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domingo, 20 de agosto de 2017

Um duelo (diplomatico) a distancia com Mangabeira Unger (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Mais um desses "inéditos redescobertos". 
Em fevereiro de 2002, em fase de pré-campanha presidencial, o professor de Harvard Roberto Mangabeira Unger, conselheiro político, e supostamente diplomático, do então (e eterno) candidato Ciro Gomes, publicava um artigo vitriólico contra a política externa e a diplomacia brasileira, que transcrevo abaixo imediatamente.
Eu comentei também imediatamente, e mandei o texto para o próprio, em seu endereço de Harvard. Nunca recebi resposta, sequer uma nota acusando recepção. Tampouco publiquei ou divulguei este texto que segue após o artigo original.
Transcrevo agora pois talvez alguns dos debates de 2002 ainda tenham algum significado nos dias que correm. Provavelmente, pois durante os 13 anos da gestão companheira não avançamos em praticamente nada, nem em diplomacia, nem em qualquer outro terreno, a não ser na corrupção.
Acho que o Brasil está rigorosamente atrasado mais de duas décadas, em suas políticas públicas e até em sua diplomacia. Mas este é outro debate.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 20 de agosto de 2017

Artigo original de Roberto Mangabeira Unger:




Por que o Brasil não tem política exterior?



Roberto Mangabeira Unger


Folha de São Paulo, 12/03/2002



              O Brasil não tem política exterior. Em vez dela, tem uma prática minúscula e malograda de negociações comerciais. Mas o Brasil precisa ter política exterior. Estão se reunindo as condições para criá-la.

              Os defensores da redução da política exterior a negociações comerciais afundaram num pragmatismo antipragmático. Prometeram resultados e entregaram frustrações. A única iniciativa forte da diplomacia brasileira, o Mercosul, agoniza e só ressurgirá se for reconstruída radicalmente.

A razão básica pela qual não temos política externa é que não temos projeto interno, a não ser um projeto que resultou no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia. Mas o descalabro tem outras causas também.

Satisfeitas em ter um presidente apresentável em salões e seminários, as elites brasileiras esqueceram que política exterior é um ramo da política, não da indústria de entretenimento. Encobertos pelo nevoeiro retórico da "diplomacia presidencial" e sem balizamento numa discussão nacional da nossa posição no mundo, nossos diplomatas tomaram conta da política externa. Não souberam, porém, o que fazer, a não ser regatear, sem rumo nem força, um pouco mais de vantagem comercial aqui e acolá. Ficaram paralisados e confundidos pelo medo dos Estados Unidos.

A perversão das práticas convergiu com o desvio das idéias. Rio Branco fundou a tradição da nossa política exterior sobre certos princípios elementares: que a política predomina sobre a economia; que a defesa da nossa soberania tem por objetivo criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria; que essa defesa se consubstancia tanto no resguardo de um espaço sul-americano quanto na construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias; que o Brasil precisa reconhecer na sua política exterior sua personalidade moral e que nosso engrandecimento é inseparável da nossa generosidade. Esses compromissos foram sacrificados a um realismo que se revelou falso e contraproducente.

Quatro tarefas (a discutir) devem nortear uma nova política exterior que encarne hoje esses princípios. A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano. E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias de desenvolvimento. É obra que exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos. Nenhum país está mais bem posicionado do que o Brasil para liderar iniciativas nesse sentido. A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também com empresas. E ampliar nossa margem de manobra por meio da multiplicação dos vínculos em vez de nos refugiarmos no isolamento. A terceira tarefa é começar a refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das instituições comuns que faltaram ao Mercosul. A quarta tarefa é cumprir nossa obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.

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A diplomacia que temos e a que não queremos



Paulo Roberto de Almeida





Em provocador artigo sob o título “Por que o Brasil não tem política exterior?” (Folha de São Paulo, 12.02.02; site: http://www.idj.org.br/art0001.asp?SelectID=45), o coordenador do Instituto Desenvolvimento com Justiça, Roberto Mangabeira Unger, tece considerações sobre uma suposta diplomacia brasileira corrente em relação à qual eu, como diplomata com mais de 23 anos de carreira, tenho dificuldades em conectá-la à realidade de nossas relações exteriores ou de nossa prática diplomática. Certamente mais inspirado em seu papel de conselheiro intelectual do candidato presidencial Ciro Gomes, do que em sua função de intelectual público e respeitado acadêmico de Harvard, Mangabeira traça um retrato de uma (falta de) política exterior do Brasil da qual parece complicado reconhecer a existência, ainda mais em concordar com a maior parte de suas afirmações levianas.

Ainda que descontando-se o fato de que ele possa estar atuando motivado mais pelo impulso eleitoral do que pela necessidade legítima de estimular um debate que tem estado ausente das campanhas presidenciais no Brasil, deve-se reconhecer que os argumentos adiantados por Mangabeira não condizem com sua reconhecida capacidade analítica e com a presumida honestidade intelectual de que goza o conselheiro do candidato do PPS.

Mangabeira começa peremptoriamente por afirmar que o Brasil “não tem política exterior”, mas tão simplesmente “uma prática minúscula e malograda de negociações comerciais”. Quaisquer observadores isentos de nossa tradição diplomática, entre eles vários outros serviços diplomáticos de países vizinhos ou mesmo de países desenvolvidos, sabem que se trata aqui de uma simplificação grosseira da realidade. Também soam como exagerados seus argumentos segundo os quais nosso “pragmatismo antipragmático” apenas entregou “frustrações” e que o Mercosul, descrito como “agonizante”, apenas poderá ressurgir “se for reconstruíd[o] radicalmente”. Nenhuma linha segue, porém, sobre as condições em que tal reconstrução poderia ser operada, nesta ou em outras frentes de trabalho diplomático. Na verdade, o artigo de Mangabeira apresenta poucas propostas concretas ou suscetíveis de implementação prática. Senão vejamos.

Concordo com Mangabeira quando ele vincula a política externa à existência de um “projeto interno”, mas torna-se singularmente difícil ver nos últimos anos de estabilização macroeconômica um processo que teria resultado, unicamente, “no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia”. O que é descrito como “descalabro” não corresponde à realidade de uma diplomacia que tem colocado o Brasil como interlocutor incontornável de processos negociadores nos mais diversos foros formais e informais das relações internacionais contemporâneas. Algo desse sucesso pode ser certamente creditado ao que vem jocosamente caracterizado por Mangabeira como sendo o “nevoeiro retórico da ‘diplomacia presidencial’”, mas o bom desempenho também pode ser creditado ao trabalho sistemático e paciente de nossas representações no exterior e de nossa Secretaria de Estado na defesa constante dos interesses do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e arte de nossa diplomacia. Acusar esses diplomatas de terem ficado “paralisados e confundidos pelo medo dos Estados Unidos” é no mínimo criar uma figura de estilo para justificar uma crítica que não guarda a menor relação com a realidade, e que apenas ofende quem está na linha de frente de negociações por certo duras e sensíveis, mas que em nenhum momento foram caracterizadas por temor ou vacilação.

Não se consegue perceber onde estaria ocorrendo uma imaginária “perversão das práticas” como resultado de um suposto “desvio das idéias” do mítico chanceler Rio Branco (a ele são creditados os “fundamentos” da nossa política exterior). Que a política predomine sobre a economia, não deixa de ser verdade hoje como nos tempos do Barão; que “a defesa da nossa soberania” tenha como objetivo principal “criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria” é tão válido hoje como há exatos cem anos atrás, quando Rio Branco assumia por dez longos anos o comando de nossa diplomacia; que essa defesa passe pelo estabelecimento de um espaço sul-americano não representa nada mais do que o que vem sendo pacientemente articulado pela diplomacia brasileira desde o início dos anos 90, pelo menos; que essa visão possa ser materializada pela “construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias”, como quer Mangabeira, corresponde exatamente aos discursos brasileiros nas assembéias gerais da ONU desde muito tempo, como poderia ser facilmente verificado por Mangabeira. Enfim, as críticas de Mangabeira, aos conhecedores, soam como um déjà vu, all over again.

Ele elenca, em seguida, quatro tarefas que deveriam “nortear uma nova política exterior”. Suas propostas são simples e diretas e merecem citação explícita, seguidas de comentários.


1) “A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano.”


De acordo, mas a proposta não contradiz o que já vem sendo dito e feito pelo Brasil.


Corolário: “E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias de desenvolvimento.”


Não poderia ser de outra forma. O irracional seria tentar perseguir a todo custo uma ilusória uniformização de posições em matéria de políticas econômicas e de modelos de desenvolvimento, o que apenas violentaria as condições próprias e o contexto exclusivo em que se dão nosso próprio processo de desenvolvimento e nossa inserção internacional. Não se compreenderia aliás uma política externa que tentasse encaixar o Brasil em moldes pré-fabricados.


Corolário: Essa tarefa, segundo Mangabeira, “exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos”.


Não se percebe bem o ineditismo de tais propostas, uma vez que a diplomacia do Brasil vem atuando precisamente nessa linha, de diversificar parcerias externas e lograr uma intensificação do relacionamento com grandes países emergentes, como podem ser a China, a Índia e a Rússia. A relação com a UE é tradicional e muito intensa, atuando como contrapeso aos Estados Unidos pelo menos desde o Império e começo da República. Seria, por outro lado, muito útil que fossem identificados esses “aliados potenciais” dentro dos Estados Unidos que não estão muito claros quem sejam exatamente. Se forem os anti-globalizadores do movimento sindical e ecológico ou, ainda, protecionistas enrustidos ou declarados à la Ralph Nader, o Brasil teria muito pouco a ganhar com eles, já que eles atuam, justamente, para dificultar o acesso de nossos produtos (sobretudo agrícolas) ao mercado dos EUA.


2) “A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também com empresas.”


De acordo novamente, mas é preciso obter um mapeamento preciso, a ser fornecido por Mangabeira, dessas contradições existentes na economia global, a partir das quais seria possível traçar o quadro de alianças preferenciais que a diplomacia brasileira buscaria. Do que pode ser observado atualmente, trata-se exatamente do que vem sendo feito pela atual diplomacia, que está longe de refugiar-se no “isolamento”, como quer nosso articulista.


3) “A terceira tarefa é começar a refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das instituições comuns que faltaram ao Mercosul.”


Perfeito: mais uma vez aguarda-se o detalhamento desses empreendimentos e instituições comuns “que faltaram ao Mercosul”, pois fica parecendo que a crise deste último deve-se à falta dessas instituições, não à existência de condições econômicas objetivas em cada um dos países membros.


4) “A quarta tarefa é cumprir nossa obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.”


Esta parte entra num terreno que pertence mais à obrigação moral do que ao cálculo racional. Se temos alguma obrigação sagrada para com a “África sofredora”, que justifique sacarmos nosso talão de cheques para atender necessidades daqueles povos, seria o caso de discutir com o Congresso como empregar esse dinheiro, pois vários parlamentares podem argumentar que temos sofredores de sobra, aqui mesmo no Brasil, com os quais temos deveres igualmente, ou mais, sagrados.


Em síntese, o Brasil dispõe de uma diplomacia que pode e deve sofrer diversos aperfeiçoamentos de forma e de conteúdo. Tal tarefa será empreendida com a colaboração de todos aqueles interessados num debate sério sobre a questão. A condição primeira para que tal debate seja feito seria evitar as simplificações e as meias-verdades, evitando caracterizar os dados da realidade pelo seu travestimento indevido numa série de conceitos que relevam mais da acusação gratuíta do que da análise serena.




875: Washington, 12/03/2002
 

Um outro inedito (de 2002): palestra no Instituto Rio Branco - Paulo Roberto de Almeida

Creio que o texto transcrito abaixo -- que nunca foi lido, em sua íntegra, apenas serviu de guia, nem nunca tinha sido publicado -- constituiu meu último pronunciamento formal na academia diplomática brasileira, o Instituto Rio Branco, feito a convite de seu então diretor-geral, embaixador João Almino.
Eu tinha acabado de publicar, ainda servindo em Washington, meu grande "tijolo" de pesquisa historiográfica sobre a formação da diplomacia econômica no Brasil, e não o havia lançado, por estar no exterior. Mas já vinha colaborando com o Instituto Rio Branco, que então recém iniciava seu experimento (que durou dez anos apenas) de "mestrado em diplomacia", do qual eu era, estando no exterior, apenas um "professor orientador", antes de, eventualmente, tornar-me professor.
Lembro-me que nessa ocasião, quando vim ao Brasil, reuni-me separadamente com cinco ou seis "mestrandos", para discutir projetos de dissertação, bibliografia, orientações metodológicas, etc. Aprovei integralmente os projetos, com uma única exceção (mas isso talvez tenha sido um pouco mais tarde): um projeto que se situava na linha do FOCEM do Mercosul, que eu julgo um tremendo erro estratégico do lulopetismo diplomático, pois que implementado bem depois.
Um ano depois dessa palestra aos alunos do Rio Branco, da qual retirei grande prazer intelectual, eu recebi, do diretor-geral do IRBr o honroso convite para ser uma espécie (digo isto porque não havia DAS disponível, uma vez que o novo regime lulopetista havia feito um "rapa-tudo" geral em DAS da Esplanada, para servir aos novos companheiros no governo, certamente) de "coordenador do mestrado do Rio Branco".
Mesmo sem designação formal, pela ausência do já referido DAS, aceitei com satisfação, em vista de minhas naturais inclinações ao trabalho acadêmico e intelectual. Isso deve ter sido em abril de 2003, já sob a vigência, portanto, do novo regime companheiro.
Qual não foi minha surpresa quando, poucos dias depois, o mesmo diretor-geral me telefona a Washington todo constrangido para me anunciar que o "Secretário-Geral do Itamaraty tinha outras ideias a respeito desse cargo que eu viria a ocupar", o que revelava, em todo caso, que o convite estava desfeito e o novo cargo suprimido, ou pelo menos não a mim destinado.
Logo percebi que se tratava de um veto político, em vista de minhas conhecidas posições em diplomacia, e especificamente em relação à "diplomacia" do Partido dos Trabalhadores, que eu já tinha examinado em diversos artigos anteriores, todos de cunho rigorosamente acadêmico.
Dispensei o diretor-geral do IRBr de maiores considerações a respeito, e permaneci em Washington por mais alguns meses, até receber um convite para trabalhar numa "coisa" chamada "Núcleo de Assuntos Estratégicos", vinculado diretamente à Presidência da República. Um dia contarei minha experiência no NAE.
No momento pretendo apenas transcrever um texto que permaneceu rigorosamente inédito, e que se destinava, em princípio a apresentar meu livro "Formação da Diplomacia Econômica no Brasil" (em 1a. edição, agora já caminhando para a 3a.), mas no qual eu ia um pouco mais além, tecendo considerações sobre nossa diplomacia econômica da atualidade.
O registro é puramente histórico.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de agosto de 2017


Palestra proferida pelo
Ministro Conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington

Paulo Roberto de Almeida


DIPLOMACIA ECONÔMICA BRASILEIRA: LIÇÕES DA HISTÓRIA

Instituto Rio Branco
Brasília
2 de abril de 2002, 9:15 hs



Gostaria, antes de mais nada, de agradecer ao Ministro João Almino, Diretor do Instituto Rio Branco e de quem tenho o prazer de ser amigo desde os tempos em que ambos nos ocupávamos de dissertações acadêmicas sobre questões do desenvolvimento político brasileiro, o gentil acolhimento feito a esta idéia de, não propriamente lançar aqui um de meus livros, mas, mais justamente, de abrir esta oportunidade de manter um diálogo com todos vocês, alunos do Rio Branco, bem como com alguns dos demais colegas desta Casa. Um diálogo sobre algumas das lições que eu mesmo aprendi em longos anos de pesquisa sobre os fundamentos da diplomacia econômica no Brasil e sobre como esses fundamentos influenciam ainda hoje, e poderosamente, a forma e a substância de nossas relações econômicas internacionais. Apesar de já ter sido professor de sociologia política nesta Academia Diplomática, no seguimento de outros nomes de prestígio como Marcílio Marques Moreira e o Professor José Carlos Brandi Aleixo, trata-se esta da primeira vez que a ela me dirijo enquanto diplomata, mas sobretudo enquanto pesquisador e como autor.
Ao iniciar esta palestra, que prefiro seja considerada um diálogo com colegas, ainda que diplomatas aprendizes, creio dever explicar, em primeiro lugar, como veio a ser escrito este Formação da Diplomacia Econômica no Brasil, este volume maciço que demorou alguns anos para ser editado e que veio a lume graças ao empenho em tal sentido por parte da Fundação Alexandre de Gusmão, a quem igualmente gostaria de agradecer na pessoa do Embaixador Álvaro da Costa Franco, seu antigo Diretor, antes que a Embaixadora Tereza Quintela viesse a assumir a responsabilidade por essa instituição, sob a qual funciona o Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais, o IPRI, a outra “alma mater” da pesquisa acadêmica e das reflexões diplomáticas de nossa Casa.
Este livro deriva obviamente de meu continuado trabalho como pesquisador, não mais na categoria de sociólogo eventual, mas enquanto historiador aprendiz, em torno dos elementos básicos que moldaram a postura da diplomacia brasileira na frente econômica externa. Na verdade, o projeto não deveria tratar do século XIX, e sim do período contemporâneo, da história mais imediata, pois que foi concebido, num primeiro esquema, no contexto das etapas conclusivas da Rodada Uruguai de negociações comerciais multilaterais. Em 1992 eu tinha traçado um ambicioso programa de trabalho que deveria levar-me a expor criticamente e a discutir os métodos de atuação e os princípios diretrizes da diplomacia econômica brasileira em ação. Elaborado o projeto inicial, traçado um roteiro de pesquisas e redigido dois questionários de entrevistas (um para diplomatas, outro para não diplomatas), coloquei-me em campo para justamente entrevistar os atores, os protagonistas e os formuladores da diplomacia econômica então em ação.
Qual não foi a minha decepção com a escassa reação despertada por aquela minha tentativa de elaborar uma história in the making dessa diplomacia econômica em seu inner functionning. Foram marginais, para não dizer quase nulas, as respostas que obtive às minhas circulares de pedido de informação e de entrevistas. Para ser sincero, recebi, en tout et pour tout, algumas vagas promessas de “conversas numa ocasião futura” e duas únicas respostas a meus questionários, respectivamente de meu atual chefe em Washington, Embaixador Rubens Antônio Barbosa, e do grande jurista, eminente professor de direito internacional público e também diplomata, meu amigo Guido Fernando Silva Soares, hoje chefe do Departamento de Direito Internacional da faculdade do Largo de São Francisco e responsável pela implantação do mais recente curso de graduação em relações internacionais existente no Brasil, o da própria USP.
Duas respostas, convenhamos, não constitui muita matéria-prima como documentos de base para compor uma reflexão aprofundada sobre a diplomacia econômica brasileira contemporânea. Em condições normais, eu teria simplesmente desistido, enfiado a viola no saco e ido cantar em outras freguesias diplomáticas, eventualmente até abandonado minhas digressões acadêmicas em troca de ocupações mais amenas. Não fosse uma vocação docente e de pesquisador já definitivamente entranhada em uma longa carreira de diplomata regular e de acadêmico virtual, eu teria efetivamente desistido de perseverar na busca de documentação primária para sustentar meu projeto de análise da diplomacia econômica brasileira corrente. Abandonei, contudo, as escarpas íngremes do presente pelas planícies mais calmas, ainda que empoeiradas, do passado. Deixei o final do século XX e retornei ao início do século XIX, em busca dos fundamentos da moderna diplomacia brasileira. Fui buscar nas origens de nossa formação enquanto Estado independente as bases conceituais e empíricas de nosso estilo peculiar de fazer diplomacia e sobretudo as razões que explicam nosso estilo próprio de praticar a diplomacia econômica.
Elaborei um novo esquema para este livro quando servia em Paris, em 1993, e me coloquei imediatamente em marcha, retomando as notas que já havia elaborado de antigas leituras dos velhos relatórios da antiga Repartição dos Negócios Estrangeiros a partir de 1831 e até o início da República. Ao mesmo tempo mergulhei na leitura de vasta bibliograia secundária sobre esse período, com um critério porém: afastei deliberadamente as “interpretações” já elaboradas sobre a diplomacia brasileira do século XIX, novas ou velhas “histórias diplomáticas”, pois pretendia elaborar minha própria interpretação desse período, a partir da matéria prima dos fatos, não da análise de autores contemporâneos. Selecionei, em contrapartida, todas as obras sobre a economia do Império e do sistema econômico mundial nessa época, ademais de toneladas de dados brutos e de elementos fatuais e quantitativos, a exemplo de tabelas estatísticas e de listas de acordos internacionais e de outros documentos primários.
De volta ao Brasil, mergulhei na leitura dos relatórios do ministério da Fazenda, estes desde 1823, e de alguns outros documentos do Império, como as falas do Imperador, por exemplo, ademais da leitura, em fugas ocasionais ao Rio de Janeiro, de maços e maços de oficios das principais legações imperiais. Juntei assim uma massa impressionante de documentos e de dados brutos, passando a organizar e a sistematizar o material em função do plano original. Devo dizer que o retorno à documentação primária do Império e o diálogo com essas fontes hoje quase esquecidas deram-me mais prazer intelectual do que a releitura, rápida, de alguns “clássicos” da literatura consagrada sobre esse período, uma vez que o ato de percorrer os velhos relatórios da monarquia constitui quase que um “comércio de idéias” com nossos antecessores funcionais de um século e meio atrás.
O livro estava basicamente composto em meados de 1997 quando decidi apresentá-lo como tese do Curso de Altos Estudos (após, é verdade, a tentativa inicial de tratamento de um tema mais contemporâneo, e mais problemático, relativo à OCDE). Teve lugar então uma dolorosa operação “reducionista”, que consistiu em converter um volume de quase 500 páginas em um modesto opúsculo de menos de 200 páginas, o limite máximo para esse tipo de dissertação em nossa Casa. Feita a operação de cirurgia plástica e de emagrecimento textual, a tese foi considerada apta para publicação, a que eu entretanto objetei, já que, na verdade, não pretendia publicá-la no formato reduzido do CAE, de vez que seriam perdidas saborosas digressões de nossos colegas do Império e outros tantos dados coletados sobre um passado hoje longínquo. Passaram-se, desde então, quase cinco anos desde sua redação original, período no qual o texto foi ligeiramente burilado e certamente passou por novo período de engorda, ainda que moderada.
Ei-lo aqui, portanto, em sua versão editada, um livro que pretende ser, ademais de uma obra de referência sobre essa fase de formação – the making of – de nossa diplomacia, que também foi chamado de Bildungsprocess da diplomacia econômica no Brasil, também uma espécie de reflexão diacrônica sobre como nossos antepassados do Império responderam a determinados desafios externos e como eles construiram um instrumento diplomático que não apenas provou sua excelência na época em que foi mobilizado, mas que continuou a apresentar excelente desempenho nas décadas seguintes, ao longo de todo o período republicano e ainda hoje, como vemos pelos comentários da imprensa brasileira e internacional e de observadores isentos, comentários feitos sobre a qualidade de nossos negociadores nos foros econômicos internacionais e regionais.
Como chegamos a isso, como construímos um instrumento de valor num contexto de relativa anomia social e deficiente estrutura institucional? E como, em especial, o Brasil veio a ter um tal desempenho satisfatório no plano da diplomacia econômica, em contraste evidente com a modéstia dos nossos meios materiais e humanos e certamente em total contradição com as deficiências visíveis de nosso aparato econômico e de nossa organização política e social? Estas são, provavelmente, as perguntas mais importantes que subjazem ao esforço por mim empreendido na elaboração deste livro. Observo, com força, que estas constatações não eram evidentes no momento em que me lancei à aventura de sua pesquisa e redação. Registro, sobretudo, que o livro não é, longe disso, um exercício de auto-congratulação ou de satisfação naïve com as supostas excelências de nossa diplomacia econômica. Nele não faço apologia, nem distribuo cumprimentos.
Ao contrário, ele constitui um empreendimento rigoroso, relativamente isento – se assim posso argumentar, a partir de minha condição intelectual primariamente acadêmica e secundariamente diplomática –, enfim, trata-se de um esforço razoavelmente objetivo de examinar como e em que condições o Brasil foi capaz de erigir um instrumento diplomático certamente único (ainda hoje) no contexto da periferia semi-capitalista, em defesa de seus interesses econômicos primaciais e em favor da promoção de objetivos econômicos e políticos ultrapassando as meras e toscas fronteiras de uma economia agro-exportadora, quase exclusivamente monocultora no período aqui enfocado, mas que possuia uma consciência relativamente clara sobre os fins a serem atingidos, as metas a serem alcançados. A noção de desenvolvimento econômico, por certo ainda incipiente nesta fase, ou melhor, a idéia da necessidade de construção de uma nação avançada na América do Sul, rivalizando ou se igualando a outras no contexto internacional ou regional, esta concepção de um devir diplomático e de um dever nacional já fazia parte da agenda dos nossos colegas do Império desde praticamente o início das regências, quando se constrói, verdadeiramente, um Estado nacional no Brasil. Isto ao mesmo tempo, reconheçâmo-lo de pronto, em que esses mesmos colegas de punhos de renda – o estereótipo é aqui verdadeiro – e trajes de rigor, mesmo no calor do trópico, resistiam às investidas da Inglaterra para a cessação do tráfico negreiro – essa modalidade precoce de “cláusula social”, implementada pela via imperial –, em que esses colegas teimavam em não ver na escravidão uma nefanda instituição a contaminar todo o tecido social e a estrutura econômica do País, como queria Nabuco, em que esses colegas imitavam a aristocracia européia e olhavam com uma certa condescendência o democratismo e o espírito de trabalho dos americanos do Norte, em que esses colegas mantinham preconceitos evidentes contra a imigração de “mascates” levantinos, preferindo-lhes saudáveis agricultores nórdicos, mas de preferência entregues às fainas da plantation semi-escravagista, não como proprietários livres numa terra fortemente marcada pelo latifúndio e pelo coronelato arbitrário.
A despeito disso tudo, nossa diplomacia econômica foi boa, excelente mesmo segundo algumas opiniões insuspeitas (e minha, depois de concluir a pesquisa para este livro), provavelmente uma “diplomacia fora do lugar”, como coloquei numa paráfrase da crítica literária e da análise sociológica sobre as idéias desajustadas em relação ao seu meio social. Talvez essa diplomacia não tenha sido forte o suficiente para mudar o País, que digo?, para reestruturar a Nação, como sua visão de mundo, sua Weltanschauung poderia lhe autorizar, com base numa visão comparada com o itinerário mais exitoso de outros povos e outras formações nacionais. Mas esta certamente não era sua missão histórica, pois que a diplomacia, enquanto interface externa do aparato estatal, não poderia pretender “atirar para dentro”, ainda mais contra as bases de seus próprios privilégios aristocráticos e estamentais. Fomos eficientes, sim, mas nos limites estritos de um Estado nacional limitado (talvez ainda hoje) a um por cento da nacionalidade e da cidadania, uma diplomacia eficaz para defender os interesses de uma economia assim organizada, não necessariamente para empreender uma transformação de fora para dentro, o que aliás seria quase um contrasenso operacional e uma impossibilidade filosófica.
Tivemos, portanto, ao longo do tempo, nosso pequeno lote de revoluções pelo alto, nossas transformações bastante modestas da máquina política, nossa mobilidade social com preservação de desigualdades gritantes, nosso desenvolvimento econômico por impulsões descontinuadas, com a tal de “diplomacia de primeiro mundo” sempre presente, com suas maneiras francesas e produtos ingleses, importando a última moda européia com o dinheiro inglês (que nos entrava pela via exclusiva da monoexportação), enfim uma diplomacia eficiente, por certo, da qual podemos justamente nos orgulhar, ainda que num País que ainda deixa a desejar tremendamente no plano social ou tecnológico. O livro, justamente, explora algumas dessas ambiguidades, mas consoante seu escopo dirigido e sua orientação temática, ele descortina sobretudo a ação dessa diplomacia nos diversos campos de atuação abertos a seu engenho e arte no decorrer do tempo monárquico.
E o que descobrimos, como resultado da pesquisa exaustiva conduzida ao longo de cinco anos de leituras e dois de redação? Que causas explicam esse contraste entre a precária situação de desenvolvimento econômico do País na era imperial e o status relativamente avançado de sua diplomacia?
Com efeito, tínhamos uma elite no comando da Nação e na representação externa do Estado, ou seja, funcionários publicos dotados de boa formação e conscientes de representar um Governo com clareza de propósitos e objetivos bem determinados. A situação de precário desenvolvimento econômico efetivo se explica obviamente por questões estruturais evidentes: uma economia colonial, produtora e exportadora de matérias primas, pouco propensa à inovação e à industrialização autônoma, por falta de condições sociais e educacionais.
Por que preservamos durante tanto tempo tal situação? Pelas escolhas erradas dessas mesmas elites, que durante tanto tempo insistiram no sistema escravo e na especialização agrária. Devemos lembrar que Hipólito da Costa primeiro, Bonifácio de Andrada em seguida, Mauá logo adiante, todos insistiram na abolição do tráfico e da escravidão, e na adoção de uma legislação econômica aberta à imigração de pequenos proprietários de terras e suscetível, portanto, de impulsionar o progresso econômico e social. No entanto, as elites no comando do País fizeram a opção pela continuidade da escravidão e pela especialização agrária, incapazes que foram de propor autonomia social e econômica, educação das massas e investimento na capacitação técnica da população.
Nisso também fomos herdeiros da tradição lusitana, centralizadora e absolutamente infensa à autonomia econômica dos agentes privados. A despeito dessa herança burocrática bastante eficiente na defesa dos nossos interesses políticos – pois a cartografia vencedora do Barão deve tudo ao patrimônio luso – a diplomacia econômica igualmente eficiente no plano prático foi menos exitosa na transformação “mental”, por assim dizer, da agenda econômica interna dessas elites monárquico-republicanas. Cabe também reconhecer que a visão tradicional da nossa diplomacia – ornamental e aristocrática, no dizer de Hélio Jaguaribe –, até pelo menos a belle époque recusava em grande medida os temas econômicos, considerados como de low politics, preferindo se ocupar das chamadas questões de high politics, que seriam as de política bilateral e as questões de equilíbrio estratégico e militar. Era um arremedo de equilíbrio de poderes, numa época em que dispunhamos de muito pouco poder efetivo, talvez apenas o de determinar os preços do café nos mercados mundiais.
Não nos cabe agora passar julgamentos por erros passado, mas devemos sim tirar proveito da história para ilustrar – não determinar – nossas opções do presente. E o que constatamos como contraste entre a diplomacia econômica do Império e a diplomacia que foi seguida no longo século republicano, que agora se encerra em favor de uma nova era de globalização?
O detalhamento figura no último capítulo de meu livro, sobretudo sob a forma de uma tabela comparativa sobre a evolução conceitual da diplomacia econômica do Brasil do século XIX ao XX (disponível no meu site pessoal, www.pralmeida.org). Se posso resumir os ensinamentos, eles seriam os seguintes:
- no comércio, deixamos o carater errático do liberalismo do século XIX por um protecionismo industrializante no século XX, até voltarmos agora a um moderado protecionismo e a um esforço sincero de inserção econômica mundial, via abertura gradual e processos negociados de integração comercial.
- nas finanças, as mudanças são muito poucas, talvez inexistentes, pois permanece o recurso à divida externa e a mesma fragilidade financeira externa.
- em mão-de-obra, seguimos a tendência mundial de fechar as fronteiras aos imigrantes e passamos, aliás, a exportar nossos “excedentes” demográficos, mas isso na verdade só ocorre nos momentos de crise econômica e de desemprego. No mais, ainda não sabemos praticar a importação de cérebros como deveríamos, pois existem milhares de cientistas e pesquisadores que poderiam vir para o Brasil, se nossa política de captação de mão-de-obra especializada fosse mais esperta, ativa e aberta.
- na tecnologia continuamos igualmente dependentes do exterior, mas já somos produtores de bens com elevado conteudo tecnológico, como visto no caso dos aviões da Embraer. Mas ainda não soubemos desenvolver um “modo inventivo de produção”, que caracteriza os capitalismos mais avançados na América do Norte, na Europa e no Japão. Por outro lado, não sabemos explorar devidamente determinadas vantagens comparativas que têm muito a ver com nosso espírito inventivo na música, nos esportes, na culinária, por exemplo, todos terrenos nos quais poderíamos estar exportando serviços e produtos de forma exponencial. Não exploramos tampouco nossas possibilidades turísticas como deveríamos.
- no plano mais geral do nosso instrumento diplomático, ele continua excelente mas, como no século XIX, ele permanece um pouco “destacado” do País, no sentido de alheio, em certa medida, aos nossos grandes problemas nacionais.

Sei que vão me “crucificar” por dizer isto que acabo de dizer (o que aliás não figura no livro, pelo menos não de forma explícita), mas esta é a percepção que eu retiro do exame multissecular de uma diplomacia aparentemente excelente (e ágil) para negociar acordos comerciais, mas por vezes menos atenta a uma série de outras realidades próprias ao tecido social nacional. Se eu não corresse o risco de parecer demagógico e totalmente à côté, e se vocês me perguntassem para que, enfim, deveria servir a nossa diplomacia econômica, tida como excelente, eu diria, simplesmente isto: ela deveria servir para colocar crianças na escola, algo que continua a ser o nosso grande problema (e drama) nacional. OK, admitamos que já colocamos 98% dessas crianças na escola e que o problema não é mais este (mas ele ainda é, certamente, o do desempenho escolar). Então eu diria que a diplomacia deveria servir, antes de mais nada, para melhorarmos a qualidade de nosso sistema educacional, que continua a ser extremamente deficiente. De que adianta ter uma diplomacia avançada, mas um povo sem condições de competir na arena da economia mundial?

Se ouso terminar por mais uma reflexão crítica (que tampouco faz parte do livro, mas pode e deve integrar este nosso diálogo aberto), caberia reconhecer que, em todo o século XX e no começo do século XXI a diplomacia brasileira continua a ostentar padrões de excelência pouco vistos não apenas para o conjunto dos países em desenvolvimento (ou periféricos, como quer meu amigo Samuel Pinheiro Guimarães) mas igualmente entre os próprios países desenvolvidos. Nao se trata aqui de ufanismo gratuito, pois serviços diplomáticos europeus e de outros países desenvolvidos não deixam de reconhecer a qualidade dos nossos representantes. Basta consultar delegados em reuniões econômicas multilaterais, ou em conferências políticas internacionais, para constatar isso: nosso diplomata é preparado e se desempenha muito bem, mesmo a um contra dez, como soe acontecer frequentemente. Ou seja, a diplomacia continua e exibir um padrão de qualidade pouco visto em condições semelhantes ou similares, mas o Brasil tambem avançou bastante no século XX. Hesitaria em dizer que se trata de um país subdesenvolvido, ainda que do ponto de vista social ele continue a ostentar indicadores pouco otimistas. Trata-se de uma economia industrializada, diversificada, mas que ainda não atingiu autonomia tecnológica plena. Continuamos igualmente a sofrer de uma evidente fragilidade financeira externa, retrato da descontinuidade das políticas econômicas ao longo do século XX e igualmente reflexo das carências educacionais e cívicas da população como um todo.

Podemos terminar com Mário de Andrade, aquele ideólogo da literatura nacional que dizia, pouco depois do modernismo, que a sociologia é a arte de salvar rapidamente o Brasil, zombando assim da minha profissão primeira e de minha fonte de inspiração conceitual, mesmo nos meandros burocráticos de um telegrama ou de um memorandum de serviço. Constatando a notável persistência de nossas mazelas sociais, mas ainda assim a implementação de algum avanço nos planos econômico e  tecnológico – que um sociólogo aprendiz chamaria simplesmente de modernização – Mário de Andrade dizia de forma irônica que, “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”.
Espero, de minha parte, que saibamos escapar da fatalidade pouco sociológica de dispormos de uma excelente diplomacia econômica, e portanto de uma representação de altíssima qualidade no plano externo – o que muito nos envaidece, com razão –, ao mesmo tempo em que ostentamos um quadro pouco lisonjeiro, para não dizer dramático, no plano social interno. Eu me sentirei sinceramente recompensado, numa visão de progressos “não fatalistas”, no dia em que, ao examinar novamente o itinerário da nossa diplomacia no início do século XXI – quando, por exemplo, completarmos dois séculos de exercício diplomático contínuo a partir do território nacional, em 2008 – pudermos constatar que essa diplomacia não precisará mais servir, ainda que hipoteticamente, para colocar crianças na escola. Até lá, temos muito trabalho pela frente, e não apenas no plano da diplomacia econômica, ainda que este esforço continuado fosse apenas para manter e justificar nossa fama de excelentes. Mãos à obra, portanto, pois tenho a impressão de que a história não absolverá nossa geração diplomática, se daqui até lá não contribuirmos com todas as nossas forças para colocarmos o País real em compasso com a suposta excelência de sua diplomacia.
Muito obrigado.
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 866: 14 fevereiro de 2002
(Revisão 28.03.02)

sábado, 19 de agosto de 2017

Um inedito de 2005 contra a diplomacia lulopetista - Paulo Roberto de Almeida

Em abril de 2005, bem antes, portanto, da inacreditável traição à pátria -- uma entre muitas outras mais -- perpetrada pelo Sr. Luís Inácio Lula da Silva no rumoroso caso da nacionalização dos recursos em hidrocarburos pelo seu companheiro boliviano, e bolivariano, Sr. Evo Morales, que humilhou não só a Petrobras, mas o próprio Brasil (com o pleno acordo do presidente brasileiro), eu escrevi um artigo denunciando a tremenda renúncia de soberania que eu via em várias das atitude diplomáticas do governo lulopetista. 
O artigo permaneceu inédito desde então, e eu o "redescobri" agora, e por isso decidi publicar, mais de um ano depois do final do deletério regime dos companheiros em nosso país.
Cabe registrar que, até então, em 2005, com algumas restrições justificadas, eu havia até feito algumas avaliações não de todo depreciativas sobre a nova diplomacia "ativa e altiva", tanto é que os próprios companheiros, em 2004, pediam permissão para reproduzir um artigo que eu havia feito comparando as diplomacias de FHC e de Lula.
Dei a autorização, mas para minha surpresa, quando vi o "produto final", numa revista de propaganda do novo regime companheiro, constatei que eles haviam meticulosamente suprimido todas as referências objetivas que eu fazia a ambas diplomacias, retendo apenas as avaliações positivas ao novo regime, e recortando maldosamente todas as demais referências à diplomacia de FHC, para colocá-la numa luz menos favorável, negativa mesmo. Achei aquilo de uma calhordice exemplar, mas não me lembro se reclamei naquele momento, tanto porque só vim a tomar conhecimento mais tarde, já decidido a nunca mais dar autorização nenhuma a qualquer instância do partido (que, como em todos os regimes comunistas, se confundia com o governo), para reproduzir qualquer coisa minha.
O fato é que, observando logo em seguida todos os despautérios perpetrados pelos companheiros em matéria de diplomacia, eu redigi, para meu próprio registro, o artigo que vai abaixo, sem jamais tê-lo levado a público, por razões evidentes: naquele momento eu ainda trabalhava numa dessas instâncias de "planejamento estatal", chamado "Núcleo de Assuntos Estratégicos", vinculado diretamente à Presidência da República. A publicação desse artigo representaria, obviamente, um tremendo choque no estado de euforia sob o qual vivia, então, o regime companheiro (estávamos, naquele momento, antes do choque do Mensalão, quando desnudou-se a natureza criminosa do regime).
A ficha desse trabalho, mantido rigorosamente "sob sigilo" desde então e até aqui, é esta

1415. “Uma vergonha nacional: A diplomacia petista produz renúncia inaceitável de soberania”, Brasília, 3 abril 2005, 4 p. Inédito. 

Se eu o revelo hoje, não é por nenhum "animus beligerandi", ainda que todos saibam, atualmente, de minha radical oposição, e combate pessoal, durante os últimos dez anos, pelo menos (antes disso de forma muito discreta, ou "clandestina", digamos assim), ao assim chamado "lulopetismo diplomático", um intervalo horroroso nas tradições de nossa diplomacia, que eu não tive nenhuma objeção de consciência em denunciar, assim que as condições se apresentaram.
Este blog, como referido diversas vezes, tornou-se uma espécie de "quilombo de resistência intelectual", contra a horda de irracionalidades dos novos bárbaros, e não só na diplomacia, mas em quase todas as demais esferas das políticas públicas também. Durante dez anos, ou mais, permaneci isolado nessas posições, até que finalmente se revelasse toda a extensão dos crimes perpetrados pelos companheiros, que levaram ao que eu chamo de A Grande Destruição, a pior recessão econômica de nossa histórica, e o mais gigantesco espetáculo de corrupção jamais visto no Brasil, no hemisfério, quiçá no mundo.
O artigo segue em sua íntegra, com algumas referências que hoje podem parecer superadas (Argentina, por exemplo), mas é um exemplo do que eu pensava ao início do regime companheiro, e do que veio a se agravar depois: a traição à pátria cometida pelos neobolcheviques em todas as situações nas quais o interesse nacional esteve confrontado aos interesses partidários, e possivelmente cubanos.
Um dia vou registrar, detalhadamente, todos esses episódios de retrocesso institucional, na diplomacia certamente, mas em outras áreas também.
 Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 19/08/2017 


O Fim da Soberania:

Consequências da diplomacia petista



            Desde o início do governo petista, seus representantes mais importantes, a começar pelo próprio presidente, têm repetidamente afirmado que defendem a soberania nacional. Acusam o governo anterior de ter praticado uma política externa submissa, atenta mais aos interesses de Wall Street e da finança internacional do que aos do Brasil. Afirmaram muitas vezes que a diplomacia anterior estava sacrificando as chances de desenvolvimento brasileiro ao comprometer o Brasil com a Alca, aos seus olhos um projeto de anexação da América Latina por parte dos Estados Unidos.

 Para contrapor-se a essa política externa que eles rotularam de “entreguista”, os encarregados atuais das relações internacionais do Brasil passaram a praticar uma inacreditável “diplomacia do espetáculo”, que redundou, paradoxalmente, na alienação completa da soberania nacional. Alguns exemplos comprovarão esta afirmativa.

Com um falso discurso de defesa da soberania nacional, a diplomacia petista tem realizado, na prática, uma das mais devastadoras operações de desmonte da soberania do país e de renúncia ao interesse nacional de que se tem notícia desde os tempos dos tratados desiguais com a Grã-Bretanha. Isso vem de antes da assunção ao poder: manifesta-se desde a determinação, apriorística e irracional, de que o Brasil necessitaria, em sua política externa, de “parceiros estratégicos”. O que significa, de fato, a escolha, a priori, de “parceiros estratégicos”, quaisquer que sejam eles?

A escolha, puramente ideológica e sem qualquer sentido pragmático, de um país A, B ou C como sendo um “parceiro estratégico”, como declarado unilateralmente, desde antes da posse, pelo atual presidente, redunda, inquestionavelmente, no alinhamento de nossos interesses diplomáticos com os desses países, sem que eles, em qualquer momento, tivessem declarado que também desejavam ser “parceiros estratégicos” do Brasil ou que se dispusessem a coordenar suas relações exteriores com nossas próprias posições.

O que é isso, senão renúncia de soberania? Pior do que isso: representa um dos piores desatinos diplomáticos desde que se inventou essa arte nos idos do Renascimento italiano. Estamos simplesmente anunciando ao mundo, e diretamente a esses países, que temos “aliados estratégicos”, e portanto “parceiros selecionados”, independentemente do que ocorra na agenda internacional ou no relacionamento mais amplo, regionalmente e com outros países.

Nunca se viu, em décadas, ou mesmo séculos, de serviço diplomático brasileiro, uma tal renúncia de soberania como essa manifestada nas “alianças estratégicas” do PT. Mas, as demonstrações não se limitam a isso. A renúncia de soberania também vai ao ponto de limitar a capacidade de ação da diplomacia brasileiro no exercício do simples direito de resposta, seja com base em argumentos próprios, seja com base em regras consagradas do direito internacional e das boas práticas de comércio internacional.

Ilustremos esse desatino pelo caso do Mercosul. De fato, a renúncia de soberania também se manifesta no patético assentimento passivo, por parte da “diplomacia altiva”, a todos os desmandos cometidos pela Argentina no âmbito do Mercosul e das relações comerciais bilaterais com o Brasil. O que significa o governo brasileiro aceitar a imposição unilateral de salvaguardas argentinas contra nossas exportações senão renúncia de soberania? Ela se dá em total contradição com a letra e o espírito do Tratado de Assunção, que não autorizam esse tipo de prática arbitrária da Argentina. Ela também se manifesta na passividade completa em face dos repetidos abusos cometidos pelo vizinho contra um número cada vez maior de produtos brasileiros.

A inoperância da diplomacia é provocada, como se sabe, por determinação direta do Palácio do Planalto, onde um “Rasputin diplomático” saído da academia pretende construir uma “diplomacia alternativa”, feita de alianças prioritárias com os “parceiros do Sul”, em detrimento dos nossos interesses nacionais, a começar pelos interesses diretos de quem produz e pretende vender ao exterior dentro das condições estabelecidas nos tratados assinados e consagrados em nossas relações exteriores. Essa passividade em face dos abusos argentino beira o limite do crime de responsabilidade política, pois se coloca contra os interesses nacionais, em primeiro lugar dos nossos empresários, frente a barreiras não justificadas pelo Tratado de Assunção.

O amesquinhamento da diplomacia se revela igualmente no incrível “protocolo” assinado com a ditadura cubana, visando ao “reconhecimento” de diplomas concedidos a alunos de “medicina” selecionados, não pelo Estado, mas pelo PT e por outros partidos e movimentos sectários. Mesmo que a tramitação dessa facilidade tenha sido barrada pela oportuna reação das universidades e da própria Ordem da área médica, o protocolo diplomático figura nos anais da diplomacia brasileira, como uma nódoa de indisfarçável renúncia de soberania. Pode-se pensar no constrangimento dos diplomatas da Secretaria de Estado ou daqueles servindo sob as ordens do incrível “embaixador” brasileiro em Havana, que já tinha declarado sua aprovação aos fuzilamentos contra dissidentes ordenados por Castro, a quem ele admira: contra as mais velhas tradições da diplomacia, eles tiveram de preparar um documento preliminar que representou a mais servil sujeição da diplomacia brasileira a interesses diretamente partidários.

Mas há mais. Renúncia de soberania representa alinhar-se preventivamente com a China na política obstrucionista, sem sequer exame de mérito, de uma investigação séria, por parte de órgãos da ONU, dos atentados aos direitos humanos cometidos naquele país. O Brasil tinha por prática, antes do governo atual, abster-se nesse tipo de votação, por vezes por razões alegadamente técnicas, outras porque muitas dessas resoluções tem de fato indisfarçável motivação política. Agora, este governo obriga a diplomacia a sustentar ativamente regimes violadores dos direitos humanos como os de Cuba e da China.

Em vários itens da agenda externa do Brasil, o governo petista age sofregamente, ao arrepio de nossas tradições diplomáticas, na busca ilusória de prestígio internacional e na obsessão quase risível de conquistar de imediato uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. A postura nas negociações da Alca e nos temas de comércio internacional, de modo geral, revelam uma concepção atrasada dos interesses econômicos brasileiros. As tentativas de agradar ao mesmo tempo aos antiglobalizadores do Fórum Social Mundial e aos homens de negócio de Davos confirmam que este governo e esta diplomacia não têm rumo próprio, apenas reações desencontradas.

A diplomacia brasileira tem um inegável prestígio dentro e fora do país. Ela sempre conseguiu traduzir a essência do interesse nacional. Atualmente, porém, o que se vê é um triste espetáculo de renúncia de soberania nacional.


[Fim da transcrição]

Fabio Chaddad e o Agronegocio - Marcos Sawaya Jank

Fabio Chaddad e o Agronegócio

Jornal “Folha de São Paulo”, Caderno Mercado, 19/08/2017

Marcos Sawaya Jank (*)

Como o empreendedorismo e formas organizacionais eficientes criaram um player global.


Na última quinta-feira, o INSPER organizou evento para lançar a edição em português do livro Economia e Organização da Agricultura Brasileira, do professor Fabio Ribas Chaddad, e batizou uma das salas de aula da instituição com o seu nome.

Em setembro passado, já muito debilitado por uma doença, mas com inacreditável energia e lucidez, Fabio veio ao Brasil para lançar a versão original do livro em inglês. Ele faleceu logo depois, aos 47, em Missouri, onde lecionava estratégias, organizações e agronegócio.

Fabio combinava características difíceis de serem encontradas em uma única pessoa: o rigor acadêmico, o ouvido sempre aberto e interessado nas pessoas e nas experiências do mundo real e uma invejável capacidade de síntese em inglês.

Seu livro traz a melhor narrativa existente sobre a evolução do agronegócio brasileiro desde os anos 1970, uma experiência de sucesso infelizmente ainda pouco reconhecida no país e desconhecida no resto do mundo. Fabio desenvolve uma abordagem microanalítica em cima de estatísticas precisas, descrições factuais e estudos de caso para explicar como o Brasil se tornou uma potência no agronegócio mundial, com ganhos de produtividade total superiores a 3% ao ano no período, quase o dobro dos EUA e o triplo do mundo. Isso colocou o Brasil entre os cinco maiores produtores de 36 commodities de origem agropecuária.

Ele chama de "condições capacitadoras" os fatores de geração de competitividade mais conhecidos e citados:
a) disponibilidade de recursos naturais (terra, água e clima);
b) investimentos públicos e privados em tecnologias tropicais;
c) políticas públicas estratégicas, não só as que apoiaram diretamente o agro —crédito rural, preços mínimos, estoques reguladores e programas sociais— mas também, e principalmente, as que o libertaram das garras excessivas do governo: fim dos controles de preços, desregulamentação, liberalização e enfrentamento da concorrência global.

Mas o lado mais inovador da obra é uma minuciosa descrição das formas organizacionais que marcaram a expansão do agro brasileiro e que talvez sejam os elementos mais sólidos para explicar os fortes ganhos de produtividade.

Fabio mistura histórias individuais de empreendedores que desbravaram o Brasil com a consolidação de robustas cooperativas (Coodetec, Castrolanda, Agrária), associações setoriais (OCB, Ocepar, Unica, Aprosoja) e notáveis instituições de pesquisa (Embrapa, CTC, Esalq, Fundação MT etc.).

Ele identifica três modelos distintos de organização das cadeias de valor do agro:

- Região Sul: integração de pequenos e médios produtores em sólidas cooperativas e arranjos contratuais com processadores de grãos, suínos, aves, lácteos e fumo.

- Região Sudeste: consolidação de sistemas verticalmente integrados de produção, apoiados por contratos a montante e a jusante, como no exemplo das indústrias da cana-de-açúcar, celulose e laranja, fortemente voltadas à exportação.

- Regiões Centro-Oeste e Centro-Norte: emergência de grandes grupos familiares e corporações empresariais, que inauguram sistemas que aproveitam economias de escala e escopo em grãos, algodão e carnes, mas com desafios a vencer na organização das cadeias de suprimento.

Fabio mostra que recursos naturais, tecnologia e subsídios foram condições relevantes, mas não suficientes, para fazer a festa acontecer no agronegócio. Na verdade, o sucesso do modelo brasileiro nasce de milhares de empreendedores anônimos que desbravaram o país, se organizando por meio de sistemas agroindustriais inovadores que geraram aumentos de produtividade sem paralelo no mundo. 

(*) Marcos Sawaya Jank é especialista em questões globais do agronegócio. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.