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domingo, 11 de julho de 2010

A Quarta Frota Americana e a Amazônia Azul

Como nos demais casos já postados aqui, se trata de uma demanda de respostas a questões colocadas por estudante de curso de especialização, achando que eu sou uma sumidade em qualquer assunto (o que obviamente não é o caso, mas parece que eu engano bem...).
Como nos casos anteriores, jamais soube o que foi feito de minhas respostas, como elas foram integradas ao trabalho e qual foi o resultado final.
Bem, considero-me então desobrigado a manter a discrição sobre minhas respostas, e as divulgo neste momento, na suposição de que elas possam interessar a um público mais vasto.
Paulo Roberto de Almeida

A Quarta Frota Americana e a Amazônia Azul
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 3 de agosto de 2008)
Respostas a questionário submetido por funcionário do Serviço de Documentação da Marinha
Curso Superior da Escola de Guerra Naval (EGN)

1) A nova ordem mundial tem como característica marcante a globalização. Os países buscam na cooperação a solução de problemas comuns, como o terrorismo, o narcotráfico, etc. O senhor acha que o caminho é a cooperação internacional?
PRA: Não há um único caminho para a solução de grandes problemas globais, uma vez que o multilateralismo puro, estilo onusiano, é sempre lento e abre espaço para práticas oportunistas, do tipo free-rider (isto é, países que não cooperam para a solução de problemas comuns, nem assumem os custos de políticas corretivas, mas se beneficiam da ação de outros). Entretanto, nas condições atuais, dificilmente um único país, mesmo poderoso, pode assumir sozinho tarefas de grande magnitude, daí a funcionalidade, ou utilidade da cooperação internacional. Não que ela seja exclusiva ou excludente, mas é o caminho “natural” num mundo que vem afastando cada vez mais as ações unilaterais ou imperiais e afirmando o primado do direito internacional e da cooperação entre países supostamente iguais, segundo os princípios onusianos. Se é para respeitar a chamada soberania nacional, não há como evitar a cooperação, uma vez que dificilmente países poderosos alcançariam legitimidade na busca de soluções unilaterais, que poderiam, teoricamente, infringir a soberania de outros Estados. Esta constatação vale praticamente para a maior parte dos problemas globais, com a possível exceção da segurança e defesa nacional, terreno no qual a cooperação entre os países, ou a ação da ONU, são notoriamente deficientes.

2) Também sob o efeito da globalização, o conceito de soberania está se transformando. Quais os limites aceitáveis de uma cooperação internacional na área de segurança que não venha a infringir a soberania dos Estados?
PRA: A evolução nessa área é muito lenta, e o mundo está longe de abandonar os velhos princípios westfalianos para adotar outras regras de soberania limitada, ou o exercício responsável dessa soberania. Atualmente, sem que haja evolução legal nesse sentido, considera-se, por exemplo, que um governo (ou um dirigente) que impõe sofrimentos enormes ao seu próprio povo corre o risco de se defrontar com sanções externas, ainda que impostas contra a sua vontade, quando não com intervenção forçada nos casos mais extremos. Tal ocorreu em alguns países africanos, de certo modo com o próprio Haiti, e poderia ter sido invocado no caso de Miamar, por ocasião do maremoto do primeiro semestre de 2008. Estes, porém, são casos extremos, quando a própria sobrevivência física das pessoas está em causa, mas se torna difícil de aplicar em casos de governos ditatoriais “normais” ou infração a normas que não sejam absolutamente universais e de adesão obrigatória.
O caso mais flagrante do gênero foi a autorização dada pelo CSNU para uma intervenção contra o governo talibã do Afeganistão, presumivelmente comprometido com os grupos terroristas responsáveis pelos ataques de setembro de 2001 em território americano. O mesmo, no entanto, não ocorreu quando o mesmo argumento foi levantado pelos EUA contra o governo do Iraque, então sob o ditador Saddam Hussein, tendo a autorização do CSNU sido recusada aos EUA para um ataque preventivo dito de auto-defesa. Os limites para o rompimento do principio da soberania parecem ser, assim, o da presunção razoável de que algum Estado ameaça a paz e a segurança internacional de modo efetivo.

3) O Brasil, com seus problemas econômicos e sociais internos, dificilmente poderá deslocar recursos financeiros suficientes e meios efetivos para a solução ou enfrentamento das chamadas “novas ameaças”. Como o senhor vê a situação brasileira quanto a proteção das riquezas encontradas na nossa Amazônia Azul, mais propriamente dos nossos poços de petróleo? Uma saída seria a segurança cooperativa com países das Américas?
PRA: Não creio. Recursos nacionais exclusivos devem ser defendidos com meios exclusivamente nacionais, mas reconheço que nem todos os Estados, sobretudo os menores, possuem recursos suficientes para enfrentar todas as ameaças potenciais. Daí que a solução cooperativa pode ser uma espécie de “second best”, ou seja, um substituto ao ideal. Dito isto, creio que o Brasil possui meios suficientes para defender suas plataformas de petróleo, sendo que a insuficiência alegada pode ser resolvida mediante uma simples inversão de prioridades orçamentárias: os meios técnicos existem, basta uma decisão política para colocá-los em vigor.
Existem, porém, outras ameaças, mais difusas, como as do tráfico de drogas, de ilícitos transnacionais, a gestão de recursos comuns do meio ambiente, que requerem, sim, meios cooperativos nos planos multilateral e regional. A segurança comum às Américas depende de uma percepção também comum de que existem ameaças credíveis ao continente como um todo, vindos de algum agressor externo, o que me parece algo aleatório atualmente. Contemplando a geopolítica atual e sua possível evolução nos próximos anos ou décadas, não se consegue perceber que tipo de ameaças “globais” estariam sendo colocadas na região geográfica do Brasil, qual seja a América do Sul e o Atlântico Sul. As ameaças mais factíveis parecem provir de dentro mesmo do continente, e ai podem até exigir respostas comuns, mas não do tipo que normalmente se identifica como a “grande geopolítica”. Nossos problemas são mais de “pequena geopolítica”.

4) Na sua opinião, quais os motivos que levaram os Estados Unidos a reativarem a Quarta Frota?
(OBS - Apesar do real motivo ser desconhecido até o presente momento, para a monografia me pautei na importância do Atlântico Sul como rota marítima, a recente descoberta de enormes reservas de petróleo em áreas de grande profundidade (conhecidas como “pré-sal”) na plataforma continental brasileira e a questão do destino da Antártica)
PRA: Os EUA, quer eles aceitem ou não a hipótese, constituem um poder imperial, e como todo poder imperial sua visão estratégica é propriamente global. Sua liderança político-militar estabeleceu, desde 1947 pelo menos, que não iria permitir o aparecimento ou a manutenção de nenhum outro poder que pudesse se igualar ao seu poderio militar ou em condições de ameaçar os interesses estratégicos dos EUA, fosse este amigo ou inimigo, não importa. Daí a necessidade de eles perseguirem um nível de preeminência estratégico-militar até exagerado, mas comensurável com o que eles acreditam serem os desafios possíveis.
O Atlântico Sul, rota de trânsito de grande parte do petróleo importado pelos EUA, não dispunha, desde cinco décadas, de uma “cobertura” estratégica, daí a decisão em recriar a IV Frota, que nada mais representa do que um “acabamento” dos cenários possíveis de enfrentamento estratégico. Suponho que a IV Frota não esteja dirigida contra nenhum “grande inimigo” em particular, apenas representa uma apólice de seguro contra reviravoltas na geopolítica internacional. Os EUA não necessitam, certamente, da IV Frota, para administrar o atual problema da Venezuela (um candidato a ditador que se compraz em “enfrentar” o “império”), que será “resolvido” por meios políticos no momento oportuno.
Tampouco se pode conceber o uso da IV Frota para alguma questão no âmbito da Antártida e menos ainda para qualquer pendência bilateral com o Brasil na exploração de recursos advindos da plataforma continental (petróleo e outros). Mesmo um império “autônomo” como os EUA atua em função dos interesses econômicos de suas empresas e estas requerem muito mais soluções cooperativas do que de afirmação colonial. Apenas uma “concepção paranóica” das relações bilaterais e internacionais poderia conceber a IV Frota como funcional para fins de exploração de recursos marinhos e outros.

5) Com a atual situação do Brasil referente a necessidade de meios adequados, em quantidade suficiente para uma presença naval permanente na Amazônia Azul, a presença da Quarta Frota poderia ajudar a acelerar o processo de reaparelhamento da nossa Marinha?
PRA: Não deveria, mas pode servir, nas condições políticas que são as atuais no Brasil, com baixo planejamento estratégico e ainda menor discernimento quanto ao cenário estratégico global. Ou seja, a reação paranóica aludida acima pode levar ao desvio de recursos – totalmente irracionais neste caso – de outras prioridades no plano estratégico e de defesa nacional para uma suposta dissuasão à IV Frota no Atlântico Sul, o que seria tão custoso quanto inútil. Os EUA não são o inimigo estratégico do Brasil, que aliás não parece ter nenhum, estrito senso.
Como no caso da Amazônia “verde”, no entanto, a mesma paranóia quanto a perigos supostos (em alguns casos eles são reais, mas não necessariamente da forma concebida em alguns escritórios de planejamento) pode induzir ao desvio de recursos para uma dissuasão que se revela ilusória. O defeito é de concepção, ou de doutrina, não do emprego de recursos efetivos, que sempre podem ser adaptados para cenários plausíveis ou credíveis, mesmo quando a concepção determina, obviamente, o tipo de recurso, ou de ferramenta, a ser empregado. O Brasil não precisaria ter instrumentos que mimetizem o arsenal das grandes potências, mas este é um argumento difícil de ser admitido por qualquer planejador militar (e mesmo muitos políticos).
O Brasil precisa ter instrumentos adequados ao seu cenário estratégico, que, aparentemente, se situa mais numa perspectiva de cooperação com a grande potência ocidental, e mundial, do que em oposição ou em dissuasão a ela. Mas, fazer tal tipo de afirmação já soa como uma renúncia indevida de soberania, ainda que a economia dos meios armados recomende uma utilização a mais racional possível dos meios escassos à disposição de nossas Forças Armadas. Em outros termos, o Brasil pode estar perdendo a oportunidade de combater seus verdadeiros inimigos – como os “pequenos piratas” que infestam certas paragens de nossas costas – do que inimigos supostos.

6) O Programa Naval de 1934, se fosse realizado, teria modificado substancialmente a nossa participação junto a Marinha Americana na Segunda Guerra Mundial. Frente aos escassos recursos alocados para a Marinha desenvolver o seu programa de reaparelhamento e o desenvolvimento de submarino com propulsão nuclear, poderíamos estar vendo a mesma situação acontecer?
PRA: Não conheço adequadamente o Programa Naval de 1934 para opinar de maneira responsável, mas num possível paralelo com cenários mais atuais, acredito, sim, que qualquer cenário que nos leve a assumir maiores responsabilidades no plano mundial – e isso não tem nada a ver com a defesa do território e das águas nacionais, que me parecem insuficientemente, mas razoavelmente bem defendidos, ou pelo menos “dissuadidos” – conduziria uma a maior cooperação com os EUA, inclusive para a paz e a estabilidade política na própria América do Sul (em relação ao que nossas Forças Armadas são extremamente reticentes).
A Marinha brasileira, como as outras forças singulares, padece de notória falta de recursos e de meios suficientes para um aparelhamento adequado. Ouso formular a hipótese, contudo, que as concepções estratégicas que presidem ao planejamento do uso de recursos escassos sãos as tradicionais, de todo país soberanista digno desse nome. Uma concepção de defesa exclusivamente “nacional”, nas linhas tradicionais, pode custar muito caro, e revelar-se, finalmente, como parcialmente inútil, em face dos perigos efetivos a serem enfrentados, muitas vezes com outros tipos de instrumentos do que aqueles concebidos e implementados segundo a visão tradicional acima mencionada. Por exemplo, uma Marinha de águas azuis, full scope (completa), para o Brasil, pode ser um luxo ocioso, quando perigos mais efetivos parecem exigir uma Marinha de águas marrons ou meios ainda mais heterodoxos do que ferramentas de livro-texto ou de compêndios históricos.
Para ser concreto, não vejo bem como o submarino nuclear possa resolver nossos problemas efetivos – não os supostos – de segurança costeira. Ele pode, por exemplo, dissuadir uma grande potência, pelo menos parcialmente, mas jamais um grupo de terroristas que se dispusesse a afundar uma plataforma petrolífera. Em outros termos, alguns “brinquedos” são muito caros para que a sociedade brasileira tenha uma ilusão de segurança, totalmente desproporcional e aparentemente pouco adaptados aos requerimentos efetivos da segurança nacional. Sei que a tese pode ser inaceitável para os “marinheiros” de águas azuis, mas é como vejo o atual (e futuro) cenário geopolítico no qual se insere o Brasil.

7) Hoje não existem mais inimigos declarados, o estado aparente de paz não reflete a realidade das “novas ameaças”. Em uma situação hipotética, mas nem tanto, de termos nossos poços de petróleo “atacados”, o senhor acha possível o Brasil aceitar um acordo de cooperação em segurança junto a Marinha Americana, visando a proteção das nossas riquezas?
PRA: Não creio que isso seja necessário, mas acordos de cooperação recíproca em troca de informações, treinamento e manutenção, são sempre bem vindos. Nossas riquezas devem ser defendidas exclusivamente com meios próprios, ainda que estes sejam insuficientes. Vejo, sim, a necessidade de uma ampla cooperação na busca e implementação de metas mais amplas, de âmbito mundial, seja em bases puramente bilaterais, seja no quadro de operações da ONU.
Quando se fala, porém, de “ameaças”, qualquer esforço de cooperação deve ser empreendido sempre tendo em conta a natureza específica da suposta ameaça, detectada, para aí então chegarmos à conclusão de qual esquema defensivo ou ofensivo seria melhor adaptado aos interesses nacionais, seja no plano das concepções táticas ou mesmo estratégicas, no domínio das ferramentas a serem utilizadas e com base num entendimento perfeito quanto aos fins que se pretende alcançar. A Segunda Guerra Mundial colocou uma ameaça concreta, que foi respondida de maneira adequada, ainda que de forma modesta (mas comensurável com os nossos meios).
Hipóteses podem e deve ser traçadas quanto à natureza e o poder destrutivo dessas “novas ameaças”, e a partir daí formular as nossas linhas de atuação, que podem, ou não, compreender alguma cooperação com os EUA, sempre em função de uma análise caso a caso. Entendo, pessoalmente, que nenhuma “nova ameaça” pode provir dos EUA, daí que eu preconizaria uma cooperação ampla no plano bilateral, mas sei que reações soberanistas e pruridos nacionalistas minimizam a consecução dessa possibilidade. As hipóteses mais credíveis, portanto, são aquelas de baixa intensidade e de “pequena geopolítica”, para as quais os EUA talvez nem se interessem, mas sempre cabe alguma reflexão conjunta.

8) Quais os limites de cooperação aceitáveis, dentro de um possível acordo de cooperação entre a nossa Marinha e a americana - Quarta Frota, que não venha a infringir nossa soberania?
PRA: Seria preciso definir primeiro o que seja soberania, que tem muitas acepções e nem todos estão de acordo com todas elas. Alguns acreditam, por exemplo, que minério de ferro é um bem tão “estratégico”, que deveria ser preservado sob o controle do Estado ou exclusivamente de nacionais, como forma de preservar a “soberania nacional”. Outros – inclusive um presidente – declararam que telefonia e comunicações, de modo geral, são estratégicos para o desenvolvimento nacional e portanto deveriam também permanecer sob controle nacional, alguns até acham que deveria ser estatal. Todos, ou quase, acham que o petróleo deve permanecer como monopólio nacional por ser estratégico e essencial à nossa “soberania”. Soberania se defende com ações muito simples, com educação de todos, por exemplo, ou com o desenvolvimento nacional, que pode, sim, ser feito com capitais estrangeiros, sem qualquer, ou quase nenhuma, restrição.
Dentro dessa filosofia, eu não vejo sinceramente nenhum obstáculo – que não sejam aqueles normalmente associados à preservação de nossa capacidade autônoma de decisão, onde se situam as comunicações sensíveis de decisores nacionais – a um amplo acordo de cooperação entre as duas marinhas, sobretudo se se partir do princípio de que ambas possuem objetivos relativamente similares, se não coincidentes, quais sejam: preservar a soberania nacional de cada país, assegurar um ambiente de paz e de estabilidade para o exercício das liberdades democráticos e para o pleno desenvolvimento de atividades produtivas, sem qualquer distinção de nacionalidade quanto aos agentes econômicos (tratamento nacional pleno).
O limite da cooperação seria, portanto, o segredo das comunicações sensíveis, mesmo sabendo que criptografia é algo essencialmente dependente da pesquisa científica e dos avanços tecnológicos, que estão justamente mais desenvolvidos na principal potência tecnológica do planeta. Devemos ter consciência, portanto, que os EUA sempre vão cercear nosso acesso às tecnologias sensíveis, por mais cooperativos que possamos ser nos processos conjuntos de treinamento e adestramento. São limites colocados pela própria razão básica da preeminência estratégica: nunca permitir a equiparação. Se assumirmos essa condição “subalterna” nas tecnologias de “última instância”, existe um grande espaço para a cooperação bilateral.

9) Relembrando a Guerra da Lagosta, onde fomos afrontados por um país que não era tido como ameaça, a França - que enviou navios da sua armada para proteger seus pesqueiros dentro de nossas águas, somada a posição americana de chegar a "ordenar" que o Brasil recuasse, abrindo mão de sua soberania. Então a questão é: Como lidar com a soberania nacional e a Quarta Frota em nossas portas?
PRA: Assimetrias sempre vão existir nas relações internacionais e o exercício do poder pode se manifestar de formas excessivamente arrogantes, como vários exemplos a que assistimos ao longo de nossa história, e não apenas na Guerra da Lagosta. Basta recordar as intromissões da Royal Navy em nossas águas, quando nos recusávamos a interromper o tráfico escravo, no século XIX. O Brasil sempre vai ter essas fragilidades no confronto com países mais poderosos. O que se deseja é uma dissuasão suficiente para evitar situações humilhantes como essas. A diplomacia deveria evitar que se chegue a esse tipo de exacerbação das relações, mas nem sempre é possível evitar alguma demonstração de força.
Não se pode partir da hipótese de que a IV Frota venha necessariamente a ameaçar a nossa soberania, posto que ela vai se deslocar em águas internacionais. Se resolver se aventurar em nossas águas, pode ser que não disponhamos de meios suficientes para dissuadi-la, mas por que ela o faria e com quais motivos? Essas forças não são construídas para ameaçar a soberania de outros países, sobretudo amigos, mas para defender os interesses vitais de quem as concebe e desloca no terreno.
A IV Frota não vai estar em nossas portas, mas em águas internacionais, tanto quanto podemos mandar nossa frota para o Atlântico Norte, mas não vejo muito sentido pensar nesse tipo de brincadeira de gato e rato. Países responsáveis pensam menos na soberania em termos abstratos e mais concretamente, o que se obtém com crescimento e econômico e desenvolvimento nacional. Temos tanto direito de explorar recursos marinhos no Atlântico Norte quanto os EUA no sul, desde que de maneira não agressora ao que cada país considera como sendo de sua soberania exclusiva. Os EUA, em algum momento futuro, vão aderir ao Tratado do Direito do Mar, ainda que isso possa tardar mais algum tempo. Eles serão levados a fazê-lo no seu próprio interesse nacional.
Qualquer que seja o desenvolvimento futuro do Brasil, não vejo um modelo ou regime capitalista que seja fundamentalmente oposto ou excludente do capitalismo americano e todos os fluxos tecnológicos, financeiros e comerciais que possam ser estabelecidos entre os dois países. No plano militar, algo semelhante deve ocorrer: ou seja, não vejo nossa defesa nacional como excludente ou oposta aos interesses nacionais americanos, na medida em que nenhum dos países alimenta propósitos a qualquer título marcados pela animosidade em relação ao outro.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3 de agosto de 2008

Diplomacia e Forças Armadas: o quadro sul americano

Mais um desses questionários de pesquisa, desta vez feita para uma mestranda, cujo resultados, ou cuja dissertação desconheço.

Diplomacia e Forças Armadas: percepções de ameaças no entorno brasileiro
Respostas fornecidas por
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 9 de setembro de 2008)
a questionário submetido no quadro de pesquisa para dissertação de mestrado.

ENTREVISTAS PARA A DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
- Ministro Paulo Roberto de Almeida

Nota preliminar PRA: As respostas abaixo consignadas expressam um pensamento estritamente pessoal e posições próprias, baseadas muito mais no estudo acadêmico das questões referidas ou em experiência concreta de vida, do que propriamente o contato no plano profissional com os problemas abordados. Nunca trabalhei, institucionalmente, nessas áreas, assim que nenhum dos argumentos ou opiniões expostos no presente questionário pode ser considerado como representando posições ou políticas das entidades às quais estou associado, em especial no que se refere ao Itamaraty.

- Informações preliminares sobre a tese:
1. (...)
2. O que se pretende: analisar as percepções das Forças Armadas e da Diplomacia de ameaças no entorno brasileiro, considerando as transformações ocorridas, na área de segurança e defesa, no sistema internacional na década de 90 e no impulso dado à integração do Brasil com seus vizinhos a partir da constituição do Mercosul, em 1991; bem como verificar se há – e quais – os canais – formais e informais – de interlocução entre esses dois atores.
3. Espaço geográfico do estudo: região andino-amazônica.

- Indagações:

1. Qual a leitura do MRE sobre as possíveis ameaças à segurança e defesa do Brasil?
PRA: Desconheço qualquer documento de “planejamento” ou de “doutrina” do MRE que trate de forma abrangente ou sequer sintetize o quadro da segurança e defesa, tema normal e tradicionalmente afeto aos ministérios militares, atualmente ao Ministério da Defesa. Existem documentos diplomáticos que mencionam o tema, no quadro do relacionamento político-diplomático mantido com países vizinhos e com o mundo como um todo.
Seria preciso, em primeiro lugar, ver a questão na perspectiva histórica, que evoluiu do antigo cenário de competição com a Argentina no cenário regional (anos 1945-1970) e de ameaças representadas por supostas tentativas de “subversão comunista” (patrocinadas pela ex-URSS, pela China ou por Cuba), para ameaças mais difusas, podendo inclusive estar identificadas com a “hiperpotência imperial”, supostamente aliada naquela conjuntura.
No cenário geopolítico pós-Guerra Fria, essas percepções devem ter sofrido mudanças correspondentes, ao que se poderia agregar a capacitação econômica, industrial e tecnológica – com seus reflexos militares – do Brasil no período pós-1970, quando a suposta “ameaça” argentina se tornou profundamente abstrata. O processo bilateral de integração, a partir de meados dos anos 1980, pode ter sepultado politicamente qualquer hipótese de conflito, mas é de se presumir que os militares, estrito senso, não deixaram de manter os mesmos cenários de defesa quanto a uma possível “invasão a partir do Sul”.
Mais recentemente, os militares devem ter mudado seus cenários de defesa, para levá-los ao Norte, mais concretamente para a Amazônia, supostamente ameaçada por uma combinação estranha de guerrilheiros narcotraficantes e de forças regulares de países (não se diz qual) vizinhos, apoiados por uma grande potência (presumivelmente os EUA). A internacionalização da Amazônia parece constituir o presente passatempo dos cenários da defesa brasileira, junto com ameaças difusas em nossas costas.
Do ponto de vista do Itamaraty, as ameaças são derivadas da instabilidade política regional, com possíveis focos de conflitos internos aos países que possam extravasar para o Brasil, sem ameaças diretas, mas conseqüências indiretas em termos de tropas ou forças irregulares circulando ilegalmente pelo território brasileiro ou trazendo os problemas associados (tráficos diversos, inclusive de armas, refugiados e outros crimes comuns).
Nem o MRE, nem os militares parecem considerar o tráfico de drogas como uma ameaça militar, ou à defesa do Brasil, confinando esse problema à esfera policial. Os militares tem respondido negativamente a todas as sugestões americanas para um maior envolvimento das FFAA do Brasil no combate ao tráfico de drogas. Registre-se que essas ameaças, reais ou percebidas como tais, estão quase todas confinadas à região andina-amazônica.
Mais recentemente, se passou a aventar a vulnerabilidade da chamada “Amazônia azul”, com hipotéticos ataques às plataformas de petróleo ou desafios à soberania nacional no que tange os recursos naturais da zona econômica exclusiva. Como no caso da fronteira Sul, ou da suposta internacionalização da Amazônia, as alegações em torno dessa vulnerabilidade devem ser maiores do que a realidade, o que não elimina, no entanto, a possibilidade de que desafios possam surgir também nessa enorme fronteira marítima, passo preliminar para se recomendar o acréscimo de embarcações de patrulha e dissuasão.
De forma geral, as ameaças potenciais à segurança do Brasil tem sido percebidas, tanto por diplomatas como por militares, como derivando de quadros agudos de instabilidade político-social em países vizinhos, ou então de conflitos localizados e remanescentes de fronteiras – como no caso Peru-Equador – para o que se requer um conjunto de ações de consulta e coordenação com as partes interessadas e eventual apelo aos órgãos de manutenção da paz e da segurança (OEA e ONU). Nesse caso, percebendo que seus interesses podem vir a ser afetados, direta ou indiretamente, tanto os diplomatas como os militares não têm hesitado em propor a participação do Brasil em operações de manutenção da paz, o que pode alcançar inclusive situações fora do âmbito regional (África, por exemplo). São inúmeros os exemplos de participação do Brasil em operações típicas de peace-keeping (nenhuma de peace-making até o momento), culminando com a chefia da Minustah (Haiti). Mas, também existem exemplos de mediação e bons ofícios, como aquela exercida oficialmente no quadro do processo de paz entre o Peru e o Equador (1996-98).

2. Que postura tem sido adotada em relação a essa percepção de ameaças? Há ações concretas em andamento? Quais?
PRA: Como as ameaças supostas contra o próprio Brasil são difusas, suponho que as respostas envolvam uma combinação de cenários estratégicos e táticos de preparação para a defesa. Ou seja, manutenção de algumas forças no Sul do País, inclusive por razões históricas e no caso de alguma mudança no cenário político sub-regional; deslocamento de forças e equipamentos para o Norte, nas fronteiras amazônicas, com treinamento de combate na selva, mais para efeitos dissuasórios do que propriamente para a hipótese de grandes enfrentamentos militares; preparação tecnológica e adestramento nos novos ambientes de conflitos possíveis. Deve-se ressaltar que essas ações são tipicamente militares, cabendo ao MRE tão somente o acompanhamento dos temas nos planos regional e multilateral.
Mais recentemente, o MRE envolveu-se com a preparação da proposta de constituição de um Conselho Sul-Americano de Defesa, a ser criado como instância de consulta e coordenação no âmbito da Unasul, a União das Nações Sul-Americanas, criada em Brasília, em 23 de maio de 2008. O Itamaraty também acompanha a discussão dos temas de segurança e estabilidade internacional nos âmbitos hemisférico (OEA e Junta de Defesa) e multilateral (ONU, CSNU e órgãos especialmente criados por resolução do CSNU para atuar em casos tópicos).
No âmbito mais geral, o Brasil tem se envolvido em operações autorizadas pela ONU, nas quais a coordenação entre militares e diplomatas é de regra. Existe um observador militar permanente na Missão do Brasil junto à ONU em Nova York.

3. Em que medida essa percepção é compartilhada com o Ministério da Defesa?
PRA: Existem consultas freqüentes entre os dois ministérios, embora isso deva ocorrer mais de forma ad hoc, do que de maneira institucionalizada. Nesses encontros são intercambiadas idéias, opiniões, informações e feitas consultas sobre possíveis linhas de ação conjunta, ou seja, ação diplomática respaldada por atuação militar ou vice-versa. Supõe-se que, com a formalização do Conselho Sul-Americano de Defesa, em algum momento no futuro próximo, essas consultas venham a se tornar oficiais, regulares e institucionais.
No plano das percepções, terá de haver alguma adaptação de ambos os lados à nova doutrina brasileira de defesa, em curso de elaboração pelo Ministério da Defesa com a participação do Ministro de Assuntos Estratégicos. Possivelmente, a nova doutrina vai gerar novos insumos para reflexão e atuação conjunta.

4. Há alguma ameaça que possa vir a demandar o emprego das Forças Armadas do Brasil?
PRA: Nenhuma ameaça de ataque direto ao Brasil em grande escala, em minha visão pessoal, mas podem surgir situações de crises, e até escaramuças, nas proximidades do Brasil, derivadas de quadro político-institucional de instabilidade em países vizinhos, que exijam alguma preparação das FFAA no terreno.
Não vejo nenhuma outra ameaça potencial significativa, mas a percepção dos militares é obviamente diferente, pois eles partem da suposição que sempre podem surgir focos de ameaça à soberania e à segurança do Brasil. Eles estariam localizados, primordialmente, na região Amazônica e na franja costeira marítima, mas hesito seriamente em designar qualquer possível fonte de ameaça concreta. Não vejo nenhuma possibilidade de contestação das fronteiras nacionais por algum vizinho regional, assim como não antevejo nenhum motivo realista para algum processo ofensivo de qualquer potência militar de primeira grandeza contra o Brasil.
Não obstante, a preparação adequada das FFAA armadas sempre será uma exigência incontornável, segundo as percepções dos próprios militares. Ou seja, o Brasil continuará a manter o aparato completo – ainda que subequipado e fracamente treinado – de FFAA, para um emprego em situações ditas “clássicas” de defesa.
Pessoalmente, considero remota qualquer hipótese de emprego das FFAA em situações “clássicas” de defesa do território brasileiro, cabendo então a hipótese do seu emprego em operações de “imposição da paz” sob cobertura de resolução do CSNU. Nessa hipótese, talvez a preparação e os equipamentos das FFAA tenham de ser adaptados e adequados às situações possíveis em conflitos fora do território brasileiro, o que exigiria outro tipo de adestramento e concepção de cenários de conflito.

5. Há convergência na construção das políticas externa e de defesa? Há integração entre as duas políticas ou influência de uma sobre a outra? Em que medida consultas são feitas um ao outro?
PRA: Minha percepção pessoal é a de que essa interação é tênue e no máximo de deferência recíproca, com muita pouca convergência real de percepções comuns quanto às ameaças credíveis. Nessas condições, o espaço para a construção de políticas comuns de defesa ou de relações exteriores é muito limitado, havendo sempre o cuidado de “não-ingerência” nos assuntos do outro ministério.
Os dois ministérios parecem seguir mais em vias paralelas, com algumas pequenas sinuosidades de parte ou outra, mais do que por um caminho comum. As consultas existem, podem até ser freqüentes, mas concepções comuns podem estar ainda distantes, o que não é uma característica unicamente brasileira.
Os acordos e convergências entre os dois órgãos tendem a ser mais freqüentes em torno de assuntos concretos, como podem ser as operações de manutenção da paz nas quais o Brasil decide participar. O entendimento, nesse caso, passa a ser obrigatório, do contrário o exercício poderia redundar em fracasso. Ainda aqui, podem surgir divergências, presumivelmente quanto ao espaço de ações propriamente militares e outras de cunho civil (segurança pública, reconstrução, etc.).

6. Há alguma área no MRE responsável pela interlocução com os militares (MD e Forças Armadas)? Qual? Por meio de que outros canais esse diálogo é realizado?
PRA: Sim, existe uma Assessoria Especial na Secretaria-Geral, (...). Ademais, existe no organograma do MRE, uma Secretaria de Planejamento Diplomático (SPD), (...). Acredito que um dos dois pode responder melhor do que eu às indagações feitas neste questionário.
Os demais canais existente são ao nível das chefias (ministro de Estado e SG, quando se impõe a necessidade de consultas políticas) e, no plano técnico-operacional, com as áreas encarregadas de temas específicos (DNU, para o CSNU, e áreas geográficas, para o tratamento de problemas de âmbito regional ou operações de paz em outros continentes).

7. Qual o papel do MRE na Defesa Nacional?
PRA: Subsidiário, mais preventivo e apaziguador, do que propriamente operacional. Em todo caso, países importantes no cenário estratégico mundial devem, supostamente manter perfeita coordenação entre os dois serviços para assegurar plena defesa nacional. O papel clássico do MRE é, primariamente, o da informação, ou seja, subsidiar o presidente e os demais ministros com dados relevantes do cenário internacional e no plano bilateral afetos às responsabilidades desses ministérios.No caso da defesa, se pode ir além da informação, no sentido da elaboração de análises fundamentadas sobre grandes questões estratégicas do cenário internacional e de segurança e a interação entre FFAA nacionais, ademais de observações sobre alianças militares e evolução tecnológica nesse terreno.

8. De que forma as Forças Armadas podem auxiliar a diplomacia e contribuir para respaldar a posição internacional do Brasil?
PRA: Nos temas que envolvem defesa da soberania nacional – fronteiras, preservação dos recursos naturais, abastecimento energético e segurança das linhas de comunicação – as FFAA sempre constituem o respaldo implícito da ação diplomática. Não se espera que elas sejam chamadas a agir, pois isto representaria, precisamente, o fracasso da diplomacia, mas elas devem estar presentes, por suposição, em qualquer negociação envolvendo aquele tipo de tema sensível. Elas também podem recomendar cursos de ação diplomática que tenham implícita alguma ação militar possível, indicando como e em que condições elas poderiam ser chamadas (ou não) a atuar em relação a um determinado dossiê. Em outros termos, a ameaça – que precisa ser credível – do uso eventual da força também pode ser um recurso diplomático, a ser usado de forma discricionário no curso de uma negociação.

9. Nos fóruns em que o Brasil se faz representar por seu chanceler, há congruência de posições da diplomacia e das Forças Armadas (neste caso, quais fóruns?) ou é a expressão apenas do pensamento do MRE?
PRA: Esta questão é muito dependente do caso em questão. Ou seja, não há uma resposta teórica a esse tipo de problema. Se o Brasil está representado pelo chanceler é porque a ação requerida possui um cunho essencialmente diplomático, do contrário estariam sendo conduzidas consultas envolvendo diplomatas e militares, para depois se tomar a decisão, pelo presidente, de como encaminhar determinado dossiê. Fóruns de caráter consultivo no plano da segurança deveriam envolver, em princípio, a presença conjunta do chanceler e do titular da Defesa, como poderá ser o caso do Conselho Sul-Americano de Defesa. Aliás, o projeto de Estatuto do CSAD prevê tão somente a participação dos ministros de Defesa, o que me parece restritivo, uma vez que questões de defesa não são apenas necessariamente militares.

10. Há algum texto - discurso, palestra, artigo - ou publicação referente ao assunto em tela a que eu pudesse ter acesso?
PRA: Não tenho registro, por não acompanhar o tema diretamente, da existência desse tipo de material, que certamente deve existir. Seria o caso de efetuar uma consulta às publicações oficiais do MRE e consultar os responsáveis pela área, acima indicados.

11. Há alguma outra autoridade que o senhor indicaria para essas entrevistas?
PRA: Assessorias internacionais, de cooperação e de estudos do Ministério da Defesa e das forças singulares. Não disponho, todavia, dos nomes correspondentes.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 9 de setembro de 2008

Diplomacia Sul-Sul do governo Lula: mais um questionario de pesquisa

Como nos casos anteriores, postados aqui de forma algo errática, se trata de respostas a questionário de pesquisa que podem apresentar algum interesse para outros estudiosos do assunto. Não tenho por que esconder minha opinião em temas que interessam a todos, inclusive a mim, como cidadão, com a nota de caução que eu não participei da formulação e execução de nenhuma política externa neste governo.
Paulo Roberto de Almeida

Diplomacia Sul-Sul do Governo Lula: um questionário de pesquisa
Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questionário colocado por pesquisadora francesa
(29.05.2009)

Questions:
1- Quelle est votre vision de la politique Sud-Sud de l'actuel gouvernement?
PRA: Trata-se, de um lado, de uma saudável diversificação da política externa brasileira e, de outro, de uma impulsão propriamente política, motivada pelas posições partidárias do principal partido de sustentação do Governo, o Partido dos Trabalhadores, que mantém a concepção de que o mundo pode ser transformado por uma ação conjunta, coordenada ou combinada de países em desenvolvimento, ou em todo caso, de países não hegemônicos. Responde, portanto, tanto a critérios de expansão dos interesses brasileiros no plano internacional, como a uma motivação de ordem ideológica que não tem muito a ver com uma análise técnica, ou isenta do sistema internacional: os países em desenvolvimento são considerados como uma espécie de aliados naturais apenas por serem em desenvolvimento, não pelas posições concretas que eles podem assumir em relação a pontos específicos da agenda internacional.
Nesse sentido, pode ser uma ingenuidade política, posto que, no imenso conjunto de países em desenvolvimento, existem, de um lado, democracias consolidadas, economias de mercado, mono-exportadores, aliados ou satélites de países ocidentais, enfim, toda a gama possível de posições políticas, e, de outro lado, ditaduras decrépitas, sistemas corruptos, economias estatizadas ou semi-socialistas, também numa imensa variedade de situações e condições que expressam especificidades políticas próprias a cada um desses países, não havendo razão, portanto, para privilegiar as relações do Brasil com esses países, em detrimento de relações amplas com todos os países que representem ganhos efetivos em várias esferas.
Se a justificativa for a de que se deve diversificar as relações do Brasil, ampliar as relações de comércio, abrir mercados para o Brasil, tudo isso pode e deve ser feito e buscado sem um rótulo especial, de qualquer conotação geográfica que seja. Ganhos relacionais em matéria diplomática devem ser buscados sem nenhuma prevenção política ou ideológica, quaisquer que sejam as coordenadas geográficas dos parceiros. O único critério válido é que a ampliação dessas relações corresponda a um princípio de simples economia de meios, identidade de propósitos, benefícios mútuos, respeito a determinados princípios e valores do Brasil, como o dos direitos humanos, por exemplo. Fazê-lo com uma bússola orientada para o Sul me parece um reducionismo político-ideológico inútil, se não for inócuo.

2- Le dynamisme des liens Sud-Sud aujourd'hui vous semble-t-il plus ancré que lors des années 70-80?
PRA: Sem dúvida que os vínculos de toda ordem entre países do hemisfério sul (num sentido mais político do que geográfico) cresceram muito nas últimas décadas, mas isso corresponde à crescente interdependência econômica do mundo, um momento natural que tende a unir países, mercados, capitais e fluxos de bens e serviços de toda ordem. No passado, no âmbito de movimentos políticos (Movimento dos Não-Alinhados) ou de organizações econômicas (Unctad, por exemplo) houve todo um apelo a esse tipo de vinculação, união, intensificação de intercâmbios, sem que na prática a realidade mudasse muito, ainda que esse tipo de movimento ou dinâmica fosse basicamente positivo.
Mas, foi no bojo dos processos de globalização e de regionalização que essa aproximação se deu, no período recente, sem muito comando estatal, ainda que o número de acordos de liberalização comercial tenha aumentado visivelmente. Mas, acordos são entendimentos ou arranjos políticos negociados por governos, ao passo que todos esses vínculos se dão, em sua maior parte, na esfera dos negócios privados, salvo alguns exemplos de comércio estatal (não relevantes para efeitos globais). O processo corresponde à diversificação crescente das economia do Sul, barateamento de transportes e comunicações entre eles (o que é, basicamente um efeito da globalização) e o aparecimento de empresas de grande porte que buscam novas oportunidades de mercados e de investimentos em países contíguos, vizinhos geográficos.

3- Quelle est l'utilité des sommets de Chefs d'Etat?
Podem servir para aplainar algumas arestas e facilitar negócios, além de permitir a criação de laços de confiança entre os países. Sempre é útil o diálogo e o estreitamento de relações entre os países e economias, pois os benefícios das interações são inegáveis, em termos de comércio, tecnologia, enriquecimento cultural, turismo, etc. Ninguém pode ser contrário à ampliação desses vínculos, pela simples razão de que os países e os povos sempre se beneficiam com eles.
Deve-se contudo apontar um perigo parcial derivado do excesso de conferências de cúpula: ao colocar os chefes de Estado na primeira linha das discussões bilaterais ou plurilaterais, corre-se o risco de que certas decisões ou escolhas sejam feitas ou tomadas sem o necessário trabalho técnico preliminar de identificação de possibilidades, problemas ou limites de eventuais acordos alcançados politicamente entre os chefes de Estado. Fica difícil recuar depois de algum acordo no mais alto nível, se por acaso, um exame técnico revelar dificuldades para uma das partes.
Por isso, toda e qualquer reunião desse tipo deve ser precedida de cuidadosa preparação, em nível técnico-diplomático. Apenas depois que todos os aspectos dos eventuais acordos incluídos na agenda estiverem mapeados e identificados em seu impacto domestico, devem os chefes de Estado concluir acordos. Eles podem e devem intervir apenas na última etapa, para dar sua aprovação final. Mesmo quando essas reuniões servem, no plano intermediário, para aplainar dificuldades, cabe zelar para que os chefes de Estado tenham um quadro completo dos elementos difíceis no agenda em questão. Em outros termos, a super-exposição dos chefes de Estado pode revelar-se problemática para um país determinado.

4- N'y-a-t-il pas une tension entre la volonté brésilienne de représenter la voix du Sud et le désir brésilien de vouloir participer aux forums restreints de la scène internationale? (G-20 F, G-8+5)
PRA: Pode haver, mas uma diplomacia habilidosa pode facilmente conciliar essas questões. Não há nenhuma fatalidade em pertencer ao Sul, se essa designação representar economia atrasada, em desenvolvimento, pobre ou carente de recursos ou tecnologia. Num plano puramente material, todos os países devem buscar aceder a um status superior de progresso técnico e de bem estar, geralmente identificados com os países do Norte. Considerar que o mundo deva estar eternamente dividido entre Norte e Sul representa não apenas uma miopia diplomática, mas também um erro político e econômico tremendo, pois o objetivo final deve ser sempre o da unificação planetária, ou seja, a crescente equalização de condições e de oportunidades para todos os países.
Se um país como o Brasil acede a esses foros restritos é porque ele PE importante o suficiente para fazê-lo e que sua participação se traduzirá em benefícios para o seu povo. Assim, recusar essa participação apenas em nome de um pertencimento ao chamado Sul, ou em nome de uma ilusória liderança desse grupo, seria não apenas uma estupidez, mas um crime contra o seu próprio povo.

5- Plus le Brésil s'engage dans les affaires internationales comme au Moyen-Orient, plus ne se trouve-t-il pas confronter à devoir faire des choix diplomatiques dans ses prises de position?
PRA: Certamente: todo e qualquer país que se engaja em novos terrenos de ação diplomática tem de ter consciência de suas possibilidades e limites, e assumir novas responsabilidades em função de sua capacidade de influenciar ou contribuir para a solução de algum problema determinado. No caso do Oriente Médio essas escolhas são certamente difíceis, pois os problemas são complexos e as soluções têm de passar, por vezes, por construções politicamente inovadoras, na medida em que a cristalização de ódios e acrimônias é ali muito visível.
Existem injustiças visíveis, assim como existem ações inaceitáveis, como as do terrorismo, que confronta nossas consciências e valores. O Brasil tem de saber se posicionar em face dessas questões, preservando sua credibilidade construída numa longa história de defesa de princípios democráticos e valores humanistas.

Paulo Roberto de Almeida, 29.05.2009

O Estado brasileiro asfixia o investimento privado, literalmente

Há muito tempo se sabe que o Estado brasileiro, que no passado foi um poderoso indutor do desenvolvimento brasileiro, tornou-se, atualmente, o principal obstrutor de um processo de crescimento sustentado, ao sugar todos os recursos disponíveis da sociedade.
O mais incrível é que empresários míopes continuam cultivando o Estado para conseguir favores, empréstimos favorecidos, isenções fiscais, tratamentos privilegiados, alguma proteção tarifária, alguma política setorial que facilite a vida de sua empresa, no máximo do seu setor. Eles não percebem que o que o Estado "concede" com uma mão para aquele grupo ou setor, ele arranca com a outra de toda a sociedade os recursos necessários para satisfazer aquela demanda especial, já que o Estado não produz absolutamente nada (apenas déficit e dívida pública, obviamente).
A sociedade, também, gosta de Estado, pede mais Estado, sem se dar conta que ela, pelo menos a parte pagadora de impostos diretos, está sendo asfixiada crescentemente.
Mas os pobres que teoricamente não recolhem impostos diretos, pagam em impostos indiretos (sobre o consumo e várias outras taxas) mais do que a classe média, em geral cerca de 50% de sua renda.
As pessoas não sabem disso, nem os políticos se esforçam por esclarecer esses fatos. Políticos, aliás, que mesmo sendo supostamente "liberais" (de araque) vivem numa redoma privilegiada, muito distante da vida típica de um brasileiro...
Paulo Roberto de Almeida

Carga tributária volta a subir e deve registrar recorde de 34,7% do PIB
Marcelo Rehder
O Estado de S.Paulo, 11 de julho de 2010

Depois de cair no ano passado por causa da crise, arrecadação se recupera, ancorada pelo forte crescimento econômico do País em 2010

A carga tributária brasileira voltou a subir e deverá bater o recorde de 2008, depois de ter recuado no ano passado. Em 2010, a soma de todos impostos, taxas e contribuições pagos pelas empresas e cidadãos aos três níveis de governo (federal, estadual e municipal) deverá representar 34,7% do Produto Interno Bruto (PIB), com alta de um ponto porcentual em relação a 2009 (33,7%). Em 2008, a carga foi de 34,4%.

As informações são de um estudo do consultor na área fiscal Amir Khair. Para projetar a carga tributária de 2010, Khair usou como base a arrecadação até maio e considerou um crescimento de 7% para o PIB, estimado em R$ 3,565 trilhões. Os valores de 2009 foram atualizados com a aplicação de uma correção de 6% (composto, em 70%, pelo IPCA e, em 30%, pelo IGP-DI). A metodologia de cálculo é a mesma usada pela Receita Federal.

O aumento da carga neste ano pode ser explicada, basicamente, pelo crescimento da economia, que faz ampliar a base de tributação. Da mesma forma, em 2009, a arrecadação caiu por causa dos efeitos recessivos da crise financeira mundial.

Quando o ambiente de negócios é favorável, as empresas não apenas faturam e lucram mais, como também empregam mais pessoas e pagam salários mais altos. Nesse cenário, mesmo sem aumento de alíquotas, o governo arrecada mais.

"Sempre que a economia passa por forte crescimento, como está ocorrendo este ano, o lucro das empresas e a massa salarial crescem acima do PIB", diz Khair. "Consequentemente, a arrecadação também cresce mais que a economia como um todo."

O empresariado reclama que o governo retira do setor privado recursos que poderiam ser destinados a investimentos produtivos, além de reduzir o consumo. Pesquisa encomendada ao Ibope pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) mostra que 65% das empresas veem a tributação como principal barreira para o crescimento econômico. O Ibope entrevistou mil empresas do setor entre abril e maio.

O avanço da arrecadação reflete ainda a redução das compensações e desonerações tributárias concedidas no ano passado pelo governo federal, para estimular o consumo no período de dificuldades financeiras. Passado o sufoco da crise, tanto a sonegação como a inadimplência de contribuintes tendem a cair enquanto a economia cresce.

Fiscalização. O aumento na eficiência da cobrança dos governos estaduais e federal também contribui para o crescimento da arrecadação. Por meio de sistemas de informações cada vez mais sofisticados, a fiscalização tem apertado o cerco contra os maus contribuintes.

A conjugação desses fatores fez a arrecadação federal dos primeiros cinco meses do ano crescer 13% acima da inflação, quando comparada com igual período de 2009. Os cofres da União receberam R$ 318 bilhões.

Até sexta-feira, a transferência de recursos da sociedade, na forma de pagamento de tributos, às três esferas de governo já acumulava no ano mais de R$ 642 bilhões, segundo o "Impostômetro", painel eletrônico instalado em frente ao prédio da Associação Comercial de São Paulo, no centro da capital paulista.

Criado pelo Instituto Brasileira de Planejamento Tributário (IBPT), o painel mostra, em tempo real, o valor estimado dos impostos, taxas e contribuições pagos no País. Até o fim do ano, o IBPT estima que o placar chegue a R$ 1,3 trilhão. Em 2009, a contagem ficou em R$ 1,1 trilhão.

Numa pesquisa feita pela empresa de consultoria Terco Grand Thorton, com 150 empresários, os tributos incidentes sobre a folha de pagamentos foram apontados por 45% do entrevistados como os mais pesados. "É um desestímulo ao emprego formal", diz Wanderlei Ferreira, sócio da Terco Grant Thornton.

Brasil: a caminho de uma economia inviavel

O Brasil está construindo um estado assistencialista, um estado-mamãe, a partir de programas políticos alimentados com o dinheiro de todos os cidadãos contribuintes, que são todos aqueles que tem renda suficiente a partir de seu trabalho e empreendedorismo, administrado por políticos que estão simplemente à caça de votos.
Não apenas isso: o Brasil está sendo dividido em linhas raciais e, sobretudo, entre uma nação de pagadores e uma nação de assistidos.
Esse é o caminho mais rápido para a decadência econômica, o que quer que digam os que acham uma maravilha esses gestos de solidariedade bem intencionada (em favor dos políticos, obviamente).
Como é possível ter um terço da nação sob assistência pública?
Como fomos chegar a esse absurdo?
Mistura de demagogia com irresponsabilidade, certamente.
Vamos pagar um alto preço por isso, em termos de menos crescimento, de bloqueio de reformas, de mediocridade dos serviços públicos, de crise nos sistemas previdenciário e de saúde, até uma grande crise de confiança na nação, e talvez uma decadência estilo Argentina ou Inglaterra (antes de Margareth Tatcher) exemplar...
Paulo Roberto de Almeida

A bolsa dos votos
Gaudêncio Torquato
O Estado de S.Paulo, 11 de julho de 2010

Nem bem a campanha eleitoral ganha as ruas, petistas e tucanos afinam as trombetas para anunciar: "A bolsa é nossa." Ambos disputam a paternidade do Bolsa-Família, gigantesco ímã capaz de atrair votos para seus candidatos à Presidência da República. Não seria mais útil se cada partido apresentasse modos de aperfeiçoar esse programa de distribuição de renda, de forma a torná-lo meio, e não um fim em si mesmo? Mas se brigam pela paternidade, qual deve ser apontado como pai do programa-símbolo da era Lula? Sob o amparo bíblico do rei Salomão, vale anotar que ambas as siglas estão por trás da ideia original, eis que exemplos pioneiros e simultâneos de políticas de combate à pobreza foram o Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM) e o Bolsa-Escola, implantados em 1995 e patrocinados, respectivamente, por um tucano, o prefeito Magalhães Teixeira, de Campinas, e pelo então petista Cristovam Buarque, no governo do Distrito Federal. Pouco antes, em 1993, o sociólogo Betinho levantava a bandeira da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

Vieram, depois, os desdobramentos. No ciclo FHC, José Serra criou o Bolsa-Alimentação e o ministro da Educação na época, Paulo Renato Souza, sob a supervisão da antropóloga Ruth Cardoso, instalava o Bolsa-Escola e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. A era Lula abriu o malsucedido Fome Zero, que deu lugar à unificação dos programas de distribuição de renda, surgindo assim o Bolsa-Família, hoje poderoso canal que despeja nos lares de 12,4 milhões de famílias (totalizando 49,2 milhões de beneficiários) cerca de R$ 13 bilhões. Feitos os devidos créditos, aos candidatos sobra o desafio de dizer o que e como farão para melhorar a eficácia daquela ação, cujo caráter paternalista é duramente criticado por não apresentar portas de saída do ciclo da pobreza. Os candidatos começam a campanha dizendo que a questão social está no cerne de suas preocupações. A ex-ministra Dilma Rousseff argumenta que a condição para o Brasil galgar o patamar das nações desenvolvidas está na erradicação da miséria. Serra, por sua vez, recebeu de seu partido a proposta de elevar o valor do Bolsa-Família ao teto de R$ 255. Hoje esse valor vai de R$ 22 a R$ 200.

Ora, prometer continuar com o programa ou elevar simplesmente a quantia recebida pelas famílias parecem medidas eleitoreiras. Importa, sobretudo, saber que alternativas os presidenciáveis vislumbram para evitar que o Bolsa-Família se perpetue como moeda de troca nos instantes eleitorais e possa transformar-se em ferramenta de desconstrução do círculo vicioso da exclusão social. É um erro tratar do Bolsa-Família sem considerar outras frentes voltadas para as metas de inclusão e desenvolvimento autossustentável das populações. Deveriam complementar o programa de segurança alimentar ações nas áreas de saúde e educação e políticas de articulação e integração dos setores produtivos das regiões. No tocante à educação, a radiografia da qualidade do ensino no País, exposta com a divulgação do Índice de Desenvolvimento da Educação (Ideb), pode ser o ponto de partida para a construção da ponte que liga a base assistencialista a outros vetores mais centrais da cidadania. O aluno de uma escola pública, como se viu, está três anos atrás do aluno de uma escola particular, mesmo com tempo maior de estudo. Já a qualidade do ensino brasileiro caiu em mais de mil municípios no ano passado, apesar de as médias nacionais terem subido entre 2007 e 2009.

Sem educação de qualidade será mantido o status quo do assistencialismo. Essa é a indicação que passa pela unanimidade dos especialistas. Como disse Mandela, "a educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo". Revolução educacional não é uma utopia. Bom exemplo é Cajuru, cidade de 22 mil habitantes na região de Ribeirão Preto, com orçamento de R$ 33 milhões, dos quais R$ 12 milhões vão para a educação. Cajuru conseguiu a média mais alta do Ideb - 8,6 -, numa escala de 0 a 10, contando com um corpo de 200 professores, 136 dos quais fizeram curso de Pedagogia, e com escolas modernas e bem aparelhadas. Ali não há evasão escolar. O Brasil arcaico, como se pode aduzir, está preso à carcomida estrutura educacional. Neste ponto, cabe arrematar: o desenvolvimento autossustentado do País só ocorrerá quando a população tiver, a partir da educação, acesso ao pleno emprego, à renda e ao consumo.

A iniciativa privada, por sua vez, há de ser convocada para a tarefa de colaborar com os programas de elevação social, principalmente os que buscam inserir as pessoas no mercado de trabalho. Em alguns Estados nascem experiências interessantes. Grupos privados, abrindo uma portinha de saída para o Bolsa-Família, implantam sistemas de seleção de trabalhadores, com perfis predefinidos, dando preferência aos beneficiários do programa. Há casos de pessoas que ganhavam R$ 120 e passaram a ter um salário de R$ 1 mil. No interior de Minas Gerais, no Rio Grande do Sul e em Mato Grosso, essa alternativa passa a ser adotada. Trata-se de iniciativa pioneira que engaja nichos produtivos sediados nas regiões cobertas pelos programas assistenciais do governo. Outros exemplos dão conta da oferta de crédito e assistência técnica a grupos dispostos a iniciar um pequeno negócio. Com a prosperidade do empreendimento as pessoas podem dispensar o benefício. Vale lembrar que em muitos municípios se desenvolve muita resistência à inserção no mercado por causa da cultura de acomodação propiciada pela bolsa. Beneficiários declinam de ofertas de emprego nas municipalidades - serviços de limpeza de ruas, por exemplo - por não desejarem perder o auxílio do governo. Essa é uma faceta dos danos gerados pelo programa. E que, infelizmente, dá vazão ao lamuriento canto de Gonzagão: "Mas, doutô, uma esmola a um homem qui é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão." Hoje, mais vicia do que mata de vergonha.

JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO

Carreira diplomática: uma trajetória

Como no caso de textos anteriores, que vem sendo aqui trancritos, são respostas a questionários submetidos por pessoas ou veículos de comunicação, que nunca tiveram divulgação mais ampla, por pura distração da minha parte.
Acredito que, descontando mudanças e matizes que ocorreram desde sua redação, no começo de 2007, muita coisa permanece válida.
Paulo Roberto de Almeida

Carreira diplomática: uma trajetória
Respostas fornecidas à Carta Forense por Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 março 2007

Carta Forense – Em que momento decidiu se enveredar pela carreira diplomática?

PRA: A decisão foi tomada de maneira inopinada, com base num anúncio publicado nos jornais, no primeiro semestre de 1997, anunciando a abertura de dois concursos de entrada na carreira diplomática: o primeiro pela via tradicional do Instituto Rio Branco, ou seja, o vestibular para admissão no Curso Preparatório à Carreira Diplomática (à época requerendo apenas e tão somente dois anos, ou quatro semestres, de qualquer graduação universitária), o segundo consistindo num exame direto (com maior número de provas eliminatórias, inclusive orais, e exigindo curso superior completo), dando acesso imediato ao primeiro escalão da carreira, isto é, Terceiro Secretário.
Nessa ocasião, eu acabava de voltar ao Brasil, depois de um longo exílio auto-imposto (quase sete anos) por causa da ditadura militar. Passei seis anos e meio na Bélgica, tendo completado minha graduação em ciências sociais pela Universidade de Bruxelas (1974), defendido minha dissertação de mestrado em planejamento econômico e economia internacional pela Universidade do Estado de Antuérpia (1976) e iniciado um doutoramento, que ficou esperando meu primeiro posto diplomático para ser finalizado. Como eu já possuia mestrado e encontrava-me em meio ao doutoramento, optei pelo concurso direto e ingressei, portanto, na carreira, no final do ano de 1977.
Como disse, tratou-se de uma decisão repentina, uma forma de reinserir-me na vida brasileira, depois de longos anos no exterior, e já possuindo certa vivência prática de temas de política internacional, alguma experiência na análise de questões de política externa e conhecimento de línguas.

CF – Como o senhor se preparou para este concurso?

PRA: Devo confessar que quase não me preparei, inclusive porque estava trabalhando em São Paulo, dando aulas em duas faculdades, atuando em programas de assessoria em formação de recursos humanos para a Unicamp e também porque o intervalo entre, de um lado, o conhecimento e a decisão de participar do concurso, e, de outro, a realização das provas foi muito curto, não me permitindo cobrir toda a bibliografia recomendada ou freqüentar algum cursinho preparatório (que de toda forma não estava em minhas intenções ou necessidades).
Como eu posso dizer, sem medo de errar, que passei quase metade da minha vida em bibliotecas, ou lendo de forma compulsiva, meu conhecimento acumulado – pelo menos nas áreas tradicionais das ciências sociais aplicadas –já era bastante grande, bastando-me completar o conhecimento de direito, onde estavam minhas lacunas mais notórias. Li os livros de que dispunha, não comprei nenhum em especial para o concurso e fui muito bem sucedido, ingressando em segundo lugar e fazendo jus ao prêmio Lafayette Carvalho e Silva.

CF – Quais são os requisitos para se candidatar a este cargo?
PRA: É preciso ser brasileiro nato, estar em dia com as obrigações eleitorais e de serviço militar e ser formado em um curso superior reconhecido no Brasil pelo Ministério da Educação (MEC). Qualquer curso superior. Apesar de mais ou menos metade dos aprovados no concurso serem via de regra formados em direito, e muitos outros em relações internacionais, conheço diplomatas formados em engenharia, medicina, letras e ciência da computação. Diplomas estrangeiros, só se reconhecidos pelo MEC.

CF – Quem tem dupla nacionalidade é aceito na carreira?

PRA: Desde que sejam brasileiros natos sim. A Constituição reza que, exceto as exceções, quem pede para ser naturalizado como nacional de outro país perde a identidade brasileira. No entanto, já ficou estabelecido que, em boa parte dos casos em que um brasileiro tem uma nacionalidade estrangeira, não foi ele que pediu uma outra nacionalidade — a dupla nacionalidade é apenas reconhecida, segundo as leis próprias do país estrangeiro, e portanto não há perda da nacionalidade brasileira. Assim sendo, não há obstáculos ao ingresso desses cosmopolitas no concurso. E não, não vão suspeitar que você é um agente duplo trabalhando para vender o Brasil para a Itália, por exemplo. Só tem uma coisa: a Lei do Serviço Exterior afirma que, para casar-se com estrangeiros, os diplomatas precisam da autorização do Ministro de Estado.

CF – Como é o processo seletivo?
PRA: Em uma primeira etapa, realiza-se um Teste de Pré-Seleção (TPS), composto de uma seleção de questões de múltipla escolha ou de opções certo ou errado, com base numa amostragem do conjunto de provas setoriais aplicadas na terceira fase (Português, Inglês, História Mundial e do Brasil, questões de relações internacionais). Em seguida, os candidatos aprovados no TPS fazem a prova de Português (segunda fase). Na terceira fase, os candidatos aprovados nas fases anteriores realizam 6 provas: Questões Internacionais Contemporâneas, Inglês, História, Geografia, Noções de Direito e Noções de Economia. Adicionalmente, eles têm de escolher entre Frnacês ou Espanhol para uma prova classificatória numa dessas duas línguas.

CF – Há alguma disciplina que deve ser priorizada?

PRA: É recomendável que em todas as disciplinas o candidato tenha um bom conhecimento, mas acredito que o domínio da língua inglesa é fundamental, embora não seja mais eliminatório na prova. O nível da prova é altíssimo, a exigência é que se escreva um inglês correto de verdade, um inglês que um norte-americano médio provavelmente não alcançaria.
A prova de Português é extremamente rigorosa, exigindo que o candidato tenha um domínio quase perfeito da língua. Adicionalmente, a amplitude dos conhecimentos exigidos nas provas de história (mundial e do Brasil) leva muito gente à desclassificação.

CF - É verdade que os bacharéis em Direito tem mais facilidade para ser aprovados?
PRA: Não necessariamente os bacharéis em Direito apresentam maior facilidade intrínseca, tanto porque os conteúdos de história, de economia e de relações internacionais (lato sensu) vêem sendo reforçados relativamente em relação às anteriores exigências prioritárias em direito e línguas. Mas é certo que grande parte dos diplomatas tem formação jurídica na graduação.

CF - Depois de aprovado, qual o plano de carreira?
PRA: Ingressa-se como terceiro Secretário, embora ainda aluno do Instituto Rio Branco. Depois, a intervalos de mais ou menos 4 a 6 anos, vai se galgando so demais escalões da carreira: segundo e primeiro Secretário, Conselheiro (que necessita submeter-se a uma espécie de doutoramento, o Curso de Altos Estudos, para habilitar-se à próxima etapa: Ministro de segunda classe e finalmente, Ministro de primeira classe, vulgarmente chamado de Embaixador.
Exceto em casos especiais, apenas um diplomata que alcança o grau de Ministro de Primeira Classe pode servir como embaixador do Brasil em algum país estrangeiro, daí esse grau ser chamado, por comodidade, de “Embaixador”. Em países pequenos, com embaixadas menores, um Ministro de Segunda Classe pode eventualmente servir como Embaixador. Há também indicações políticas, normalmente raras, em que o Presidente da República designa alguém de fora da carreira como Embaixador. Foi o caso, por exemplo, do ex-presidente Itamar Franco, na Itália. Nesses casos, o embaixador “civil” poderá contar como seus assessores com diplomatas de carreira experientes.

CF – Com a globalização e a inserção cada vez mais freqüente do Brasil no mercado internacional, o senhor acredita que cada vez abrirá mais vagas nesta carreira?
PRA: Certamente que o aumento da interface externa do Brasil vai contribuir para a expansão das oportunidades nas “carreiras internacionalistas”, entre as quais se situa a de diplomata. Isto pode implicar num aumento gradativo de “vagas” na carreira diplomática, ainda que essa expansão se dê aos “saltos”, consoante as características do serviço público. As duas ampliações de vagas no serviço exterior foram conduzidas com aproximadamente 30 anos de intervalo, em 1975 e em 2006, respectivamente.

CF – É verdade que o curso de formação diplomática vale como mestrado?
PRA: Desde 2002 o curso do Instituto Rio Branco tem valor de mestrado, o que requer, como sua atividade principal, o preparo pelo aluno de uma dissertação acadêmica. Esta pode versar sobre temas ligado às relações internacionais do Brasil, ao direito internacional, à economia internacional ou à questões de identidade nacional. Como vê, a margem é ampla. O aluno escolhe seu orientador acadêmico dentre uma lista de nomes fornecida pelo Instituto. Nem todos são professores do Rio Branco.
O curso do Rio Branco é reconhecido pela CAPES como Mestrado Profissional, avaliado com conceito 4 em uma escala de 1 a 7.

CF – Quais são as dicas que o senhor dá aos candidatos?
PRA: Não pensar que se pode aceder à carreira com algum cursinho rápido e leituras superficiais em pouco tempo de preparação. Os exames de entrada são reconhecidamente difíceis e isso requer uma preparação metódica e sistemática, estudos de larga duração e amplo espectro, nos quais a cultura humanística é essencial, mas também o conhecimento corrente sobre as mais importantes questões da atualidade internacional, em especial dos processos negociadores externos nos quais esteja inserido o Brasil. A redação precisa ser impecável, o conhecimento de inglês excelente e uma grande cultura geral também ajuda.
De maneira geral, ler com atenção a bibliografia recomendada no Guia de Estudos do IRBr, mas preparar-se também de maneira autodidata, com leituras extensas nos mais diversos campos das ciências humanas e sociais.

Brasília, 27 março 2007

Revista Politica Externa (jun-ago 2010): um numero importante

Muitos artigos importantes neste número 1, vol. 19 (junho-julho-agosto de 2010) da Revista Política Externa.
Sumários de parte do conteúdo:

Artigos
+ Israel e Palestina: a paz é possível
Tony Blair - O caso de Israel e palestinos, aparentemente insolúvel, pode ser resolvido. Como fazer isso? Temos tendido a proceder como se, caso pudéssemos chegar a um acordo sobre os termos da solução dos dois Estados (território, refugiados, Jerusalém), ou seja, na teoria, seríamos capazes de alterar a realidade do que estava acontecendo no local, ou seja, a prática. Mas o processo político e a mudança da realidade têm de andar juntos e, até recentemente, não estavam. A chave para resolver o impasse não é tentar colocar um acordo negociado no topo da pirâmide cujas fundações estão incertas. A chave é tornar essas fundações seguras e construir a pirâmide de baixo para cima, prosseguindo simultaneamente com o processo político.

+ O Brasil no início do século XXI: uma potência emergente voltada para a paz
Antonio de Aguiar Patriota - O sistema internacional está passando por um período de profundas e aceleradas transformações. Os contornos do mundo que vai emergir desse processo ainda não são claros, mas a tendência na direção de algum grau de multipolaridade é apontada por muitos. Esta nova realidade geopolítica cria oportunidade para um grupo de atores desempenhar um papel crescentemente mais ativo nas relações internacionais. O Brasil tem aproveitado bem essa oportunidade ao articular três linhas básicas de ação em sua política externa: intensificação de suas "parcerias tradicionais" na sua região e no mundo desenvolvido, diversificação de parcerias no mundo em geral (principalmente na África, Ásia e mundo árabe) e construção de mecanismos mais eficientes, inclusivos e legítimos de governança global.

+ Carisma e prestígio: a diplomacia do período Lula de 2003 a 2010
Rubens Ricupero - Movida pela aspiração de aproveitar as oportunidades surgidas em âmbito global, a política externa do governo Lula segue quatro eixos principais: obtenção do reconhecimento do Brasil como ator político global e a busca de um posto permanente no Conselho de Segurança da ONU; consolidação de condições econômicas internacionais que favoreçam o desenvolvimento a partir das vantagens comparativas brasileiras concentradas na agricultura, objetivo que se expressa primordialmente na conclusão da Rodada Doha da OMC; prioridade às relações Sul-Sul; edificação de espaço político-estratégico e econômico-comercial de composição exclusiva sul-americana. Não seria exagero dizer que, nos dois primeiros eixos, o governo brasileiro quer, mas não pode; no da América do Sul, pode, mas não quer.

+ O Brasil em ascensão: os desafios e as escolhas de uma potência global emergente
Peter Hakim - O Brasil emerge como um dos polos de poder regional do hemisfério ocidental e como nação de crescente estatura, visibilidade e infl uência nos assuntos mundiais. Na América do Sul, já superou os Estados Unidos como presença dominante em vários assuntos. Seus críticos, no entanto, acham que suas conquistas e potenciais têm sido exagerados e suas fraquezas ignoradas. Também dizem que sua política externa é desenhada principalmente para atingir interesses econômicos estreitos e para satisfazer sua própria vaidade. Este artigo discute se o país tem a capacidade e a liderança para ser um ator central no encaminhamento de problemas críticos regionais e mundiais. O que parece certo é que para manter sua influência internacional, o Brasil terá que fazer escolhas difíceis e melhorar seu desempenho na solução das necessidades de seus próprios cidadãos.

+ Crise, multipolaridade e o Brasil
Sergio Amaral - A crise e a emergência da China, assim como em menor grau de um grupo de países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil, estão provocando transformações importantes nas posições relativas no cenário econômico e político internacional. Essas transformações vão aos poucos definindo os traços de uma nova realidade, a do século XXI, que oferece, mais do que no passado, condições favoráveis para uma redução das desigualdades entre o mundo desenvolvido e em desenvolvimento, assim como para uma democratização do processo decisório em escala internacional. O Brasil tem condições para aproveitar essas oportunidades, dar um salto de desenvolvimento e assumir responsabilidades crescentes na cena internacional.

+ Brasil, Conselho de Segurança e operações de manutenção da paz da ONU
Eduardo Uziel - O Brasil tem um interesse inerente nas missões de manutenção da paz da ONU e um currículo consistente de participação nelas. Essas operações são um possível meio de otimização da atuação do Brasil na área de paz e segurança internacionais, em particular nos esforços multilaterais de encaminhamento e solução pacífica de conflitos armados. O país sem dúvida utiliza as missões de paz das Nações Unidas como instrumento de sua política externa, mas a decisão de participar parece ser tomada em bases intuitivas e que variam significativamente de caso para caso. A experiência no Haiti demonstrou que uma primeira vertente do fortalecimento da posição negociadora brasileira passa pela formação ou adensamento de um consenso político de uma região sobre um tema.

+ A VIII Conferência de Exame do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares: histórico e perspectivas
Sergio Duarte - Em maio deste ano, realizou-se em Nova York a Oitava Conferência de Exame do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Este artigo, escrito antes do início da reunião, faz um histórico do TNP e de conferências anteriores de revisão, e registra que as expectativas em torno desta eram mais positivas do que as da anterior, realizada cinco anos antes. Parte dessa atmosfera benigna se deve à posição do novo governo dos Estados Unidos, que tem colocado a desnuclearização do mundo entre suas prioridades mais altas. Entre os temas que preocupavam os participantes estavam o da implementação de resolução de 1995 sobre o Oriente Médio e a relação entre desarmamento e não proliferação, por um lado, e o uso de energia nuclear para fins pacíficos e suas salvaguardas de outro.

+ Haiti: interferências externas e deformações na política interna
Carlos Alberto dos Santos Cruz - As interferências externas e o anticolonialismo são fatores vivos na rotina e na cultura do Haiti, e originam algumas deformações na política interna. Essas ideias geram na população um sentimento de que não são seus próprios líderes os responsáveis pelos problemas. Isso também facilita a autoproteção e a atribuição de responsabilidade de todos os males ao colonialismo e às interferências da comunidade internacional. Para solucionar os problemas do Haiti é necessário valorizar o governo e o povo haitiano, atribuindo-lhes responsabilidades pelos rumos do país. A ajuda internacional, fundamental e necessária, precisa ser gerenciada pelo povo haitiano com critério, mas sem interferência.

+ O Haiti e os desafios de uma reconstrução sustentável – um olhar sul-americano
Monica Hirst - Para o Haiti o desafio maior nos próximos anos será assegurar o caráter transitório de sua atual subordinação à tutela internacional, o que dependerá do êxito do Plano de Recuperação em vigência. À América Latina interessa especialmente que o Haiti supere de forma irreversível esta etapa de soberania encapsulada, que compromete em termos coletivos as trajetórias percorridas pelas nações de independência e autodeterminação, ao longo dos últimos duzentos anos. A presença brasileira no Haiti corresponde a um dos temas da agenda internacional do país, na qual as dimensões regional e global estão inevitavelmente entrelaçadas.

+ Os novíssimos desafios do Tratado de Lisboa
Guilherme d'Oliveira Martins - A crise econômica na Europa, que se desenrolava quando este artigo foi redigido, representa um novo e dramático desafio para o projeto da União Europeia e, especificamente, para os efeitos do Tratado de Lisboa, que deu à União Europeia instituições e métodos de trabalho para que esta pudesse se sair bem dos problemas da globalização da economia. O Tratado clarificou e tirou o tom dramático do prematuro e indevido debate constitucional, que foi o principal assunto político dos europeus nos últimos anos da primeira década do século. O Tratado abre novas possibilidades para a governança econômica da UE. A coordenação de políticas econômicas nacionais está sendo testada nos difíceis eventos deste primeiro semestre de 2010.

+ O Estado laico: entre a secularização e a discriminação
Cláudio Gonçalves Couto - O artigo discute a relação entre Estado e religiões, com particular atenção para a atual situação na Europa, onde vários governos vêm adotando políticas que restringem consideravelmente a liberdade religiosa. Em geral, essas medidas são justificadas pela necessidade de preservar o secularismo do Estado. Mas, de fato, elas refletem um clima de receio e de discriminação contra um grupo específico. Apesar de algumas dessas políticas coibirem o uso de símbolos religiosos em geral, como na França, é claro que seu alvo prioritário é o Islã. Em muitos casos, essas medidas vão contra os princípios da democracia liberal, que supostamente são seguidos por esses regimes europeus.

+ O fator religioso nos conflitos internacionais
Luiz Felipe de Seixas Corrêa - As religiões podem ter no século XXI tanta importância quanto as ideologias tiveram no século XX. Muitos dos conflitos que permeiam o sistema internacional do pós Guerra Fria têm de fato raízes religiosas. O fator religioso deve, assim, ser estudado e compreendido de modo que os países possam atuar nos confrontos que constituem algumas das maiores ameaças à paz na agenda internacional corrente. As sociedades predominantemente laicas do Ocidente têm dificuldades para lidar com o assunto. Elas têm optado por políticas de separação em vez de integração. A "Aliança das Civilizações ", proposta pela ONU, é um passo positivo para construir um diálogo construtivo. A diplomacia brasileira deve preparar-se para desempenhar um papel nesse processo.

+ "An odd man in": Austrália no cenário político internacional
Wilhelm Hofmeister - A Austrália está procurando desempenhar um papel ativo nas relações internacionais, depois de ter atuado de modo bem-sucedido em processos e estruturas da Ásia, busca, agora, presença em fóruns de governança global. Seu engajamento no G-20, suas iniciativas em favor do desarmamento nuclear mundial, sua proeminente participação na cúpula do clima em Copenhague, o contingente de forças militares que mantém no Afeganistão, a campanha para ser eleita para uma das cadeiras rotatórias do Conselho de Segurança da ONU, a partir de 2011, e para sediar a Copa do Mundo de Futebol de 2018 ou 2022 são algumas das expressões concretas desse desejo.

sábado, 10 de julho de 2010

Brasil e Argentina no contexto mundial - um prefacio (Paulo R. Almeida)

Brasil e Argentina no contexto regional e mundial
Prefácio ao livro de
Eduardo Viola e Héctor Ricardo Leis:
Sistema Internacional com Hegemonia das Democracias de Mercado: Desafios de Brasil e Argentina (Florianópolis: Editora Insular; Programa San Tiago Dantas – CAPES, 2007)

O historiador Fernand Braudel – que confessou ter ficado “inteligente” no Brasil, para onde veio como jovem professor universitário nos anos 1930 – costumava separar os eventos rápidos da vida política dos movimentos mais lentos do processo econômico, e ambos das transformações seculares das estruturas sociais e das configurações civilizacionais, que se moviam a uma velocidade próxima à “história geológica”. Um outro historiador britânico adepto da “história lenta”, Lawrence Stone, dizia, por sua vez, que a história avança muito lentamente, como uma velha carroça desajustada, com os eixos rangendo e as rodas desalinhadas.
O mesmo parece se aplicar, sob nossos olhos, a certas configurações “ideológicas”, em especial aquelas derivadas da tradição revolucionária francesa, que criou todo o vocabulário e a coreografia que ainda agitam a política contemporânea. Alguns dos conceitos consagrados por essa velha tradição converteram-se, efetivamente, em “tradicionais”: eles estão desajustados aos requerimentos da vida moderna, mas continuam por aí, num deslocar errático e irregular, como os eixos rangentes de um velho carro de bois que ainda não foi aposentado pela modernidade.
Tomemos, por exemplo, os conceitos de esquerda e de direita, ou de progressista e conservador, geralmente identificados a valores, normas e princípios que seriam, cada um a seu modo, positivos ou negativos no plano das mudanças sociais. A esquerda estaria identificada com a justiça e a igualdade, lutando por uma distribuição mais equânime da riqueza, normalmente por via do distributivismo estatal e da solidariedade contratual. À direita restaria o papel de preservar as velhas estruturas, ressaltando o papel do esforço e do mérito individuais e das estruturas de mercado na promoção da prosperidade geral, aceitando, portanto, a desigualdade como um fato natural da vida. No plano social e político, a esquerda estaria sempre do lado dos humildes e oprimidos, lutando pelos direitos dos trabalhadores contra os patrões “exploradores”. A direita, obviamente, se alinharia com aqueles capitalistas de cartola e charuto, na missão de estender a dominação do capital aos mais diferentes cantos do planeta, concentrando ainda mais riqueza e poder, em detrimento dos povos da periferia e dos pobres dos países ricos.
Qualquer que seja a validade respectiva desses estereótipos para o mundo contemporâneo, não se pode recusar o fato de que a direita ainda apóia os seus discursos no liberalismo clássico, de antiga extração britânica, e que parte da esquerda, por sua vez, ainda pretende aplicar Marx ao contexto atual, repisando velhos argumentos classistas, anticapitalistas e antimercado, ao mesmo tempo em que clama por reivindicações igualitárias, sem muito embasamento na economia real. Na América Latina, em especial, o pensamento dito “progressista” ainda é estatizante, centrado na distribuição dos “lucros do capital” e voltado para um combate de retaguarda contra a marcha da globalização contemporânea.
O retrato pode parecer caricatural, mas é certo que a esquerda latino-americana, aliada no chamado movimento antiglobalizador a velhos sindicalistas, a jovens idealistas e a universitários em tempo integral, pretende extrair das antigas lições marxianas sobre a “dominação do capital” a necessidade de superar esse estado de coisas, rejeitando tudo isso que aí está, em nome de “um outro mundo possível”. Ela acaba, pateticamente, se rendendo a contrafações do modelo original, como se pode constatar em experiências regionais que demonstram uma filiação “genética” mais próxima do fascismo mussoliniano do que de um pretendido socialismo gramsciano. Em termos braudelianos, a esquerda congela seus conceitos e ações políticas no mundo quase estático das lentas mudanças “geológicas”, em lugar de adaptar-se a uma conjuntura histórica de transformações – para empregar o conceito de outro historiador francês, Ernest Labrousse –, que se descortina aos olhos de quem quer enfrentar a realidade sem as viseiras ideológicas do passado e aspira a entender o mundo como ele é, realmente, não como ela gostaria que ele fosse.
Curiosamente, a América Latina era apontada, até meados do século XX pelo menos, como o continente que lograria igualar-se aos países desenvolvidos, se perseverasse nos esforços de industrialização substitutiva, no planejamento estatal, no protecionismo comercial, nos subsídios à “indústria infante”, na integração introvertida e em políticas dirigistas que atribuíam ao Estado o papel principal na determinação quanto ao uso de fatores, na mobilização de capitais – por via inflacionária, uma forma de poupança forçada – e na alocação autoritária dos recursos assim capturados do conjunto da sociedade. Incidiu nesse tipo de recomendação o economista sueco Gunnar Myrdal – prêmio Nobel em 1974, junto com o liberal austríaco Alfred Hayek, por ironia da história – que, no seu tão aclamado quanto errôneo Asian Drama, vaticinava que a Ásia era sinônimo de miséria insuperável e que se havia países no Terceiro Mundo que tinham alguma chance de alçar-se aos patamares de bem-estar e riqueza dos desenvolvidos, estes eram os latino-americanos. Myrdal preconiza para todos o modelo indiano, feito de planejamento centralizado, empresas estatais em todos os “setores estratégicos” e descolamento dos mercados internacionais, que supostamente condenava esses países à exportação de commodities sujeitas às flutuações das bolsas de mercadorias. À época em que ele pesquisou e escreveu – início dos anos 1960 – a maior parte dos países da América Latina estava mais integrada à economia mundial do que os da Ásia, ostentava, na média, o dobro da renda per capita asiática e possuía instituições públicas – Estados consolidados, depois de 130 anos de independência, estruturas de mercado capitalistas – que seriam, no cômputo global, mais “weberianamente” pró-crescimento e pró-desenvolvimento do que as arcaicas tradições confucianas da região asiática. O itinerário seguido desde então pelas duas regiões não precisa ser relembrado: a Ásia decolou espetacularmente na economia mundial e nos indicadores de crescimento – tanto mais rapidamente quanto ela se afastou das políticas socialistas e estatizantes recomendadas por Myrdal – enquanto a América Latina manteve-se, com poucas exceções, no subdesenvolvimento, na desigualdade e na pobreza. Para isso também contribuíram experimentos populistas, irresponsabilidade emissionista, desrespeito aos direitos de propriedade, desconfiança da abertura ao exterior – comércio e investimentos – e uma insistência no centralismo estatizante que marca ainda hoje boa parte da esquerda neste continente.

Os autores deste livro conhecem um pouco dessa história, por experiência própria, se ouso dizer. Outrora pertencentes, como vários jovens dessa geração, ao universo do marxismo latino-americano, naturalizados brasileiros justamente em virtude da história trágica de equívocos conceituais e de erros práticos da esquerda argentina do último terço do século XX, eles estão muito bem preparados para enfrentar a tarefa de analisar a trajetória do Brasil e da Argentina no contexto das modernas democracias de mercado. A migração forçada de um país a outro, a descoberta de realidades políticas relativamente similares, ainda que sob roupagens distintas, e o comparatismo inevitável que esse tipo de situação cria, permitiu-lhes constatar, provavelmente, como os mesmos diagnósticos equivocados feitos por lideranças políticas, lá e aqui, redundaram em perda de oportunidades de inserção no mundo globalizado da atualidade, atrasando o processo de desenvolvimento e postergando a conquista da almejada prosperidade social.
De fato, a despeito de uma história singular, que corre em trilhas próprias, o Brasil e a Argentina reproduzem, em boa medida, equívocos similares de políticas públicas – tanto macroeconômicas quanto setoriais – cometidos por diferentes regimes políticos ao longo do século XX. Se o recurso a Suetônio cabe na sociologia comparada do desenvolvimento, pode-se dizer que os dois grandes da América do Sul exibem “vidas paralelas”. Tanto o Brasil como a Argentina padecem de insuficiências de desenvolvimento, mas a maior parte dos problemas de cada um deriva de erros de gestão macroeconômica e de escolhas infelizes das elites políticas ao longo da formação das nações e das dificuldades de ajuste aos desafios externos.
Durante muito tempo, grosso modo na primeira metade desse século, prevaleceu no Brasil a idéia de que a Argentina era bem mais desenvolvida, graças a um maior componente “europeu” na sua formação étnica e aos maiores cuidados com a educação do seu povo. Em contrapartida, ao aprofundar-se sua trajetória em direção à decadência econômica, prevaleceu na Argentina a noção de que o Brasil foi mais bem sucedido na industrialização e no fortalecimento da base econômica graças ao maior envolvimento de seu Estado na gestão macroeconômica, em lugar do liberalismo que teria sido praticado nas margens do Prata. Em ambos os países, líderes populistas e ditadores militares se revezaram nos comandos do Estado pretendendo construir a grandeza nacional com base no nacionalismo industrializante e no emissionismo inflacionário. Ambas as economias foram relativamente excêntricas – isto é, voltadas para os parceiros privilegiados no hemisfério norte – e os regimes políticos mantiveram, contra toda racionalidade e interesses imediatos, certo distanciamento competitivo, que em alguns momentos quase descambou para a hostilidade, isto é, para a corrida armamentista e uma possível disputa pela hegemonia regional.
Os dois países passaram, depois de superadas suas repúblicas “oligárquicas” – mais ou menos na mesma época, os anos 1930 –, por processos de modernização econômica e política, sob a forma de experimentos nacionalistas e populistas, identificados com as figuras de Vargas e Perón. A Argentina logrou, provavelmente, um maior grau de inserção social, mas o Brasil foi menos errático no processo de desenvolvimento, conseguindo consolidar a construção de uma base industrial que nunca teve paralelo na Argentina, que permanece ainda hoje uma economia agroexportadora. Os azares da Guerra Fria e as ameaças percebidas pelas classes médias como provenientes da sindicalização excessiva do sistema político conduziram ambos os países em direção de episódios mais ou menos prolongados de autoritarismo militar.
O período militar – responsável pela vinda dos autores ao Brasil – assumiu dimensões mais dramáticas na Argentina, com um custo elevado em vidas humanas e outras conseqüências menos desejáveis no plano das relações bilaterais, com o fenômeno que dois autores consagrados – Boris Fausto e Fernando Devoto, no livro Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002) – chamaram de “afinidades repressivas”. As esquerdas padeceram muito no tempo das baionetas, mas talvez conservem, desse período, a mesma inclinação fundamental ao culto do Estado, para a autarquia econômica e o protecionismo instintivo que exibiam os militares. Hoje, se pretende avançar no desenvolvimento conjunto, mediante o Mercosul, mas as salvaguardas e os desvios ao livre comércio colocam limites à integração econômica.
Com efeito, a fase de redemocratização permitiu revigorar o processo de integração, que tinha começado no final dos anos 1950, desta vez segundo um formato bilateral – tratado para a formação de um mercado comum de 1988 – que logo se desdobrou numa dimensão quadrilateral, ao incorporar os dois vizinhos menores em 1991. O Mercosul logrou incluir outros países, como o Chile e a Bolívia (associados em 1996) e, mais recentemente, a Venezuela, mas sua zona de livre-comércio permanece incompleta, sua união aduaneira é perfurada por inúmeras exceções nacionais e o mercado comum, prometido para 1995, é um sonho ainda distante.
O itinerário dos dois países, mesmo contrastante nos planos cultural, social e político, não deixa de apresentar coincidências ou similitudes nos planos do desenvolvimento econômico e da inserção internacional, o que talvez permita retomar ao presidente argentino Roque Sáenz Peña uma frase, do início do século XX, que resume a visão otimista da cooperação bilateral, sempre invocada pelas autoridades engajadas no atual processo de integração: “Tudo nos une, nada nos separa”. Talvez – com a provável exceção dos campos de futebol –, mas a história raramente se contenta com projetos meramente retóricos de desenvolvimento ou de integração internacional. Nesse particular, o Brasil e a Argentina apresentam trajetórias erráticas, com impulsos positivos em determinadas épocas e atitudes defensivas em outras. O elemento mais notável, da presente fase, é provavelmente constituído pela incapacidade respectiva em empreender reformas que os coloquem em condições de se inserir de modo mais afirmativo na economia globalizada que caracteriza o Atlântico Norte e a região da Ásia Pacífico.

Os trabalhos compilados neste livro discutem as novas circunstâncias da economia global e os padrões atuais de organização política, com os problemas daí derivados para Estados, como o Brasil e a Argentina, que ainda estão construindo sua inclusão no novo sistema, que os autores chamam de “hegemonia das democracias de mercado”. A leitura destas páginas, impregnadas de conhecimento histórico e de racionalidade sociológica, permite constatar como são anacrônicas as demandas e reivindicações de alguns desses militantes de causas equivocadas, armados de slogans retirados de um já mundo desaparecido nas dobras da história – como os conceitos de “dependência” ou de “antiimperialismo” –, que insistem em defender causas que não são mais de vanguarda ou sequer progressistas. A oposição desses grupos e movimentos políticos a reformas institucionais que permitiriam inserir mais rapidamente os países da América Latina nas correntes mais dinâmicas da globalização – reformas política, previdenciária, trabalhista, tributária, sindical ou educacional – não é apenas conservadora, mas pode ser tachada de propriamente reacionária, em vista dos imensos problemas acumulados pelos países da região nesses aspectos que muito têm a ver com as perspectivas de emprego, renda e oportunidades de ascensão social de imensas massas ainda hoje excluídas de qualquer possibilidade de inserção produtiva no tecido social.
Os autores não deixam de confessar sua surpresa, logo na introdução, com o fato de que muitos intelectuais desenvolveram um agudo senso de anticapitalismo – sentimento que, no meu ponto de vista, consegue inclusive ser antimercado – , o que os fez cúmplices objetivos das piores barbaridades cometidas no século XX contra os direitos humanos e a democracia. Na América Latina, em particular, esse anticapitalismo visceral dos intelectuais obstaculizou a modernização econômica e social dos países, a começar pelo aggiornamento do próprio Estado, no sentido de libertá-lo, ou pelo menos distanciá-lo, da herança centralista e patrimonialista ibérica, em prol de uma visão do mundo que estivesse mais objetivamente em consonância com os requisitos de uma moderna “democracia de mercado”, aberta aos influxos da economia global.
Aparentemente incapazes de renovar conceitos e aceitar as novas realidades da economia mundial, os intelectuais da América Latina continuarão a mover-se, no futuro previsível, ao ritmo do “tempo geológico” de Fernand Braudel, arrastando-se, em grande medida, pelos caminhos da modernidade numa trajetória tão tortuosa e torturada quanto o permitido pela “velha carroça da história”, de que falava Lawrence Stone. Isto a despeito de se poder constatar, hoje em dia, que outros povos e países estão fazendo melhor e mais rápido no caminho da modernidade do que a quase totalidade da América Latina. A região poderia ser uma espécie de “Prometeu acorrentado”, se apenas grilhões materiais a prendessem a um passado mercantilista e patrimonialista, se meros impedimentos técnicos a impedissem de avançar mais aceleradamente no caminho do progresso tecnológico e da capacitação científica. Mas, os grilhões que a prendem ao atraso material e à irrelevância intelectual são de outra natureza: são propriamente mentais, invisíveis, se quisermos, ainda que alertas sejam regularmente lançados contra essa busca ativa pelo declínio econômico e pelo retrocesso político. Este livro, aliás, é um exemplo de alarme intelectual.
A insistência na velhas soluções estatizantes, na repetição dos mesmos erros do passado, a tendência a encontrar bodes expiatórios no estrangeiro e a alimentar teorias conspiratórias sobre as razões do nosso fracasso são tanto mais surpreendentes quanto estão disponíveis boas análises – por analistas individuais ou por organismos multilaterais – sobre as razões da trajetória errática e da miopia das elites. O mais surpreendente e frustrante é que continue a prevalecer, tanto na academia quanto na opinião pública, explicações simplistas, e geralmente equivocadas, sobre as causas de nossos problemas – que são de origem majoritariamente interna – e sobre as soluções que lhes seriam pertinentes. Não constitui surpresa, assim, se a cada classificação internacional de desempenho relativo – no crescimento, na educação, na competitividade, na tecnologia e em vários outros setores ainda –, a América Latina continua a ser ultrapassada por todas as demais regiões, com a possível exceção da África, ainda assim melhor colocada esta, nas taxas atuais de crescimento econômico. A julgar por certas “inovações” populistas recentes na região, a escolha parece ser por mais Estado, mais nacionalizações, menor atratividade do capital estrangeiro e, de forma não surpreendente, uma opção preferencial pelas soluções distributivistas e rentistas.
Acadêmicos experientes no debate intelectual em torno da “contra-reforma” modernista latino-americana, tanto pela sua vivência pregressa na Argentina, como pelo longo convívio nas universidades do Brasil, observadores atentos das realidades regionais e, à maneira de Raymond Aron, “espectadores engajados” na construção da ordem mundial pós-guerra fria e no grande espetáculo da globalização contemporânea, os dois autores, Eduardo Viola e Héctor Ricardo Leis, estão amplamente capacitados para oferecer uma análise de qualidade sobre os desafios do Brasil, da Argentina e de toda a região nessa difícil, mas indispensável, inserção no sistema internacional das democracias de mercado. O retrato que eles fazem da região, dos dois grandes da América do Sul em particular, não é muito otimista, mas é sem dúvida alguma necessário e bem-vindo, em face dos desafios remanescentes.
Intelectuais verdadeiros devem ostentar, antes de mais nada, espírito crítico, sem se deixar aprisionar pelas lutas políticas em curso na sociedade na qual vivem ou se enredar nas ideologias em competição na ágora universitária. A honestidade intelectual é o seu primeiro e único dever. Desse ponto de vista, nossos dois autores não se enquadram na antiga crítica sobre a “traição dos clérigos” de que falava Julien Benda. Ao contrário: eles estão em sintonia com as necessidades do tempo presente e fazem do seu ofício um instrumento crítico de esclarecimento da maioria, em prol do progresso social e em benefício da razão, como apreciaria Kant.

Paulo Roberto de Almeida
Doutor em ciências sociais, dplomata, professor no mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).
Brasília, maio de 2007