sexta-feira, 19 de maio de 2023

A Experiência de Integração Europeia e a Evolução do Mercosul (1999) - Paulo Roberto de Almeida

 Por incrível que pareça, os links deste artigo ainda estão disponíveis, mas transcrevo mesmo assim: 

701. “A Experiência de Integração Europeia e a Evolução do Mercosul”, Brasília, 17 agosto 1999, 18 p. Palestra preparada, a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção do Distrito Federal), para a III Conferência dos Advogados do Distrito Federal. Pronunciada em Brasília, no dia 20 de agosto de 1999, no Hotel Nacional (701a). Publicado em CivitasRevista de Ciências Sociais (Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, ano I, nº 1, junho de 2001, p. 37-53; link: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/issue/view/1; artigo: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/65/65). Relação de Publicados nº 289.


A Experiência de integração europeia e a evolução do Mercosul

 

Paulo Roberto de Almeida *

 

701. “A Experiência de Integração Europeia e a Evolução do Mercosul”, Brasília, 17 agosto 1999, 18 pp. Palestra preparada, a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção do Distrito Federal), para a III Conferência dos Advogados do Distrito Federal. Pronunciada em Brasília, no dia 20 de agosto de 1999, no Hotel Nacional (701a). Texto submetido para publicação na revista Civitas, da PUC-RS (701b). Publicado em CivitasRevista de Ciências Sociais (Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, ano I, nº 1, junho de 2001, p. 37-53; link: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/issue/view/1; artigo PRA: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/65/65).

 

 

Sumário do artigo:

1. Experiência europeia: um panorama geral sobre os avanços e os desafios

2. O Manifesto de Maastricht: gostosuras e travessuras do modelo europeu

3. A agenda do Mercosul: back to the future ou a Europa dos “golden sixties”

4. Evolução recente (política, econômica e institucional) do Mercosul

5. Problemas e dificuldades do “segundo período de transição”

6. Os desafios internos e externos ao Mercosul são alavancas ou bloqueios ao seu avanço?

7. O Mercosul deveria consolidar-se como simples ZLC ou evoluir para uma união aduaneira?

8. Quando e por que ele deveria postular-se como mercado comum e não como simples UA?

9. A arquitetura institucional do Mercosul: modéstia e bom senso

 

 

1. Experiência europeia: um panorama geral sobre os avanços e os desafios

Uma avaliação ponderada sobre a experiência européia em termos de integração e seus possíveis ensinamentos para o Mercosul deve partir, fundamentalmente, de uma desmistificação daquela mesma experiência, de maneira a que não apenas não se ofereça ao Mercosul um modelo, suposto ideal, de integração como também para que não se trace de seu itinerário, certamente sinuoso, uma comparação indevidamente mais desfavorável, quando confrontado ao processo, sem dúvida alguma relativamente exitoso, da integração européia.

Aqueles que apontam para os problemas institucionais do Mercosul ou para seu suposto “déficit democrático” como elementos de bloqueio na atual agenda da integração sub-regional, parecem se esquecer, por exemplo, de que a Comunidade Européia ficou durante largo tempo, no início dos anos 60, paralisada pela política de “chaise vide” mantida pela França em face dos problemas de definição de uma política agrícola comum ou de um definição harmônica dos poderes respectivos da Comissão e do Conselho (questão parcialmente resolvida com a institucionalização semioficial do COREPER, o Comitê de Representantes Permanentes, ou seja, os Embaixadores dos países membros acreditados junto à Comissão). Da mesma forma, poucos se lembram, hoje, que até quase o início dos anos 80, o Parlamento Europeu era escolhido de forma indireta pelos parlamentos nacionais e que ele tinha de fato muito ou quase nenhum pouco poder consultivo ou realmente deliberativo (ele sequer detém, ainda atualmente, o poder legislativo, monopólio do Conselho ou da Comissão). 

Os que se assustam com a descoordenação cambial do Mercosul tampouco se dão conta das assimetrias cambiais e de políticas monetárias que caracterizaram a Europa comunitária na saída do sistema de Bretton Woods, problemas parcialmente resolvidos com a instituição progressiva do Sistema Monetário Europeu, no decorrer dos anos 1970 e 1980. Mas este sistema funcionou, de fato, para um número limitado de países articulados em torno de uma moeda dominante dotada de muita credibilidade (o deutsche mark, ao qual foram estreitamente correlacionados o florim holandês e, numa etapa mais avançada, o franco francês). Os desalinhamentos da lira italiana, da libra britânica e mesmo do franco francês (este durante uma primeira fase de desalinhamento “político”) dão testemunho das dificuldades de se lograr um regime cambial coordenado num regime de flutuação de taxas e de movimentação mais ou menos livre dos capitais. Num período bem mais recente, sabe-se que o financiamento “generoso” da unificação alemã, por exemplo, feito à custa de uma elevação sensível das taxas de juros da RFA em 1992, aliado a problemas de instabilidade dos mercados cambiais, provocou o éclatement, ou seja, uma ruptura benigna do próprio SME, que passou a funcionar com margens de flutuação recíproca de +15 e de -15%, ou seja, de fato a livre flutuação das moedas ainda teoricamente integrantes de uma mesma zona monetária. 

Em outros termos, não há via real para o aprofundamento do processo de integração e os países europeus apenas lograram fazer avançar sua construção integracionista porque puderam contar com dois mecanismos relevantes de impulsão comunitária, um de ordem operacional, outro de natureza institucional. O primeiro foi a experiência de mais de 30 anos de coordenação das políticas macroeconômicas e setoriais, forjada na elaboração do orçamento comunitário (politique agricole oblige) e auxiliada pela instituição de um instrumento contábil comum, a unidade de conta chamada de ecu, o que permitiu avançar sem maiores dificuldades de ordem operacional na consecução dos objetivos de Maastricht para a União Econômica e Monetária. O segundo foi o enforcement obrigatório das decisões e das políticas comunitárias, em parte pela Comissão, mas sobretudo pelo Tribunal de Luxemburgo, a Corte Européia de Justiça, que pode ser considerado como o verdadeiro “cão de guarda” dos objetivos e dos compromissos do Tratado de Roma de 1957 e, de forma sucessiva, do Ato Único de 1986 e do Tratado da União Européia de 1992. 

É evidente que o Mercosul não dispõe nem de uma, nem de outra dessas duas “armas integracionistas”, mas também parece claro que, se o seu objetivo não é a construção de um majestoso edifício gótico comunitário erguido no mármore, mas tão somente a de um modesto mercado comum de tijolos e alvenaria, ele não precisa perseguir o ideal de perfeição comunitária que guiou a Europa nos últimos 40 anos, aliás, mais por necessidades externas e internas do que por exclusiva impulsão institucional. Com efeito, não se pode tampouco esquecer que o duplo desafio americano e soviético e a necessidade de superar a “guerra permanente” entre a França e a Alemanha (que desestruturou a Europa e retirou-lhe os comandos da política mundial entre 1870 e 1945) serviram como aguilhões do processo integracionista europeu. Ora, no Mercosul não existe nenhum tipo de competição geopolítica, nenhuma ameaça externa ou interna à inserção internacional (de fato pacífica e sem pretensões hegemônicas) dos países membros e, de fato, pouca densidade relativa nos intercâmbios recíprocos que justifiquem seja, por um lado, o engajamento num empreendimento de custos econômicos razoáveis (pense-se, por exemplo, nas dimensões do orçamento comunitário europeu e nos fluxos de recursos transferidos entre os países), seja, por outro, os custos políticos implícitos numa cessão de soberania pouco compatível, hoje em dia, com as necessidades dos respectivos processos de estabilização econômica. 

Em resumo, o Mercosul não tem ainda necessidade estrita, para consolidar os modestos objetivos que são os seus (de bem-estar das comunidades nacionais via unificação dos mercados), de instituir potentes e abrangentes mecanismos de impulsionamento comunitário, mas tão somente do estabelecimento de um marco regulatório mínimo para a conformação desse espaço econômico integrado. Se quisermos retirar ensinamentos da experiência européia, eles poderiam ser resumidos na desejabilidade (e, a partir de um certo momento, na necessidade) de coordenação de políticas monetária, fiscal e cambial e, num outro patamar institucional, na oportuna passagem do sistema arbitral ad-hoc para um de tipo permanente e extensivo, prévio à eventual introdução de uma corte de justiça que pudesse dar segurança à ampliação dos negócios internos e à atração de investimentos externos. Para concluir essa parte do “mimetismo europeu”, que não se fale de moeda única, pois isso seria simplesmente inexequível no presente momento: a moeda comum virá, talvez, no seguimento da conformação de um mercado comum consolidado, se tal é o objetivo de fato dos países membros. 

 

2. O Manifesto de Maastricht: gostosuras e travessuras do modelo europeu

Parodiando o velho Manifesto de 1848, poder-se-ia dizer que um espectro ronda o Mercosul: o espectro da Europa de Maastricht e seus miríficos critérios de unificação monetária. Todos os poderes do mundo acadêmico e os do universo sindical do Cone Sul que se batem pelo avanço concreto do Mercosul, segundo as linhas integracionistas do modelo europeu, parecem ter se lançado numa santa aliança para impulsionar o cenário idealista implícito a esse modelo. O que pedem essas forças do progresso e da democracia? Mais instituições, se possível supranacionais, consagradoras de um regime comum verdadeiramente engajado na realização dos princípios de coesão econômica e social tal como afirmados no Ato Único Europeu; mais direitos sociais ao estilo da Carta Social Européia, supostamente capazes de introduzir o quantum de bem-estar e de justiça social, hoje inviabilizado pelos “capitalistas selvagens” do Cone Sul latino-americano. 

Qual mercocrata de plantão não foi descrito como “insensível” por esses idealistas do projeto integracionista? Onde os economistas responsáveis não deixaram de alertar para essa simplificação da realidade da integração no Mercosul em face da complexidade das tarefas ainda remanescentes para cumprir o simples enunciado do Artigo 1º do Tratado de Assunção? Duas consequências derivam desse fato:

1) As questões da supranacionalidade e da unificação monetária já fazem parte, por bem ou por mal, da agenda implícita ou explícita do Mercosul;

2) Já é tempo que os responsáveis políticos e econômicos do Mercosul eliminem algumas das confusões mentais remanescentes nas cabeças dos partidários de um “Mercosul europeu” e expliquem em face de todo o mundo que o cenário realista traçado pelos “mercocratas” permitiria exorcizar de maneira mais eficaz os perigos que rondam a aplicação de um critério uniformemente integrador a uma realidade pré-união aduaneira que é, de fato, a situação atual do Mercosul.

 

De fato, o processo de integração no Mercosul tem sido habitualmente avaliado ¾ e julgado, o que me parece ainda pior ¾ à luz do precedente histórico europeu e segundo critérios analíticos derivados da experiência institucional européia. Sem pretender refazer a história ou reinventar a roda ¾ como se diz em relação a progressos tecnológicos dirigidos a resolver problemas práticos ¾, quer-me parecer que as possibilidades organizacionais de se instituir um mercado comum com forte embasamento nas realidades econômicas locais dos países do Mercosul não se esgotam no modelo europeu consagrado a partir de 1951 (CECA) e de 1957 (MCE). Uma tal atitude de adesismo institucional pode na verdade demonstrar uma certa preguiça conceitual dos analistas acadêmicos ou ainda uma derivação da velha constatação keynesiana de que somos, de uma forma ou de outra, prisioneiros de algum economista morto, neste caso, condenados a repetir a genial arquitetura concebida e implementada pelos founding fathers da integração européia.

Nunca é demais insistir sobre as particularidades desse processo de integração, seu alto sentido geopolítico ¾ no contexto dos terríveis conflitos que ensanguentaram a Europa durante a segunda “guerra de trinta anos” entre 1914 e 1945 ¾, seu aspecto funcional no quadro da Guerra Fria e da sustentação americana à união e integração européia, assim como as especificidades econômicas e políticas que presidiram à construção progressiva do belo edifício “gótico” ¾ pela sua complexidade, mais do que pela sua arquitetura ¾ que hoje constitui a União Européia. Em alguns momentos desse processo, pode-se até dizer que os meios passaram a justificar os fins, tal o crescimento da “razão burocrática” no âmbito da Comissão e órgãos associados e as aventuras e tribulações da “loucura agrícola comum”, para ficar apenas nos dois exemplos mais conhecidos do gigantismo europeu.

Frente a esse quadro de “overload” institucional deveria o Mercosul tomar a atual EU como modelo e pretender que, segundo a frase latina bem conhecida, de te fabula narratur? Pessoalmente acredito que assim como, no passado, os juristas e estadistas latino-americanos já deram mais de uma prova de sua inventividade conceitual e institucional ¾ como evidenciado, entre outros exemplos, pelas doutrinas Calvo e Drago, pelos diversos instrumentos e instituições políticas panamericanas ¾, poder-se-ia igualmente conceber alguma construção relativamente inédita nos anais das experiências integracionistas conhecidas.

Aliás, o Mercosul é certamente híbrido do ponto de vista institucional e não há por que pensar que o modelo comunitário europeu constitui o nec plus ultra dos padrões aceitáveis de construção de um mercado comum. A lógica do Mercosul, à diferença provavelmente da experiência européia, é a do menor custo possível, político ou social, para não dizer econômico, daí a própria economia feita pelos países membros em número de “mercocratas” e outros gêneros de tecnocratas. A própria rationale para a existência de uma entidade integracionista no Cone Sul latino-americano é, deve-se reconhecer, de menor apelo político e de menor justificativa econômica, comparativamente, por exemplo, à justificativa de segurança nacional e de détente militar embutida no Memorando Monet sobre a integração ¾ de fato fusão ¾ dos complexos carvão e aço de França e Alemanha.

No que se refere à possibilidade de formação de uma ordem jurídica comunitária no Mercosul, não se deve tomar como óbvio o conceito oriundo do direito comunitário europeu, isto é, de uma ordem autônoma e hierarquizada, implicando uma cessão de soberania por parte dos Estados-Membros. Visto de uma perspectiva propriamente latino-americana, o edifício europeu comporta virtudes e deformações, não porque seu modelo institucional seja politicamente inexequível, de maneira absoluta, ao sul do Equador, mas porque ele pode ser, tão simplesmente, na atual conjuntura econômica e geopolítica do cenário mercosuliano, historicamente desnecessário. Assim como não se pode exportar democracias ¾ pois elas dependem mais de uma cultura política e de um ethos social e mesmo “societal, do que de simples instituições políticas ¾, tampouco se poderia conceber uma exportação de modelos integracionistas. Os juristas podem até recusar esse tipo de argumento, passando a responder que uma ordem legal garantidora de normas e de procedimentos ritualizados é absolutamente indispensável ao bom funcionamento de todo e qualquer empreendimento integracionista. Talvez eles até tenham razão, mas então o Mercosul se faz pelo método do ensaio e erro, da empiria consagrada em norma, o que pode não ser uma má ideia em vista de sua ainda baixa densidade intrínseca em termos de conteúdo econômico integracionista.

 

3. A agenda do Mercosul: back to the future ou a Europa dos “golden sixties”

Qual seria, portanto, uma agenda realista para o Mercosul na presente fase do processo de integração? Comecemos agora por examinar a “hipótese” em função da qual foi elaborado o próprio projeto do Mercosul, ou seja, a realização do mercado comum sub-regional. A terem sido cumpridos os objetivos fixados no Artigo 1º do Tratado de Assunção, o mercado comum previsto deveria ter entrado em funcionamento no dia 1º de janeiro de 1995, o que obviamente não foi o caso. Segundo uma leitura otimista desse instrumento diplomático e do próprio processo de integração, esses objetivos serão cumpridos nesta etapa complementar, que poderíamos denominar de “segunda transição”, observados os prazos fixados no regime de convergência estabelecido para os diferentes setores definidos como “sensíveis” e cumpridos os requisitos mínimos desse mercado comum. Isto significaria, entre outros efeitos, a implementação efetiva da Tarifa Externa Comum e a conformação eventual, se necessário, de exceções verdadeiramente “comuns” a essa pauta aduaneira, e não listas nacionais de exceções como hoje se contempla. Idealmente, todas as barreiras não-tarifárias e medidas de efeito equivalente deveriam ter sido suprimidas. A coordenação de políticas macroeconômicas, nessa perspectiva, supõe igualmente que os países membros deveriam ter delimitado todas as áreas cruciais de cooperação em vista da necessária abertura recíproca de seus mercados a todos os bens e serviços dos países membros, inclusive no que se refere à oferta transfronteiriça de serviços e ao mútuo reconhecimento de normas e regulamentos técnicos específicos. 

Na ausência de progressos mais evidentes nessas áreas, se esperava que os países pudessem ter definido, pelo menos, um sistema de paridades cambiais com faixas mínimas de variação, se alguma, entre as moedas respectivas, bem como a harmonização dos aspectos mais relevantes de suas legislações nacionais relativas a acesso a mercados. Estes são os requisitos mínimos para a conformação de um amplo espaço econômico conjunto no território comum aos países do Mercosul, a partir do qual se poderia caminhar para a consolidação progressiva e o aprofundamento do processo de integração, em direção de fases mais avançadas do relacionamento recíproco nos campos econômico, político e social. 

Ainda que esse cenário razoável não se concretize, como parece previsível, nos primeiros anos do próximo século, seu desdobramento faz parte da lógica interna do Mercosul. Em todo caso, ele resultaria num Mercosul muito próximo do padrão de integração apresentado pelo mercado comum europeu em finais dos anos 60. Operando um “retorno ao passado” da integração européia, o Mercosul se encontraria na situação do velho Mercado Comum Europeu, dos “golden sixties” e começo dos “seventies”, isto é, após terem os signatários originais do Tratado de Roma completado sua união aduaneira e definido uma espécie de “coexistência pacífica” entre uma pretendida vocação comunitária — encarnada na Comissão, mas freada pelos representantes dos países-membros nos conselhos ministeriais — e um monitoramento de tipo intergovernamental, consubstanciado no papel político atribuído ao COREPER, o Comitê de Representantes Permanentes, não previsto no primeiro esquema institucional. Em outros termos, mesmo a mais “comunitária” das experiências integracionistas, sempre foi temperada por um necessário controle intergovernamental ou, melhor dizendo, nacional.

No caso específico do Mercosul, as dúvidas ou obstáculos levantados em relação ao aprofundamento do processo de integração não parecem derivar de reações epidermicamente “soberanistas” ou mesquinhamente nacionalistas — ou até mesmo “chovinistas”, como parecem acreditar em alguns — mas de determinadas forças políticas ou de correntes de pensamento, para não falar de interesses setoriais “ameaçados”, que logram “congelar” o inevitável avanço para a liberalização comercial ampliada entre os membros. Tais tendências não são necessariamente nacionalmente definidas, mas existem ao interior de cada um dos países envolvidos no processo.

Não se poderia, por exemplo, excluir a hipótese de também o Mercosul  vir a instituir, em Montevidéu, uma espécie de COREPER, mas parece evidente que esse eventual “órgão” informal teria mais a função de assessorar o trâmite de matérias administrativas junto à Secretaria Administrativa ou de facilitar o contato “diário” entre os quatro países do que, como no exemplo original europeu, os objetivos de “controlar” um órgão legitimamente comunitário — a Comissão —, estabelecer-lhe limites no processamento das atividades de “rotina” (definidas em função dos “interesses nacionais”) e, também, de acelerar o trâmite de matérias julgadas relevantes pelas capitais. Sua institucionalização requereria uma mera “emenda”, por via de decisão ministerial, ao Protocolo de Ouro Preto, mas também parece evidente que seu significado político transcenderia o simples aspecto de um “acabamento” na incipiente estrutura organizacional da união aduaneira.

Quais seriam, em consequência, as opções razoáveis, ou as mais prováveis, que se apresentam para compor uma agenda em torno do desenvolvimento futuro do Mercosul? Elas se situam, claramente, no campo de seu aprofundamento interno, em primeiro lugar nos terrenos econômico e comercial, no âmbito de sua extensão regional, no reforço das ligações extrarregionais (em primeiro lugar com a União Européia) e, finalmente, mas não menos importante, no apoio que o Mercosul pode e deve buscar no multilateralismo comercial como condição de seu sucesso regional e internacional enquanto exercício de diplomacia geoeconômica.

Parece evidente que, a despeito de dificuldades pontuais e de obstáculos setoriais, a marcha da integração econômica não poderá ser detida pelas lideranças políticas que, nos próximos cinco ou dez anos, se sucederão ou se alternarão nos quatro países membros e nos demais associados. Tendo resultado de uma decisão essencialmente política, de “diplomacia presidencial” como já se afirmou, o Mercosul econômico não poderá ser freado senão por uma decisão igualmente política. Ora, afigura-se patente que o processo de integração possui um valor simbólico ao qual nenhuma força política nacional tem a pretensão de opor-se. Daí se conclui que os impasses comerciais, mesmo os mais difíceis, tenderão a ser equacionados ou contornados politicamente e levados a uma “solução” de mútua e recíproca conveniência num espaço de tempo algo mais delongado do que poderiam supor os adeptos de rígidos cronogramas econômicos. Nesse sentido, o Mercosul não é obra de doutrinários ortodoxos, mas de líderes pragmáticos.

Assim, sem entrar na questão do cumprimento estrito do programa de convergência ou no problema da compatibilização de medidas setoriais nacionais, tudo leva a crer que a futura arquitetura do Mercosul econômico não seguirá processos rigorosamente definidos de “aprofundamento” inter e intra-setoriais, dotados de uma racionalidade econômica supostamente superior, mas tenderá a seguir esquemas “adaptativos” e instrumentos ad hoc essencialmente criativos, seguindo linhas de menor resistência já identificadas pragmaticamente. Se o edifício parecer singularmente “heteróclito” aos olhos dos cultores dos esquemas integracionistas pode-se argumentar, em linha de princípio, que o itinerário do Mercosul econômico não precisa seguir, aprioristicamente, nenhum padrão de “beleza estética” ou de “pureza teórica” no campo da integração. Em qualquer hipótese, o Mercosul não está sendo construído para conformar-se a padrões organizacionais previamente definidos em manuais universitários de direito comunitário, mas para atender a requisitos econômicos e políticos de natureza objetiva, que escapam — e assim deve ser — a qualquer definição teórica ou pretensa coerência metodológica.

No que se refere à questão do aprofundamento interno, político e institucional do Mercosul, eventualmente inclusive no terreno militar, não se pode deixar de sublinhar, uma vez mais, as dificuldades inerentes — e as demandas inevitáveis, pelos protagonistas já identificados — vinculadas ao problema da supranacionalidade, constantemente agitado, como uma espécie de “espantalho acadêmico”, sobre a mesa de trabalho de “mercocratas insensíveis”. Não se poderia excluir, a esse respeito, a evolução progressiva do atual principal opositor a qualquer “renúncia de soberania” no âmbito do Mercosul , o Brasil, em direção de uma posição mais próxima, intelectualmente falando, dos demais países-membros — seja os declaradamente “supranacionais”, como Uruguai e Paraguai, seja a Argentina moderada, isto é, em favor de uma combinação de instituições intergovernamentais e comunitárias —, muito embora tal questão esteja em conexão direta com a definição de um outro tipo, ponderado, de sistema decisório interno à união aduaneira. 

 

4. Evolução recente (política, econômica e institucional) do Mercosul

A despeito das dificuldades atuais e do recuo conjuntural dos fluxos de intercâmbio, deve-se reconhecer que o Mercosul é um dos mais bem sucedidos empreendimentos integracionistas não só na América Latina mas em todo o mundo em desenvolvimento, tanto em termos de crescimento do comércio e dos nexos de interdependência recíproca, como em virtude uma inédita estrutura institucional adaptada aos requerimentos da união aduaneira em construção, caracterizada por uma arquitetura híbrida, flexível, econômica e sobretudo altamente interativa com os centros de decisão dos respectivos poderes executivos dos países membros.

O crescimento do comércio intrarregional, exponencial em relação à expansão do comércio individual dos países membros, não se fez em detrimento de terceiros, mas sim desenvolveu-se no contexto de processos de abertura econômica e de liberalização comercial, consoante o modelo de regionalismo aberto que marcou o seu desenvolvimento.

Todos os prazos estabelecidos consensualmente foram razoavelmente cumpridos, tanto no que se refere à formação da Zona de Livre Comércio (eliminação das listas nacionais de exceção, com pequenas derrogações no conjunto), como no que tange à implementação da União Aduaneira (cujos prazos de convergência estão sendo respeitados na quase totalidade dos casos). Situações peculiares da ZLC (açúcar, regime automotivo) devem ser equacionados internamente no futuro próximo. O aumento linear em três pontos da TEC cessará de vigorar no final do ano 2000 e a quase totalidade do comércio extra comercial da UA funcionará segundo o seu regime normal, de 0 a 20% (automóveis terão um prazo adicional na alíquota de 35%).

Todas as reuniões dos órgãos permanentes do Mercosul vêm desenvolvendo-se normalmente e, se o comércio vem apresentando como se sabe dificuldades no período recente, não se pode de nenhuma forma falar de crise política ou de bloqueios institucionais. A CCM e o GMC vêm dando conta de maneira eficaz de suas agendas respectivas e o CMC tem, sob a impulsão dos presidentes, logrado enfrentar a contento os desafios que têm sido colocados aos executivos nacionais no processo de plena implementação da UA. Não se pode, aliás, deixar de reconhecer que a chamada diplomacia presidencial tem servido de fator de diluição dos desentendimentos (normais) entre os países membros numa fase decisiva de “cessão” adicional de soberanias.

A participação da comissão parlamentar e do FCES, este foro representando a sociedade civil, tem igualmente se estendido a uma gama cada vez maior de temas, dando respaldo aos órgãos institucionais de caráter político ou ao trabalho dos grupos técnicos. O debate em torno do chamado “salto supranacional”, num momento reivindicado por juristas e acadêmicos, revelou-se uma falsa questão e hoje quase ninguém mais contesta, em bases objetivas, a opção de Ouro Preto pela atual arquitetura institucional do Mercosul.

 

5. Problemas e dificuldades do “segundo período de transição”

Os poucos percalços que enfrenta atualmente o processo de integração, se examinados bem atentamente, não correspondem a problemas do Mercosul, mas em grande medida a problemas dos próprios países membros. Se não vejamos: os desequilíbrios de balanças comerciais não são derivados de fluxos desestabilizadores que tenham origem no comércio intra-Mercosul, assim como os déficits de transações correntes não podem ser considerados como tendo sido provocados pelo intercâmbio de serviços e de fatores na própria região. Esses desequilíbrios se explicam pelos fluxos globais de bens e serviços (inclusive rendas do capital) que entretêm os países membros individualmente com parceiros de fora da região e de maneira ampla com o resto do mundo, como parece evidente tanto no caso do Brasil, como no da Argentina. Os fluxos intra-Mercosul têm servido, melhor, como elementos anticíclicos em momentos de dificuldades conjunturais para cada um dos países membros. [1]

Nenhuma defasagem cambial pode ser imputada ao Mercosul enquanto tal, mas tal tipo de problema aparece como o resultado de opções políticas e econômicas propriamente nacionais, tomadas largamente num contexto de restrições externas ou de diminuição de opções internas determinadas independentemente e à margem do processo de integração. Da mesma forma, a atual fase de não-coordenação de políticas macroeconômicas não expressa uma suposta escolha anti-integracionista de um ou outro país, mas representa a ausência objetiva de condições para a efetivação dessa coordenação, situação reconhecida de boa-fé por todos os economistas atentos aos desenvolvimentos do Mercosul nesta sua “segunda fase de transição”.

O que é essa “segunda fase de transição”? Ela representa o período adicional necessário à consecução dos requisitos indispensáveis à conformação do mercado comum simplificado que se está pretendendo criar na sub-região, ou seja, justamente, a coordenação de políticas macroeconômicas e a harmonização de políticas setoriais prometidas pelo Art. 1º do Tratado de Assunção (TA). As disputas comerciais internas são bem menos relevantes, nessa ótica, do que a definição de regras estritas a serem aplicadas nos terrenos da política industrial, da concorrência, dos incentivos aos investimentos, de aplicação de normas e regulamentos técnicos, de definições nos terrenos dos financiamentos e da abertura no setor de serviços com preservação de uma certa preferência regional.

Não há, absolutamente, nenhuma crise do que se poderia chamar de “programa doutrinário da integração”, mas tão simplesmente dificuldades naturais por acesso recíproco aos mercados dos países membros em áreas bem delimitadas, ou seja, problemas que correspondem a uma situação de abertura progressiva num contexto de indefinição de normas estritas de competição e de ausência parcial ou total da “harmonização das políticas macroeconômicas”.

 

6. Os desafios internos e externos ao Mercosul são alavancas ou bloqueios ao seu avanço?

Outras dificuldades advêm, como é também natural, da percepção diferenciada que têm os países membros quanto a seus interesses nacionais no âmbito dos processos negociatórios dentro e fora da região em que eles estão coletiva ou individualmente engajados. CAN-ALCSA, ALCA, Rodada do Milênio da OMC, UE-Mercosul são exemplos de desafios externos que já se colocaram ou que devem se colocar no difícil processo de harmonização e concertação de posições em vista dessas negociações. Tomando-se como ponto de partida situações de baixa densidade intrínseca de interdependência ou de complementaridade econômica recíproca e diferentes tipos de inserção econômica internacional, é explicável que os países membros do Mercosul apresentem ainda divergências na maneira de encarar a agenda negocial externa.

No plano interno, o desafio mais óbvio é o da sustentação continuada dos respectivos processos de estabilização macroeconômica, que por sua vez se desdobra em novo desafio externo, o da manutenção da credibilidade de suas políticas econômicas, base indispensável para o acesso aos créditos, investimentos e financiamentos internacionais.

Nenhum desses problemas ou desafios, contudo, requer uma parada ou recuo no processo de integração, mas, sim, eles parecem exigir o comprometimento dos países com etapas ainda mais avançadas de construção do edifício integracionista. Os problemas da integração — que como explicitado acima não são propriamente provocados pela integração — pedem mais, e não menos, integração. Não se trata de estabelecer agendas voluntaristas, como se, por exemplo, a atual ausência efetiva de coordenação de políticas macroeconômicas requeresse, de fato, a fixação de um calendário para a introdução de uma moeda comum, pois isso apenas traria ainda menos credibilidade externa ao Mercosul do que parecem gozar hoje os países membros tomados individualmente. 

Parece claro, no entanto, que cada vez que o Mercosul foi colocado em face de desafios similares, ele soube responder de forma convincente com graus razoáveis de coordenação política e diplomática entre os países, sobretudo no caso de seus dois parceiros maiores.

 

7. O Mercosul deve consolidar-se como simples ZLC ou evoluir para uma união aduaneira?

A questão da coordenação de políticas apresenta pouca relevância para a situação em que se encontra, de fato, o Mercosul atualmente: isto é, a consolidação de sua ZLC, aliás uma base indispensável à formação da projetada ALCSA, pouco proclamada nos discursos, mas na verdade implícita nos desenvolvimentos recentes do processo negocial na América do Sul. Que o Brasil tenha dado a partida a esse processo (precisamente durante a gestão do Embaixador Rubens Antônio Barbosa à frente da área econômica do Itamaraty, tendo o Presidente FHC como chanceler), nada mais natural, uma vez que se trata do principal mercado consumidor e da maior potência industrial do continente. O Brasil se encontra, assim, em escala continental, na mesma situação da Inglaterra vitoriana, quando esta decretou o free-trade universal em meados do século XIX: cabe ao Brasil decretar uma espécie de free-trade continental e fornecer as bases para a conformação de uma vasta zona de comércio liberado no Cone Sul, antes que o hemisfério seja engolfado nos projetos livre-cambistas bem mais ambiciosos (e de fato hegemônicos, mesmo involuntariamente) da grande potência do Norte. Temos hoje condições únicas para liderar o processo sub-regional, e para isso não se necessita, ou pelo menos não se depende, do estabelecimento de uma união aduaneira no Mercosul, mas tão somente de condições relativamente igualitárias de acesso ao mercado brasileiro como forma de levar todos os parceiros à mesa negociadora.

Na perspectiva das negociações hemisféricas, é certo que quanto mais avançado estiver o Mercosul, melhor será sua força de barganha e sua credibilidade política na mesa negociadora. Mas, realisticamente, o Mercosul precisaria eventualmente evoluir para uma UA apenas e tão somente se a ALCA for uma realidade plausível no horizonte de 2003-2005, o que poderá ser melhor aferido se uma presidência e um Congresso uniformemente republicanos nos EUA lograrem obter um mandato preciso — o chamado fast-track — para conduzir, junto com o Brasil, a última fase do processo negociador. Nesse caso, a UA do Mercosul, que significa igualmente a coordenação estrita da política comercial da união aduaneira em consolidação, serviria não apenas para reforçar o grau de coesão interna dos países membros como também para preservar algumas margens de preferências que podem revelar-se úteis no jogo de barganhas e de ulterior competição aberta que passariam a caracterizar o espaço hemisférico depois de 2005. Ressalte-se, finalmente, que o fato de o mandato de Miami ter dado o prazo de 2005 para a conclusão de negociações em torno de uma ALCA, não significa que essa ALCA tenha de começar a ser implantada já em 2006. Restaria, assim, um prazo prudencial para que o Mercosul consolidasse sua união aduaneira mesmo numa “terceira fase de transição” pós-2005.

 

8. Quando e por que ele deveria postular-se como mercado comum e não como simples UA?

Essa pergunta é dependente, obviamente, do projeto estratégico comum, de longo prazo, dos quatro países membros, ou pelo menos do cenário estratégico que o Brasil, como seu maior protagonista, pretenda traçar para sua própria inserção econômica internacional e para sua política externa neste começo de século XXI. Deve-se começar por uma verdade muito simples, mas que algumas vezes é esquecida por aqueles que consideram a experiência européia como uma espécie de nec plus ultra dos processos integracionistas possíveis e imagináveis: não se faz um mercado comum pelo simples prazer estético de se partilhar mercados, pela autossatisfação de se afirmar uma política comum nos mais diversos setores da atividade produtiva ou pela compulsão de abrir fronteiras ao intercâmbio de pessoas, capitais e coisas. Um mercado comum não é senão um meio, como tantos outros, de se promover políticas de bem-estar e programas de desenvolvimento. Sua rationale é a da concorrência e da abertura como forma de estimular a inovação, a eficiência econômica e o estímulo a graus ainda maiores de inserção internacional, que não são bens coletivos em si, mas simples mecanismos para aumentar a eficiência geral do sistema econômico e o grau de bem-estar da comunidade nacional(sublinho o conceito nacional, uma vez que o horizonte da soberania estatal ainda está longe de ter sido superado na consecução dos objetivos ditos permanentes da Nação).

Aceitas estas considerações, o mercado comum do Mercosul apenas deve e poderá existir se e quando os países membros definirem metas comuns nas áreas das políticas setoriais e macroeconômicas como o meio mais adequado para a realização de seus objetivos nacionais e internacionais. Não se deve ter ilusões: o mercado comum só tem condições efetivas de se realizar se ele responder a necessidades objetivas dos processos nacionais de estabilização macroeconômica, de inserção produtiva de cada um de seus sistemas econômicos nacionais (por certo, progressivamente integrados e interdependentes), e, finalmente, de aumento do bem-estar das populações de cada um dos países participantes nesse empreendimento. A invocação do mercado comum como um objetivo desligado e autônomo dessas metas individuais dos países membros não tem a força mobilizadora que lhe atribuem muitos dos românticos acadêmicos da integração sub-regional. Não estamos engajados num processo, por certo difícil de cessão de soberanias e de construção de um edifício razoavelmente complexo em termos de administração pública compartilhada, para atender a qualquer tipo de profecia bolivariana, por mais nobres que possam ser tais metas solidaristas. O objetivo estratégico, pelo menos o do Brasil, não esqueçamos essa verdade muito simples, é, antes de mais nada, o de elevar o padrão de vida da comunidade nacional, e apenas em segundo lugar viriam quaisquer outros objetivos de política econômica ou de política externa.

A conformação do mercado comum do Sul, nome e mandato originais do Mercosul, deve, portanto, obedecer a esse objetivo de simples bom senso e de modesto comprometimento comunitário. Se o mercado comum for o instrumento mais adequando à consecução daqueles objetivos, tanto melhor: ele deve ser julgado à luz de sua adequação e funcionalidade a tais metas, e não o contrário. Parece, contudo, razoável supor que um grau adequado de avanço na construção do mercado comum seja uma espécie de préalable e de garantia à afirmação interna e externa do Mercosul no cenário de blocos estratégicos e de zonas preferenciais que ainda marcarão o horizonte das relações internacionais no limiar do século XXI. Com efeito, parece lícito supor que os progressos da liberalização multilateral e os avanços práticos tanto no terreno do direito internacional como no da interdependência econômica não serão tão importantes no cenário previsível pós-Rodada do Milênio e de fim definitivo dos últimos experimentos socialistas do planeta como para se renunciar à “arma” do regionalismo enquanto vetor prático, por vezes, necessário, da afirmação dos interesses nacionaisnum mundo em que, a despeito da interdependência global, sempre alguns serão mais “interdependentes” do que outros. Nesse caso, a interdependência de um mercado comum é mais administrável, no plano das políticas públicas, do que a interdependência saudavelmente anárquica do não-sistema político mundial e de fato multipolar em que vivemos hoje. Aliás, até como uma defesa contra o hegemonismo, o mercado comum pode apresentar certas vantagens intrínsecas.

 

9. A arquitetura institucional do Mercosul: modéstia e bom senso

Caberia, no futuro próximo, promover avanços notáveis no plano político e institucional do Mercosul? Não necessariamente, pois que uma eventual “mercocracia” comodamente instalada em Montevidéu não será necessariamente mais eficiente do que as burocracias nacionais coordenadas entre si; ao contrário, ela pode até ser mais “alienada” das realidades nacionais, regionais ou locais, num contexto bem diferente, recorde-se, em que sempre atuou a “eurocracia” comunitária, virtualmente soterrada por massas de informações relevantes provindas de Estados relativamente mais eficientes do que os do Cone Sul. Alguém poderia, em sã consciência, argumentar que alguns burocratas mercosulianos “iluminados” serão mais imaginativos e eficientes do que seus contrapartes nacionais trabalhando de forma coordenada?

Caberia, sim, portanto, impulsionar a coordenação dos aparelhos estatais entre si, nas mais diferentes esferas de atuação das agências públicas nacionais e das tecnoburocracias especializadas, sempre tendo presente o objetivo da eficiência e do menor custo possível. Não se pode estabelecer políticas comuns, como na Europa, pensando na hipotética projeção externa e internacional de um espaço integrado (minimamente) que permanecerá, de fato, no futuro previsível, um importador líquido de capitais, tecnologia e know-how de países e regiões mais avançados do ponto de vista econômico e tecnológico.

Se o Mercosul se consolida enquanto mercado comum, ele poderá, então, pensar numa moeda comum, em políticas comuns em diversas áreas de interesse conjunto (inclusive, por que não?, no terreno militar) e sobretudo em afirmar uma nova personalidade internacional que não será apenas a de um captador de inteligência externa, mas também a de um provedor de recursos e de serviços para outros parceiros nos quais possa haver espaço para o engenho e arte de suas empresas e agentes econômicos. Como já disse o Embaixador Rubens Antônio Barbosa em ocasiões anteriores, as instituições do Mercosul devem ser definidas segundo suas funções e não o contrário, ou seja, criar instituições para somente então dar-lhes atribuições específicas. Volto a afirmar, o Mercosul não é uma finalidade em si; ele é um meio, ainda que o mais importante da política externa do Brasil contemporâneo. 

Tendo em conta as observações realistas efetuadas no presente texto e do ponto de vista do direito internacional, não se pode alegar quebra de compromissos no âmbito do Mercosul, uma vez que não foram definidos, seja no Tratado de Assunção, seja nos demais instrumentos “constitucionais” (Protocolos de Ouro Preto, de Brasília) e nas medidas “legais” do Mercosul, consubstanciados em diferentes resoluções e decisões de seus órgãos diretivos, a definição de objetivos estritamente calendarizados — além da liberalização comercial — ou metodologias específicas para a construção do mercado comum. Trata-se mais de um programa e antes um processo do que um conjunto de compromissos estrita e precisamente definidos. Se é verdade que pretendemos uma longa vida ao Mercosul, e seu sucesso continuado enquanto projeto estratégico para a inserção conjunta de seus países membros no sistema econômico e político internacional do século XXI, então devemos colocar o direito a serviço da economia, e não o contrário. Qualquer tentativa de ignorar as condições concretas de existência da Realekonomic do Mercosul, substituindo-as pelas promessas miríficas da Idealpolitikde muitos acadêmicos e observadores descompromissados com o processo negocial e desligados da vida econômica real nos países membros, estaria condenada ao fracasso e contribuiria, contraditoriamente, para o descrédito interno e externo do Mercosul.

Em conclusão, aqueles que acusam o Mercosul de “fadiga burocrática”, de “descolamento da vida social”, de ignorar ou de desprezar a chamada “participação cidadã” no processo negociador, ou de qualquer outro “pecado” real ou imaginário em relação a um suposto modelo ideal de integração — aliás, jamais definido de modo claro —, provavelmente não se dão conta da extrema complexidade e mesmo da própria “temeridade” da construção integracionista no Cone sul latino-americano, sobretudo numa fase de tensões econômicas de ordem interna e externa e de elevação inevitável dos custos relativos do desmantelamento das barreiras ainda existentes à liberalização total dos fluxos internos de bens e serviços. Esses críticos “críticos” do Mercosul são usualmente os mesmos que pedem, e de fato reclamam, políticas setoriais mais ativas por parte dos Estados membros e diversas outras medidas de apoio às indústrias nacionais, sem atentar para o contraditório das posições assumidas nesse tipo de argumentação. O segredo do sucesso do Mercosul, até o presente momento, tem sido o seu caráter pragmático, bem como a postura realista, e mutuamente compreensiva (para não dizer leniente) assumida pelos Governos dos países membros, em face dos notórios problemas e dificuldades do processo de integração. Sua preservação enquanto experiência até aqui bem-sucedida de internacional dependerá, precisamente, da manutenção desse caráter flexível. 

 

PRA, 701b: 17/08/1999

Brasília, 17 agosto 1999, 18 p. Palestra preparada, a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção do Distrito Federal), para a III Conferência dos Advogados do Distrito Federal. Pronunciada em Brasília, no dia 20 de agosto de 1999, no Hotel Nacional (701a). Publicado em CivitasRevista de Ciências Sociais (Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, ano I, nº 1, junho de 2001, p. 37-53; link: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/issue/view/1; artigo PRA: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/65/65). Relação de Publicados nº 289.

 

 

 



* Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas. Mestre em Planejamento Econômico. Diplomata (Ministro-Conselheiro da Embaixada do Brasil em Washington). Editor Adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional (Webpage: http://members.tripod.com/rbpi). Autor dos seguintes livros: Relações Internacionais e Política Externa do Brasil (Porto Alegre: EdUFRGS, 1998); O Brasil e o multilateralismo econômico(Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999); O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Universidade São Marcos, 1999);Mercosul: fundamentos e perspectivas (São Paulo: LTr: 1998). Coorganizador, com Yves Chaloult, do livro Mercosul, Nafta, Alca: a dimensão social (São Paulo: LTr: 1999). Webpage: http://members.tripod.com/pralmeida; E-mail: pralmeida@brasilemb.org. As opiniões e argumentos contidos neste trabalho são exclusivamente os de seu autor e não representam posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro.

[1] Para maiores desenvolvimentos sobre as dificuldades atuais do Mercosul e seus desafios externos, ver meu artigo “Brasil y el futuro del Mercosur: dilemas y opciones”, Integración & Comércio (Buenos Aires: BID-INTAL, vol. 2, nº 6, set.-dic. 1998, pp. 65-81); versão em inglês: “Brazil and the future of Mercosur: dilemmas and options”, Integration and Trade (Buenos Aires: BID-INTAL, vol. 2, nº 6, sept.-dec. 1998, pp. 59-74).


União Monetária no Mercosul? A coisa vem de longe: artigo de 1999 - Paulo Roberto de Almeida

De vez em quando, descubro algum trabalho meu que ficou totalmente desconhecido dos estudantes e pesquisadores sobre o processo de integração:

700. “Mercosul: problemas da coordenação de políticas macroeconômicas e de uma futura união monetária”, Brasília, 28 julho 1999, 19 p. Palestra em seminário da Fundação Konrad Adenauer no Rio de Janeiro, em painel sobre integração monetária na UE e no Mercosul. Anexo (não arquivado): “Mercosul em Ciência Hoje: Precisões”, Brasília, 28 de julho de 1999, 4 p. Comentários e observações a entrevista do economista Wilson Cano, na revista Ciência Hoje, nº 151 (julho 1999) a propósito do Mercosul. 

Pelo menos permite relembrar que eu tinha e-mails e um site (Web-page: http://members.tripod.com/pralmeida) que já não existem mais há muito tempo...


Mercosul: problemas da coordenação de políticas macroeconômicas e de uma futura união monetária

 

 

Paulo Roberto de Almeida *

Diplomata. Chefe da Divisão de Política Financeira

e de Desenvolvimento Ministério das Relações Exteriores.

E-mails: pralmeida@mre.gov.br  palmeida@unb.br

Brasília, 28 julho 1999, 19 p. Palestra em seminário da Fundação Konrad Adenauer no Rio de Janeiro, em painel sobre integração monetária na UE e no Mercosul.

 

 

Sumário:

Introdução: Idealpolitik e Realpolitk no processo de integração

O Mercosul virtual e o Mercosul real: copo meio cheio ou meio vazio?

O Manifesto de Maastricht: gostosuras e travessuras do modelo europeu

A agenda do Mercosul: back to the future ou a Europa dos “golden sixties”

Um Mercosul minimalista ou maximalista? O papel da moeda e do câmbio

Uma agenda de Realpolitik para objetivos de Idealpolitik: o Mercosul em ação

O futuro do Mercosul: a work in progress

 

 

Introdução: Idealpolitik e Realpolitk no processo de integração

Abordar a questão de uma agenda política e econômica para preparar uma união monetária no Mercosul implica a suposição de que o processo de integração sub-regional se encontraria na iminência (ou pelo menos no caminho) da adoção de uma moeda comum aos quatro países-membros. Ora, tal parece não ser o caso, nem agora nem num futuro imediato, por razões que a muitos pareceriam óbvias.

Deve-se, portanto, indagar antes se uma tal questão sobre a agenda política e econômica da união monetária no Mercosul — e mais concretamente se a própria preparação de que se cogita — é legítima e pertinente do ponto de vista do estado atual e próximo futuro dessa união aduaneira ainda incipiente. A questão poderia merecer dois tipos de resposta, dependendo do ponto de vista do “espectador engajado”: de um lado, uma resposta positiva, confirmando que, sim, deve-se iniciar, hic et nunc, a preparação da agenda da futura unificação financeira; de outro, uma reação inquestionavelmente negativa, recusando uma tal agenda por seu caráter prematuro, inadequado ou até impertinente, uma vez que não estariam dadas, ainda, as condições para sequer se iniciar um debate sobre a unificação monetária.

Para comodidade desta discussão, chamemos a cada uma das duas posições, respectivamente, de idealista e de realista. A suposição, aqui, é a de que os idealistas seriam os que propugnam a preparação, desde já, da futura agenda da unificação monetária, e os realistas aqueles que recusam essa iniciativa como déplacée ou mesmo sua possibilidade como simplesmente inconsequente. Em outros termos, propor a agenda da moeda única seria praticar uma espécie de Idealpolitk, ao passo que ater-se à singela realidade das assimetrias estruturais do Mercosul atual significaria seguir o itinerário concreto da Realpolitik.

Mas, poder-se-ia, também, adotar a suposição inversa, com base no seguinte argumento: se a consequência natural de um mercado comum é a unificação de todo o espaço econômico correspondente ao território dos países-membros, se isso implica, por sua vez, a liberdade de circulação de todos os fatores produtivos e de todos os meios de sustentação da atividade econômica respectiva, inclusive e principalmente a do meio circulante próprio a cada uma das economias nacionais e se, finalmente, o Mercosul pretende, de verdade, converter-se num mercado comum pleno, então, nesse caso, a moeda única nada mais é do que a consequência natural e necessária desse mercado comum. Preparar-se para essa fase futura, ainda que mais ou menos distante no tempo, nada mais representa do que um simples ato de realismo, ao passo que recusar in limine esse tipo de discussão, com base em seu suposto caráter prematuro, aí sim, seria uma decepcionante demonstração de idealismo.

Não obstante, por facilidade de identificação ou por excesso de tradicionalismo em relação às rupturas de paradigma — a decisão de se caminhar para uma moeda única representa, certamente, uma espécie de salto paradigmático — adotaremos a classificação inicialmente proposta e chamaremos aos partidários de uma moeda única no Mercosul de idealistas e, por raciocínio inverso, seus opositores de realistas. Não há aqui um julgamento de valor apriorístico, mas uma espécie de convenção dicotômica quanto aos termos do problema, cuja discussão parece requerer uma certa dose de maniqueísmo, como ocorre em quase todas as tipologias formais da teoria social.

Os idealistas são, portanto, aqueles que pretenderiam o avanço do Mercosul com base em decisões de natureza política, cujo significado representaria nada menos do que o equivalente monetário de “queimar os navios”, ao passo que os realistas recomendam que se deixe uma tal discussão para um futuro indeterminado, sob escusa de prosaicos critérios de ordem econômica. Vejamos agora o diagnóstico do terreno, antes de discutir a agenda Idealpolitik da unificação monetária no Mercosul, pois é disso finalmente que se trata numa discussão deste tipo. 

 

O Mercosul virtual e o Mercosul real: copo meio cheio ou meio vazio? 

A despeito das atuais escaramuças “verbais” e de várias disputas comerciais, o Mercosul não parece estar ameaçado por alguma catástrofe política irreversível, nem por algum conflito econômico de grandes proporções. No que se refere às primeiras, elas parecem derivar do confronto entre uma retórica ideologicamente livre-cambista para consumo externo e algumas práticas internas, abertas ou veladas, de protecionismo explícito ou implícito, exercitado episodicamente para contentar ou apaziguar setores específicos da economia “doméstica” ameaçados de deslocamento pelo ritmo da integração. A necessidade de proteção dos empregos nacionais nos setores sob risco é, evidentemente, uma mola propulsora dessas contradições entre o programa doutrinário da integração — ao qual todos aderem sem restrições — e o pragmatismo mais discreto da proteção (justificada a título de “exceções”).

Quanto às disputas comerciais por acesso recíproco aos mercados dos países membros e as acusações mútuas de “comércio desleal” entre parceiros — a começar pela própria magnitude da TEC ou pela “legitimidade” de algumas barreiras não-tarifárias, remanescentes ou “construídas” durante ou após o período de transição —, elas são inevitáveis, na medida em que correspondem a uma situação de abertura progressiva num contexto de indefinição de normas estritas de competição e de ausência parcial ou total da “harmonização das políticas macroeconômicas”, objeto, como se sabe, do Artigo 1º do Tratado de Assunção. Ao não ter sido realizada essa harmonização, torna-se evidente o potencial de desentendimentos entre os membros nos mais diversos campos: níveis da TEC, exceções aceitáveis, ritmo da convergência, barreiras ao intercâmbio, normas industriais e fitossanitárias, regulamentos técnicos, padrões e formas de proteção à propriedade intelectual, medidas de defesa comercial, regras aplicadas aos setores ditos “sensíveis”, créditos e financiamentos ao intercâmbio, enfim, questões próprias a toda e qualquer união aduaneira em formação. O contexto fin-de-siècle de crise financeira internacional ou as preocupações no Brasil e na Argentina com o desequilíbrio das transações correntes não ajudam, por certo, no desmantelamento de alguns dos obstáculos nacionais erigidos no caminho da consolidação dessa união aduaneira.

Ainda adotando-se uma visão maniqueísta sobre o desenvolvimento futuro do processo de integração regional, quais seriam, hipoteticamente, as perspectivas extremas e as alternativas dicotômicas colocadas como promessa ou como ameaça no futuro do Mercosul? Eles parecem conformar duas perspectivas bem definidas, ainda que aparentemente pouco factíveis, de desenvolvimento político-institucional. Por um lado, na vertente “otimista”, a realização plena do projeto integracionista original, ou seja, um mercado comum caracterizado pela “livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos”, consoante os objetivos do Artigo 1° do Tratado de Assunção, ainda não realizados, diga-se de passagem. Por outro lado, no extremo “pessimista”, a diluição do Mercosul numa vasta zona de livre-comércio hemisférica, do tipo da ALCA, de conformidade com o programa traçado em Miami em dezembro de 1994 e confirmado em Santiago em abril de 1998. Por uma questão de timing político, o horizonte inicial de uma suposta realização prática dessas hipóteses de desenvolvimento seria o mesmo, ou seja, em torno de 2005-2006.

O bom senso econômico nos recomendaria considerar como pouco factível o acabamento prático do mercado comum em 2005, assim como uma boa dose de realismo político também nos levaria a afastar a hipótese de uma “autoimolação” do Mercosul no altar do projeto livre-cambista hemisférico, tal como proposto pelos Estados Unidos. No primeiro caso, isto é, o da conformação efetiva do mercado comum, estariam dadas as condições para a consideração séria da agenda da unificação monetária, segundo a visão dos idealistas. No segundo, ou seja, o do começo da implantação de uma zona de livre-comércio hemisférica, seriam confirmados os piores prognósticos dos pessimistas quanto à incapacidade do Mercosul de avançar segundo o menu básico do Tratado de Assunção, como poderiam alertar os realistas.

Nossa própria hipótese de trabalho considera que o Mercosul nem pode estimar-se confortado pela ideia de que o projeto de um mercado comum estará efetivamente ao alcance da mão no horizonte 2005, nem se ver “condenado” ao purgatório livre-cambista como resultado de sua incapacidade em avançar o suficiente para escapar da ação dissolvente de uma ALCA em construção a partir dessa data. Ele estará possivelmente a meio caminho de ambas as situações, confirmando a tradicional dificuldade em se conseguir distinguir um copo meio cheio de outro meio vazio. Em outros termos, o Mercosul virtual de 2006 será o resultado de um necessário compromisso entre o Mercosul ideal do projeto original de 1991 e o Mercosul possível da agenda concreta de trabalho dos “mercocratas” atualmente engajados no cumprimento das promessas do Artigo 1º do Tratado de Assunção.

Dito isto, permito-me tocar agora num dos principais perigos que rondam o Mercosul, além e ao lado dos supostos conflitos comerciais internos e da ameaça sempre presente de uma ALCA dissolvente: o perigo de se estabelecer uma agenda “monetária” para o Mercosul com base num mimetismo de intenções e de modalidade de ações calcado na experiência europeia de unificação econômica e monetária.

 

O Manifesto de Maastricht: gostosuras e travessuras do modelo europeu

Um espectro ronda o Mercosul: o espectro da Europa de Maastricht e seus miríficos critérios de unificação monetária. Todos os poderes do mundo acadêmico e os do universo sindical que se batem pelo avanço concreto do Mercosul segundo as linhas integracionistas do modelo europeu parecem ter se lançado numa santa aliança para impulsionar o cenário idealista implícito a esse modelo. O que pedem essas forças do progresso e da democracia? Mais instituições, se possível supranacionais, consagradoras de um regime comum verdadeiramente engajado na realização dos princípios de coesão econômica e social tal como afirmados no Ato Único Europeu; mais direitos sociais ao estilo da Carta Social Europeia, supostamente capazes de introduzir o quantum de bem-estar e de justiça social, hoje inviabilizado pelos “capitalistas selvagens” do Cone Sul latino-americano. 

Qual mercocrata de plantão não foi descrito como “insensível” por esses idealistas do projeto integracionista? Onde os economistas responsáveis não deixaram de alertar para essa simplificação da realidade da integração no Mercosul em face da complexidade das tarefas ainda remanescentes para cumprir o simples enunciado do Artigo 1º do Tratado de Assunção? Duas consequências derivam desse fato:

1) As questões da supranacionalidade e da unificação monetária já fazem parte, por bem ou por mal, da agenda implícita ou explícita do Mercosul;

2) Já é tempo que os responsáveis políticos e econômicos do Mercosul eliminem algumas das confusões mentais remanescentes nas cabeças dos partidários de um “Mercosul europeu” e expliquem em face de todo o mundo que o cenário realista traçado pelos “mercocratas” permitiria exorcizar de maneira mais eficaz os perigos que rondam a aplicação de um critério uniformemente integrador a uma realidade pré-união aduaneira que é, de fato, a situação atual do Mercosul.

 

De fato, o processo de integração no Mercosul tem sido habitualmente avaliado ¾ e julgado, o que me parece ainda pior ¾ à luz do precedente histórico europeu e segundo critérios analíticos derivados da experiência institucional europeia. Sem pretender refazer a história ou reinventar a roda ¾ como se diz em relação a progressos tecnológicos dirigidos a resolver problemas práticos ¾, quer-me parecer que as possibilidades organizacionais de se instituir um mercado comum com forte embasamento nas realidades econômicas locais dos países do Mercosul não se esgotam no modelo europeu consagrado a partir de 1951 (CECA) e de 1957 (MCE). Uma tal atitude de adesismo institucional pode na verdade demonstrar uma certa preguiça conceitual dos analistas acadêmicos ou ainda uma derivação da velha constatação keynesiana de que somos, de uma forma ou de outra, prisioneiros de algum economista morto, neste caso, condenados a repetir a genial arquitetura concebida e implementada pelos founding fathers da integração europeia.

Nunca é demais insistir sobre as particularidades desse processo de integração, seu alto sentido geopolítico ¾ no contexto dos terríveis conflitos que ensanguentaram a Europa durante a segunda “guerra de trinta anos” entre 1914 e 1945 ¾, seu aspecto funcional no quadro da Guerra Fria e da sustentação americana à união e integração europeia, assim como as especificidades econômicas e políticas que presidiram à construção progressiva do belo edifício “gótico” ¾ pela sua complexidade, mais do que pela sua arquitetura ¾ que hoje constitui a União Europeia. Em alguns momentos desse processo, pode-se até dizer que os meios passaram a justificar os fins, tal o crescimento da “razão burocrática” no âmbito da Comissão e órgãos associados e as aventuras e tribulações da “loucura agrícola comum”, para ficar apenas nos dois exemplos mais conhecidos do gigantismo europeu.

Frente a esse quadro de “overload” institucional deveria o Mercosul tomar a atual EU como modelo e pretender que, segundo a frase latina bem conhecida, de te fabula narratur? Pessoalmente acredito que assim como, no passado, os juristas e estadistas latino-americanos já deram mais de uma prova de sua inventividade conceitual e institucional ¾ como evidenciado, entre outros exemplos, pelas doutrinas Calvo e Drago, pelos diversos instrumentos e instituições políticas panamericanas ¾, poder-se-ia igualmente conceber alguma construção relativamente inédita nos anais das experiências integracionistas conhecidas.

Aliás, o Mercosul é certamente híbrido do ponto de vista institucional e não há por que pensar que o modelo comunitário europeu constitui o nec plus ultra dos padrões aceitáveis de construção de um mercado comum. A lógica do Mercosul, à diferença provavelmente da experiência europeia, é a do menor custo possível, político ou social, para não dizer econômico, daí a própria economia feita pelos países membros em número de “mercocratas” e outros gêneros de tecnocratas. A própria rationale para a existência de uma entidade integracionista no Cone Sul latino-americano é, deve-se reconhecer, de menor apelo político e de menor justificativa econômica, comparativamente, por exemplo, à justificativa de segurança nacional e de détente militar embutida no Memorando Monet sobre a integração ¾ de fato fusão ¾ dos complexos carvão e aço de França e Alemanha.

No que se refere à possibilidade de formação de uma ordem jurídica comunitária no Mercosul, não se deve tomar como óbvio o conceito oriundo do direito comunitário europeu, isto é, de uma ordem autônoma e hierarquizada, implicando uma cessão de soberania por parte dos Estados-Membros. Visto de uma perspectiva propriamente latino-americana, o edifício europeu comporta virtudes e deformações, não porque seu modelo institucional seja politicamente inexequível, de maneira absoluta, ao sul do Equador, mas porque ele pode ser, tão simplesmente, na atual conjuntura econômica e geopolítica do cenário mercosuliano, historicamente desnecessário. Assim como não se pode exportar democracias ¾ pois elas dependem mais de uma cultura política e de um ethos social e mesmo “societal, do que de simples instituições políticas ¾, tampouco se poderia conceber uma exportação de modelos integracionistas. Os juristas podem até recusar esse tipo de argumento, passando a responder que uma ordem legal garantidora de normas e de procedimentos ritualizados é absolutamente indispensável ao bom funcionamento de todo e qualquer empreendimento integracionista. Talvez eles até tenham razão, mas então o Mercosul se faz pelo método do ensaio e erro, da empiria consagrada em norma, o que pode não ser uma má ideia em vista de sua ainda baixa densidade intrínseca em termos de conteúdo econômico integracionista.

 

A agenda do Mercosul: back to the future ou a Europa dos “golden sixties”

Qual seria, portanto, uma agenda realista para o Mercosul na presente fase do processo de integração? Comecemos agora por examinar a “hipótese” em função da qual foi elaborado o próprio projeto do Mercosul, ou seja, a realização do mercado comum sub-regional. A terem sido cumpridos os objetivos fixados no Artigo 1º do Tratado de Assunção, o mercado comum previsto deveria ter entrado em funcionamento no dia 1º de janeiro de 1995, o que obviamente não foi o caso. Segundo uma leitura otimista desse instrumento diplomático e do próprio processo de integração, esses objetivos serão cumpridos nesta etapa complementar, que poderíamos denominar de “segunda transição”, observados os prazos fixados no regime de convergência estabelecido para os diferentes setores definidos como “sensíveis” e cumpridos os requisitos mínimos desse mercado comum. Isto significaria, entre outros efeitos, a implementação efetiva da Tarifa Externa Comum e a conformação eventual, se necessário, de exceções verdadeiramente “comuns” a essa pauta aduaneira, e não listas nacionais de exceções como hoje se contempla. Idealmente, todas as barreiras não-tarifárias e medidas de efeito equivalente deveriam ter sido suprimidas. A coordenação de políticas macroeconômicas, nessa perspectiva, supõe igualmente que os países membros deveriam ter delimitado todas as áreas cruciais de cooperação em vista da necessária abertura recíproca de seus mercados a todos os bens e serviços dos países membros, inclusive no que se refere à oferta transfronteiriça de serviços e ao mútuo reconhecimento de normas e regulamentos técnicos específicos. 

Na ausência de progressos mais evidentes nessas áreas, se esperava que os países pudessem ter definido, pelo menos, um sistema de paridades cambiais com faixas mínimas de variação, se alguma, entre as moedas respectivas, bem como a harmonização dos aspectos mais relevantes de suas legislações nacionais relativas a acesso a mercados. Estes são os requisitos mínimos para a conformação de um amplo espaço econômico conjunto no território comum aos países do Mercosul, a partir do qual se poderia caminhar para a consolidação progressiva e o aprofundamento do processo de integração, em direção de fases mais avançadas do relacionamento recíproco nos campos econômico, político e social. 

Ainda que esse cenário razoável não se concretize, como parece previsível, nos primeiros anos do próximo século, seu desdobramento faz parte da lógica interna do Mercosul. Em todo caso, ele resultaria num Mercosul muito próximo do padrão de integração apresentado pelo mercado comum europeu em finais dos anos 60. Operando um “retorno ao passado” da integração europeia, o Mercosul se encontraria na situação do velho Mercado Comum Europeu, dos “golden sixties” e começo dos “seventies”, isto é, após terem os signatários originais do Tratado de Roma completado sua união aduaneira e definido uma espécie de “coexistência pacífica” entre uma pretendida vocação comunitária — encarnada na Comissão, mas freada pelos representantes dos países-membros nos conselhos ministeriais — e um monitoramento de tipo intergovernamental, consubstanciado no papel político atribuído ao COREPER, o Comitê de Representantes Permanentes, não previsto no primeiro esquema institucional. Em outros termos, mesmo a mais “comunitária” das experiências integracionistas, sempre foi temperada por um necessário controle intergovernamental ou, melhor dizendo, nacional.

No caso específico do Mercosul, as dúvidas ou obstáculos levantados em relação ao aprofundamento do processo de integração não parecem derivar de reações epidermicamente “soberanistas” ou mesquinhamente nacionalistas — ou até mesmo “chauvinistas”, como parecem acreditar alguns — mas de determinadas forças políticas ou de correntes de pensamento, para não falar de interesses setoriais “ameaçados”, que logram “congelar” o inevitável avanço para a liberalização comercial ampliada entre os membros. Tais tendências não são necessariamente nacionalmente definidas, mas existem ao interior de cada um dos países envolvidos no processo.

Não se poderia, por exemplo, excluir a hipótese de também o Mercosul  vir a instituir, em Montevidéu, uma espécie de COREPER, mas parece evidente que esse eventual “órgão” informal teria mais a função de assessorar o trâmite de matérias administrativas junto à Secretaria Administrativa ou de facilitar o contato “diário” entre os quatro países do que, como no exemplo original europeu, os objetivos de “controlar” um órgão legitimamente comunitário — a Comissão —, estabelecer-lhe limites no processamento das atividades de “rotina” (definidas em função dos “interesses nacionais”) e, também, de acelerar o trâmite de matérias julgadas relevantes pelas capitais. Sua institucionalização requereria uma mera “emenda”, por via de decisão ministerial, ao Protocolo de Ouro Preto, mas também parece evidente que seu significado político transcenderia o simples aspecto de um “acabamento” na incipiente estrutura organizacional da união aduaneira.

Quais seriam, em consequência, as opções razoáveis, ou as mais prováveis, que se apresentam para compor uma agenda em torno do desenvolvimento futuro do Mercosul? Elas se situam, claramente, no campo de seu aprofundamento interno, em primeiro lugar nos terrenos econômico e comercial, no âmbito de sua extensão regional, no reforço das ligações extrarregionais (em primeiro lugar com a União Europeia) e, finalmente, mas não menos importante, no apoio que o Mercosul pode e deve buscar no multilateralismo comercial como condição de seu sucesso regional e internacional enquanto exercício de diplomacia geoeconômica. 

Parece evidente que, a despeito de dificuldades pontuais e de obstáculos setoriais, a marcha da integração econômica não poderá ser detida pelas lideranças políticas que, nos próximos cinco ou dez anos, se sucederão ou se alternarão nos quatro países membros e nos demais associados. Tendo resultado de uma decisão essencialmente política, de “diplomacia presidencial” como já se afirmou, o Mercosul econômico não poderá ser freado senão por uma decisão igualmente política. Ora, afigura-se patente que o processo de integração possui um valor simbólico ao qual nenhuma força política nacional tem a pretensão de opor-se. Daí se conclui que os impasses comerciais, mesmo os mais difíceis, tenderão a ser equacionados ou contornados politicamente e levados a uma “solução” de mútua e recíproca conveniência num espaço de tempo algo mais delongado do que poderiam supor os adeptos de rígidos cronogramas econômicos. Nesse sentido, o Mercosul não é obra de doutrinários ortodoxos, mas de líderes pragmáticos.

Assim, sem entrar na questão do cumprimento estrito do programa de convergência ou no problema da compatibilização de medidas setoriais nacionais, tudo leva a crer que a futura arquitetura do Mercosul econômico não seguirá processos rigorosamente definidos de “aprofundamento” inter e intra-setoriais, dotados de uma racionalidade econômica supostamente superior, mas tenderá a seguir esquemas “adaptativos” e instrumentos ad hoc essencialmente criativos, seguindo linhas de menor resistência já identificadas pragmaticamente. Se o edifício parecer singularmente “heteróclito” aos olhos dos cultores dos esquemas integracionistas pode-se argumentar, em linha de princípio, que o itinerário do Mercosul econômico não precisa seguir, aprioristicamente, nenhum padrão de “beleza estética” ou de “pureza teórica” no campo da integração. Em qualquer hipótese, o Mercosul não está sendo construído para conformar-se a padrões organizacionais previamente definidos em manuais universitários de direito comunitário, mas para atender a requisitos econômicos e políticos de natureza objetiva, que escapam — e assim deve ser — a qualquer definição teórica ou pretensa coerência metodológica.

No que se refere à questão do aprofundamento interno, político e institucional do Mercosul, eventualmente inclusive no terreno militar, não se pode deixar de sublinhar, uma vez mais, as dificuldades inerentes — e as demandas inevitáveis, pelos protagonistas já identificados — vinculadas ao problema da supranacionalidade, constantemente agitado, como uma espécie de “espantalho acadêmico”, sobre a mesa de trabalho de “mercocratas insensíveis”. Não se poderia excluir, a esse respeito, a evolução progressiva do atual principal opositor a qualquer “renúncia de soberania” no âmbito do Mercosul , o Brasil, em direção de uma posição mais próxima, intelectualmente falando, dos demais países-membros — seja os declaradamente “supranacionais”, como Uruguai e Paraguai, seja a Argentina moderada, isto é, em favor de uma combinação de instituições intergovernamentais e comunitárias —, muito embora tal questão esteja em conexão direta com a definição de um outro tipo, ponderado, de sistema decisório interno à união aduaneira. 

 

Um Mercosul minimalista ou maximalista? o papel da moeda e do câmbio

Muitos dos cenários otimistas ou “razoáveis” que se traçam para o futuro do Mercosul têm, como no caso da ALCA por exemplo, a data fatídica de 2005 como fator político de mutação estratégica. Na verdade, os cenários aqui visualizados se situam mais no terreno da continuidade do que no da ruptura, ainda que alguns “choques” internos tenham de ocorrer para tornar verdadeiramente possíveis, ou prováveis, alguns dos desenvolvimentos aqui considerados. É bem verdade que, no caso dos prazos finais de convergência intra-Mercosul , o ano de 2005 — e, antes dele, o ano 2000 para a liberalização completa da maior parte das exceções tarifárias — aparece como uma espécie de “ponto-de-não-retorno” no cenário da integração sub-regional, mas ele também pode ser visto como um “ponto de fuga”, após o qual os países membros, ainda a braços com processos delongados de estabilização macroeconômica e confrontados a difíceis escolhas no terreno de suas políticas econômicas nacionais, continuariam afastando diante de si ou — para usar um verbo dotado de conotação positiva — buscando ativamente a “implementação” da união aduaneira projetada.

Aceitando-se que tanto a ALCA como uma hipotética “Rodada do Milênio” na OMC, ambos sob o signo de um “GATT-plus”, poderão servir de aguilhões para a implementação efetiva dessa união aduaneira, tem-se que antes ou a partir de 2005 os países-membros estarão avançando desta vez no caminho do mercado comum. As dificuldades derivadas da abertura comercial brasileira efetuada em princípios dos anos 90 e das turbulências financeiras num fin-de-siècle pouco glorioso para a maioria das economias planetárias já terão sido provavelmente absorvidas e restaria apenas consolidar as bases de um novo modelo de crescimento econômico e de integração à economia mundial.

Nessa fase, com toda probabilidade, estaremos assistindo à consolidação de novas configurações industriais na sub-região e no Brasil em particular, com um crescimento extraordinário do comércio intra-industrial e intrafirmas. Tem-se como certa, igualmente, a continuidade do processo de internacionalização da economia brasileira, em ambos os sentidos, ou seja, não apenas a recepção de um volume cada vez maior de capitais estrangeiros nos diversos setores da economia, com destaque para o terciário, mas igualmente a exportação ampliada de capitais brasileiros para dentro e fora da região. Com efeito, o Brasil é também, crescentemente, um país “exportador” de capitais, mesmo se os estados federados ainda lutam desesperadamente, inclusive por mecanismos espúrios de incentivos e de “guerra fiscal”, para atrair investimentos diretos estrangeiros. Nesse sentido, o Mercosul se consolidará como “plataforma” industrial de uma vasta região geoeconômica, mas se converterá igualmente em grande exportador mundial de commodities e sobretudo de bens industriais, o que ele hoje faz em escala muito modesta.

Seria ainda prematuro, nesse contexto, debater a questão da “moeda comum”, mas não se poderia excluir tampouco essa hipótese, via adoção prévia de um sistema qualquer de paridades correlacionadas entre suas principais moedas. Este cenário pareceria estar vinculado ao abandono, pela Argentina, do sistema de paridade fixa, assim como à aceitação, pelo Brasil de um mecanismo compartilhado de gestão cambial, mas afigura-se ainda precoce especular sobre os caminhos certamente originais que podem, também neste caso, conduzir a um padrão monetário unificado — que pode até mesmo significar preservação das moedas nacionais — no futuro mercado comum. A própria adoção efetiva da moeda única europeia, entre 1999 e 2002, que poderá “sugerir” o afastamento da referência exclusiva ao dólar, ainda hoje básico, nas operações de comércio exterior e de finanças internacionais dos países-membros, contribuirá certamente para alimentar o debate interno em torno da questão. Não se vislumbra, entretanto, além de exercícios acadêmicos obviamente inevitáveis e alguns debates preliminares de certa forma bem-vindos, qualquer definição de calendário e de compromissos nesta área antes de uma “terceira fase de transição”, a partir de 2006. 

Alguns economistas argumentam que mesmo um Mercosul minimalista não poderia eludir o problema da coordenação cambial como condição essencial de avanços ulteriores nos demais terrenos da construção do mercado comum. Provavelmente eles estão certos, mas não há contradição de princípio entre um processo de integração regional e regimes flutuantes de câmbio. Tal se deu, na prática, em diversas etapas do processo de integração europeia, inclusive numa fase ainda bem recente, quando da última crise, em 1992, do Sistema Monetário Europeu, quando o aumento da taxa de variação entre as moedas significou uma flutuação de fato para a maioria dentre elas. O NAFTA, por outro lado, funciona de forma razoavelmente bem na ausência total de qualquer coordenação cambial, e os recentes déboires do peso mexicano e mesmo do dólar canadense, para não falar do comportamento algo errático do dólar, não parecem afetar o intercâmbio intrazona. Ou, alternativamente, se há um impacto sobre o comércio, as empresas incorporam tal variável como se se tratasse de um fluxo de comércio com qualquer país extrazona, isto é, a grande maioria da comunidade internacional e a maior fração do comércio.

O critério básico nesse particular seria o seguinte: se o Mercosul pretende consolidar, numa primeira etapa, sua união aduaneira em formato simplificado, ele não tem por que avançar na direção da unificação monetária. Se, ao contrário, a intenção é aprofundar a integração e caminhar decisivamente no sentido do mercado comum pleno, então a questão da moeda e das taxas cambiais deve figurar necessariamente no menu de seus negociadores. Observe-se que se está falando de moeda e de paridade, não necessariamente de moeda única, pois um mercado comum pode muito bem ostentar um regime cambial unificado sem necessariamente dispor de moeda comum ou única. A primeira formulação de uma união monetária na Europa previa justamente, se não há engano, um regime de paridades fixas, mas com a preservação, numa primeira etapa, das moedas nacionais.

 

Uma agenda de Realpolitik para objetivos de Idealpolitik: o Mercosul em ação

Quaisquer que sejam as dificuldades eventuais, o Mercosul terá de avançar no terreno econômico-comercial como condição prévia à preservação de sua identidade política, regional e internacional, em face dos desafios hemisférico e multilateral que se apresentarão nos primeiros anos do século XXI. As demandas não são apenas externas, na medida em que se conhece o apetite — e mesmo a necessidade — argentina pela coordenação de políticas macroeconômicas, bem como a reiterada insistência do Uruguai, e com menor ênfase do Paraguai, por instituições supranacionais. Este aspecto é, porém, mais retórico do que efetivo, sendo bem mais importantes, no caso argentino, o problema da descoordenação cambial — de fato a ameaça de desvalorização por parte do Brasil — e, para todos os demais países, a questão do acesso continuado e desimpedido ao mercado interno da principal economia sul-americana.

Um dos grandes problemas da evolução política futura do Mercosul é, precisamente, o “salto” para a adoção integral de instituições comunitárias de tipo supranacional, transição que ocorrerá mais cedo ou mais tarde nos países-membros, considerando-se que o Mercosul constitui, efetivamente, o embrião de etapas superiores de integração. Este setor é, obviamente, o de maiores dificuldades intrínsecas, uma vez que combina, como seria de se esperar, preocupações relativas à soberania estatal e ao assim chamado “interesse nacional”. A questão principal neste campo refere-se à possibilidade de formação de uma ordem jurídica comunitária no Mercosul, que muitos autores consideram automaticamente a partir do conceito similar oriundo do direito comunitário construído a partir da experiência europeia de integração econômica e política. 

Em outros termos, o Mercosul deveria ou precisaria aproximar-se do modelo europeu para receber uma espécie de rótulo comunitário, uma certificação de boa qualidade de origem supranacional? Contra essa perspectiva “europeia” são levantados, e não apenas pelos “mercocratas”, vários óbices estruturais e sobretudo políticos nos países membros. A despeito de uma aceitação de princípio por parte das elites desses países dos pressupostos da construção comunitária — ou seja, a cessão de soberania, a delegação ou transferência de poderes, a limitação da vontade soberana do Estado — a internacionalização efetiva de suas economias respectivas ou uma ativa e assumida interdependência entre os países membros do Mercosul parece ainda distante. O problema aqui parece ser mais de ordem prática do que teórica: os economistas, que são os que de fato comandam o processo de integração, pelo menos em seus aspectos práticos, não têm o mesmo culto à noção de soberania — seja contra ou a favor — em que parecem deleitar-se os juristas e os acadêmicos em geral. 

Ainda que todos possam concordar em que a soberania nacional pode e deve recuar à medida em que se avança num projeto de mercado comum, não se trata de uma questão em relação à qual os atores relevantes possam ou devam se posicionar simplesmente contra ou a favor, ou, ainda, de uma noção que deva ser encaminhada ou resolvida por um tratado jurídico de qualquer tipo. A soberania, qualquer que seja o seu significado jurídico, não costuma integrar os cálculos de PIB ou as estimativas de (des)equilíbrios de balança comercial. Da mesma forma, ela não se sujeita facilmente à coordenação de políticas macroeconômicas, daí sua irrelevância prática para a condução efetiva do processo integracionista. Ela é, sim, exercida diariamente, na fixação da taxa de câmbio — que pode até ser declarada estável — ou na determinação do nível de proteção efetiva em situações de baixa intensidade integracionista, que é justamente aquela na qual vivem os países do Mercosul (ou, pelo menos, o maior deles, que é também o menos livre-cambista dos quatro). Em outros termos, a “soberania” não é um conceito operacional, a mesmo título que a harmonização de leis ou a padronização de normas técnicas, mas tão simplesmente um “estado de espírito”, uma percepção dos resultados prováveis de ações políticas adotadas — conscientemente ou não — pelos protagonistas de um processo de integração: é algo que se constata ex post, mais do que o resultado de uma planificação ideal do futuro.

Diversos juristas e estudiosos do Mercosul têm avançado a ideia de que caberia impulsionar, através da “vontade política”, a implementação gradual de um modelo supranacional, indicando o Brasil como o grande responsável pela preservação do caráter intergovernamental da estrutura orgânica mercosuliana pós-Ouro Preto. É verdade, mas neste caso se tratou de obra meritória, na medida em que tal atitude salvou o próprio Mercosul de um provável desastre político e de possíveis dificuldades econômicas e sociais. A Realpolitik é sempre a linha de maior racionalidade nas situações de forte incerteza quanto aos resultados de qualquer empreendimento inovador, seja uma batalha militar, seja um salto para a frente nesse modesto Zollverein do Cone Sul.

Dito isto, este articulista pretende deixar claro que não defende uma posição “soberanista” estrita no processo de construção, necessariamente progressivo e gradual, do Mercosul. A soberania, como no velho mote sobre o patriotismo, costuma ser o apanágio dos que se atêm à forma em detrimento do conteúdo, à letra em lugar do espírito da lei. Sua afirmação, em caráter peremptório ou irredentista, é geralmente conservadora, podendo mesmo sua defesa exclusivista e principista ser francamente reacionária no confronto com as necessidades inadiáveis de promoção do desenvolvimento econômico e social e do bem-estar dos povos da região. O que, sim, deve ser considerado na aferição qualitativa de um empreendimento tendencialmente supranacional como é o caso do Mercosul é em que medida uma renúncia parcial e crescente à soberania por parte dos Estados Partes acrescentaria “valor” ao edifício integracionista e, por via dele, ao bem-estar dos povos integrantes do processo, isto é, como e sob quais condições especificamente uma cessão consentida de soberania contribuiria substantivamente para lograr índices mais elevados de desenvolvimento econômico e social. 

O assim chamado interesse nacional — tão difícil de ser definido como de ser defendido na prática — passa antes pela promoção de ativas políticas desenvolvimentistas do que pela defesa arraigada de uma noção abstrata de soberania. Deve-se colocar o jurisdicismo a serviço da realidade econômica — e não o contrário — e ter presente que cabe ao Estado colocar-se na dependência dos interesses maiores da comunidade de cidadãos e não servir objetivos imediatos e corporatistas de grupos setoriais ou fechar-se no casulo aparentemente imutável de disposições constitucionais soberanistas. Em certas circunstâncias, pode-se admitir que uma defesa bem orientada do interesse nacional — que é a defesa dos interesses gerais dos cidadãos brasileiros e não os particulares do Estado, a defesa dos interesses da Nação, não os do governo — passe por um processo de crescente internacionalização, ou de “mercosulização”, da economia brasileira. Quando se ouve impunemente dizer que a “defesa do interesse nacional” significa a proteção do “produtor” ou do “produto nacional” poder-se-ia solicitar ao mercocrata de plantão que saque, não o seu revólver, mas a planilha de custos sociais da proteção efetiva à produção nacional (o que envolve também, é claro, os cálculos dos efeitos renda e emprego gerados no País).

A opção continuada dos países membros do Mercosul por estruturas de tipo intergovernamental, submetidas a regras de unanimidade, pode portanto ser considerada como a mais adequada na etapa atual do processo integracionista em escala sub-regional, na qual nem a abolição dos entraves à livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, nem a instituição efetiva da tarifa externa comum, nem a integração progressiva das economias nacionais parecem ainda requerer mecanismos e procedimentos supranacionais suscetíveis de engajar a soberania dos Estados. Esses objetivos podem, nesta fase, ser alcançados através da coordenação de medidas administrativas nacionais e da harmonização das legislações individuais. Ainda que os objetivos do Mercosul sejam similares aos do Mercado Comum Europeu e, eventualmente, em última instância, aos da União Europeia, não há necessidade, para o atingimento dos objetivos que são os seus atualmente, de que o seu sistema jurídico copie, neste momento, o modelo instituído no Tratado de Roma e, numa fase ulterior, o Tratado de Maastricht. Basta atribuir-lhe personalidade de direito internacional e implantar um marco de disciplina coletiva no exercício das respectivas soberanias nacionais.

Um outro campo de avanços “virtuais” seria o da cooperação política entre os países membros. É teoricamente possível pensar, no Mercosul, em etapas mais caracterizadas de integração política, a exemplo da Europa de Maastricht. Não há contudo, neste momento, a exemplo dos conhecidos mecanismos europeus, uma instância formal de cooperação política e de coordenação entre as chancelarias respectivas para uma atuação conjunta nos foros internacionais, assim como não há uma instância específica do Mercosul para assuntos militares e estratégicos (a despeito mesmo da realização, tanto a nível bilateral Brasil-Argentina, como a nível quadrilateral, de diversas reuniões — de caráter meramente informativo e com características quase acadêmicas — entre representantes militares dos quatro países membros). A prática diplomática, contudo, tem levado a consultas políticas constantes entre os quatro países, sobretudo Brasil e Argentina, tanto a nível presidencial como por meio das chancelarias respectivas. Esses contatos passaram, cada vez mais, a envolver os setores militares respectivos dos países membros. Já, previsivelmente, os Estados Maiores conjuntos das forças armadas nacionais, no Brasil e na Argentina, reduziram ao mínimo, ou pelo menos a proporções insignificantes, os riscos de uma instabilidade político-militar nas relações recíprocas. Isto significa, tão simplesmente que a hipótese de guerra, sempre traçada nas planilhas de planejamento estratégico dos militares, é cada vez mais remota, senão impossível. 

No terreno mais concreto dos conflitos comerciais, parece por outro lado evidente que, assim como na experiência europeia a existência e o ativismo jurídico da Corte de Luxemburgo permitiu desmantelar de fato muitas barreiras não-tarifárias erigidas depois da consecução da união aduaneira, a eventual introdução de uma corte arbitral permanente no Mercosul poderia desarmar a maior parte dos impedimentos colocados pelos lobbies setoriais nacionais à abertura efetiva dos mercados internos à competição dos agentes econômicos dos demais parceiros. Talvez este seja o “primeiro grão” de supranacionalidade e de direito comunitário que caberia, por simples questão de racionalidade econômica, impulsionar no processo de integração.

 

O futuro do Mercosul: a work in progress

As fases mais avançadas do processo integracionista no Cone Sul poderão, a exemplo da experiência europeia, permitir o estabelecimento de uma cooperação e coordenação política propriamente institucionalizada e poderão até mesmo desembocar, a longo prazo, num processo ao estilo da Europa-92 e envolver as diversas dimensões discutidas e aprovadas por Maastricht, ou seja, união econômica ampliada (moeda e banco central), coordenação da segurança comum e ampliação do capítulo social em matéria de direitos individuais e coletivos. Nesse particular, as centrais sindicais do Mercosul vêm demandando, com uma certa insistência, a adoção de uma “Carta Social”, com direitos sociais e trabalhistas mínimos a serem respeitados pelos “capitalistas selvagens” do Cone Sul. Ainda que se possa conceber novos avanços no capítulo social do Mercosul , é previsível que a orientação econômica predominante neste terreno — isto é, tanto empresarial como governamental — continuará privilegiando mais a “flexibilidade” dos mercados laborais, ao estilo anglo-saxão, do que uma estrita regulação dos direitos segundo padrões europeus.

No que se refere, finalmente, ao relacionamento externo do Mercosul, caberia enfatizar primeiramente o aprofundamento das relações com outros esquemas de integração, a começar obviamente pela União Europeia. O Mercosul se constituiu no bojo de uma revitalização dos esquemas de regionalização, sobretudo os de base sub-regional. Sua primeira fase de transição coincidiu com a constituição de uma área de livre comércio na América do Norte (NAFTA), entre o México, os EUA e o Canadá, logo seguida pelo próprio desenvolvimento da ideia da “Iniciativa para as Américas” sob a forma de uma zona de livre-comércio hemisférica, a ALCA. Ao mesmo tempo, outros esquemas eram lançados ou se desenvolviam em outros quadrantes do planeta: todos eles obedecem, em princípio, à mesma rationaleeconômica e comercial, qual seja, o da constituição de blocos comerciais relativamente abertos e interdependentes, integrados aos esquemas multilaterais em vigor.

A União Europeia, que levou mais longe esse tipo de experiência, talvez seja o bloco menos aberto de todos, mas é também aquele que apresenta o maior coeficiente de abertura externa e de participação no comércio internacional de todos os demais, sendo ademais o principal parceiro externo do Mercosul. A atribuição pelo Conselho Europeu de um mandato negociador à Comissão de Bruxelas, no sentido de ser implementado o programa definido no acordo inter-regional assinado em dezembro de 1995 em Madri, parece ainda carente de maior definição quanto a seu conteúdo efetivo, em primeiro lugar no que se refere ao problema da liberalização do comércio recíproco de produtos agrícolas, uma das bases inquestionáveis do protecionismo europeu, francês sobretudo.

O Mercosul deve relacionar-se amplamente com os diversos esquemas sub-regionais, mas, ao mesmo tempo, preservar seu capital de conquistas no Cone Sul. Em outros termos, a associação, via acordos de livre-comércio, de parceiros individuais (foi o caso do Chile e da Bolívia, a partir de 1996) ou de grupos de países (os da Comunidade Andina, por exemplo), deve obedecer única e exclusivamente aos interesses dos próprios países membros do Mercosul , para que os efeitos benéficos do processo de integração sub-regional não sejam diluídos num movimento livre-cambista que apenas desviaria comércio para fora da região. Tal seria o caso, por exemplo, de uma negociação precipitada em prol da ALCA, sem que antes fossem garantidas condições mínimas de consolidação da complementaridade intra-industrial entre Brasil e Argentina e de expansão do comércio em geral no próprio Mercosul e no espaço econômico sul-americano em construção. 

Um acordo precipitado no âmbito da ALCA introduziria certamente uma demanda excessiva por salvaguardas durante a fase de transição e, sabemos pela experiência do próprio Mercosul, que elas devem limitar-se aos ajustes temporários requeridos pelos processos de reconversão ligados à repartição intersetorial dos fluxos comerciais e, em nenhum caso, dificultar ou impedir a marcha da especialização e da interdependência intra-industrial. As regras de origem, por outro lado, que conformam um dos capítulos mais intrincados de qualquer processo de liberalização, poderiam ser indevidamente utilizadas para impedir fluxos de comércio com outras regiões ou investimentos de terceiros países, geralmente europeus ou mesmo asiáticos, reconhecidamente mais dinâmicos em determinados setores de exportação.

A “ameaça” da ALCA incitou presumivelmente os europeus a se decidir por avançar na implementação do acordo de cooperação inter-regional firmado em Madri. Como registrado nesse instrumento, a liberalização comercial “deverá levar em conta a sensibilidade de certos produtos”, o que constitui uma óbvia referência à Política Agrícola Comum, uma das áreas de maior resistência à abertura no ulterior processo de negociação. Não obstante, é de se esperar que por volta de 2005, e coincidindo com avanços similares nos planos hemisférico e multilateral, o Mercosul e a União Europeia tenham delineado de maneira mais efetiva as bases de um vasto esforço de cooperação e de liberalização recíproca. Uma etapa decisiva no esforço negociador bilateral deverá ser realizada por ocasião da Cimeira Europa-América Latina, a realizar-se no Rio de Janeiro no primeiro semestre de 1999, quando também deverão reunir-se representantes de cúpula do Mercosul e da União Europeia com vistas, possivelmente, ao anúncio do início das negociações tendentes a conformar, se não um novo esquema de integração, pelo menos um processo progressivo de liberalização do comércio recíproco dos dois espaços de integração regional. Também aqui, como no caso da ALCA, a possibilidade de resultados exitosos do ponto de vista do Mercosul depende em grande medida do grau de coesão interna do grupo, tanto no terreno econômico como político.

Mais importante do que qualquer esquema “privilegiado” de âmbito regional é, contudo, o reforço contínuo das instituições multilaterais de comércio, condição essencial para que o Mercosul não seja discriminado indevidamente em qualquer área de seu interesse específico, seja como ofertante competitivo de produtos diversos, seja como recipiendário de capitais e tecnologias necessárias. A OMC representa, nesse sentido, um foro primordial de negociações econômicas e, como tal, um terreno comum de entendimento com os diversos esquemas regionais de integração. Essa instituição não constitui, entretanto, um guarda-chuvas tranquilo e muito menos uma panaceia multilateralista suscetível de preservar os países-membros dos desafios da globalização já em curso: pelo contrário, ela tende a ser, cada vez mais, o próprio foro da globalização, ao lado de suas “irmãs” mais velhas de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial. Atuando de forma coordenada na OMC, bem como em outros foros relevantes do multilateralismo econômico internacional — como a OCDE, a UNCTAD e as instituições de Bretton Woods —, os países-membros do Mercosul logram aumentar seu poder de barganha e ali exercer um talento negociador que os preparará para a fase da “pós-globalização” que já se anuncia.

Em síntese, tendo em vista que o processo de construção do Mercosul não obedece tão simplesmente a opções de política comercial ou de modernização econômica — ainda que tais objetivos sejam, por si sós, extremamente relevantes do ponto de vista econômico e social de seus países membros — ou a meras definições externas e internacionais de caráter “defensivo”, mas encontra-se no próprio âmago da estratégia político-diplomática dos respectivos Governos e de certa forma entranhado a suas políticas públicas de construção de um novo Estado-nação na presente conjuntura histórica sub-regional, parece cada vez mais claro que o Mercosul está aparentemente “condenado” a reforçar-se continuamente e a afirmar-se cada vez mais nos planos regional e internacional. Nesse sentido, ele deixa de ser um “simples” processo de integração econômica, ainda que dotado de razoável capacidade transformadora do ponto de vista estrutural e sistêmico — algo limitado, reconheça-se, para o Brasil enquanto “território ainda em formação”, por mais significativo que ele possa ser no quadro dos sistemas econômicos nacionais respectivos dos demais países membros —, para apresentar-se como uma das etapas historicamente paradigmáticas no itinerário já multissecular das nações platinas e sul-americanas, como uma das opções fundamentais que elas fizeram do ponto de vista de sua inserção econômica internacional e de sua afirmação política mundial na era da globalização. O Mercosul é, mais do que nunca, um work in progress.

Para retomar a tipologia inicial, pode-se argumentar que a unificação monetária pertence, ainda, ao terreno da Idealpolitik, e que sua preparação efetiva não pode prescindir de grandes doses de Realpolitik na condução cotidiana da união aduaneira em construção. Mas, assim como o processo de integração, em sua fase inicial, foi propriamente obra de visionários, atuando mais sob o impulso de ideais políticos do que por necessidades econômicas, a unificação monetária do Mercosul também pertence a esse gênero de iniciativas pioneiras que prometem inserir decisivamente o atual quadro integracionista numa projeção utópica do futuro. Essa projeção será tanto mais realista quanto sustentada por valores que visam aproximar o Mercosul real do Mercosul ideal.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

 



* Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas. Editor Adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional. Autor de Mercosul: fundamentos e perspectivas (São Paulo: LTr, 1998) e de O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999). E-mail: pralmeida@mre.gov.br. Web-page: http://members.tripod.com/pralmeida As opiniões e argumentos aqui desenvolvidos em caráter pessoal não expressam posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro. 




Zelenski viajará ao G7 por apoio e deve pressionar Índia e Brasil - Nelson de Sá (FSP)

 Zelenski viajará ao G7 por apoio e deve pressionar Índia e Brasil

Ucraniano busca fortalecer compromisso de EUA e do grupo após quase 16 meses de guerra, segundo jornais

Nelson de Sá
Folha de S. Paulo, 19.mai.2023

HIROSHIMA - Autoridades ocidentais divulgaram para jornais como Financial Times e The New York Times que o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, irá viajar ao Japão para participar presencialmente da cúpula do G7, que vai até domingo (21) em Hiroshima. No momento, como ele próprio informou por mídia social, Zelenski está na Arábia Saudita.

O objetivo da ida ao G7 seria fortalecer o compromisso com a Ucrânia dos integrantes do grupo, que reúne algumas das maiores economias desenvolvidas, "e assegurar o apoio de Índia e Brasil, não integrantes do G7", de acordo com o FT, citando fontes anônimas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o primeiro-ministro indiano Narendra Modi estão na cúpula como convidados.

De acordo com o NYT, várias autoridades disseram que "a presença de Zelenski pode tornar mais difícil para os líderes de Índia, Brasil e outras nações se manterem relutantes em apoiar a Ucrânia" contra a Rússia. Desde o início da guerra, a Índia evitou se afastar do aliado tradicional, até ampliando a compra de petróleo russo, e o Brasil se recusou a enviar armas para Kiev, como proposto pela Alemanha. Tanto Modi como Lula, por outro lado, já conversaram com Zelenski por telefone.

A participação do ucraniano é esperada para o domingo. É quando Modi, Lula e outros convidados participam ao lado de EUA e dos demais integrantes do G7 da sessão de trabalho "Rumo a um mundo pacífico, estável e próspero". Lula deverá falar em favor das iniciativas de paz para a Ucrânia externas ao G7, lançadas por Brasil, China e agora países africanos, encabeçados pela África do Sul.

Prevista inicialmente para as 10h do domingo, horário local, a sessão foi transferida para as 11h45. Índia e Brasil, que vinham buscando viabilizar uma reunião bilateral durante a cúpula, marcaram o encontro de Modi e Lula para as 10h40, imediatamente antes. Espera-se agora que os dois países emergentes, integrantes do grupo Brics, conversem sobre a guerra antes de entrarem para a sessão de trabalho com os demais.

Zelenski vem de se encontrar no início da semana com o enviado chinês, Li Hui, para discutir uma saída para o conflito, durante visita de dois dias do representante de Pequim a Kiev. Em comunicado após as conversas, o ministério ucraniano do exterior disse que não irá aceitar perda de território ou congelar a guerra nas posições atuais. Li disse que não há panaceia para resolver a crise e "todas as partes precisam começar por si mesmas, criar condições para se engajar em negociações".

A participação presencial do ucraniano vinha sendo especulada, inclusive por autoridades de Kiev, sem confirmação formal em Hiroshima. Na quinta (18), o ministério japonês do exterior reafirmou que ele participaria apenas virtualmente, por vídeo, no domingo. Até o momento, não houve divulgação oficial, por parte de Japão, EUA ou de outros governos, sobre a viagem de Zelenski ao G7.

O G7 foi aberto nesta sexta-feira, com uma cerimônia no Memorial da Paz em Hiroshima, da qual participaram os líderes dos países do grupo, Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Canadá. Em seguida, os sete governantes abordaram em reunião a Guerra da Ucrânia e divulgaram um comunicado.

Nele, reafirmaram o apoio a Kiev e anunciaram novas sanções econômicas, agora contra o comércio de diamantes russos. Mas o veto à retomada futura do fornecimento de gás russo à Europa, via gasoduto Nord Stream e outros, que chegou a ser noticiado por jornais ocidentais, ficou de fora.


2049, o momento China - Paulo Roberto de Almeida

Momento China: 2049 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Nota sobre um futuro possível. 

 

 

Eric Blair, aliás George Orwell, poderia ter escrito algo assim, se não tivesse morrido precocemente de tuberculose:


2049


No centenário da conquista do poder na China pelo PCC, a República Popular da China, emergindo triunfante tanto de uma segunda Guerra Fria quanto de uma pequena guerra quente sobre Taiwan, comemora seus feitos como novo hegemon mundial e homenageia festivamente Mao Tsetung e Xi Jinping, os heróis dessa trajetória triunfal. 

Um novo pensamento político, novas formas de conduzir um Estado, de administrar um povo, de organizar uma nação e de gerir um novo modelo econômico se consolidaram e se disseminaram no mundo, não apenas no Sul Global, na Asia central e em largas partes da África. Só os EUA, muito enfraquecidos por anos de disputas internas e pelo declínio econômico, poucos países da outrora UE e meia dúzia na América Latina, ainda não se submeteram ao novo hegemon.

O mundo se conformou a isso? Aparentemente sim…

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4401: 19 maio 2023, 1 p.


 

 

quinta-feira, 18 de maio de 2023

O "ruscismo", o fascismo russo defendido por Putin - Vitorio Sorotiuk

 Le mort saisit le vif! (Os mortos apoderam-se dos vivos!) O ruscismo.

Vitorio Sorotiuk

O aportuguesamento da palavra saisit do francês levou a existência do termo saisina que, em termos populares, significa o direito de herança. Estabelece nosso Código Civil no Art. 1.784 que, “Aberta a sucessão, a herança transmite-se desde logo aos herdeiros legítimos e testamentários.” E, além dos cuidados com o legado que os herdeiros se apossam, os que mais se identificam com o de cujus tomam muito cuidado com os seus restos mortais e sua memória.

Os restos mortais do príncipe russo Grigori Aleksandrovich Potemkim (1739-1791) repousavam em uma catedral de pedra do século XVIII, em Kherson, até recentemente. Com a contraofensiva ucraniana que reocupou a cidade, uma missão especial dada às forças armadas russas foi roubar a ossada de Potemkim para levá-la a Rússia. Foi Grigori Potemkim quem convenceu a sua amante, a imperatriz russa Catarina, a Grande (1729-1796), a anexar a Crimeia, em 1783, e buscou criar uma Nova Rússia - um domínio que se estendia pelo território que hoje é o sul da Ucrânia, margeando o mar Negro. Quando Vladimir Putin determinou a invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, evocou a visão de Potemkim.

Antes, Vladimir Putin havia determinado a transferência dos restos mortais do “ideólogo” Ivan Ilyin (1883-1954) da Suíça para a Rússia; e, em 2009, consagrou o seu tumulo. Putin vem mencionando e citando Ivan Ilyin em seus discursos desde 2005.  Encerrou o seu discurso em 30 de setembro de 2022, quando da anexação ilegal das províncias de Luhansk e Donets o citando novamente. Seus livros são leitura obrigatória para todos os funcionários do governo. Ivan Ilyin foi expulso da Rússia, em 1922, por determinação de Vladimir Lenin (1870-1924); e no exílio tornou-se o ideólogo do Movimento Branco, facção monarquista que defendia o retorno do tsarismo e um defensor da ideologia fascista. Foi defensor de Hitler, Mussolini e Franco mesmo depois do fim da Segunda Guerra Mundial.  

As características imperialistas e fascistas do novo regime russo, alicerçado após o fim da União Soviética, compõem, sem dúvida alguma, o acervo da herança guardada com zelo por Vladimir Putin. O historiador Tymophy Snyder afirmou, em artigo publicado no “New York Times”, que “a Rússia de hoje atende a maioria dos critérios que os estudiosos tendem a aplicar. Tem um culto em torno de um único líder, Vladimir Putin. Possui um culto aos mortos, organizado em torno da Segunda Guerra Mundial. Tem um mito de uma era de ouro passada de grandeza imperial, a ser restaurada por uma guerra de violência curadora – a guerra assassina na Ucrânia.” Os filósofos e cientistas sociais, sem desconsiderar essa herança, se debruçam, entretanto, para caracterizar o novo regime sob outra denominação tendo em vista as características atuais do fenômeno social e político russo.

A Verkhovna Rada – parlamento supremo da Ucrânia – adotou, no início deste mês de maio, uma resolução; “Sobre o uso da ideologia do ruscismo pelo regime político da Federação Russa, condenando os fundamentos e práticas do ruscismo como totalitários e misantrópicos.  A letra da palavra fascismo foi substituída pelo r em referência à Rússia (фашизм = рашизм). Para o português seria mais literal o rascismo, mas a tradução como ruscismo dá o real conteúdo de referência expressa pelos ucranianos. O termo ruscismo começou a ser usado no discurso público após a guerra de 2008 na Geórgia; ganhou maior popularidade após a anexação da Crimeia pela Rússia e o início da agressão russa, em 2014; e, agora, é termo oficial por lei na Ucrânia. 

A conceituação estabelece que o ruscismo é a ideologia usada pelas autoridades da Federação Russa e a forma do atual fascismo russo. São consequência dessa ideologia a violação em massa e sistemática dos direitos humanos, tanto dentro da Federação Russa quanto nos territórios ocupados da Ucrânia. As liberdades de reunião, manifestação, partidária, assim como o feminismo e a liberdade sexual e comportamental são vistas pela Rússia como “degeneração” da sociedade ocidental. A menor dissidência na Rússia é vista como traição aos interesses nacionais. Atualmente, está proibida a palavra “guerra” e quem a use está sujeito à prisão. Os oponentes políticos ou são mortos envenenados ou presos quando tem sorte.

O nacionalismo russo é a base da ideologia do Estado onde se aplica o conceito do Russkiy Mir - “mundo russo”. O auto engrandecimento da Rússia e dos russos às custas da opressão violenta, da negação do direito à autodeterminação ou, em geral, do direito à existência de outros povos. A Ucrânia, para Vladimir Putin, é uma invenção de Lênin. Essas ideias agora estão sendo plantadas agressivamente nos territórios ocupados da Ucrânia e são acompanhadas pela proibição de tudo o que é ucraniano.

“Entendemos o ruscismo como um novo tipo de ideologia e prática totalitária, que está no cerne do regime que se formou na Federação Russa, sob a liderança do presidente V. Putin; e é baseado nas tradições do chauvinismo e do imperialismo russos, as práticas do regime comunista da URSS e do nacional-socialismo”, diz, em comunicado oficial, a Verkhovna Rada.

Segundo Anne Applebaum, em entrevista concedida à BBC: “ruscismo é uma forma de colonialismo ou “hiper imperialismo” da Rússia moderna. Este é um Estado que se percebe tão superior aos seus vizinhos, pelo menos se falamos da sua elite, que se julga no direito de os apagar da face da terra, do mapa mundi, de destruí-los à vontade, para matar seus civis - e não apenas soldados.”

O historiador Timothy Snyder diz que “fascistas, chamando outras pessoas de “fascistas”, é o fascismo levado ao seu extremo ilógico como um culto à irracionalidade. É um ponto final onde o discurso de ódio inverte a realidade e a propaganda é pura insistência. É o apogeu da vontade sobre o pensamento. Chamar os outros de fascistas, sendo fascista, é a prática essencial de Putin. Jason Stanley, um filósofo americano, chama isso de “minar a propaganda”. Chamei isso de “esquizofascismo”. Os ucranianos têm a formulação mais elegante. Eles chamam isso de ruscismo. “rashism” em inglês).

O fascínio com as obras de Ivan Ilyin revela a paixão pelo chauvinismo russo e a busca pelo retorno à “grandeza” do Império Russo, sepultado pela revolução de 1917. O esforço de Vladimir Putin, para trazer à Rússia os restos mortais do ideólogo do estado forte e defensor do nazismo e fascismo, indica claramente a assunção da herança do nazifascismo de Hitler e Mussolini. O roubo dos restos mortais de Gregori Potemkim, em Kherson, revelam a assunção da herança imperialista e despótica da Rússia.

Esse acervo hereditário, misturado com revanchismo contra a história, onde a Rússia caiu por seus próprios pecados, edificou a nova ideologia e prática denominada de ruscismo. O ruscismo é nome do coquetel venenoso que embebedou a elite russa com a maldita herança da maldade humana.

VITORIO SOROTIUK

Presidente da Representação Central Ucraniano Brasileira

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