quinta-feira, 4 de setembro de 2025

O interesse nacional nas mensagens ao Congresso entre 1933 e 1937: ameaça das ideologias e centralização a favor do Estado - Palo Roberto de Almeida (Portal Interesse Nacional)

 

O interesse nacional nas mensagens ao Congresso entre 1933 e 1937: ameaça das ideologias e centralização a favor do Estado

Entre 1933 e 1937, as mensagens de Getúlio Vargas ao Congresso revelaram a centralização do poder em nome do “interesse nacional”, a omissão sobre resistências como 1932, a adoção de reformas sociais e eleitorais, e o avanço do autoritarismo diante da ameaça de ideologias radicais e da instabilidade internacional

O introdutor ao volume das mensagens presidenciais relativas aos quatro anos dos governos provisório e constitucional de Getúlio Vargas, entre 1933 e 1937, prof. José Augusto Guerra, surpreende-se desde o primeiro parágrafo de sua competente apresentação ao conteúdo desses importantes documentos da política nacional: “espera-se uma exposição tanto quanto possível minuciosa dos acontecimentos ocorridos em um passado próximo e depara-se com uma análise histórica de um passado remoto. Nisto difere das Mensagens que a antecederam, desde a de Deodoro da Fonseca” (Documentos Parlamentares 126, 1978, p. 9). Getúlio proferiu longo discurso na Assembleia Constituinte, dando conta “das razões que levaram à deposição do Presidente Washington Luís”, em 1930:

A nova distribuição das rendas, resultante da descentralização [efetuada pela Constituição de 1891, permitindo aos estados não só criarem impostos de exportação, mas também contratarem impostos externos sem o aval da União], foi péssima, refletindo-se desastradamente na vida dos Estados, para deixar uns na opulência [como São Paulo, por exemplo] e outros na miséria. Proveio daí, em parte, o estabelecimento das oligarquias locais [crítica à política do “café com leite”], tornadas endêmicas e voltadas para o centro, como no tempo da monarquia, e dele pedindo ordens e mendigando favores. Criou-se, mercê desse estado de coisas, uma espécie de casta governamental, instalada no poder, com o privilégio de aproveitar e distribuir os seus proventos. (Idem, p. 10)

Encontram-se já ali as fontes da forte centralização do poder da União que Getúlio promoveria em 1937, e que perdurou no Estado Novo e foi novamente retomada sob o regime militar de 1964-1985. Em contrapartida, Vargas sequer referiu-se ao movimento constitucionalista de 1932, com origem em São Paulo e que se opunha, justamente, às suas tendências autoritárias e centralizadoras. O Introdutor explica porque: 

Nessa deliberada omissão aos fatos de que todo participaram, Vargas revela uma das características de seu temperamento: o silêncio. Não era de soprar brasas, preferia contemplar a fumaça do seu próprio charuto. Nesse longo discurso de 15 de novembro de 1933, nenhum comentário sobre a guerra civil de 1932. Silêncio total sobre os fatos e emite elogios aos atos do Governo Provisório. (Idem, ibidem)

Mas o resto da mensagem contém evidências de atos que já correspondiam ao chamado interesse nacional: reforma eleitoral com a instituição do voto secreto, a representação proporcional, o voto feminino, a entrega à Justiça a apuração do pleito, e a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a legislação social, ou seja, reformas que correspondiam a aspirações nacionais que estiveram embutidas nas várias revoltas tenentistas da década precedente. A segunda mensagem não corresponde ao ano de 1934, todo ele ocupado pela Constituinte, na qual brilhou Oswaldo Aranha como ministro da Fazenda. Ele poderia ter sido escolhido como presidente nesse primeiro período, mas Vargas, maquiavelicamente, despachou-o para a embaixada em Washington, onde ficou até o golpe do Estado Novo, demitindo-se imediatamente após, para tornar-se ministro das relações exteriores em março de 1938, inclusive como forma de opor-se aos “fascistas” do governo.

A segunda mensagem, de maio de 1935, evidenciou a pouca adesão de Vargas a um regime de poder compartilhado com a representação política. O mundo já exibia os sinais claros de crise nas democracias liberais, em face da ascensão dos fascismos, do comunismo soviético, dos regimes autoritários ou já totalitários. O Brasil se recuperava da crise do início da década, mas já no final do ano foi confrontado à intentona comunista, o que colocou o problema da segurança do Estado como tema prioritário, tornado preeminente na mensagem do ano seguinte. Grupos radicais começam a se organizar para as eleições de 1938, o que projeta a primeira polarização que se consolidaria de forma permanente depois: entre direita e esquerda. No ano seguinte, 1936, já se instalava o Tribunal de Segurança Nacional, abrindo o caminho para o golpe ditatorial de novembro de 1937. 

‘O “interesse nacional”, naqueles anos, deveria estar concentrado no esforço de recuperação econômica, no contexto da depressão mundial, e de construção de uma economia mais voltada para a industrialização interna do que para a exportação de commodities, em primeiro lugar o café’

O “interesse nacional”, naqueles anos, deveria estar concentrado no esforço de recuperação econômica, no contexto da depressão mundial, e de construção de uma economia mais voltada para a industrialização interna do que para a exportação de commodities, em primeiro lugar o café. A radicalização impôs-se, vinda de fora, repercutida violentamente pelos seus adeptos no país, comunistas de um lado, integralistas do outro (que ainda tentaram um putsch em 1938). Todas as expectativas voltadas para a modernização do país tiveram de dar lugar a dezenas de leis, centenas de decretos, todos eles tratando de segurança interna e da repressão a grupos e movimentos organizados nos extremos. 

A política externa ganha maior projeção continental e a relação com os Estados Unidos adquire importância especial. A mensagem de 1935 reflete o ambiente negativo que vai das “quotas e contingenciamentos ao bloqueio direto das moedas e aos convênios de compensação” (p. 481), e se fala de compensar esse cenário com o “desenvolvimento de mercados internos em condições estáveis e compensadoras” (p. 482). A diplomacia prega a “formação de um bloco de nações americanas” como um “imperativo de ordem social e equilíbrio político”, num “órgão de defesa comum” (idem), o que obviamente não será concretizado. Mas, os antigos acordos comerciais com base na “nação mais favorecida” foram descontinuados, pois se reconheceu que essa 

… condição se tornou inoperante, em face dos óbices criados pela maioria das nações, que ora decretavam tarifas proibitivas para os nossos produtos, ora recorriam ao contingenciamento, ou faziam convênios com a cláusula de compensação, e, por fim, bloqueavam a saída de divisas internacionais para o pagamento das compras. (p. 484)

Em fevereiro de 1935, um novo tratado comercial com os Estados Unidos substituiu o precedente, de 1923, “com apreciáveis reduções sobre as antigas tarifas”, ao passo que “as concessões feitas aos [EUA] favorecem, apenas, os produtos industriais que recebemos habitualmente daquele País” (p. 486). Vargas viajou à Argentina e ali assinou um outro acordo comercial, que ainda pendia de aprovação legislativa. Os assuntos militares, contudo, ocuparam maior espaço na mensagem do que as questões diplomáticas. A imigração seria estimulada, mas se evitaria a formação de “colônias homogêneas”, sendo obrigatória “um mínimo de 30% de colonos nacionais”, como forma de corrigir e evitar “enquistamentos raciais”, com vistas a “promover a nacionalização dos elementos exóticos” (p. 536-37). O “imigrante desejável” é o agricultor e o nacionalismo se torna doutrina de Estado:

Nenhuma escola nas colônias, primária ou secundária, poderá ser regida por professores que não sejam brasileiros natos, como nenhuma criança, até 12 anos, poderá ser ensinada em outra língua, senão a portuguesa. (p. 537)

A introversão econômica já tinha sido reconhecida como inevitável, e o sistema tarifário deveria servir a uma dupla finalidade: “auxiliar a integração completa dos mercados internos” e defender, “por uma aplicação de tarifas consequentes as indústrias e o seu crescimento” (idem). No plano externo, a situação da dívida federal era a seguinte, ao final de 1935: dívida em libras de 105 milhões (gerando um serviço de 13 milhões); em dólares, de 172 milhões (serviço de 20 milhões); em francos-ouro, 229 milhões (serviço de 14 milhões) e dívida em francos-papel de 288 milhões e serviço de 180 milhões. Simultaneamente, o novo regime cerceou a capacidade dos estados de contraírem dívidas, como a Constituição de 1891 lhes havia outorgado, diminuindo proporcionalmente o seu serviço progressivamente. 

Nas conclusões da mensagem de 1936, a segurança nacional assumiu a preeminência esperada, junto com a “defesa do regime”, contra a “sedução das doutrinas exóticas” (p. 697), e se reconheceu, na política exterior, a “necessidade imperiosa de modificar… as diretrizes da nossa política econômica exterior”, pela denúncia de “todos os antigos tratados, convênios e acordos comerciais, na sua maioria baseados na cláusula da ‘nação mais favorecida’, inteiramente inoperante em face das novas condições dos negócios internacionais” (p. 709). 

A derradeira mensagem de Vargas, até sua derrocada, em outubro de 1945, foi feita em 3 de maio de 1937, e é bem mais concisa (com apenas 29 páginas, certamente um resumo da mensagem real) do que as 649 páginas da detalhadíssima mensagem do ano anterior, ou as 262 páginas da de 1935. Vargas declara que, “extintos os principais focos da rebelião de 1935”, a situação em 1937 “apresenta-se tranquila e próspera, de modo a inspirar confiança dentro como fora do país” (p. 719). Novamente, a “defesa do regime” e a situação econômica e financeira assumem maior espaço no documento, com apenas uma página e meia da “política exterior”, do lado da qual “nada temos a recear” (p. 734), seguindo-se uma declaração que sempre foi constante em todo o itinerário do país na frente externa:

Sempre fomos pacifistas e persistimos deliberadamente nesses propósitos. Nenhuma mudança se registrou nas diretrizes da nossa atuação internacional, sempre mantida no sentido de maior concórdia e estreita cooperação com os demais povos. (…)

Razões de ordem étnica e cultural, e mesmo geográficas e econômicas, impõem-nos, como aos demais países americanos, um contato permanente e amistoso, capaz de propiciar a solução harmônica de importantes problemas comuns. (p. 734-35)

De maneira geral, pode-se dizer que essas mensagens, elaboradas e apresentadas em anos de grande comoção nacional, confirmam uma característica básica da organização social e política da nação: a quase totalidade dos assuntos relevantes, tal como expressos nos documentos, são concebidos, elaborados e aplicados dentro do Estado, por meio do Estado, para o Estado, sendo a sociedade nacional relegada a um segundo plano, quase imperceptível. O “interesse nacional” é aquele que o Estado determina que seja, e o regime varguista, nos quatro anos cobertos pelas mensagens, atua basicamente no sentido de que tal conformação seja reafirmada, o que se reflete na conclusão desse último ano, seis meses antes do golpe do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937: 

Atravessando regimes políticos e fases diversas de economia, não conseguimos modificar a fisionomia adquirida inicialmente, apesar de vasta e variada legislação. Para grupos apreciáveis de população, o Estado era quase uma entidade desconhecida, apenas fazendo-se presente pela percepção de tributos mal lançados e improdutivamente aplicados. (…)

Todos os Estados modernos, exceto naqueles em que a mobilidade social é diminuta, constituíram-se como obra voluntária e acabada dos homens a que se confiou a missão de governar. (p. 737)

Pelos oito anos seguintes, desde esse 10 de novembro, sem Congresso e sem mensagens, Vargas se encarregaria de tornar o Estado bem mais presente, tendo assumido voluntariamente a missão de governar, segundo uma concepção do “interesse nacional” que ele se encarregou pessoalmente de formular e de implementar. Reinou a “paz” da ditadura. A República de 1946 tornaria essa definição e implementação bem mais complicada e agitada.

 

 Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional. Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com


O interesse nacional nas mensagens ao Congresso entre 1933 e 1937: ameaça das ideologias e centralização a favor do Estado - Paulo Roberto de Almeida (Portal Interesse Nacionsl)

O interesse nacional nas mensagens ao Congresso entre 1933 e 1937: ameaça das ideologias e centralização a favor do Estado

- Entre 1933 e 1937, as mensagens de Getúlio Vargas ao Congresso revelaram a centralização do poder em nome do “interesse nacional”, a omissão sobre resistências como 1932, a adoção de reformas sociais e eleitorais, e o avanço do autoritarismo diante da ameaça de ideologias radicais e da instabilidade internacional

Por Paulo Roberto de Almeida

https://lnkd.in/daRKvmRk 

O interesse nacional nas mensagens ao Congresso entre 1933 e 1937: ameaça das ideologias e centralização a favor do Estado

Entre 1933 e 1937, as mensagens de Getúlio Vargas ao Congresso revelaram a centralização do poder em nome do “interesse nacional”, a omissão sobre resistências como 1932, a adoção de reformas sociais e eleitorais, e o avanço do autoritarismo diante da ameaça de ideologias radicais e da instabilidade internacional

O introdutor ao volume das mensagens presidenciais relativas aos quatro anos dos governos provisório e constitucional de Getúlio Vargas, entre 1933 e 1937, prof. José Augusto Guerra, surpreende-se desde o primeiro parágrafo de sua competente apresentação ao conteúdo desses importantes documentos da política nacional: “espera-se uma exposição tanto quanto possível minuciosa dos acontecimentos ocorridos em um passado próximo e depara-se com uma análise histórica de um passado remoto. Nisto difere das Mensagens que a antecederam, desde a de Deodoro da Fonseca” (Documentos Parlamentares 126, 1978, p. 9). Getúlio proferiu longo discurso na Assembleia Constituinte, dando conta “das razões que levaram à deposição do Presidente Washington Luís”, em 1930:

        "A nova distribuição das rendas, resultante da descentralização [efetuada pela Constituição de 1891, permitindo aos estados não só criarem impostos de exportação, mas também contratarem impostos externos sem o aval da União], foi péssima, refletindo-se desastradamente na vida dos Estados, para deixar uns na opulência [como São Paulo, por exemplo] e outros na miséria. Proveio daí, em parte, o estabelecimento das oligarquias locais [crítica à política do “café com leite”], tornadas endêmicas e voltadas para o centro, como no tempo da monarquia, e dele pedindo ordens e mendigando favores. Criou-se, mercê desse estado de coisas, uma espécie de casta governamental, instalada no poder, com o privilégio de aproveitar e distribuir os seus proventos." (Idem, p. 10)

    Encontram-se já ali as fontes da forte centralização do poder da União que Getúlio promoveria em 1937, e que perdurou no Estado Novo e foi novamente retomada sob o regime militar de 1964-1985. Em contrapartida, Vargas sequer referiu-se ao movimento constitucionalista de 1932, com origem em São Paulo e que se opunha, justamente, às suas tendências autoritárias e centralizadoras. O Introdutor explica porque: 

    "Nessa deliberada omissão aos fatos de que todos participaram, Vargas revela uma das características de seu temperamento: o silêncio. Não era de soprar brasas, preferia contemplar a fumaça do seu próprio charuto. Nesse longo discurso de 15 de novembro de 1933, nenhum comentário sobre a guerra civil de 1932. Silêncio total sobre os fatos e emite elogios aos atos do Governo Provisório." (Idem, ibidem)

        Mas o resto da mensagem contém evidências de atos que já correspondiam ao chamado interesse nacional: reforma eleitoral com a instituição do voto secreto, a representação proporcional, o voto feminino, a entrega à Justiça a apuração do pleito, e a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a legislação social, ou seja, reformas que correspondiam a aspirações nacionais que estiveram embutidas nas várias revoltas tenentistas da década precedente. A segunda mensagem não corresponde ao ano de 1934, todo ele ocupado pela Constituinte, na qual brilhou Oswaldo Aranha como ministro da Fazenda. Ele poderia ter sido escolhido como presidente nesse primeiro período, mas Vargas, maquiavelicamente, despachou-o para a embaixada em Washington, onde ficou até o golpe do Estado Novo, demitindo-se imediatamente após, para tornar-se ministro das relações exteriores em março de 1938, inclusive como forma de opor-se aos “fascistas” do governo.

        A segunda mensagem, de maio de 1935, evidenciou a pouca adesão de Vargas a um regime de poder compartilhado com a representação política. O mundo já exibia os sinais claros de crise nas democracias liberais, em face da ascensão dos fascismos, do comunismo soviético, dos regimes autoritários ou já totalitários. O Brasil se recuperava da crise do início da década, mas já no final do ano foi confrontado à intentona comunista, o que colocou o problema da segurança do Estado como tema prioritário, tornado preeminente na mensagem do ano seguinte. Grupos radicais começam a se organizar para as eleições de 1938, o que projeta a primeira polarização que se consolidaria de forma permanente depois: entre direita e esquerda. No ano seguinte, 1936, já se instalava o Tribunal de Segurança Nacional, abrindo o caminho para o golpe ditatorial de novembro de 1937. 

        O “interesse nacional”, naqueles anos, deveria estar concentrado no esforço de recuperação econômica, no contexto da depressão mundial, e de construção de uma economia mais voltada para a industrialização interna do que para a exportação de commodities, em primeiro lugar o café. A radicalização impôs-se, vinda de fora, repercutida violentamente pelos seus adeptos no país, comunistas de um lado, integralistas do outro (que ainda tentaram um putsch em 1938). Todas as expectativas voltadas para a modernização do país tiveram de dar lugar a dezenas de leis, centenas de decretos, todos eles tratando de segurança interna e da repressão a grupos e movimentos organizados nos extremos. 

        A política externa ganha maior projeção continental e a relação com os Estados Unidos adquire importância especial. A mensagem de 1935 reflete o ambiente negativo que vai das “quotas e contingenciamentos ao bloqueio direto das moedas e aos convênios de compensação” (p. 481), e se fala de compensar esse cenário com o “desenvolvimento de mercados internos em condições estáveis e compensadoras” (p. 482). A diplomacia prega a “formação de um bloco de nações americanas” como um “imperativo de ordem social e equilíbrio político”, num “órgão de defesa comum” (idem), o que obviamente não será concretizado. Mas, os antigos acordos comerciais com base na “nação mais favorecida” foram descontinuados, pois se reconheceu que essa 

        "… condição se tornou inoperante, em face dos óbices criados pela maioria das nações, que ora decretavam tarifas proibitivas para os nossos produtos, ora recorriam ao contingenciamento, ou faziam convênios com a cláusula de compensação, e, por fim, bloqueavam a saída de divisas internacionais para o pagamento das compras." (p. 484)

        Em fevereiro de 1935, um novo tratado comercial com os Estados Unidos substituiu o precedente, de 1923, “com apreciáveis reduções sobre as antigas tarifas”, ao passo que “as concessões feitas aos [EUA] favorecem, apenas, os produtos industriais que recebemos habitualmente daquele País” (p. 486). Vargas viajou à Argentina e ali assinou um outro acordo comercial, que ainda pendia de aprovação legislativa. Os assuntos militares, contudo, ocuparam maior espaço na mensagem do que as questões diplomáticas. A imigração seria estimulada, mas se evitaria a formação de “colônias homogêneas”, sendo obrigatória “um mínimo de 30% de colonos nacionais”, como forma de corrigir e evitar “enquistamentos raciais”, com vistas a “promover a nacionalização dos elementos exóticos” (p. 536-37). O “imigrante desejável” é o agricultor e o nacionalismo se torna doutrina de Estado:

        Nenhuma escola nas colônias, primária ou secundária, poderá ser regida por professores que não sejam brasileiros natos, como nenhuma criança, até 12 anos, poderá ser ensinada em outra língua, senão a portuguesa. (p. 537)

        A introversão econômica já tinha sido reconhecida como inevitável, e o sistema tarifário deveria servir a uma dupla finalidade: “auxiliar a integração completa dos mercados internos” e defender, “por uma aplicação de tarifas consequentes as indústrias e o seu crescimento” (idem). No plano externo, a situação da dívida federal era a seguinte, ao final de 1935: dívida em libras de 105 milhões (gerando um serviço de 13 milhões); em dólares, de 172 milhões (serviço de 20 milhões); em francos-ouro, 229 milhões (serviço de 14 milhões) e dívida em francos-papel de 288 milhões e serviço de 180 milhões. Simultaneamente, o novo regime cerceou a capacidade dos estados de contraírem dívidas, como a Constituição de 1891 lhes havia outorgado, diminuindo proporcionalmente o seu serviço progressivamente. 

        Nas conclusões da mensagem de 1936, a segurança nacional assumiu a preeminência esperada, junto com a “defesa do regime”, contra a “sedução das doutrinas exóticas” (p. 697), e se reconheceu, na política exterior, a “necessidade imperiosa de modificar… as diretrizes da nossa política econômica exterior”, pela denúncia de “todos os antigos tratados, convênios e acordos comerciais, na sua maioria baseados na cláusula da ‘nação mais favorecida’, inteiramente inoperante em face das novas condições dos negócios internacionais” (p. 709). 

        A derradeira mensagem de Vargas, até sua derrocada, em outubro de 1945, foi feita em 3 de maio de 1937, e é bem mais concisa (com apenas 29 páginas, certamente um resumo da mensagem real) do que as 649 páginas da detalhadíssima mensagem do ano anterior, ou as 262 páginas da de 1935. Vargas declara que, “extintos os principais focos da rebelião de 1935”, a situação em 1937 “apresenta-se tranquila e próspera, de modo a inspirar confiança dentro como fora do país” (p. 719). Novamente, a “defesa do regime” e a situação econômica e financeira assumem maior espaço no documento, com apenas uma página e meia da “política exterior”, do lado da qual “nada temos a recear” (p. 734), seguindo-se uma declaração que sempre foi constante em todo o itinerário do país na frente externa:

        Sempre fomos pacifistas e persistimos deliberadamente nesses propósitos. Nenhuma mudança se registrou nas diretrizes da nossa atuação internacional, sempre mantida no sentido de maior concórdia e estreita cooperação com os demais povos. (…)

        Razões de ordem étnica e cultural, e mesmo geográficas e econômicas, impõem-nos, como aos demais países americanos, um contato permanente e amistoso, capaz de propiciar a solução harmônica de importantes problemas comuns. (p. 734-35)

        De maneira geral, pode-se dizer que essas mensagens, elaboradas e apresentadas em anos de grande comoção nacional, confirmam uma característica básica da organização social e política da nação: a quase totalidade dos assuntos relevantes, tal como expressos nos documentos, são concebidos, elaborados e aplicados dentro do Estado, por meio do Estado, para o Estado, sendo a sociedade nacional relegada a um segundo plano, quase imperceptível. O “interesse nacional” é aquele que o Estado determina que seja, e o regime varguista, nos quatro anos cobertos pelas mensagens, atua basicamente no sentido de que tal conformação seja reafirmada, o que se reflete na conclusão desse último ano, seis meses antes do golpe do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937: 

        Atravessando regimes políticos e fases diversas de economia, não conseguimos modificar a fisionomia adquirida inicialmente, apesar de vasta e variada legislação. Para grupos apreciáveis de população, o Estado era quase uma entidade desconhecida, apenas fazendo-se presente pela percepção de tributos mal lançados e improdutivamente aplicados. (…)

        Todos os Estados modernos, exceto naqueles em que a mobilidade social é diminuta, constituíram-se como obra voluntária e acabada dos homens a que se confiou a missão de governar. (p. 737)

        Pelos oito anos seguintes, desde esse 10 de novembro, sem Congresso e sem mensagens, Vargas se encarregaria de tornar o Estado bem mais presente, tendo assumido voluntariamente a missão de governar, segundo uma concepção do “interesse nacional” que ele se encarregou pessoalmente de formular e de implementar. Reinou a “paz” da ditadura. A República de 1946 tornaria essa definição e implementação bem mais complicada e agitada.


Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional. Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com 

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

A queda (autopropulsada) do maior império do mundo - Paulo Roberto de Almeida

 Vamos ser claros e brutais: Trump está destruindo o que eles chamam de America, colocando o ROW (Rest Of the World) em polvorosa, em todas as dimensões internas e externas possíveis, nos planos constitucional, bilateral, multilateral, econômico, político, cultural, diplomático, e tudo o mais, para maior satisfação, prazer e alivio da China de Xi Jinping, que assim pode exercer a sua Hegemonia em total tranquilidade.

Trata-se de um caso único na história da Humanidade: o maior império do mundo sendo dinamitado, literalmente e concretamente, pelo seu próprio dirigente, absolutamente demencial, como todos já devem ter percebido.

Qualquer comentário pró-Trump ou Bozo (outro idiota irrecuperável) será inediatamente deletado, sem recurso.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4/09/2025


Crise no sistema multilateral de comércio: dimensão e implicações - Paulo Roberto de Almeida (debate no Livres)

Mais recente trabalho elaborado, para subsidiar debate no âmbito do Livres, em 4/09/2025, conforme o poster anexo.


5046. “Crise no sistema multilateral de comércio: dimensão e implicações”, Brasília, 3 setembro 2025, 6 p.

Considerações sobre a crise do comércio internacional na era Trump e dilemas para o Brasil. Distribuído em previsão do debate mantido no âmbito do Livres em 4/09/2024 (link: https://eusoulivres.odoo.com/event/a-crise-do-sistema-multilateral-de-comercio-como-o-brasil-deveria-reagir-5). Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/143776760/5046_Crise_no_sistema_multilateral_de_comercio_dimensao_e_implicacoes_2025_ )

Encontro aberto ao público, online 

Mediação e dinâmica de perguntas gerida pela equipe Livres

Acesso pelo https://zoom.eusoulivres.org 

Senha do Zoom: livres

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

China’s economic summit and military parade may signal a geopolitical shift (PBS)

 China’s economic summit and military parade may signal a geopolitical shift

 PBS, 

TOKYO (AP) — The leaders of China, North Korea and Russia stood shoulder to shoulder Wednesday as high-tech military hardware and thousands of marching soldiers filled the streets of Beijing.

Two days earlier, Indian Prime Minister Narendra Modi, Russian President Vladimir Putin and Chinese President Xi Jinping huddled together, smiling broadly and clasping hands at a meeting of the Shanghai Cooperation Organization.

The gatherings in China this week could be read as a striking, maybe even defiant, message to the United States and its allies. At the very least, they offered yet more evidence of a burgeoning shift away from a U.S.-dominated, Western-led world order, as President Donald Trump withdraws America from many of its historic roles and roils economic relationships with tariffs.

Trump himself indicated he was the leaders’ target in a message on social media to Xi: “Please give my warmest regards to Vladimir Putin, and (North Korean leader) Kim Jong Un, as you conspire against The United States of America.”

But China’s military parade commemorating the 80th anniversary of the end of World War II, and the earlier economic gathering, is also simply more of the self-interested, diplomatic jockeying that has marked regional power politics for decades.

Each of these leaders, in other words, is out for himself.

Xi needs cheap Russian energy and a stable border with North Korea, his nuclear-armed wildcard neighbor. Putin is hoping to escape Western sanctions and isolation over his war in Ukraine. Kim wants money, legitimacy and to one-up archrival South Korea. Modi is trying to manage his relationship with regional heavyweights Putin and Xi, at a moment when ties with Washington are troubled.

The events highlight China’s regional aspirations

China is beset with serious domestic problems — stark economic and gender inequalities, to name two — and a tense standoff with Taiwan, the self-governing island that Beijing claims as its own. But Xi has tried to position China as a leader of countries that feel disadvantaged by the post-World War II order.

“This parade showcases the ascendancy of China propelled by Trump’s inept diplomacy and President Xi’s astute statecraft,” said Jeff Kingston, a professor of Asian studies at Temple University Japan. “The Washington consensus has unraveled, and Xi is rallying support for an alternative.”

WATCH: Trump says China and Russia ‘were hoping I was watching’ the military ceremony

Some analysts caution against reading too much into Russia-China-North Korea ties. China remains deeply wary of growing North Korean nuclear power, and has long sought to temper its support — even agreeing at times to international sanctions — to try to influence Pyongyang’s pursuit of weapons.

“Though the Russia-North Korea tie has resumed to a military alliance, China refuses to return to the year of 1950,” when Beijing sent soldiers to support North Korea’s invasion of the South and the USSR provided crucial military aid, said Zhu Feng, dean of the School of International Relations of Nanjing University. “It is wrong to believe that China, Russia and North Korea are reinforcing bloc-building.”

Russia looks to China to help ease its isolation

For the Kremlin, Putin’s appearance in Beijing alongside major world leaders is another way to shrug off the isolation imposed by the West on Russia in the wake of its full-scale invasion of Ukraine in February 2022.

It has allowed Putin to take to the world stage as a statesman, meeting a host of world leaders, including Modi, Turkish President Recep Tayyip Erdogan, and Iranian President Masoud Pezeshkian. And Putin’s reception by Xi is a reminder that Russia still has major trading partners, despite Western sanctions that have cut off access to many markets.

PHOTOS: China’s military parade reveals new hypersonic missiles, drone submarines and ICBMs

At the same time, Russia does not want to anger Trump, who has been more receptive than his predecessor, particularly in hearing out Moscow’s terms for ending its war with Ukraine.

“Over these four days, during negotiations of all kinds, both in formal and informal settings, no one has ever expressed any negative judgments on the current American administration,” Putin told reporters, in an apparent reference to Trump’s post.

Alexander Gabuev, director of the Carnegie Russia Eurasia Center, noted that its relationship with China is critical for Russia.

“Russia is the major beneficiary of China’s ability to provide dual-use goods and all the technologies to circumvent the sanctions and keep the military machine (going). China has become the major source of Russia’s export revenues that is filling Putin’s war chest,” Gabuev said. “For China, obviously, Russia’s war in Ukraine provides a distraction to the U.S.”

Kim Jong Un walks a diplomatic tightrope in Beijing

The North Korean leader’s trip to Beijing will deepen new ties with Russia while also focusing on the shaky relationship with his nation’s most crucial ally, and main economic lifeline, China.

Kim has sent thousands of troops and huge supplies of military equipment to help Russian forces to repel a Ukrainian incursion on their territory.

Without specifically mentioning the Ukraine war, Kim told Putin on Wednesday that “if there’s anything I can do for you and the people of Russia, if there is more that needs to be done, I will consider it as a brotherly obligation, an obligation that we surely need to bear.”

The Institute for National Security Strategy, a think tank affiliated with South Korea’s spy agency, said in a report this week that Kim’s trip, his first appearance at a multilateral diplomatic event since taking power in 2011, is meant to strengthen ties with friendly countries ahead of any potential resumption of talks about its nuclear program with Trump. The two leaders’ nuclear diplomacy collapsed in 2019.

“Kim can also claim a diplomatic victory as North Korea has gone from unanimously sanctioned by the U.N. Security Council for its illegal nuclear and missile programs to being embraced by UNSC permanent members Russia and China,” said Leif-Eric Easley, professor of international studies at Ewha Womans University in Seoul.

India’s Modi is playing a nuanced game

Modi is on his first visit to China since relations between the two countries deteriorated after Chinese and Indian soldiers engaged in deadly border clashes in 2020.

But the tentative rapprochement has its limits. Praveen Donthi, a senior analyst with the International Crisis Group, said the Indian leader did not participate in Beijing’s military parade because the “distrust with China still exists.”

“India is carefully walking this tightrope between the West and the rest, especially when it comes to the U.S., Russia and China,” he said. “Because India does not believe in formal alliances, its approach has been to strengthen its relationship with the U.S., maintain it with Russia, and manage it with China.”

Even as he takes some steps toward China, the United States is also on Modi’s mind.

India and Washington were negotiating a free trade agreement when the Trump administration imposed 25% tariffs for New Delhi’s purchases of Russian oil, bringing the combined tariffs to 50%.

Trade talks have since stalled and relations have significantly declined. Modi’s administration has vowed to not to yield to U.S. pressure and signaled it is willing to move closer to China and Russia.

But Donthi said India would still like to keep a window open for Washington.

“If Modi can shake hands with Xi five years after the India-China border clash, it could be far easier for him to shake hands with Trump and get back to strengthening ties, because they are natural allies,” he said.

Associated Press writers Kim Tong-hyung and Hyung-jin Kim in Seoul, South Korea; Ken Moritsugu in Beijing; Sheikh Saaliq in New Delhi; Katie Marie Davies in Manchester, England; Joanna Kozlowska in London contributed.


segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Crise do sistema multilateral de comércio: como o Brasil deve reagir? - Debate do Livres, 4/09/2025

 Crise do sistema multilateral de comércio: como o Brasil deve reagir?

(Boa pergunta)



A novela das tarifas dos EUA está apenas começando - Otaviano Canuto Poder 360

A novela das tarifas dos EUA está apenas começando

Otaviano Canuto - Center for Macroeconomics and Development
Poder 360, 30 de agosto de 2025
Tarifas de Trump afetarão a composição geográfica das importações, não o saldo comercial

Tarifas de importação efetivas medem o grau de proteção que a estrutura tarifária oferece ao valor agregado por um setor ao produto final em um país, levando em conta tanto o imposto sobre bens finais quanto o vigente sobre insumos importados utilizados em sua produção. Tomando-se como base as importações dos Estados Unidos no ano passado, estimativas feitas por Maia G. Crook, em relatório do JPMorgan da semana passada, apontam que a alíquota média de tarifas efetivas dos EUA está atualmente em 16%, devendo se aproximar de 20% até o final do ano. Isso representa um aumento em relação aos 13% em meados do ano e aos 2,3% do ano passado.

Dados do Departamento de Comércio dos EUA divulgados ontem por MarketWatch indicaram um acentuado aumento do déficit comercial de bens em julho, em parte refletindo uma corrida por empresas para evitar tarifas aplicadas a partir de primeiro de agosto. As importações aumentaram 7,1%, para US$ 281,5 bilhões em julho, de acordo com a versão antecipada do relatório comercial mensal do governo, enquanto as exportações caíram 0,1%, para US$ 178 bilhões.

A julgar pelo baixo aumento de estoques em julho (0,2%), o déficit comercial de julho deve representar uma contribuição negativa de importações sobre os números do Produto Interno Bruto (PIB) do país no terceiro trimestre. Ainda faltam agosto e setembro para sabermos.

É claro que ainda é cedo para avaliar o êxito ou fracasso das tarifas de Trump como meio de substituição de importações por produção doméstica, tentando reduzir o déficit comercial em bens dos EUA. Mas dá para ver como a composição do comércio dos EUA já está mudando como reflexo das tarifas mais altas, com diferenciação entre países.

O impacto das tarifas mais altas aparece com clareza no comércio EUA-China. Segundo cálculos de Robin Brooks, a tarifa efetiva dos EUA para a China está em 44%, bem acima dos 17% em dezembro de 2024. Já a tarifa efetiva para o resto do mundo, segundo Brooks, estava em 15% em junho, contra 4% em dezembro de 2024.

Por isso, as importações nominais da China pelos EUA caíram 48% em relação ao nível de 2024 em junho, enquanto o déficit comercial bilateral dos EUA diminuiu 61%, para o menor patamar em vinte anos: US$ 9,5 bilhões. A participação da China nas importações dos EUA caiu 6,3% em relação à média do ano passado.

E quanto aos resultados mais amplos? O nível geral das importações do primeiro semestre aumentou 6,3% em relação à média de 2024, subindo como parcela do PIB. A antecipação de embarques de mercadorias antes de tarifas vigorarem distorceu os fluxos comerciais durante os primeiros seis meses do ano. Mas dá para dizer que os setores mais afetados pelos aumentos de tarifas não mostraram sinais de uma rotação significativa na demanda em direção à produção doméstica até junho, com a composição setorial das importações parecendo praticamente inalterada, exceto pelos efeitos da antecipação.

A ausência de mudança significativa na demanda geral de importações se fez acompanhar por alterações na composição das importações dos EUA em direção a países com tarifas mais baixas. Houve deslocamento de importações da China para mercados emergentes asiáticos e o México, refletindo transbordos da China para evitar tarifas mais altas, a antecipação de importações de eletrônicos antes da ameaça de tarifas mais altas e o efeito substituição, à medida que as tarifas alteram os preços relativos.

Trata-se de um cenário tarifário e de comércio ainda em movimento. Os acordos comerciais dos EUA com a União Europeia, Japão, Vietnã e Indonésia vieram em julho, assim como os tarifaços sobre Brasil e Índia esse mês. As tarifas efetivas para o segundo semestre e o impacto destas sobre as importações do país – inclusive suas diferenças em relação às aplicadas sobre a China – trarão novos deslocamentos na composição geográfica de origens das compras externas de bens pelos EUA.

Não necessariamente no saldo comercial de bens, que depende fortemente do patamar de demanda agregada em relação à capacidade doméstica de oferta. O choque tarifário é enorme e, apesar de ainda não estar em pleno vigor, alguma presença de efeitos danosos sobre a atividade econômica e/ou níveis de preços domésticos já era esperada. Mas o crescimento econômico doméstico continua robusto.

Quinta-feira, o Bureau de Análise Econômica reviu sua estimativa de crescimento do PIB no segundo trimestre para um valor anualizado de 3,3%, depois de uma estimativa inicial de 3,0%. O intenso boom em curso puxado pelos investimentos em inteligência artificial, inclusive novos centros de processamento de dados intensivos em uso de energia, tem mais que compensado os impactos negativos da incerteza quanto a políticas e as tarifas sobre a parte da economia diretamente afetada por estas.

Na inflação, o índice de preços de “despesas pessoais dos consumidores” (PCE em inglês) – também divulgado ontem pelo BEA – subiu anualmente à taxa de 2,9% em julho, uma máxima em 5 meses, refletindo inclusive alguns efeitos de tarifas. O fato é que os itens manufaturados e agrícolas da cesta média de consumo das famílias dos EUA é hoje bem menor que no passado.

O patamar inflacionário não será provavelmente suficiente para alterar a expectativa de queda de juros pelo Federal Reserve Bank (Fed) em setembro. Na sexta-feira 22 de agosto, Jerome Powell, presidente do Fed, durante fala em Jackson Hole, pôs mais ênfase na desaceleração da criação de postos de trabalho como norte da próxima decisão, a despeito das dúvidas vigentes acerca da origem – na demanda ou na oferta de trabalho – subjacente a tal desaceleração.

Cabe mencionar também o aumento de receitas governamentais acompanhando as tarifas mais altas: em junho subiram para US$ 283 bilhões em termos anualizados, contra US$ 76 bilhões em 2024, segundo números de Maia G Crook, do JPMorgan. Esse valor deve continuar a aumentar por conta dos atrasos na arrecadação e dos aumentos tarifários ainda em andamento.

Tal aumento de arrecadação tributária via tarifas já foi sugerido como indicador de vitória com as tarifas. Por outro lado, distante de compensar a queda de receitas que acompanhará a lei orçamentária de Trump recém-aprovada pelo Congresso. Há aqui uma contradição: na extensão em que as tarifas tenham êxito na substituição de importações por produção doméstica, esse ganho arrecadatório desaparece. Detalhe esquecido em recente relatório do Escritório de Orçamento do Congresso (CBO em inglês), think tank não-partidário do Congresso dos EUA, muito otimista quanto à evolução do déficit público dos EUA por conta das tarifas.

Em suma, a trama da novela das tarifas de Trump ainda não chegou a seus momentos de ápice, mas se enxerga uma rotação nas fontes de importações. No que diz respeito ao saldo comercial, por seu turno, tudo vai depender da continuidade do boom puxado por investimentos em alta tecnologia. Os efeitos deletérios das tarifas sobre o resto vão tomar tempo até o enredo se desdobrar.

Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e professor afiliado na Universidade Mohammed VI Polytechnique.

2000: 25 anos atrás, a IIRSA de FHC - Gustavo Felix de Lima (Nota PRA)

2000: 25 anos atrás, a IIRSA de FHC

Gustavo Felix de Lima

Há 25 anos, em 31 de agosto de 2000, Brasília sediava um encontro inédito: a primeira Reunião de Presidentes da América do Sul, convocada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Durante dois dias, os chefes de Estado dos doze países da região — da Argentina à Venezuela, passando por Guiana e Suriname — reuniram-se para discutir os rumos do continente.

O momento era carregado de simbolismo. Nunca antes todos os líderes sul-americanos haviam se sentado à mesma mesa para pensar o futuro regional. Havia divergências ideológicas claras — conservadores, liberais, social-democratas e líderes de esquerda dividiam o mesmo espaço. Ainda assim, prevaleceu um espírito de cooperação. Ao contrário do clima polarizado que hoje domina a política, eram raros os ataques pessoais. A maioria dos presidentes entendia que sem algum nível de integração regional seria impossível enfrentar desafios comuns: consolidar a democracia, defender direitos humanos, reduzir a desigualdade, facilitar o comércio e cooperar contra o crime organizado. Um dos resultados-chave da cúpula foi a criação da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, ou simplesmente IIRSA, é um programa que visou a promover a integração sul-americana através da integração física desses países.

O Comunicado de Brasília trouxe propostas concretas em todas essas frentes e inaugurou um período de maior aproximação política e econômica entre os vizinhos. O contexto internacional ajudou: o início da chamada “década dourada” para a América Latina, impulsionada pelo boom das commodities, garantiu taxas de crescimento não vistas havia décadas.

Do ponto de vista político, a reunião simbolizou uma aposta na construção de uma identidade regional própria, distinta da dependência histórica em relação aos Estados Unidos ou à Europa.

O contraste com os dias atuais é marcante. Uma reunião desse porte, dedicada a pensar coletivamente o futuro da América do Sul para além das disputas partidárias, soa hoje quase impossível.

A cúpula de 2000 é um lembrete que, quando a cooperação prevalece sobre disputas ideológicas, a região é capaz de dar passos reais rumo á estabilidade e prosperidade.

Gustavo Felix de Lima

Nota PRA: A IIRSA, infelizmente, não foi continuada pelos governos do PT. Ao contrário, foi deliberadamente descontinuada. Em seu lugar veio o palanquismo antiamericano de Lula-Amorim, com a proposta de uma Comunidade Sul-Americana de Nações, imediatamente sabotada por Chávez e Kirchner, que manobraram para ter a Unasul criada pelos bolivarianos, com uma suntuosa sede em Quito (nos tempos do bolivariano Rafael Correa), construída com os petrodólares da ditadura chavista, que o lulopetidmo sempre apoioi (por negócios sobretudo).


Trump is alienating America’s friends. Can China win them over? - NYT

 

From The New York Times:

First Light Brief - 01.09.2025

Trump is alienating America’s friends. Can China win them over?

The most interesting thing about the big security summit in China this week is the guest list. 

More than 20 leaders have joined President Xi Jinping at the meeting of the Shanghai Cooperation Organization, which started yesterday in Tianjin. 

That’s the most in the organization’s history.

They include Prime Minister Narendra Modi of India and President Vladimir Putin of Russia. But the list also includes the leaders of American partners like Turkey and Egypt, and their presence speaks to a rapidly changing geopolitical reality. 

China has summoned the non-Western-aligned world to this event to tell Washington: “You are no longer calling the shots.”

The thing that’s special about this summit is that geopolitics is at play in a way that we haven’t seen in a very long time. 

The Trump administration has upended the U.S. alliance system. It’s gifting this incredible opportunity to Xi Jinping to pull friends away from the U.S.

Modi was scheduled to come here before the dust-up with Trump. But it has certainly injected a lot of momentum into his trip. Modi is signaling to the U.S. that he has options, that there are consequences for the chaotic foreign policy that’s coming out of Washington.

It’s striking that Trump has used these incredibly different approaches to Russia and India: Red carpet for Putin, tariffs for Modi. But both these approaches seem to help China.

Xi feels validated for sticking by Putin. He was under so much pressure after the invasion of Ukraine. Now they’re watching Putin show up on American soil, the red-carpet handshake, and they suddenly no longer feel U.S. pressure for this relationship.

In a previous era, stability offered by China might have been worth much less because the U.S. and the West offered stability, too. But in a world where that stability is no longer a given, it comes at a premium.

That is the story China is trying to tell. But let’s be clear: China isn’t the most reliable partner either. They are not a security partner the way that the U.S. is and if you’re from a country that values democracy and human rights, they’re not going to stick up for you on any of those things.

The summit will be followed by a big military parade in Beijing marking the end of World War II. What’s the message that China is trying to project here?

The conflict with Japan during World War II is the engine of nationalism in China, fueled by China’s sense that Japan has never sincerely apologized for its wrongs. So, at home, the message is: China has a world-class military that will never let something like World War II happen again. But there is a message to the world, too: China is saying, “we played a bigger role than the West gives us credit for in World War II” — much like Putin is saying.

One of the reasons China is interested in highlighting this history is because there were these arrangements made with the West during and after World War II that would have given China greater territorial claims in the South China Sea and over Taiwan. 

So China is using its military, its history and its diplomacy, all to enhance its ambitions today.

So it’s kind of a message about the past, but really it’s a message directed at shaping the future.

Source: https://www.nytimes.com/2025/08/30/world/asia/xi-putin-modi-china-summit.html 

Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...