na terça-feira, depois de dias de ameaças e indiretas nos bastidores: em dez dias, o Congresso deverá apresentar uma proposta de regulamentação das emendas. Uma ideia é que o dinheiro seja enviado prioritariamente para obras inacabadas.

Parece um final feliz, mas, antes de comemorar, é preciso ver se nos próximos dias não surgirá nenhum duplo twist carpado mudando o rumo da conversa. As emendas Pix já são elas mesmas uma gambiarra para contornar o cerco ao orçamento secreto, e o próprio Flávio Dino afirma em sua decisão que o Poder Executivo tinha o “poder-dever” de barrar o envio de recursos que não seguissem critérios técnicos, o que não aconteceu. Esse é só um exemplo de que é fácil exigir transparência do vizinho, difícil é aplicar no próprio quintal.

O mesmo Supremo que exige (corretamente) do Congresso que exponha ao público como usou as emendas frequentemente se recusa a informar ao público quem paga as viagens de seus ministros para eventos de empresas no exterior e costuma não responder se eles recebem cachê para realizar suas palestras. As agendas dos ministros, que em tese deveriam ser públicas, também nem sempre estão disponíveis no site da instituição.

O presidente Lula se elegeu pregando contra o sigilo de cem anos imposto por Bolsonaro a documentos públicos, mas só no primeiro ano de mandato seu governo negou 1.339 pedidos de informação, praticamente o mesmo número do último ano de Bolsonaro no Planalto.

O levantamento a esse respeito feito em maio mostrou que, no balaio do sigilo secular, estão dados tão diversos como a agenda da primeira-dama Janja, o documento sobre possíveis conflitos de interesse do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e a lista de autoridades que usam os aviões da FAB para seus deslocamentos.

Nesse ponto, o governo contou com a boa vontade do Tribunal de Contas da União (TCU), que autorizou segredo “eterno” para os deslocamentos do presidente da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e ainda dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do procurador-geral da República. O motivo: razões de segurança, mesmo argumento tantas vezes usado por Bolsonaro.

Em termos de transparência, o TCU produziu uma pérola: desde o ano passado, tirou do ar as sessões de julgamento que transmite ao vivo pelo YouTube. Quem quiser conferir o que foi falado numa sessão específica precisa pedir o vídeo via Lei de Acesso à Informação e aguardar até 60 dias.

Questionados por um cidadão inconformado, os ministros decidiram por unanimidade que não são obrigados a deixar o material na rede para todo mundo ver.

Olhando em perspectiva, nem parece que faz tão pouco tempo os órgãos de imprensa tiveram de montar um consórcio para garimpar na marra os dados sobre a quantidade de brasileiros mortos por Covid-19, em resposta a um governo negacionista e antitransparência por princípio.

Felizmente, não é preciso mais brigar por esse tipo de informação. Mas o caso das emendas Pix mostra que ainda falta muito para que se possa dizer que a transparência se tornou um valor universal e incontestável no Brasil. Pelo contrário. Em Brasília, transparência só é um refresco nos olhos dos outros.

A dependência brasileira dos mercados chineses como prenúncio de totalitarismo, na visão da direita burra

 O chanceler acidental da primeira fase do bolsonarismo diplomático se exclama contra s dependência do agronegócio brasileiro das compras chinesas, achando que isso vai levar a nossa política a ser totalmente dominada pelo PCC:

“ A progressiva destruição da democracia no Brasil e a consolidação de uma oligarquia corrupta e autoritária vieram acompanhadas, não por coincidência, pela crescente dependência comercial e econômica brasileira frente à China. A associação preferencial a uma potência totalitária reforça o desenvolvimento de um modelo totalitário no Brasil. O Brasil não voltará a ser um país livre e decente enquanto não for desmantelada a imensa máquina de influência e controle que o Partido Comunista Chinês exerce no Brasil principalmente através de políticos corruptos brasileiros. O excelente e oportuno texto do Instituto Democracia e Liberdade mostra claramente o problema da dependência do agro brasileiro frente à China e a necessidade de desconstruí-la.”

Ernesto Araujo

A Perigosa Dependência do Agronegócio Brasileiro em Relação à China Comunista

https://t.co/nQKj8c6O8j 


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Rubem Valentim: artista afro-brasileiro - Semana do Patrimônio Histórico e Artístico no Itamaraty

Semana do Patrimônio Histórico e Artístico no Itamaraty

Rubem Valentim


(Salvador/BA, 1922 – São Paulo/SP, 1991) 

 

Escultor, pintor e gravador. Nasceu em 1922 em Salvador, numa família de poucos recursos, e foi o primeiro de 6 filhos. Cresceu tendo contato íntimo com a religiosidade sincrética afro-brasileira: sua família era católica, e Rubem Valentim fez primeira comunhão, e também frequentava terreiros de candomblé. Com o pai, participava de cerimônias em diversos terreiros de candomblé, tanto da tradição nagô-jeje quanto candomblés de caboclo: o de Tia Maci, no Engenho Velho, o de Mãe Menininha, no Gantois, o de Júlio Branco, no Bate-Folha, e o da Sabina. O artista relatou seu duplo deslumbramento e seu envolvimento estético tanto com o rito afro-brasileiro quanto com a imaginária católica das igrejas, das quais ele se lembrava especialmente dos santos barrocos. 

Suas primeira experiências artísticas se deram ainda na infância, quando ele fabricava balões e pipas, algumas das quais vendia para obter dinheiro. Também auxiliava a mãe na preparação de presépios de natal e de altares de Santo Antônio, São Cosme e Damião e do Senhor do Bonfim. Foi nessa época que começou a praticar a pintura, compondo os fundos dos presépios. Com um pintor chamado Artur "Come Só", amigo da família que fazia periodicamente a decoração da casa, aprendeu técnicas de pintura e produziu sua primeira têmpera: cola de marceneiro, água de cola e pigmento xadrez. Começou a pintar em papel, de forma mais espontânea, e só tomou contato com uma instrução artística mais formal e acadêmica durante o ginásio, quando começou a frequentar a Escola de Belas Artes. 

Vendeu agulhas e óleo de costura, trabalhou em um cartório e prestou serviço militar durante a II Guerra Mundial, estudando na escola militar. Tomou contato com ideias do marxismo e travou amizade com diversos integrantes do Partido Comunista. Pensando em conciliar a produção artística, à qual começou a se dedicar ainda de forma amadora, com outra profissão, Estudou Odontologia entre 1940 e 1944 (período em que trabalhou na Ordem dos Advogados organizando a biblioteca) e exerceu a profissão por dois anos, com o intuito de subvencionar sua pintura. Chegou a participar de um consultório odontológico, mas optou por abandonar a profissão para se dedicar à arte, mesmo com o desapontamento da família. 

Em 1948, aproximou-se de um grupo de artistas agrupados em torno da revista Caderno da Bahia, incluindo Mário Cravo Jr., Carlos Bastos, Raymundo de Oliveira, Jenner Augusto e Lygia Sampaio, além dos escritores Wilson Rocha, Cláudio Tavares e Vasconcelos Maia. Juntos, deram início a um movimento de renovação modernista nas artes plásticas na Bahia. Foi também nesse ano que teve seu primeiro contato importante com a arte moderna, por ocasião de uma exposição na Biblioteca Pública de Salvador. Passou a praticar a pintura, elaborando composições próprias e realizando cópias de obras europeias - o artista ressaltou como as cópias de Cézanne o ajudaram a compor. 

Matriculou-se em 1949 um curso de Jornalismo na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal da Bahia. Não visava a seguir carreira jornalística, mas procurava uma formação humanista mais abrangente. Formou-se em 1953. Começou a realizar experimentações com o abstracionismo, no que foi criticado por alguns amigos ligados ao Partido Comunista na Bahia, que afirmavam que o abstracionismo seria um estilo "burguês" e "decadente". O artista contou ter passado ao abstracionismo a partir de exercícios de desenho sobre veios da madeira. Em 1949, participou de sua primeira exposição no I Salão Baiano de Belas Artes, inclusive com uma tela abstracionista que foi selecionada por um membro do júri. Chegou a destruir completamente o ateliê em 1951, mas logo voltou a pintar. 

Juntamente com os demais artistas do grupo em torno do Caderno da Bahia, começou a questionar a tradição brasileira de copiar os modelos e estilos europeus, e então passou a extrair da cultura popular e do candomblé um fundamento para uma linguagem artística nacional. Começou a incorporar os signos do candomblé em sua pintura por volta de 1953/1954. Seu primeiro prêmio foi obtido no VII Salão Baiano de Belas Artes. A transferência para o Rio de Janeiro, em 1957, consolidou o amadurecimento de sua obra. Sua obra abstrata e geométrica e seus escritos sobre arte no jornal não tinham muita aceitação na Bahia, sendo condenados pelos marxistas baianos. Porém, foi bem recebida no Rio de Janeiro, pelo crítico marxista Mário Pedrosa e por outros. 

Casou-se em 1961 com Lúcia Alencastro, artista plástica pioneira em arte-ecudação e fundadora da Escolinha de Arte do Brasil. Em 1962, recebeu dois importantes prêmios: o prêmio de Melhor Exposição do Ano da Associação Brasileira de Críticos de Arte, e o prêmio de Viagem ao Exterior do XI Salão de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Viajou à Europa no ano seguinte e, antes de se fixar em Roma, viveu em Bristol (Inglaterra) acompanhando a mulher, bolsista da Bath Academy of Art de Londres. Viajou ainda pela França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Áustria, Espanha e Portugal antes de se fixar em Roma, onde participou das bienais de Veneza entre 1964 e 1966. Em visitas aos museus europeus, interessou-se especialmente pela arte africana, e participou em 1966 do I Festival Mundial de Arte Negra de Dacar (Senegal). 

Retornou ao Brasil em 1966 e fixou-se em 1967 Brasília, aceitando o convite do Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília para lecionar pintura. Não se adaptando à burocracia da função docente, desligou-se da Universidade mas permaneceu na cidade, onde sua arte sofreu um grande desenvolvimento que levou à elaboração de suas esculturas. Sua carreira ganhou grande projeção nacional e internacional. Em 1972, realizou sua primeira obra pública, um mural de mármore no edifício-sede da Novacap, em Brasília. 

Em 1977, criou o Centro Cultural Rubem Valentim em Brasília. O objetivo da instituição era constituir um espaço para a produção, a divulgação, a exposição e a discussão de uma visualidade brasileira nas artes plásticas. O própri artista afirmou: "o Centro Cultural dará enfase às manifestações artísticas e culturais ligadas às nossas tradições, encaradas dinamicamente. Será um centro de cultura resistente, aglutinador dos fluxos e influxos vindos de todo o Brasil. Debateremos a arte brasileira sem dogmatismos ou sectarismos, mas vamos ver se é viável uma teoria da arte brasileira." Contudo, problemas burocráticos dificultaram a realização desse projeto. Em 1982, sentindo-se distante dos grandes centros culturais do Brasil e desiludido com as dificuldades relativas ao seu centro cultural, passou a dividir residência entre a capital federal e São Paulo. Continuou produzindo até sua morte, ocorrida em São Paulo em 1991.

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MANIFESTO AINDA QUE TARDIO


Depoimentos redundantes, oportunos e necessários.
Pensamentos do artista expressos ao longo de sua vida de trabalho, em entrevistas, depoimentos, textos e falas.

LIBERTAS QUAE SERA TAMEM


- Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim - a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias - o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo - a contemporaneidade; criando seus signos-símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico, provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim. O substrato vem da terra, sendo eu tão ligado ao complexo cultural da Bahia: cidade produto de uma grande síntese coletiva que se traduz na fusão de elementos étnicos e culturais de origem européia, africana e ameríndia. Partindo desses dados pessoais e regionais, busco uma linguagem poética, contemporânea, universal, para expressar-me plasticamente. Um caminho voltado para a realidade cultural profunda do Brasil - para suas raízes - mas sem desconhecer ou ignorar tudo o que se faz no mundo, sendo isso por certo impossível com os meios de comunicação de que dispomos, é o caminho, a difícil via para a criação de uma autêntica linguagem brasileira de arte. Linguagem plástico-sensorial: O Sentir Brasileiro.

- Uma linguagem universal, mas de caráter brasileiro com elementos de diferenciação das várias, complexas e criadoras tendências artísticas estrangeiras. Favorável ao intercâmbio cultural intensivo entre todos os povos e nações do mundo; consciente de que as influências são inevitáveis, necessárias, benéficas quando elas são vivas, criadoras, sou entretanto contra o colonialismo cultural sistemático e o servilismo ou subserviência incondicional aos padrões ou moldes vindos de fora.

- A arte é um produto poético cuja existência desafia o tempo e por isso liberta o homem. Isso me afeta de uma maneira total porque sou um indivíduo tremendamente inquieto e substancialmente emotivo. Talvez precisamente por isso busco, ávido, na linguagem plástica visual que uso, uma ordem sensível, contida, estruturada. A geometria é um meio. Procuro a claridade, a luz da luz. A arte é tanto uma arma poética para lutar contra a violência como um exercício de liberdade contra as forças repressivas: o verdadeiro criador é um ser que vive dialeticamente entre a repressão e a liberdade.

- O tempo é a minha grande preocupação - uma das minhas angústias é ver chegar o tempo final sem poder realizar tudo o que imaginei. Se nasce em conflito com o mundo e ou o enfrentamos e o deglutimos ou perecemos. Creio que os artistas Sensitivos, obviamente resultam disso e da maneira específica como reagem, criam essa coisa que se convencionou chamar arte - ou como querem atualmente, antiarte, resulta o mesmo - e desafiam o tempo, este sua maior preocupação, já que vê fluir, ir-se embora, aproximar-se a morte. Sentindo na carne uma triste solidão, fiz do fazer minha salvação. Artista liberto, libertador, faço meus exercícios plástico-visuais, lutando com todas as minhas forças para ser mais humano, mais tolerante neste época de insólita violência.

- Tudo que foi dito acima é o meu pensamento há cerca de 20 anos. Hoje vejo com satisfação que artistas criadores maduros e jovens inquietos voltam-se, buscam, tomam consciência mais profunda da cultura de base, das raízes culturais da Nação Brasileira. Esse mundo mítico e místico, poético, às vezes ingênuo, puro e profundo porque entranhado nas origens do ser brasileiro. Transpor criando, no plano da linguagem e dar o salto para o universal, para a contemporaneidade de toda essa Poética, sem se recorrer a intelectualismo estéreis, é que é o X do Problema.

- A iconologia afro-ameríndia-nordestina-brasileira está viva. É uma imensa fonte - tão grande quanto o Brasil - e devemos nela beber com lucidez e grande amor. Porque os perigos existem: como o modismo; as atitudes inconsequentes, inautênticas; os diluidores com mais ou menos talento, mais ou menos honestidade, pouca ou muita habilidade, sendo que os mais habilidosos e vazios são os mais danosos porque são geradores de equívocos; as violentações caricatas do folclore e do genuíno; as famigeradas "estilizações" provincianas e o fácil pitoresco que levam a um sub-kitsch tropicalizado e ao enfeitismo subdesenvolvido.

- Atualmente a minha arte busca o Espaço: a rua, a estrada, a Praça - os conjuntos arquitetônico-urbanísticos. Ainda sou pela síntese das artes: caminho para a humanização das comunidades. Integração arte-ecologia-urbano-arquitetural. Como poderei realizar isso? Deixo a pergunta, cuja resposta poderá ficar somente em protótipos.

- Intuindo meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento - e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos -, passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé, nos abebês, nos paxorôs, nos oxês, um tipo de "fala", uma poética visual brasileira capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como artista. O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um design (RISCADURA BRASILEIRA), uma estrutura apta a revelar a nossa realidade - a minha, pelo menos - em termos de ordem sensível. Isso se tornou claro por volta de 1955-56, quando pintei os primeiros trabalhos da sequência que até hoje, com todos os novos segmentos, continua se desdobrando.

- Não pertencendo ou me filiando a nenhum dos movimentos ou correntes artísticas das muitas que surgiram e surgem no estrangeiro e aqui chegavam e chegam e são mais ou menos diluídas - tenho a impressão de que criei uma estrutura totêmica, um ritmo, uma simetria, uma emblemática, uma heráldica, um hieratismo, uma SEMIÓTICA/SEMIOLOGIA NÃO VERBAL, VISÍVEL. Isso tudo partindo das formas vivas da "fala" não verbal do nosso povo, de uima poética visual brasileira, da iconologia afro-ameríndia-nordestina. Enquanto muitos dos nossos artistas criadores se voltavam para os Ismos internacionais, cosmopolitas, eu defendia (nem sempre compreendido ou ouvido) uma tomada de consciência cultural da Nação Brasileira, do Povo Brasileiro. Eu defendia e falava sobre a Cultura do Nordeste, sobre a Cultura do Índio, a Cultura Negra (e mulata, mestiça e cabocla), eu defendia o barroco como um produto da nossa criatividade mulata, eu defendia um sentir brasileiro manifestado nas carrancas do Rio São Francisco, nos ex-votos, na cerâmica popular, nos signos litúrgicos dos rituais afro-brasileiros, na xilogravura de cordel, nos humildes e inventivos brinquedos populares. Achava e continuo achando que o Brasil tem de fazer uma arte mestiça como a do Aleijadinho, como a dos santeiros e ferreiros da Bahia. Reconheço que sou um obcecado por uma cultura genuinamente brasileira, apesar da famigerada aldeia Global. Eu não nasci na Europa (óbvio), não tive educação europeia. Não sou punhos de renda, não nasci para ser diplomata. Não sou bem nascido, pelo contrário, sou homem áspero, agressivo, sou um homem desesperado que procura a Divindade, o Ser dos Seres. Assim, o que eu tinha para me apegar era o Brasil.

- Minha arte tem um sentido monumental intrínseco. Vem do rito, da festa. Busca as raízes e poderia reecontrá-las no espaço, como uma espécie de ressocialização da arte, pertencendo ao povo. É a mesma monumentalidade dos totens, ponto de referência de toda a tribo. Meus relevos e objetos pedem fundamentalmente o espaço. Gostaria de integrá-los em espaços urbanísticos, arquitetônicos, paisagísticos.

Meu pensamento sempre foi resultado da uma consciência de terra, de povo. Eu venho pregando há muitos anos contra o colonialismo cultural, contra a aceitação passiva, sem nenhuma análise crítica, das fórmulas que nos vêm dos exterior - em revistas, bienais etc. E a favor de um caminho voltado para as profundezas do ser brasileiro, suas raízes, seu sentir. A arte não é um apanágio de nenhum povo, é um produto biológico vital.

Eu acho que a nação brasileira continua, por isso trato sempre em termos de povo brasileiro. Estou consciente de que os sistemas políticos passam, os problemas econômicos são substituídos por outros, a dialética da existência é um fato. Portanto, essas coisas são efêmeras se nós as encaramos em termos de perenidade de povo, de continuidade de Nação, de continuidade histórica, no tempo e no espaço. Como dizia Rui Barbosa (a citação não é literal), um povo pode ser dominado economicamente, o seu território pode até ser ocupado e conquistado pelas armas. Mas o que ele não pode fazer é entregar a sua alma, seu sentir, sua poética, sua razão de ser. Se isto acontecer, ele deixará de existir historicamente como Nação, como povo. Assim eu acho que no Brasil, hoje, temos de defender nossa alma. É o que faço, transpondo todo este sentir, esta poética, para uma linguagem contemporânea, evitando cair nas coisas caricatas, nos "tropicalismos", no nefando kitsch, como tantos outros artistas brasileiros.

- Concluindo, gostaria de citar um trecho escrito pelo crítico Mário Pedrosa para o catálogo da minha exposição individual na Galeria Bonino, realizada em julho de 1967, no Rio: "Há algo de antropofágico na sua arte no sentido oswaldiano - ser produto de deglutições culturais. Ao transmudar fetiches em imagens e signos litúrgicos em signos abstratos plásticos, Valentim os desenraíza de seu terreiro e, carregando-os de mais a mais de uma semântica própria, os leva ao campo da representação por assim dizer emblemática, ou numa heráldica, como disse o professor Giulio Carlo Argan. Nessa representação, os signos ganham em universalidade significativa o que perdem em carga original mágico-mítica. O artista projeta mesmo, abandonando também a fatalidade da tela, organiza seus signos no espaço, talhados como emblemas, brasões, broquéis, estandartes, barandões de ma insólita procissão, procissão talvez de um misticismo religioso sem igreja, sem dogmas, a não ser a eterna crenças das raças e povos oprimidos no advento do milênio, na fraternidade das raças, na ascensão do homem".


Rubem Valentim  
Bahia, Rio, São Paulo e Brasília 
Janeiro 1976

In: FONTELES, Bené; BARJA, Wagner, Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001, p. 27-31 (catálogo de exposição).

 

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: resumo dos resultados

 Como diriam os hermanos, se le pasó todo al revés…

A RECAP on Putin's invasion of #Ukraine. 

1: Finland joined #NATO.

2: Sweden joined NATO.

3: Outdated Russian military tactics exposed as unchanged since WW2.

4: Russian military exposed as poorly equipped & disastrously led.

5: Russian army decimated with losses & casualties reported between 500,000 to 700,000. It now largely depends on poorly trained conscripts & volunteers.

6: Putin's endless red lines exposed as written in washable paint.

7: Medvedev's daily nuclear threats exposed as the drunken ramblings of a man-child.

8: Russia's Black Sea fleet driven from occupied #Crimea. Now barely operates in the Black Sea due to Ukrainian attacks. Ukraine's also sunk its flag ship the Moskva (Moscow).

9: Ukraine's grain & other sea exports keep growing. Russia aimed to capture all of Ukraine's Black Sea ports back in Feb 2022. 

10: Proving Putin wrong, Western countries support for Ukraine remains steadfast.

11: Massive sanctions imposed on Russia and they keep coming. Sanctions include banning Putin's vast propaganda media from the EU. 

12: Putin's planned 3 day invasion of Ukraine has now lasted well over 2 years and counting.

13: Russia hasn't achieved any of its military objectives. It still doesn't control all of eastern or southern Ukraine. 

14: Things are going so bad, Russia banned its soldiers from using mobile phones in occupied Ukraine - as too much bad news getting seen in Russia.

15: August 6th 2024: Ukraine invaded Russia's Kursk region - in BROAD DAYLIGHT. With the majority of Russia's army in Ukraine, Russia foolishly relied on young conscript soldiers to defend its border. 

As a consequence, large numbers of Russian soldiers have surrendered & Ukrainian troops continue to capture large swaths of the Kursk region. 

16: Putin claimed 😉 he invaded Ukraine to make Russia safer. And he's achieved the exact opposite. 

17: DID I MENTION UKRAINE'S INVADED RUSSIA? 😀

Venezuela: Luzes e Sombras - Ricardo Seitenfus

 Luzes e sombras

Ricardo Seitenfus

(Recebido: 19/08/2924)

Na atual tragicomédia venezuelana sobressaem-se dois atores. O primeiro, Nicolás Maduro Moros, iluminado sob as luzes da ribalta, brilha intensamente. O segundo, o governo cubano, sabe que seu futuro depende do desenlace da crise, escolheu as sombras dos bastidores e o silencio como tática de guerra.

Embora fraudadas, Maduro sofre derrota eleitoral acachapante cujos resultados incontestes foram tornados públicos pela sociedade civil organizada. Inclusive governos, como o brasileiro, que não reconhecem publicamente os resultados, estão cientes de que a oposição venceu.

Para Maduro a equação é simples. Para conservar o poder ele poupa o seu Conselho Eleitoral e ataca seus adversários. Tanto os internos quantos os externos. Se trata de uma típica manobra diversionista para desviar, com efeitos de cena secundários, a atenção sobre o principal. Até o momento esse espichar da corda deu excelentes resultados e já aparecem vozes preconizando que ninguém deve se intrometer no domínio reservado venezuelano.

O Brasil busca uma saída para a enrascada em que se meteu. Entre idas e vindas caóticas e dos erros de uma falida estratégia, Lula declarou, em 20 de julho passado, que não cabe interferência externa no processo eleitoral de outros países. Apesar de fiador dos Acordos de Barbados, Lula abre uma fresta para o Brasil tentar escapulir do imbróglio.

Contrastando com uma crise exposta em praça pública, com uma esquerda dividida entre democratas e golpistas, e um Maduro malandro e, segundo um ditado gaúcho, mais liso que muçum ensaboado, escondido nos recônditos mais sombrios do cenário deste drama kafkiano, está o ator cubano.

Maduro se beneficia da proteção brasileira e cubana. A nossa decorre de fronteiras comuns, da migração venezuelana e de interesses econômicos. Outra é a natureza do interesse cubano.

A lenta agonia de Hugo Chávez, escondida de todos pelos médicos cubanos, demonstrou aos olhos do mundo a profundidade dos laços entre os dois regimes.

Ao escolher Maduro em 2013 para substituir Chávez, Cuba reforça sua presença na estrutura do Estado bolivariano. Do apoio de Maduro depende a sobrevivência da própria revolução castrista que enviou a Venezuela aproximadamente 30.000 colaboradores. Serviços de inteligência, policial e de segurança, de informática, programas sociais, cooperação militar, fornecimento de petróleo e concessão de empréstimos e a fundo perdido.

Portanto, os que se esforçam em salvar Maduro estão, por ricochete, fornecendo oxigênio e sobrevida a revolução cubana. Sob a bota do casal Ortega-Murillo, não é outro o significado da advertência nicaraguense quando ousa expulsar o embaixador brasileiro de Manágua. Nenhuma mediação será bem-vinda caso resulte na queda de Maduro.

O atual governo brasileiro é resultado de uma frente republicana formada para impedir a recondução de um desqualificado. Os setores que permitiram a vitória de Lula são sensíveis ao respeito das regras democráticas. O que, comprovadamente, não ocorre na Venezuela. Produto da malandragem de alguns, da incompetência de outros e da prepotência de muitos, não há margem de erro. Lula e seu todo-poderoso assessor internacional estão frente ao dilema da quadratura do círculo. Quem viver, verá.

                  

  Ricardo Seitenfus, Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Genebra, autor de vários livros, foi Vice-Presidente da Comissão Jurídica Interamericana, representante da OEA no Haiti (2009-2011) e na Nicarágua (2011-2013).

Sergio Florencio: Posse na Academia de Letras de Brasília

Posse na Academia de Letras de Brasília

 

( 14 de agosto de 2024 )

 

Senhor Presidente da Academia de Letras de Brasília

Senhoras e Senhores Acadêmicos e Acadêmicas

Parentes, amigos e amigas

 

Os afetos

Este é um momento singular em minha vida. Sempre gostei de escrever, mas nunca pensei em tornar-me membro de uma academia de letras. Ao longo da vida, publiquei três livros e escrevi muitos artigos. Mas confesso que não me sinto escritor. O verdadeiro escritor não consegue viver sem a escrita. Eu apenas vivo melhor escrevendo. Sou alguém que desde a infância gostou de livros e histórias. Por isso, meus agradecimentos iniciais vão para o amigo Embaixador Sergio Couri que, na qualidade de acadêmico, submeteu meu nome à consideração dos demais; e vão também para o poeta e presidente desta casa, Raul Carnal, que gentilmente aceitou falar sobre minha trajetória nesta solenidade de posse. 

Talvez possa sintetizar o tema deste meu discurso de posse com uma pergunta – o que me fez estar aqui hoje? A primeira resposta é a palavra forte que acompanha a humanidade desde seu surgimento – amor.

Estou aqui porque, um belo dia, um nordestino se encantou por uma carioca, se casaram, tiveram dois filhos, eu e minha irmã Noia. Assim, antes de tudo, sou produto do amor. Tenho uma foto dela muito jovem, vestido elegante da década de 1930, rosto e corpo de manequim, no cenário de uma calçada desenhada de pedras do centro do Rio. Dele tenho uma foto com uniforme de trabalho da companhia canadense de bondes e um boné escrito Conductor.

Minha mãe estudou no Sacré-Coeur, onde cedo aprendeu francês, piano e boas maneiras. Meu pai veio do sertão do Seridó, de Caicó, onde menino andava a cavalo, nadava nas cheias dos açudes e sabia vaquejar. Fugindo da seca, ele rumou para o Sul, adolescente com o primário incompleto. Sentou praça no Exército, entrou para a polícia, foi condutor de bonde, tudo isso junto com os estudos. Mais tarde foi trabalhar no Ministério da Justiça e Negócios Interiores, onde a função do pai e da mãe também refletia contraste – ele Almoxarife, ela Perito Contadora. 

A segunda razão para eu estar aqui agora também deriva da mesma palavra – amor. Tudo começou numa feste de São João. Eu muito alto, ela de pileque. Depois era ela na Literatura e eu na Economia. “Eu sou funcionário, ela é dançarina”, como na música do Chico. O tempo foi passando, eu fazia o curso Rio Branco e dava aula de economia numa faculdade particular, ela era integrava a primeira e pioneira turma de revisoras mulheres do saudoso Jornal do Brasil. Aí nos casamos, ambos com dinheiro quase imaginário - eu com o curto FGT da Faculdade, ela também com poucos trocados. Mas, como dizem os sábios, nunca se deve desperdiçar uma crise. O Itamaraty demorou a me chamar para assumir em Brasília e fomos viver três meses de encantamento em uma barraca nos campings de Araruama, Cabo Frio, Friburgo e Campos do Jordão. 

Cinco décadas depois, eu escrevia para os filhos essa mensagem. “Cinquenta anos atrás eu partia com sua mãe, um Fusquinha branco, uma barraca, para uma aventura que gerou quatro filhos, sete netas, dois netos, vinte e sete mudanças de casa, sete países, uma Revolução Islâmica , um golpe de Estado latino-americano e muitas coisas que as estatísticas não sabem contar.”

Sobre os quatro filhos, a alegria maior vem do afeto e da diversidade de personalidades. Talvez a origem resida naquilo que aprendemos nos versos de O Profeta, do Khalil Gibran. “Seus filhos não são seus filhos. São filhos e filhas da Vida que anseia por si mesma. Podem abrigar o corpo deles, mas não a alma. Podem se esforçar para ser como eles, mas não tentem fazer com que eles sejam como vocês. Porque a vida não retrocede nem se detém no ontem.”

O primeiro filho, Pedro, tem o atributo mais escasso no Brasil de hoje – um profundo espírito público. Abraçou a carreira de Estado de Gestor de Políticas Públicas, concluiu doutorado na Inglaterra em Direito Econômico, conhece a fundo a máquina do Estado brasileiro. Mas é também o Filho Psicólogo - quando os pais divergem ou se sentem tristes, ele é a fonte de bom senso e de alegria. 

O segundo, Leonardo, a mente clara e brilhante, após concluir um mestrado naLondon Business School decidiu, para grande preocupação dos pais, sair do Banco Central e ir para o setor privado. Sua exitosa trajetória como Executivo de grandes empresas e as atividades inovadoras que desenvolve na avaliação de empresas e arbitragem de litígios revelam o dinamismo e as potencialidades de nossa economia.

O terceiro, Thiago, iraniano, foi estudar História, apesar da insistência da mãe para que seguisse Direito. Eu sempre a contradizia – quem nasceu no meio de uma grande revolução não pode seguir Direito, porque Revolução e Direito são adversários irreconciliáveis. Essa discussão eu ganhei. Hoje ele é professor de História da Cultura Afro-brasileira e Indígena em universidade pública do Cariri cearense e é babalaô do Ifá, uma linha do Candomblé.

O quarto filho, Eduardo, começou na Economia, migrou para a Sociologia, mudou para a Antropologia e terminou diplomata. Encontrou Eva, uma médica alemã, viveram em Tel Avive, Berlim, Dakar, Itzehoe e produziram quatro lindas alemãzinhas. Há um ano se licenciou do Itamaraty, Eva conclui a residência médica perto de Hamburgo, e ele educa as quatro alemãzinhas. Assim, prova que igualdade de gênero não é só retórica. 

Os filhos e as quatro lindas noras geraram sete netas e dois netos, que são nosso grande tesouro. 

Estou aqui hoje também graças aos amigos e amigas do Itamaraty - a instituição de excelência a que tenho a honra de pertencer. Em primeiro lugar, gratidão aos colegas de nossa turma do Instituto Rio Branco (IRBr), em especial ao saudoso Sérgio Amaral, com quem trabalhei no governo Fernando Henrique e muito aprendi. 

Sou igualmente grato a diplomatas de muito valor com quem tive a honra de conviver e trabalhar. Rubens Ricúpero, o “Apóstolo do Real”, autor da obra seminal A Diplomacia na Construção do Brasil, que adotei como livro texto nas minhas aulas no IRBr. Rubens Barbosa, incansável formulador, divulgador e analista de nossa política externa, autor de numerosos livros, artigos e incentivador de pesquisas sobre “o lugar do Brasil no mundo”.

Minha gratidão a outros diplomatas de reconhecido mérito com quem trabalhei, como Paulo Tarso, Ronaldo Sardenberg, Seixas Correa e Marcos Azambuja. Meu reconhecimento ao amigo Paulo Roberto de Almeida, analista sólido, corajoso e combatente em defesa de nossa política externa, a quem chamei de “Embaixador Ombudsman”.

Na volta final ao Brasil, em 2013, trabalhei seis anos no Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (IPEA), primeiro como pesquisador e depois como Diretor de Política e Economia Internacional. Lá convivi com economistas brilhantes - como Renato Baumann - de sólida formação e com importantes contribuições na área de economia e políticas sociais. 

Estou também aqui hoje graças a meus amigos-irmãos de infância e adolescência da Silva Teles, uma encantadora rua de Vila Isabel, com quem me encontro para uma comidinha e um chope gelado à beira mar, sempre que vou ao Rio. 

Sou grato a meus ancestrais, ao Abreu e Lima, revolucionário do Pernambuco vanguardista de 1817. Devo muito à minha família ampliada – tios (as), primos(as), sobrinhos(as). Ela tem o elo agregador do saudoso Tio José - o Tio da Eterna Alegria. Já no final da vida, ainda se divertia, com suas quatro cuidadoras, que me remetiam a Pantaleão e As Visitadoras, a sensual história de Vargas Llosa. Essa família ampliada continua sendo fonte de afetos, conflitos e reconciliações, no melhor estilo do programa de televisão A Grande Família.

Minha gratidão a dois amigos eternos. Em alusão a Sigmund Freud, pai da psicanálise, eu o chamava de Sig da Democracia – Luis Carlos Sigmaringa Seixas. Foi embora cedo demais. Mas lá em cima, em caso de polarização celestial, ele deve estar pregando alguma forma de conciliação democrática. O outro, meu amigo-irmão iraniano Majid Abaiian. Ele me ensinou um triste axioma da história – as revoluções devoram seus próprios filhos. 

Dou graças a Deus, a Jesus, ao cristianismo dos primeiros séculos, e a San Charbel, meu santo de devoção. Minha gratidão à psicanálise, que me acompanhou pela vida afora, a Freud e Jung, e a dois grandes amigos - Elias Abdalla e Wagner Rosa. A eles devo a aprendizagem com algumas depressões, um certo amadurecimento e alguma sanidade mental. Com eles aprendi que mergulhar nas nossas sombras pode muitas vezes ensinar o caminho das luzes.

 

Meu antecessor na Academia

Cumprindo a boa tradição desta Casa, tenho a honra de saudar meu antecessor nesta Academia. Infelizmente não conheci João Francisco Guimarães. Entretanto, de seus contemporâneos colhi testemunhos todos muito positivos desse engenheiro eletrônico, matemático, mestre em redes de computadores e professor da Universidade de Brasília.

Seus livros refletem, além dessa sólida formação científica, uma mente eclética, aberta tanto à espiritualidade –Tudo que seu mestre mandar, e Deus te faça feliz - como ao mundo maçônico – Amo a Verdade, Procuro-a e Gotas Maçônicas, Conceitos e Crenças. 

O colega Guimarães granjeou, nesta Academia, a admiração de seus membros, graças à cortesia e à cordialidade que sempre marcaram sua convivência com os demais acadêmicos. Esses traços de sua personalidade ficaram inscritos na memória desta instituição. Sua partida prematura deixou saudade que não posso deixar de evocar neste momento. 

O Desafio da Cadeira Roseana

Há poucas semanas soube que a cadeira que vou ocupar nesta academia tem como patrono apenas, simplesmente, João Guimarães Rosa. Aquele saudado, no livro Primeiras Histórias, por Carlos Drummond, com o poema Um chamado João, cheio de perguntas: “João era fabulista? Fabuloso? Fábula? Sertão místico disparando, no exílio da linguagem comum?” 

Lógico que me senti honrado com essa ponte com Rosa - o escritor encantado, encantador de palavras de mil dicionários de centenas de línguas, existentes ou por ele criadas.

Essa ponte com o grande Rosa muito me honra. Mas também nela sinto-me perdido, como o filho de A Terceira Margem do Rio. Perdido naquele momento, em que, “ sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. ... Perguntei ´Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa? Ele só retornou o olhar em mim. ... Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte”.

Nesses momentos sombrios, tão distantes do self, da chama da alma do Jung, eu começava a ter consciência de que, lá em casa, quem nasceu para literatura foi Sônia, minha mulher, graduada em Letras, Mestre em Linguística, e fina sensibilidade que lembrava aquela livraria de Paris – Le Plaisir du Texte. Ou Thiago, o Filho da Revolução, nascido em Teerã, que por isso mesmo foi estudar História, doutorou-se em Literatura, escreveu o belo livro Nativo Ausente e é hoje BabalaôEsses dois entendem do riscado das letras. Mas, curiosa contradição, quem escreve histórias e ama de paixão a Terceira Margem do Rio sou eu e o filho Pedro – outro economista, vejam só. 

Nesses momentos sombrios, eu queria mesmo era engolir a sabedoria resignada do personagem daquela estória que começa assim. “Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado. ... Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. ... Trouxera, um dia, do pasto ... uma jararacussú, pendurada do focinho, como linda tromba negra com diagonais amarelas, da qual não morreu porque a lua foi boa e o benzedor acudiu pronto.” 

Às vezes também pensava que o melhor mesmo era telefonar para meu amigo de muitos anos, João como o Rosa, mas Almino Inteligente de nascimento, para me dar algum consolo. Ele, que ensinou Rosa a centenas de estrangeiros, em lugares de tanto prestígio como a Universidade Autônoma do México, Berkley, Stanford e Chicago. Ou então, pensei, apelar para a doce, sensível Heloisa Vilhena, escritora de cinco inspirados livros sobre Rosa. Ela bem que podia me dar um Chá de Erva Cidreira de Rosa, e me deixar mais sossegado nessa nobre e inquietante cadeira. 

Mas não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe. Por isso, também tive meus momentos de êxtase. Era quando eu saía da imaginária Terceira Margem para ingressar na primeira das Primeiras Estórias , aquela que exalta As Margens da Alegria. Aquela que começa quando “ia um Menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho.” 

De repente, nuvens escuras, sentimentos tristes me carregavam para outras margens, outras viagens, como a última estória – Os Cimos - do mesmo livro, com o mesmo Menino de letra maiúscula. “Outra era a vez. ... Entrara aturdido no avião, a êsmo tropeçante. ... Sabia que a Mãe estava doente.” 

De volta à Terceira Margem, fico matutando, o que pensaria Rosa de tudo isso? Jamais saberemos, nem ele provavelmente sabia. Mas para onde nos levam essas idas e vindas roseanas, “numa canoinha de nada”? Para onde nos leva, em Grande Sertão: Veredas, aquela fala de Diadorim para Riobaldo – “Viver é muito perigoso. Carece de ter muita coragem.”

Cada cabeça, uma sentença. Juntando os quebras e as cabeças, a gente vai encontrando sentidos. Para isso, tem serventia aquela Conversa de Bois. Também nos ajuda muito a pensar e a buscar significados aquela malvadeza sem fim de Nhô Augusto, e a redenção espiritualizada de Matraga, em A Hora e a vez de Augusto Matraga. Também nos serve de inspiração o provérbio capiau “Sapo não pula por boniteza, mas porém por percisão”. Mas, para entender os sabores e os ventos do mundo, eu prefiro mesmo a sabedoria mansa, resignada do Burrinho Pedrês.

 

O Inconsciente

Além daquela palavra mágica – amor - as razões para estar aqui nesta Academia de Letras de Brasília remontam também à missão impossível - qual Pedra de Sísifo - de tentar entender esse país que não é para principiantes. Isso me levou a estudar economia e depois política.

O interesse pela política mora no meu inconsciente e tem uma gênese curiosa. Nasceu num episódio de infância que conto no livro Diplomacia, Revolução e Afetos. De Vila Isabel a Teerã, uma historinha que tem como título Pai, Padeiro e Política, aqui reproduzida em parte.

“Todo dia de manhã, sentado na varanda de nossa casa da vila, meu pai abria o jornal. Lia e esperava o padeiro. Seu Horácio chegava carregando uma cesta enorme de pão nos ombros. Ele era filiado ao Partido Comunista, e meu pai, getulista. Eu ficava ouvindo, não entendia nada da discussão dos dois, mas mesmo assim achava o máximo. 

Para mim, aquilo era uma espécie de jogo de futebol. O padeiro sempre tinha a iniciativa, falava com grande convicção, parecia marcar um gol, mas vinha meu pai com uma ideia que colocava Seu Horácio na defensiva, até engrenar outro forte argumento “Florêncio. Não adianta falar de nacionalismo, criticar o Brigadeiro Eduardo Gomes e defender Getúlio! Enquanto você não aceitar a Luta de Classes, estará sempre equivocado! É isso que move a história. O resto são mentiras para iludir o povo.” 

Eu achava aquilo tudo fantástico. Muitas vezes o argumento de seu Horácio era um chute certeiro, entrando no gol. Mas meu pai conseguia retomar a pelota e a levava até o meio de campo adversário. Era sempre uma notícia que fazia o padeiro hesitar, e colocava meu pai na pequena área, muito perto de fazer um gol. 

Mas, novamente Seu Horácio defendia. Vinha com a história da Luta de Classes e trazia o exemplo da União Soviética, que eliminou a pobreza, a exploração do homem pelo homem com a revolução socialista. 

Aí eu pensava. Pronto. Acabou o jogo, Seu Horácio venceu. Mas, que nada, vinha meu pai com o argumento sempre utilizado nesses momentos decisivos - Ideias Fora do Lugar. Seu Horácio respirava fundo em silêncio. Eu ficava feliz da vida. 

Luta de classes versus Ideias Fora do Lugar. Mas a palavra final não vinha do Movimento Operário nem das Forças Nacionalistas. Esse jogo não tinha juiz, mas tinha fim, com o Imperativo Categórico Kantiano que calava os dois. Seu Horácio, envergonhado, não mais parecia o Senhor do Materialismo Histórico. O padeiro amigo resgatava sua cesta de pão e, dentro dela, lá ia embora o meu doce de bata doce. Dona Arlete, vizinha de porta, gritava bem alto para toda a vila da rua Silva Teles 14-A escutar. “Seu Horácio! Chega de conversa fiada com o Florêncio. Entrega logo o pão que chegou quentinho, mas vou comer frio!” 

 

A razão

Assim sempre terminavam as discussões diárias que povoaram o imaginário de minha infância. A lembrança dessa dialética é para mim repleta de significados. Hoje vejo aqueles debates matinais envolvendo dois contendores, ou dois tipos ideais weberianos: um partidário do totalitarismo, outro defensor do autoritarismo, sendo que a ideia de democracia nem sequer era ventilada. 

Anos mais tarde, estudante da Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), tive um encontro mais íntimo com a sociologia política. O mestre Guerreiro Ramos, nosso professor e um dos pais da sociologia no Brasil, formou um grupo de cinco alunos, como assistentes. Nossa função era ler livros e resumir oralmente, para subsidiar sua pesquisa que resultou no livro Administração e Estratégia do Desenvolvimento. Ganhava meio salário-mínimo por mês, mas foi o melhor emprego da minha vida!

Dessa convivência com o mestre Guerreiro, muita coisa ficou registrada para sempre. Por exemplo, do livro Agrarian Socialism, de Seymour Lipset, ficou aquela frase, discutida entre o mestre e o pupilo, que até hoje muito me intriga. “Você pode ensinar socialismo em poucas semanas para um engenheiro. Mas você não pode ensinar em poucas semanas engenharia para um socialista.”

Muitas décadas mais tarde, nos quatro anos que vivi no Irã como jovem diplomata, no final dos anos 1970, me defrontei empiricamente com o embate entre aqueles dois conceitos – o totalitarismo stalinista do padeiro, versus o autoritarismo getulista do pai. O binômio era o mesmo, mas os atores eram diferentes. Quando lá cheguei, o Xá estava no poder, governava com mão de ferro e o braço dos EUA, praticava um autoritarismo repressivo há quase quatro décadas. Mas sua monarquia desmoronou no início de 1979. A Revolução Iraniana, por poucos meses viveu o sonho de uma democracia liberal, e rapidamente o autoritarismo do Xá se transformou no totalitarismo do Aiatolá Khomeini. 

Assim, essa vivência com um Irã autoritário e depois totalitário estimulou em mim o desejo de compreender mais a fundo as razões históricas que levavam países como o Brasil ao pêndulo sem fim que ia de democracias imperfeitas para regimes autoritários. 

 

As Visões do Brasil. Sérgio Buarque e Raimundo Faoro.

Muitas décadas mais tarde, quando regressei ao Brasil após ter sido Embaixador do Brasil em Quito, Genebra (ONU), México e Cônsul Geral em Vancouver, fui trabalhar como pesquisador do IPEA, ao mesmo tempo em que dei aula de História da Política Externa Brasileira (HPEB), no Instituto Rio Branco, durante sete anos, entre 2016 e 2022. Sempre entendi a política externa como a resultante do encontro (ou desencontro) de dois universos - o mundo aqui dentro e o mundo lá fora, ou seja, nunca divorciada da realidade doméstica. Por isso, começava os cursos no Instituto Rio Branco com uma pergunta - Que País é Esse? - inspirada na música da Legião Urbana, de Renato Russo. 

Com essa pergunta em mente, me dediquei a estudar os grandes Intérpretes do Brasil. Mergulhei então na leitura de muitos autores – Guerreiro Ramos, Gilberto Freire, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Caio Prado Junior, José Murilo de Carvalho, Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro. Os dois últimos são para mim as mais importantes fontes para compreender o Brasil de hoje, porque um analisa as raízes de nossa imperfeita democracia e o outro, o resiliente patrimonialismo/corporativismo. 

Sergio Buarque prioriza a “ética de fidalgos”, traço do espírito personalista do português, que marcou a conquista e a colonização do novo mundo. Essa ética condicionou o tipo ideal do aventureiro, que valoriza a audácia, o desafio, ao mesmo tempo que despreza a estabilidade e a segurança. Tem seu contraponto na figura do trabalhador, voltado para a rotina e para o trabalho árduo. 

Aquela “ética de fidalgos” se revela no horror ao trabalho manual e na admiração da atividade intelectual vista como dádiva – talento –, e não como produto do esforço e da disciplina Essa análise vai convergir para o homem cordial(que age com o coração), dotado de uma personalidade emotiva, avessa às convenções e às regras sociais.

Tudo isso fica muito distante da ideia de associativismo, de trabalho em equipe, de solidariedade social. Os diversos prismas e tipos ideais pelos quais Sergio Buarque analisa nossa sociedade – o aventureiro, a ética de fidalgos, o homem cordial – revelam as origens mais profundas e inconscientes de nosso sistema político. Daí a conhecida afirmação de Raízes do Brasil. “A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”. 

Raymundo Faoro procura desvelar a etiologia nossas duas resilientes doenças irmãs – patrimonialismo e corporativismo. Os Donos do Poder denuncia a opressão do Estado sobre a sociedade, considerada a semente dos grandes males do país.

Faoro parte de uma crítica ao marxismo, que apenas em momentos históricos excepcionais – absolutismo, bonapartismo – admite a autonomia do Estado. Em contraste, segue Max Weber, ao atribuir grande peso ao Estado e ao estamento burocrático. A origem seria o Estado absolutista precoce em Portugal, que abriu caminho, no Brasil, para o patrimonialismo e para um capitalismo politicamente orientado, em que as atividades mercantis se subordinariam a um Estado patrimonial-estamental. 

Rupturas com esse modelo são ensaiadas, mas terminam fracassando. A Coroa exercia seu domínio hegemônico e, assim, impedia o avanço do liberalismo. 

A cisão entre Estado e nação é a grande chave explicativa para a recorrência de soluções autoritárias. O Estado patrimonial- estamental foi o grande inimigo da modernidade econômica e do Estado de direito. 

Esse adiamento de uma efetiva modernidade no Brasil engloba também o nacional-desenvolvimentismo e a ideologia nacionalista, uma vez que não se orientam pela ruptura com o arcaico Estado patrimonial-estamental. 

As intervenções autoritárias recorrentes têm papel semelhante. Como ele próprio afirma em Os Donos do Poder, “ o autoritarismo político seria constitutivo à nossa formação, ora sob formas brandas, ora exasperadas”. 

 

Minha visão do Brasil de hoje

O que penso sobre o Brasil de hoje talvez tenha seu começo no registro inconsciente das conversas do padeiro com o pai. Daí passaram, na adolescência, pela conhecida História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, prosseguiram com O Conceito Marxista do Homem, do popular Erich Fromm, e os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de Marx. As leituras avançaram (ou regrediram) com os grupos de estudo de Poulantzas, Althusser.

Já ingressando na graduação em Economia, as atenções se voltaram para a controvérsia Eugênio Gudin versus Roberto Simonsen, para as leituras sobre economia brasileira - Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Fernando Henrique Cardoso da Teoria da Dependência e muitos cepalinos. Depois vieram as influências de grandes professores do início de Mestrado na Universidade de Brasília – Dionísio Carneiro, Edmar Bacha, Lauro Campos. 

No Mestrado concluído na Universidade de Ottawa, as divergências se ampliaram e englobaram ícones da teoria econômica. Alfred Marshall, o formulador original da teoria neoclássica e dos fundamentos de uma economia competitiva. Joseph Schumpeter, para quem a “destruição criativa” era o motor essencial do capitalismo. Joan Robinson, contestadora do modelo de concorrência perfeita e aguda analista das imperfeições de mercado que explicavam as discrepâncias nos salários e no emprego. Milton Friedman, reconhecido pela rigorosa análise das causas da Grande Depressão, mas popularizado como o inspirador de regimes autoritários, como o do general Pinochet. Finalmente, John Maynard Keynes, o formulador da Revolução Keynesiana, base do New Deal de Roosevelt, e da visão do déficit público como ferramenta para corrigir uma economia funcionando abaixo da plena capacidade. No plano da filosofia e da sociologia política, o fio condutor residiu, entre outros, em John Stuart Mill, do célebre ensaio Sobre a Liberdade, e em Max Weber, da Ética protestante e o Espírito do Capitalismo.

Aqueles Intérpretes do Brasil e esse diversificado conjunto de economistas são os pilares de meu pensamento sobre nosso país. Dois são os grandes desafios. Primeiro, fazer com que a democracia deixe de ser aquele “lamentável mal-entendido” do Sérgio Buarque. Segundo, curar as duas resilientes doenças denunciadas por Raymundo Faoro - o patrimonialismo e o corporativismo. A meta a alcançar será sempre a democracia liberal, baseada no avanço da economia e na ampliação da justiça social. 

Ao fim, relembro a miscigenação cultural que me trouxe ao mundo – o sertanejo do Seridó, que gostava de Humberto Teixeira, Catulo da Paixão Cearense, e a moça do Sacré Coeur, que falava francês e tocava piano. Resgato também o encontro com minha mulher Flor Amorosa, filhos, netos e netas. E finalizo como episódio preferido de meu pai - a sábia tirada do matuto nordestino. Quando perguntado sobre o que achava da vida, respondia sempre “Vivendo e achando bom”. 

 

Muito obrigado

 

Sergio Florencio de Abreu e Lima Sobrinho 

 

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Livro esmiúça 'primeiro golpe' do Brasil, liderado por D. Pedro: Ricardo Lessa (CB)

 Livro esmiúça 'primeiro golpe' do Brasil, liderado por D. Pedro

Segundo o jornalista e escritor Ricardo Lessa, D. Pedro I "estava longe de ser a figura ideal de libertador, como algumas correntes históricas o definem


Correio Braziliense, 20/08/2024

Nas salas de aula, quando se fala em golpes de Estado no Brasil, os atos de 1930, que levaram Getulio Vargas ao poder, e os de 1964, com o início dos governos militares, são sempre os mais lembrados. No entanto, o jornalista e escritor Ricardo Lessa volta ao início do século XIX para contar sobre o processo conturbado da independência do Brasil e a primeira Assembleia Nacional Constituinte, que culminaram no que ele defende ser o "primeiro golpe" do país.

"É um golpe militar que, na época, foi caracterizado assim, inclusive por alguns monarquistas. Um golpe violento, tal como eu cito no livro, e ele abre uma história de golpes militares", afirma Lessa ao Correio Braziliense, em referência ao recém-lançado O primeiro golpe do Brasil. O jornalista foi apresentador do programa Roda Viva, na TV Cultura, além de ter passado por redações de alguns dos veículos de imprensa do país, como o Correio.

Após a independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, uma série de episódios tomaram conta dos bastidores do alto escalão da monarquia brasileira. Com o retorno de D. João VI a Portugal, o filho mais velho, D. Pedro I, decidiu ficar no país para manter o legado do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, que antecedeu o período do Império brasileiro.

Com o Brasil independente e Pedro de Bragança no trono, era necessário formar uma constituição para o novo país. Uma primeira assembleia constituinte foi convocada para maio de 1823, motivada por ideias liberais que pretendiam alinhar o Brasil com os novos países que surgiram na América desde o fim do século XVIII. Apesar disso, lembra Lessa, a assembleia foi dissolvida pelo imperador, que perseguiu republicanos, promoveu censura aos meios de imprensa e alimentou-se do escravismo, como trata o autor, em sua obra.

No ano seguinte, o próprio monarca liderou uma nova assembleia constituinte que culminou na Carta Magna de 1824, outorgada, e a primeira do país, que vigorou até o fim do Império, em 1899. "D. Pedro I fez uma constituição outorgada em que ele estava acima da Lei. Então, isso é uma contradição, em termos de você ter um rei acima da Constituição. As constituições foram inventadas para submeter os reis. A gente está cercado de repúblicas por todos os lados e ficamos sendo uma monarquia escravista no ocidente, enquanto não havia mais isso no mundo", frisa Lessa.


O jornalista faz uma comparação do ocorrido em 1823, no Brasil, com o que se passou anos antes, na França, com Napoleão Bonaparte. O déspota francês destituiu o Diretório da Revolução e substituiu-o por um consulado, no que ficou conhecido como o "Golpe do 18 Brumário". "Isso é conhecido como 'coup d'etat' na França e, aqui, nós chamamos de golpe de Estado. Houve o fechamento de um órgão constitucional pela força das armas. Isso é um golpe militar no dicionário de política que todo mundo segue", acrescenta o autor.

No livro, ele também desmistifica a figura heroica do primeiro imperador do Brasil. Na sua visão, D. Pedro I estava longe de ser o ideal de libertador, como algumas correntes históricas o definem. "A monarquia é do gosto de quem quer o despotismo. Quem quer governar acima das leis, que foi o que Dom Pedro I fez. Porque a Constituição que ele outorgou não era igual à que estava sendo discutida e que foi apresentada a ele em setembro", sugere Lessa.

Dias atuais

Com o avanço do autoritarismo em países de diferentes continentes ao redor do mundo, como Venezuela, Coreia do Norte e Nicarágua, a definição de déspota pode ser atualizada para os tempos modernos. Na visão de Lessa, o sonho dos déspotas é o governo de um homem só, como está subentendido na formação da palavra "monarquia", que vem da junção do prefixo "mono" e significa "um" com o termo grego "arquia", que indica "chefia".

"Os déspotas modernos não têm uma raiz de família como era na Idade Média, quando a Igreja abençoava uma família, como os Habsburgo ou os Bragança. Eram famílias aristocráticas que tinham o poder divino de governar grandes territórios, só que o 'trem da história' tirou o poder dessas famílias", sustenta o jornalista. "O que você tem hoje é o ressurgimento de déspotas, que querem submeter o Legislativo e o Judiciário, que são bases para a República, às suas vontades", completa.

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Terei o prazer de coordenar os debates em torno da obra do jornalista Ricardo Lessa em torno de um assunto bastante atual, mas que começou lá atrás, em 1823. "O Primeiro Golpe do Brasil", Dom Pedro I fecha a Constituinte - Lançamento do livro, IHG-DF, 22/08, 19hs. Ricardo Lessa: O Primeiro Golpe do Brasil: Dom Pedro I fecha a Constituinte - Lançamento de livro, IHG-DF, 22/08, 19hs 







O Naufrágio das Civilizações - Amin Maalouf, entrevista

 O Naufrágio das Civilizações 

Amin Maalouf

Dois livros de Amin Maalouf, O naufrágio das civilizações e O labirinto dos desgarrados, ambos lançados pela editora Vestígio, compõem um fascinante painel histórico dos dramas e dilemas do mundo contemporâneo e das relações entre Ocidente e Oriente, entre tradição e modernidade.

Eis uma entrevista com o autor publicada pela Lire la Société.

Vocês podem encomendar os dois livros no site da Trabalhar Cansa ou pelo WhatsApp (11) 97860-6565

P - Qual é o propósito do seu trabalho?

Amin Maalouf - O naufrágio das civilizações começa como memórias íntimas. Depois, aos poucos, evolui para algo diferente. É como se eu olhasse para o mundo da minha infância e depois me mudasse, e, ao me afastar, tivesse uma visão um pouco mais ampla. E aí, principalmente a partir dos meus vinte anos, comecei a observar o mundo de uma forma um pouco mais ampla e a tentar entender o que aconteceu, como chegamos lá.

P - Qual é a sua definição de civilização e como ela “cimenta” as sociedades humanas?

AM - A noção de civilização tal como a utilizo neste livro é bastante simples. É uma referência à ideia que desenvolvemos, especialmente no final do século XX, de um choque entre civilizações. O título do livro desenvolve esta mensagem que diz que, em última análise, são todas as civilizações que naufragam.

Não é uma civilização que está simplesmente lutando contra a outra, todas estão em dificuldades, estão todas desmoronando e, se naufragarem, naufragarão juntas. Tomo a noção de civilização num sentido empírico, não estou tentando voltar à antiga e mais clássica distinção entre civilização, cultura... Diria que é um uso mais comum do termo civilização.

P - Como a herança que você adquiriu ao crescer no Líbano determinou o rumo da sua história?

AM - Acredito que quando você cresce em uma região onde há divergências e conflitos constantes... Você adquire o hábito de observar o mundo de uma determinada maneira. Nascer em uma sociedade já dividida em comunidades, cada uma com sua trajetória, sua história, confere certos hábitos de pensamento, e o fato de vivenciar acontecimentos, também violentos, afeta a forma como vemos as coisas. Não sei dizer exatamente como ter nascido no Líbano afetou a minha visão, mas tenho certeza de que sim.