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sexta-feira, 23 de abril de 2010

2062) Ciencia e tecnologia na diplomacia do seculo 19 - Pesquisa Fapesp

Humanidades - Relações internacionais
O Império da inovação: A ciência escondida nos arquivos do Itamaraty
Carlos Haag
revista Pesquisa Fapesp, 170 - Abril 2010

Salão nobre do Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro

Nada mais moderno e atual do que a discussão sobre inovação tecnológica e P&D como forma de diminuir a dependência externa do Brasil e colocá-lo em pé de igualdade com as grandes nações do Primeiro Mundo. Curiosamente, como revela uma pesquisa recente, nada mais antigo também do que pensar nessas questões. Em Inovações tecnológicas e transferências tecnocientíficas: a experiência do Império brasileiro, os pesquisadores Sabrina Marques Parracho Sant’Anna e Rafael de Almeida Daltro Bosisio, a partir de um projeto do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD), feito no Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI), descobriram documentos que revelam a ação do Estado brasileiro e de seus agentes diplomáticos, entre 1822 e 1889, no sentido de usar a inovação tecnológica e a ciência como forma de criar uma nação, civilizar o Brasil e colocar o jovem país em compasso com os territórios europeus nos quais o Primeiro e o Segundo Reinados se espelhavam.

“Foi muito importante a ação do Ministério dos Negócios Estrangeiros no sentido de transferir tecnologia fazendo circular pessoas, bens e informações, numa tentativa de criar condições para a formação e manutenção do Estado imperial, almejando o seu ingresso no grupo das nações civilizadas e reduzindo o hiato que, segundo se acreditava, o separava dele. Ora querendo se aproximar da Europa, ora buscando uma civilização adequada ao mundo dos trópicos, uma Europa possível, construía-se uma identidade nacional baseada no território e num sentimento de exclusão”, explicam os pesquisadores. Segundo Sabrina, coordenadora da pesquisa, “a discussão sobre a formação da ideia de nação no Brasil é longa e controversa, mas o material indica que múltiplos atores sociais efetivamente se empenharam na construção de elementos de distinção da metrópole a partir da superação do estigma da natureza selvagem e se fizeram protagonistas de um Estado independente a partir da construção de uma imagem de cultura e civilização na especificidade dos trópicos”.

O universo do material da pesquisa constituiu--se da documentação disponível no Arquivo Histórico do Itamaraty. No total, foram lidos 297 maços documentais e levantados e fichados cerca de 5.500 documentos, dos quais resultou a seleção e reunião de 2.621 resumidos e classificados por tema que hoje compõem o catálogo, pronto, mas ainda sem data para ser editado, apesar da quantidade preciosa de informações para pesquisa que contém. Os documentos vêm acompanhados da precisa localização no arquivo. “No papel desempenhado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros como mediador das relações entre o Brasil e os demais Estados, buscando superar as desigualdades e fazer com que o país entrasse no grupo das nações tidas como civilizadas, deu-se ênfase à circulação de ciência e tecnologia diretamente relacionada ao movimento de trazer, para dentro do país, o saber que se disponibilizava no resto do mundo, buscando encontrar nas transferências as bases de construção de uma nação em sincronia com suas congêneres”, notam os pesquisadores.

Uma das primeiras e mais constantes preocupações era com a educação da mão de obra, seja pela importação de obras para aplicação no Brasil, seja pelo envio de pessoal qualificado para aperfeiçoamento no exterior. “Salta aos olhos o grande fluxo de ofícios e despachos relativos à instrução pública na busca de métodos educacionais e na compra de livros e equipamentos para faculdades. São desde guias para a introdução de aulas de ginástica até livros variados para a formação de cursos especializados, numa vontade de civilização. Os documentos indicam esforços de universalização do saber, equiparação a modelos europeus e apontam para o desejo de constituição de elites aptas ao controle do Estado e de formação da população como povo capaz de construir a nação”, observam os pesquisadores. Em detrimento da educação universal, porém, os cursos para formação de mão de obra especializada parecem receber ênfase e não por acaso a preocupação centrada na formação das bibliotecas dos cursos jurídicos de Olinda e São Paulo: entre 1822 e 1841, mais de um terço dos documentos são relativos ao assunto. Afinal, era o curso que tinha o lugar central na formação do Estado nacional e ocupava a preocupação das elites dirigentes.

“O fato é revelador na medida em que se criava o curso pelo estado de independência política e que se tornava incompatível demandar, como antes, estes conhecimentos à Universidade de Coimbra. O país precisava começar a formar seus próprios bacharéis. Médicos, engenheiros, militares e técnicos do governo continuariam sendo enviados ao estrangeiro para completarem a sua qualificação. Estes profissionais tornaram-se pensionistas do Estado.” Uma parte do catálogo fala justamente da concessão de benefícios de viagem para aperfeiçoamento no exterior, já que não são raras no Império as práticas de envio de estudantes brasileiros para qualificação no estrangeiro e formação de uma elite capaz de suprir as demandas dos quadros técnicos para operacionalização do Estado. As pensões deveriam: solucionar um problema imediato notado pelo Império; formar um profissional que, além do fim último de sua viagem, devia deixar os olhos sempre abertos para o aprendizado do mundo. “As viagens em comissão e aquelas de estudo, exigindo com frequência relatórios semestrais, foram, de fato, de formação”, dizem os pesquisadores.

Plantio de café: cônsules se empenhavam na remessa de sementes
No entanto, aos poucos, as viagens comissionadas por interesses do Estado vão ganhando proeminência sobre as longas viagens de estudo. “A partir de 1827, o governo passaria a tratar a instrução individual no exterior como de interesse do próprio estudante e deixaria de financiar períodos de formação completa no estrangeiro, deixando que os títulos de doutor ou bacharel ficassem a expensas das famílias abastadas da elite imperial. O financiamento das viagens de instrução passaria a se restringir ao que chamaríamos hoje de especializações e abarcaria apenas as áreas vistas como de interesse imediato do Estado nacional.” Ora vista como meio de ascensão social individual, ora vista como instrumento de civilização fundamental ao Império, a política de educação se fazia no movimento de padronização do acesso à formação civilizadora no interior do país e de formação de elites técnicas para atender a fins específicos da burocracia estatal. “Assim, o movimento de declínio das viagens de estudo em prol do crescimento das viagens de estudo a cargos comissionados parece ser concomitante aos processos de internalização da formação profissional e de busca da maior universalização do acesso ao ensino primário e secundário.”

A exceção, a partir de 1841, eram as pensões destinadas aos estudantes de belas-artes, já que a criação de um corpo de profissionais formados no estrangeiro com valores universais se fazia premente no momento em que Pedro II começava a construir sua imagem de mecenas e homem das artes e quando, no âmbito imagético, pintores, músicos e arquitetos parecem ter contribuído para forjar um sentimento de pertencimento nacional. “Assim, se a engenharia e a medicina, a agricultura e outros ramos do conhecimento se apresentaram como foco fundamental do Estado, oscilando da formação de quadros no estrangeiro para a formação no interior do país, direito e belas-artes aparecem aqui como casos-limite: o primeiro, símbolo maior do que deveria ser exclusivamente nacional, forma administrativa do Estado que se fundava; o segundo, símbolo do que deveria ser pautado em modelos estrangeiros, forma universal, civilizada, a enquadrar a nação nos cânones consagrados do belo internacional.”

Entre 1822 e 1834, o Ministério dos Negócios Estrangeiros inicia suas primeiras atuações a fim de promover a troca de plantas e sementes com outras regiões do mundo, agindo, sobretudo, como mediador nas trocas entre instituições brasileiras ligadas à agriculturas e suas congêneres no exterior. “Olhando o procedimento de envio de sementes, tudo parece apontar para a emergência dos primeiros esforços do Estado em implementar inovações na agricultura diversificando a produção e contribuindo para o progresso nacional, já que a agricultura de gêneros para exportação era vista como fonte de civilização”, notam os pesquisadores. Categorias como rotina, indolência e falta de cultura eram usadas para designar o estado em que se achava a produção agrícola nacional, e as técnicas vindas das nações avançadas eram consideradas inovações necessárias para eliminar esse atraso. De início, até 1834, o papel do ministério era secundário na aquisição e remessa de sementes, mas aos poucos ele se tornou atuante por meio do seu corpo diplomático, que passou a participar ativamente na obtenção de informações científicas e na aquisição e remessa de novas espécies. “Uma clara mudança na ação dos representantes brasileiros no exterior pode ser notada e vários foram os ofícios enviados descrevendo novas espécies que fossem úteis ao desenvolvimento da agricultura nacional. Sementes e mudas foram remetidas com detalhadas informações sobre o plantio, solo apropriado, época para o cultivo e colheita, zona climática adequada para cada espécie. As plantas passaram a ser descritas com seus nomes científicos e de acordo com a classificação de Lineu.”

Pedro II: mecenas

“Cônsules e outros agentes diplomáticos passaram a se empenhar pessoalmente na remessa de sementes, mesmo sem um pedido formal do governo imperial. Muitas vezes, os próprios diplomatas tomaram a iniciativa de selecionar e enviar informações científicas que pudessem contribuir para a aclimatação de novas espécies e para a racionalização da agricultura”, avaliam os pesquisadores. Agentes contratados para tratar de assuntos de imigração também foram envolvidos na elaboração de trabalhos que pudessem contribuir ao desenvolvimento da indústria e do comércio do país e se empenharam na aquisição e remessa de sementes e plantas como algodão, tabaco, café, amoreira, freixo, quina, guaco, verbena, carvalho, baunilha, canela, pinheiro, anil, açafrão, e uma série de outras sementes que deveriam ser aclimatadas para serem úteis na construção do Estadão-nação imperial. “Além do envio de sementes e mudas, passou a ocorrer um crescente intercâmbio de publicações entre instituições científicas brasileiras e suas congêneres no exterior. Os próprios diplomatas brasileiros selecionavam e enviavam artigos científicos que pudessem contribuir para a aclimatação de novas espécies e para a racionalização da agricultura”, contam. “Em seus ofícios e correspondências, faziam relatos de experiências realizadas por cientistas que lhes eram contemporâneos, novas máquinas empregadas para determinadas culturas, enfim novidades no que diz respeito à tecnologia agrícola daquela época. Depois de remetidas as sementes, tais agentes demandavam os resultados do plantio para que a observação empírica lhes servisse de guia nas novas remessas.”

Num terceiro momento, entre 1865 e 1889, há um arrefecimento na atividade de troca de insumos e cresce a participação do governo brasileiro nas exposições mundo afora, tornando o Brasil fornecedor de produtos exóticos e úteis ao comércio internacional. A partir de 1870 observa-se na documentação, afirmam os pesquisadores, um aumento dos pedidos de sementes e mudas nativas do país por outros governos: palmeira, carnaúba, tajujá, fibras têxteis e também de espécies aprimoradas no país, como café, tabaco e cana-de-açúcar. “Com a ênfase nas exposições, as trocas de sementes voltaram a ocorrer no âmbito das instituições científicas que, mesmo vinculadas ao governo, ganharam autonomia”, dizem os pesquisadores. As poucas espécies que chegaram ao Brasil não vieram, como antes, com dados sobre cultivo e plantio, mas acompanhando os novos tempos, com estatísticas comerciais e apontamentos sobre a sua rentabilidade do café, já que, entre os anos de 1876 e 1877, amostras de café brasileiro foram enviadas à França para análise do produto e aprimoramento de sua qualidade a fim de aumentar seu valor de venda no mercado estrangeiro. “Ao longo do século XIX, ao lado da construção do Estado brasileiro, delineou-se uma política agrícola voltada para a exportação. Nesse transcurso, a administração da agricultura pelo governo deixou de lado as ciências naturais, como a botânica, a química e a geologia, para fazer uso das ciências econômicas como forma de desenvolver essa atividade agrícola. Esse novo paradigma passou a coordenar a divulgação científica tal como empreendida anteriormente pelos agentes diplomáticos.”

Ao longo de todo esse período estudado houve, além dos pedidos do Estado, muita iniciativa individual dos diplomatas, bem como a receptividade às inúmeras ofertas feitas, no estrangeiro, de inovações tecnológicas que poderiam servir ao desejo de civilização do Império, prova da importância do ministério no cumprimento da “tarefa civilizacional” que lhe foi indiretamente delegada pelo Estado brasileiro. “É interessante notar que o papel desempenhado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros forjava, como mediador das relações entre o Brasil e os demais Estados, imagens do eu e do outro, buscando superar as desigualdades e fazer com que o paísentrasse no grupo das nações tidas como civilizadas. Aos diagnósticos de civilização ausente e de um território-potência, se sobreporia também o de um aparato estatal faltante, definindo, no período, uma identidade nacional e um mito originário: cosmogonia a repercutir indefinidamente sobre um Estado eternamente em formação”, completam os pesquisadores. Tarefa para a ciência, via diplomacia.

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