sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Adequações inevitáveis e inadiáveis no serviço diplomático brasileiro - Gustavo Buttes (Jota)

 DIPLOMACIA

Adequações inevitáveis e inadiáveis no serviço diplomático brasileiro

Renovação ainda segue um desafio, mas plano de ações afirmativas avança para ampliar número de mulheres, negros e PCDs no Itamaraty

Gustavo Buttes
JOTA, 16/01/2025
adequações serviço diplomático brasileiro
Fachada do Palácio Itamaraty, em Brasília / Crédito: Ana de Oliveira/AIG-MRE

Há uma máxima no Itamaraty, cunhada pelo ex-chanceler Azeredo da Silveira, segundo a qual “a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se.” 

Renovar-se segue sendo um desafio para o Ministério das Relações Exteriores (MRE), tanto mais quando as desigualdades marcantes observadas na sociedade brasileira encontram, no Itamaraty, expressão real e insofismável.Entre diplomatas, além do reduzido número de negros em seus quadros, muito levemente mitigado pelas cotas em concursos públicos, também é mínima a presença de mulheres, mantida há décadas em torno de resistentes 23%. Pessoas com deficiência são apenas 1,77%.

Nesse sentido, a Associação e Sindicato dos Diplomatas Brasileiros (ADB Sindical) saúda a recente divulgação do Plano de Ações Afirmativas (PAA) do MRE, no contexto do Programa Federal de Ações Afirmativas. 

Como primeiro órgão federal a divulgar seu PAA, da mesma forma como já fora, em 2001/2002, o primeiro a promover política de apoio à formação de candidatos negros, convém registrar que esse pioneirismo de hoje é fruto do amadurecimento sindical da categoria e da iniciativa igualmente pioneira das mulheres diplomatas, que criaram em 2023, depois de mais de 10 anos de ação coletiva, a Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras, primeira associação exclusivamente de mulheres em todo o funcionalismo público. De igual modo, outros grupos se organizaram e passaram a pleitear mudanças na estrutura de pessoal do Itamaraty. Somos nós, portanto, buscando a inadiável renovação.

O PAA do MRE traz avanços no tocante à transversalização dos temas de diversidade e inclusão naquilo que são as ações finalísticas. São 16 ações com impacto direto sobre os conteúdos da agenda diplomática brasileira. O Itamaraty incorpora, assim, à política externa brasileira, compromissos louváveis e muito relevantes. Em outras 18 ações referentes à gestão de pessoas e gestão administrativa, há também propostas de inegável mérito.

A preocupação persiste, contudo, no tocante ao processo de implementação de tais medidas, especialmente as últimas. O PAA lançado pelo MRE silencia quanto a metas mensuráveis e prazos para seu cumprimento, além de usar linguagem bem-intencionada, mas genérica. Sem compromisso com resultados vinculantes, as propostas de ação afirmativa arriscam-se a permanecer no plano da retórica, do discurso.

Nosso sindicato irá fazer o monitoramento desse plano para que, no prazo de sua vigência, o Itamaraty possa apresentar mudanças visíveis em sua composição e organização. Iremos cobrar, por exemplo, a presença de negros, mulheres e pessoas com deficiência em funções de chefia no Brasil e nas principais missões no exterior. Hoje, dos 20 postos brasileiros mais importantes, apenas um, a embaixada em Washington, é chefiado por uma mulher. Nenhum é chefiado por um negro.

É preciso mudar tal perfil, por meio de um esforço coletivo para trazer à tona a renovação: das paredes repletas de quadros de homens brancos a marcar a história da diplomacia brasileira vem o inadiável apelo pela diversidade. Entendemos que a inclusão de grupos historicamente vulnerabilizados é pilar essencial para o adequado exercício das competências que cabem ao Itamaraty na formulação e execução da Política Externa Brasileira.

Além do monitoramento do PAA, queremos avançar nas transformações que serão, mais uma vez, a expressão de uma tradição que sabe renovar-se. Entre elas, está a modernização do regime jurídico do MRE, promovendo mudanças estruturais para melhor servir a sociedade brasileira. O fazer diplomático envolve a prestação de um serviço público de alta relevância, mesmo em condições extremamente adversas (guerras, conflagrações internas, crises e catástrofes climáticas e ambientais). Em um mundo em constante transformação, faz-se necessária a devida atualização do arcabouço jurídico que sustenta a atuação diplomática do Brasil.

Em nosso entendimento, as mudanças almejadas devem ser fruto de ampla negociação interna. Para funcionários e funcionárias treinados na diplomacia, a negociação é condição sine qua non para a consecução do objetivo comum de fortalecimento institucional. Tal construção envolve, por parte do MRE, a incorporação e reconhecimento da pertinência da atividade sindical.

A ADB Sindical – um sindicato de diplomatas – reconhece-se, hoje, 50 anos após a célebre máxima de Azeredo da Silveira, como legítima manifestação da renovação comprometida com a excelência da tradição diplomática.logo-jota

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GUSTAVO BUTTES

residente da ADB Sindical na gestão 2024-2026. Primeiro-secretário do Ministério das Relações Exteriores, atualmente está lotado no Departamento de América do Sul. Formado em Relações Internacionais pela Faculdade Santa Marcelina e mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco, serviu em Teerã, Milão e Maputo. Aprovado no Concurso de Admissão à Carreira Diplomática em 2010, já atuou em diversas funções também no Brasil, incluindo a Subchefia da Divisão de Imigração. Foi condecorado com a Medalha Mérito Santos-Dumont em 2014.


O "Farewell Address" de Joe Biden: ameaças vindas de uma oligarquia que quer dominar o país (CNN)

Joe Biden se despede da presidência e dos "fellow Americans" alertando sobre as ameaças representadas pela oligarquia que pretende dominar seu país. 


CHINA – ASCENSÃO PACÍFICA E HARMONIOSA (II). Visão histórica - Paulo Pinto (Linkedin)

CHINA – ASCENSÃO PACÍFICA E HARMONIOSA (II). Visão histórica

Paulo Pinto

Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.

Linkedin, January 16, 2025

https://www.linkedin.com/pulse/china-ascens%C3%A3o-pac%C3%ADfica-e-harmoniosa-ii-vis%C3%A3o-hist%C3%B3rica-paulo-pinto-aicnf/ 

 

Conforme citado na primeira parte do artigo, publicado em 20 de dezembro passado, os dirigentes chineses pretendem resgatar a histórica viagem do Alm. Zheng He, em 1405, ao Sudeste Asiático ou “Nanyang”. Procura-se, então, identificar nas “intenções pacíficas” daquele périplo, exemplo da permanente busca de “harmonia” – em oposição a “hegemonia” – nas relações da China com os vizinhos ao Sul de suas fronteiras.

O Partido Comunista Chinês, portanto, se esforça, tanto no plano interno, quanto no das relações com o exterior, no sentido do convencimento de que, em todos os momentos de emergência do país – há 600 anos, como agora - a China pode ser forte, enquanto não representa ameaça regional ou mundial.

Nessa hipótese, um mega agrupamento a ser formado na Ásia Oriental, dependeria do somatório de interesses compartilhados por diferentes "redes de civilizações asiáticas", formadas por chineses, coreanos, malásios, japoneses e outros, que, gradativamente, negociariam uma agenda comum intrarregional.

Na sequência do exercício de reflexão já proposto, afirma-se que a “ascensão pacífica chinesa” dependeria, também, da capacidade de a ASEAN continuar a ser um foro de agregação, permitindo a aproximação de interesses convergentes de seu quase meio bilhão de habitantes daqueles de mais de 1,2 bilhões da China. Esse processo incluiria uma multiplicidade de interações de caráter político, militar, social e cultural.

Nessa perspectiva, no início da década de 1960, a República Popular da China iniciava processo de radicalização interna, com expressivos reflexos em suas relações com o exterior.

Em contrapartida, a região do Sudeste Asiático começava a apresentar perfil próprio. Era a fase da conquista da independência de nações daquela área, sob o formato de Estados modernos. A Nanyang deixara de ser uma vasta mancha cinzenta, da época áurea do hegemonismo do Império chinês. 

Evoluía, naquele momento, da situação em que se marcava no mapa político regional, com vermelho as colônias britânicas, com verde as francesas e amarelo a holandesa.  Começava a entrar na Era da "Guerra Fria" em que os países seriam definidos, no vermelho ou no azul, em função de seu alinhamento com os objetivos estratégicos globais fosse de Moscou ou de Washington, respectivamente.

Nesse contexto, fundada em 8 de agosto de 1967, com a declaração de Bangkok, a Associação das Nações do Sudeste Asiático – ASEAN - foi o terceiro agrupamento a ser formado no Sudeste Asiático, após a Segunda Guerra, sem ter caráter de aliança militar. Teve como predecessora a Associação do Sudeste Asiático, constituída em 31 de julho de 1961 por Tailândia, Malaya e Filipinas, que não sobreviveu mais de três anos, por causa de questão que colocava em disputa, entre Kuala Lumpur e Manila a soberania sobre a província de Sabah.

Paralelamente, Malaya, Filipinas e Indonésia reuniram-se, sob a denominação de MAPHELINDO, a partir de suas bases étnicas. Devido ao componente racial, que preocupava as demais nações da região, pouco igualmente durou.[1]

Em 1966, os ânimos regionais haviam-se acalmado. A Tailândia desempenhara papel de relevo como mediadora para o término das hostilidades. Cingapura havia-se separado da Federação da Malásia, devido ao que julgava ser excessiva concentração de poder em Kuala Lumpur.

Os dirigentes dos cinco países – Tailândia, Malásia, Singapura, Indonésia e Filipinas – passaram então a sentir necessidade de criar novos vínculos entre si, no âmbito de associação que viesse a contornar problemas gerados tanto pela dinâmica regional, quanto pelo envolvimento das superpotências no Sudeste Asiático, onde agravava-se a Guerra no Vietnã.

Reações Externas ao Surgimento da Associação

No plano externo, quando de sua fundação, a ASEAN foi entendida como a expressão de países que pretendiam apresentar-se ao Ocidente industrializado como área dedicada aos propósitos de uma economia de mercado. Além de não se situarem em região diretamente inserida na fronteira ideológica dos Estados Unidos da América - como acontecia com a Coréia do Sul, Taiwan e o então Vietnam do Sul - Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura e Tailândia não desejavam, tampouco, aparecer como promotoras de bloco militar semelhante à SEATO[2].

Tudo o que pretendiam, em nível de sua inserção nas relações internacionais, era salientar, perante o conturbado panorama político regional da época, sua vocação capitalista e reivindicar, portanto, o apoio da superpotência de igual sistema.

Logo após sua fundação, desenvolvimentos políticos dramáticos passaram a ameaçar o equilíbrio de poder no Sudeste Asiático. Em janeiro de 1968, foi anunciado que as forças britânicas seriam retiradas da região a Leste de Suez, até o final de 1971. Paralelamente, a ofensiva Tet, desencadeada pelos nortes- vietnamitas e "vietcongs" contra as tropas americanas, em fevereiro de 1968, levou a mudança da perspectiva de Washington quanto a seu envolvimento em conflitos asiáticos, com o consequente anúncio da "Doutrina Guam", por Nixon, em julho de 1969, segundo a qual era declarada a intenção dos EUA de, a partir de então, colocar maior ênfase "no emprego de forças locais para o combate em lutas locais".

Em outros desenvolvimentos, o Nono Congresso do Partido Comunista Chinês, em abril de 1969, estabelecia nova fase na política externa da RPC, encerrando o período de xenofobia e de exportação de ideologia que caracterizou a Revolução Cultural. Teve início a "Diplomacia de Ping Pong" que conduziu ao anúncio, em julho de 1971, da visita de Nixon a Pequim, bem como à admissão da República Popular da China nas Nações Unidas, em outubro do mesmo ano[3].

Enquanto tudo isso acontecia, alterava-se, igualmente, o perfil da presença da União Soviética no Sudeste Asiático e Moscou estabelecia relações diplomáticas com Kuala Lumpur, em março de 1967, e com Cingapura, em julho de 1968.

O primeiro deslocamento estratégico da Marinha Soviética na região do Oceano Índico ocorreu em março de 1968.  Em junho de 1969, logo após os choques armados na fronteira com a China, no Rio Ussuri, Brezhnev propôs a criação de um sistema de segurança coletiva na Ásia.

Finalmente, o Japão iniciava, na mesma época, sua expansão econômica no Sudeste Asiático.

A reação inicial chinesa, com respeito à formação da ASEAN, foi de condenação, como aliança de "lacaios dos norte-americanos, formada a pretexto de cooperar economicamente, mas, na verdade, tratando-se de agrupamento militar dirigido especificamente contra a China"[4].

A explicação para tal atitude de Pequim é encontrada no fato de que, então no auge da guerra do Vietnam, os EUA utilizavam-se de bases aéreas na Tailândia e Filipinas, para atacar objetivos no território vietnamita.

O enfoque chinês começou a mudar, contudo, a partir do estabelecimento de nova linha política da ASEAN, decidida durante sua Reunião Extraordinária de Ministros dos Negócios Estrangeiros, na capital da Malásia, em novembro de 1971. A chamada "Declaração de Kuala Lumpur", visava à criação de uma Zona de Paz, Liberdade e Neutralidade no Sudeste Asiático (em sua sigla inglesa ZOPFAN)[5].

"Paz e Neutralidade" vinham ao encontro do interesse chinês, no sentido de constituir oposição ao aumento da presença, tanto dos EUA, quanto da URSS naquela parte do mundo. Assim, a RPC chegou a enviar mensagem congratulatória pela formação da ZOPFAN, com ênfase em sua determinação quanto ao estabelecimento de área de "neutralidade".

Com o término da Guerra do Vietnam, em 1975, melhorou o diálogo entre a China e a Associação.  Assim, dois anos após, Pequim chegou mesmo a expressar seu apoio à iniciativa que estabeleceu vínculos especiais entre a ASEAN e os EUA, Japão, CEE, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Coréia do Sul.

O Processo de Abertura da RPC e sua Influência no Sudeste Asiático

 Existe o consenso de que o processo de abertura da China para o exterior teve início em 1978, quando os dirigentes em Pequim reconheceram a falência do modelo econômico centralmente planificado que o país vinha adotando.

Com o término da Guerra Fria, na década de 1990, criaram-se condições para o ressurgimento de uma antiga moldura político-cultural, que historicamente regularam a convivência entre as nações do Sudeste Asiático com a China.

Observadores da América do Norte, contudo, apontavam, a partir de então, a China como um fator futuro de instabilidade regional, disposta a preencher um vácuo político, resultante do término da confrontação bipolar vigente no período da Guerra Fria.

O grande objetivo chinês no plano internacional, nessa perspectiva, teria de ser o de compactuar com a disciplina que os países ocidentais vinham procurando impor ao mundo, desde a metade do século XIX. Tratar-se-ia “apenas de manter e adquirir territórios, definir e assegurar o círculo da própria soberania e a ordem pública no interior desse círculo, se necessário pela força das armas”.

No mesmo período, no entanto, ideias geradas em centros acadêmicos chineses formulavam novo discurso alternativo às teorias de "power politics", com suas fórmulas de dominação dos fracos pelos fortes, bem como defendiam a tese de que, com sua ascensão econômica e política, a Ásia pudesse resgatar alguns dos enunciados de seus "cinco princípios de coexistência pacífica" ou dos "dez princípios de Bandung", apresentados na década de 1950, segundo os quais é concedida ênfase à criação de "um mundo pluralístico onde todos os países seriam colocados em nível de igualdade".

Novo Paradigma: ASEAN+1

O novo milênio iniciou-se, na Ásia Oriental, com transformações paradigmáticas nas relações entre a China e o Sudeste Asiático. Nesse sentido, as dimensões de segurança, econômica e política foram profundamente afetadas por uma herança cultural comum, de origem chinesa.

Em parte, devido à determinação dos Estados Unidos de agir unilateralmente e pelo emprego da força militar, após os atentados de 11.09.2001, a Ásia Oriental passou a valorizar agenda de segurança própria, com ênfase em acordos intrarregionais, principalmente decorrente de entendimentos entre a China e a ASEAN. Assim, em 19 de agosto de 2003, em Wuyishan, província chinesa de Fujian, a RPC agregou sua assinatura ao Tratado de Amizade e Cooperação, que já incluía os já agora dez países do Sudeste Asiático, integrantes daquela Associação[6].

Ademais, a China lançou as fundações para um novo relacionamento com as nações do Sudeste Asiático[7]. Foi fortalecida, assim, a vertente da cooperação no âmbito da Ásia Oriental, na medida em que se concedia menor ênfase aos vínculos entre as margens asiática e norte-americana do oceano Pacífico. (Este assunto será tratado em maiores detalhes em artigos seguintes).

A China tomou a iniciativa, por exemplo, da proposta de uma Área de Livre Comércio com a ASEAN, com clara motivação política, causando preocupação, junto ao Japão e Estados Unidos, que, desde a fundação da Organização Mundial do Comércio, vinham buscando expandir suas relações comerciais com o resto do mundo através, justamente, de instituições globais, como a OMC.

Pequim, no entanto, preferiu propor a referida área de livre comércio com a ASEAN, em 2001, logo após o ingresso da China na OMC. O “Acordo sobre o Comércio de Bens”, assinado, em novembro de 2004, ao final da X Reunião de Cúpula da ASEAN, representou proposta de um “Framework Agreement on Comprehensive Economic Cooperation” entre a ASEAN e a China tendo sido apenas parte de um maior engajamento da RPC na região.

 Em seguida, foi assinada uma “Parceria Estratégica” com aquela sub-região, que incluiu ampla cooperação, nos setores de segurança e político. A China também firmou um “Tratado de Amizade e Cooperação, a Declaração sobre a Conduta das Partes do Mar do Sul da China”, em 2002, comprometendo-se a agir com cautela quanto às ilhas em disputa.

A RPC anunciou, também, sua disposição de assinar o Protocolo ao “Treaty of the Southeast Asia Nuclear Weapons-Free Zone (SEANFZ)” que as nações do Sudeste Asiático reivindicavam havia tempo. Tal decisão colocaria a China favoravelmente na região, em comparação com a determinação dos EUA de não aceitarem igual compromisso de manter o Sudeste Asiático livre do trânsito de armas nucleares.

Um dos principais traços da política externa da China, naquele momento, foi sua maior aceitação do multilateralismo como instrumento para assegurar crescimento e segurança, aderindo, nessa perspectiva a instituições internacionais e regionais. A RPC passou a participar ativamente de mecanismos institucionais inovadores na Ásia oriental, bem como patrocinou novas alianças na Ásia Central. O “ASEAN Regional Forum”, o “Shanghai Cooperation Organization” [8] e o “Boao Forum” [9] têm atuado como fóruns para ressaltar as preocupações chinesas com seu “Novo Conceito de Segurança”.

Nestas ocasiões, a China tem adotado a prática consagrada pela ASEAN de não identificar “uma terceira parte” como o inimigo. Pelo contrário, procura-se valorizar a ideia de que não se tem em vista um adversário definido. Busca-se, então, resolver problemas comuns de acordo com um “Asian way”, que implica em tomar decisões por consenso, com informalidade e voluntarismo – sempre com um “jeito ASEANista”.

Da mesma forma, Pequim tem também advogado crescente cooperação política, econômica e tecnológica, para fortalecer as relações entre a China e os países ao Sul de suas fronteiras.

Mas, da mesma forma que aconteceu com a ascensão de outras potências, na História recente, iria a emergência da RPC ameaçar sua vizinhança ou causar instabilidade mundial?

 Pequim tem reiterado o discurso de que toda está evolução aconteceria pacificamente e em sintonia com a maior inserção do país na Ásia Oriental, que se beneficiaria, como um todo, a exemplo do acontecido, no século XIV, quando o já citado Alm. Zheng He (vide artigo anterior) difundia a cultura chinesa junto às nações da “Nanyang”.

Seria, assim, inevitável que a “equação 10+3” evoluiria, da soma dos mercados do Sudeste e do Nordeste da Ásia, para mecanismo institucional que permitiria, inicialmente os membros da ASEAN mais a China e, em seguida o Japão e a Coréia do Sul, venham a desenvolver uma “Comunidade da Ásia Oriental”.

Existe, contudo, ampla bibliografia atual a contestar a tese de que estaria em curso um “peaceful rise of China”. Para estes setores de opinião, a emergência econômica e política chinesa teriam, como resultado, por exemplo, intensa disputa por recursos energéticos com os Estados Unidos e Japão. Haveria, também, a concorrência acirrada da RPC, com outros países em desenvolvimento, por investimentos externos. Tendo em conta, ainda, o crescente poderio militar chinês, resultante de seu programa de modernização das forças armadas, seriam inevitáveis conflitos intra e extrarregionais.

Nestas duas partes de reflexão sobre “ascensão pacífica e harmoniosa da China”, procurou-se, então, demonstrar que, no século XV, a China desempenhava papel dominante no Sudeste Asiático e servia como fonte de inspiração para a organização política de nações naquela região. Tal esquema foi desestruturado a partir da chegada dos europeus ao continente asiático, no século XIX, e rompido após a Revolução de 1949 e o início da Guerra Fria.

Com o começo do processo de modernização da RPC, na década de 1970, e o término do período de bipolaridade mundial, na de 1990, criaram-se condições para o ressurgimento, no âmbito das relações entre a China e o Sudeste Asiático, de processo de cooperação, que tivesse como base de sustentação um conjunto de valores culturais chineses compartilhados. Novas modalidades regionais de integração foram criadas, em oposição às estruturas de confrontação herdadas da Guerra Fria.

Recentemente, tem-se verificado que experiência histórica regional, em termos de estender ao máximo o fator estabilizador provocado pelos interesses comerciais entre os países do Sudeste Asiático mais os do Nordeste daquele continente, contribuiu para consolidar vínculos entre os mercados dos dez países membros da ASEAN e os da China, Japão e Coréia do Sul, no processo que vem sendo conhecido de 10+3.

Ademais, este longo período de convivência e laços culturais milenares contribuíram para evitar que a confrontação ideológica da Guerra Fria chegasse a ponto de não reversão, favorecendo também a tendência atual no sentido de criação de uma comunidade da Ásia Oriental. Assim, a moldura de laços políticos ora existentes facilita a identificação de interesses compartilhados por Pequim e capitais do Sudeste Asiático, a serem consolidados em pauta de temas internacionais.

Artigos seguintes farão considerações adicionais sobre o impacto da ascensão chinesa, em outras regiões asiáticas.

 

 

Notas: 

[1] “National University of Singapore”, 1988, pag. 1 e seguintes.

[2] A “Southeast Asia Treaty Organization”(SEATO)  foi fundada, em 1954, logo após a retirada da França do Sudeste Asiático. Com o objetivo de conter “a expansão comunista naquela região e foi integrada pelos Estados Unidos, Austrália, França, Grã-Bretanha, Nova Zelândia, Paquistão, Filipinas e Tailândia”. Com sede em Bangkok, a Organização teve como principal objetivo legitimar a presença militar dos EUA no Vietnam, apesar da oposição francesa e paquistanesa. Foi extinta em 1977.

[3]  A respeito do processo de reaproximação entre a RPC e os EUA, vide “China’s Foreign Relations since 1949”, por Alan Lawrence, Routledge & Kegan Paul. London and Boston 1975. Parte VI. Pag 207 e seguintes.

[4] Sobre a reação chinesa quanto à criação da ASEAN, o ISIS da Malásia publicou diversos estudos, entre eles, na “ASEAN Series”, o intitulado “Southeast Asia as a Nuclear-Weapons-Free-Zone”, por J. Soedjati Djiwandono, em 1986. Pag. 5 a 7.

[5] O texto da Declaração de Kuala Lumpur, em 1971, pode ser encontrado, entre outras publicações, no Anexo “E” de “Understanding ASEAN”, editado por Alison Broinnowski, publicado por “The Macmillan Press Ltd. 1983”.

[6] Além dos cinco países fundadores, já citados, ingressaram na ASEAN: Brunei, em 1984; Vietnã, em 1995; Laos, em 1997; Myammar, em 1997; e Camboja, em 1999.

[7] Vide artigo de Kuik Cheng-Ghwee “Multilaralism in China’s ASEAN Policy: Its Evolution, Characteristics, and Aspirations” em “Contemporary Southeast Asia, 27, nr 1, 2005, pag. 102-22.

[8] A respeito da Organização para a Cooperação de Xangai, vide www.sectsco.org.

[9] A respeito do “Boao Forum for Asia”, vide www.boao.ce.cn/english

 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

A volta da Diplomacia das Canhoneiras? - José Nelson Bessa Maia

A volta da Diplomacia das Canhoneiras?


por José Nelson Bessa Maia, doutor em relações internacionais e ex-secretário de assuntos internacionais do governo do estado do Ceará


O mundo chega ao final do primeiro quartel do século XXI numa situação de fragmentação econômica, com uma velha ordem internacional disfuncional e sérias ameaças geopolíticas. Conflitos civis, guerras de conquista, lutas assimétricas e massacres de populações se tornam episódios corriqueiros e isso não parece mais comover a opinião pública global nem causar repercussão na mídia ou repúdio de autoridades e organismos internacionais.

Nesse contexto ameaçador a volta ao poder de Donald Trump nos EUA introduz um complicador em um sistema internacional já tão abalado e fragilizado. As declarações recentes do presidente eleito americano de anexação do vizinho Canadá, de absorção da Groelândia e da reocupação do Canal do Panamá sem descartar o uso de força militar faz ressurgir uma faceta antiga do imperialismo na forma da chamada “diplomacia das canhoneiras”, baseada na noção da Escola Realista das Relações Internacionais, que prioriza a segurança do Estado-nação e o interesse nacional sobre princípios morais ou legais internacionais.

Em outras palavras, a diplomacia das canhoneiras pode ser entendida como um método de intimidação ou intervenção em assuntos internos de outros países por meio da mobilização de força militar para, sem recorrer à declaração formal de guerra, perseguir objetivos nacionais expansionistas em terceiros países. Tal método serviu tanto à preservação de vantagens quanto à tentativa de evitar perdas no exterior. 

Como exemplos históricos da diplomacia das canhoneiras podem-se citar a abertura forçada do Japão pelo comodoro Matthew Perry dos EUA, entre 1853 e 1854; a crise de Agadir, em 1911, quando a Alemanha enviou navio de guerra para o porto marroquino de Agadir; a Guerra do Ópio na China, em 1840 e 1856; A Questão Christie, entre o Império do Brasil e o Império Britânico, entre 1862 e 1865; a intervenção da França no México em 1861 e a ocupação britânica da ilha brasileira da Trindade em 1895. 

Embora o período clássico da diplomacia das canhoneiras já tenha passado, é inquietante a volta nas declarações públicas de ameaça de uso de força militar como instrumento de coerção na política externa pelo novo governo estadunidense.  Sobretudo se essa ameaça fosse eventualmente empregada para a mudança forçada de governos, como seria no caso da Venezuela e seu contestado regime do presidente Nicolás Maduro. 

Em suma, manifestações como essas do Sr. Trump em prol de anexar territórios de outras nações sob o pretexto de garantir os interesses econômicos e a segurança de seu país devem ser rebatidas com veemência nos fóruns internacionais. A truculência e o desrespeito à soberania dos Estados-nações não podem prevalecer no sistema de governança global. O retrocesso civilizacional na convivência entre os diversos países precisa ser combatido a todo o custo e o diálogo pela paz e a busca da cooperação deve prevalecer nas relações entre Estados e povos. 

 

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