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segunda-feira, 19 de abril de 2010

2039) A nova estratégia nuclear dos Estados Unidos - José Goldemberg

A nova estratégia nuclear dos Estados Unidos
José Goldemberg
O Estado de S.Paulo, 19 de abril de 2010

A cada dez anos o governo americano publica um importante documento sobre os princípios - isto é, a "doutrina" - nos quais se apoia a sua estratégia nuclear. É um documento genérico, que fixa as diretrizes a serem seguidas por todos os órgãos do governo e pelas Forças Armadas.

O último deles, publicado há dez anos, refletia ainda a atmosfera da guerra fria e uma postura truculenta que se agravou durante os oito anos do governo do presidente George W. Bush.

Ela representava bem a influência dos elementos mais conservadores do Senado norte-americano, que já haviam bloqueado a aprovação de tratados internacionais que levassem a uma distensão política com a Rússia na área nuclear. Exemplo dessa atitude é o que ocorreu com o Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBC), que não foi ratificado pelo Senado. Esses senadores, de modo geral, defendem interesses corporativos dos setores envolvidos na produção de armas nucleares, que geram milhares de empregos e que são muito poderosos em alguns Estados americanos.

Fazia parte dessa "doutrina" a noção de que até ataques convencionais aos Estados Unidos, por países que não possuíssem armas nucleares, provocariam um revide nuclear.

Por essa razão, o único progresso na área de desarmamento nuclear que ocorreu nos últimos 20 anos foi a redução gradual, mas lenta, dos estoques de armas nucleares das grandes potências, que chegaram a ser de mais de 30 mil em cada uma delas e que ainda são consideráveis.

A eleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos parece ter mudado significativamente essa situação. No seu famoso discurso em Praga, em abril de 2009, Obama declarou que os Estados Unidos "procurarão promover a paz e a segurança de um mundo sem armas nucleares".

A nova estratégia nuclear americana, de abril de 2010, reflete essa intenção e abandona a visão ultrapassada de manter, modernizar e até aumentar os estoques de armas nucleares e realizar testes. Ela concentra agora as atenções do governo em duas áreas: impedir a proliferação nuclear e evitar o terrorismo nuclear.

Ao fazê-lo, o governo dos Estados Unidos adota a posição dos antigos "falcões da guerra fria", como Kissinger e outros que se convenceram de que armas nucleares - que garantiram no passado a segurança do seu país contra um possível ataque da União Soviética - não são eficazes contra o terrorismo nuclear, que não tem responsabilidades de governo.

Além disso, as ameaças resultantes da posse de armas nucleares nas mãos de governos problemáticos como o Irã e a Coreia do Norte tendem a se propagar, porque há outros aspirantes à posse de armas nucleares em várias regiões do mundo que desejam contrabalançar as ameaças criadas por eles.

Num certo sentido, o governo dos Estados Unidos "jogou a toalha" e, finalmente, se convenceu de que a única maneira de garantir a sua própria segurança é reduzir a importância das armas nucleares e começar a cumprir o artigo VI do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) de 1967, que prevê a adoção de medidas sérias que conduzam ao desarmamento nuclear.

Esse artigo foi adotado, na época, para encorajar os países não nucleares a não promoverem o desenvolvimento de armas nucleares e restringirem o uso de energia nuclear para fins pacíficos.

Vários países não aceitaram esse tratado porque o consideraram discriminatório e desenvolveram armas nucleares, como a Índia, encorajando o Paquistão a fazer o mesmo. Isso, aliás, é o que acontecerá se o Irã produzir armas nucleares, uma vez que o Egito e a Síria provavelmente desejarão fazer o mesmo para contrabalançar sua influência.

A nova estratégia nuclear americana abre caminho para uma discussão adulta sobre o problema do desarmamento nuclear, porque daqui para a frente a não-proliferação nuclear (dos países que não têm armas nucleares) e o desarmamento nuclear (dos países que as possuem) passam a marchar juntos.

A melhor indicação da seriedade dos Estados Unidos em adotar esse caminho é a decisão tomada de "não usar (ou ameaçar usar) armas nucleares contra países que são signatários do Tratado de Não-Proliferação Nuclear e que cumpram suas obrigações estabelecidas nesse tratado".

Seria muito útil que o Itamaraty estudasse com cuidado a nova estratégia nuclear dos Estados Unidos e abandonasse as tendências revisionistas que ainda existem no governo brasileiro.

O Brasil se tornou signatário do TNP em 1994, o que removeu o País da lista de "suspeitos" de tentar desenvolver armas nucleares, que é o caso do Irã hoje. A decisão brasileira reforçou os esforços mundiais para fazer com que os países nucleares seguissem o caminho do desarmamento nuclear, dos quais o próprio chanceler Celso Amorim participou no passado.

As vozes que se ouvem hoje - vindas inclusive do próprio Itamaraty - são que o Brasil abdicou da sua soberania ao aderir ao TNP, o que representa uma total incompreensão do que é o mundo real com ogivas nucleares programadas para atingir qualquer cidade do mundo, inclusive do Brasil.

A desnuclearização da América Latina, que se tornou realidade com a criação da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (Abacc) em 1992, e o abandono de programas nucleares semiclandestinos no Brasil e na Argentina estão dando frutos agora.

Nessas condições, uma política nuclear de aproximação com o Irã e o ceticismo a respeito das vantagens do Tratado de Não-Proliferação Nuclear são contrários aos interesses nacionais.

É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

2 comentários:

paulo araújo disse...

Prezado Paulo.

Obrigado pela atenção que você me dispensa. Acrescento alguns comentários ao artigo do Professor José Goldemberg.

Não sei ao certo em que pé estão as negociações diplomáticas entre os governos americano e brasileiro sobre a assinatura do Protocolo e a VIII Conferência do TNP. No entanto, o que o governo brasileiro parece defender foi expresso na recente Cúpula sobre Segurança Nuclear, em Washington: "O modo mais eficaz de se reduzir os riscos de que agentes não-estatais utilizem explosivos nucleares é a eliminação total e irreversível de todos os arsenais nucleares" (discurso presidencial)

http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u719974.shtml

A eliminação total é uma conquista realista de longo prazo. Lula pede o irrealizável e, desse modo, parece querer conduzir as negociações para o impasse. Sabendo que a realpolitik está no fundamento da diplomacia, o que de fato se pretende ao esticar essa corda? Está além da minha compreensão que o Itamaraty leve a sério a hipótese sugerida por Lula.

O General José Benedito de Barros Moreira (“Nós temos de ter no Brasil a possibilidade futura de, se o Estado assim entender, desenvolver um artefato nuclear. Não podemos ficar alheios à realidade do mundo.”) foi assessor militar do ministro Jobim e secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa (2007/2008). Hoje ocupa o posto de Conselheiro Militar junto à Missão Permanente do Brasil na ONU. Barros Monteiro defendeu nestes incríveis termos o programa do submarino nuclear:

“Se tivéssemos um submarino à propulsão nuclear, estaríamos mais seguros. Se a marinha argentina tivesse um submarino à propulsão nuclear, a Inglaterra não teria atacado durante o conflito das Malvinas. Então, um país pacífico como o nosso, que não tem a intenção de agredir ninguém, tem todo o direito de se defender, porque cada vez fica mais rico e apetitoso”.

http://www.defesanet.com.br/md1/barros.htm

Nas entrelinhas: se as marinhas argentina e brasileira tivessem submarinos à propulsão nuclear armados com artefatos nucleares “defensivos”, estaríamos mais seguros.

O vice-almirante Othon L.P. da Silva, no artigo citado, se não é afirmativo, ele em nenhum momento nega que a pesquisa nuclear sob a rubrica “para fins pacíficos” possa caminhar no sentido de propiciar o completo domínio da tecnologia de fabricação dos artefatos militares. Ao expor o seu pensamento sobre as supostas intenções do império americano, Othon L.P. da Silva avisa que não é do agrado dos bandoleiros do norte que países como o Brasil possam “defender-se” com “artefatos nucleares de baixa potência”:

“A existência de artefatos nucleares de baixa potência com um vetor adequado de lançamento é um poderoso fator inibidor de concentração de forças, não sendo do agrado de países que têm como opção estratégica a possibilidade de intervenção militar independente da aprovação do Conselho de Segurança da ONU.”

http://ecen.com/eee44/eee44p/inpecoes_nucleares_othon.htm

Isto é, ao apresentar os EUA como um país que “tem como opção estratégica a possibilidade de intervenção militar independente da aprovação do Conselho de Segurança da ONU”, o artigo revela os EUA como ameaça efetiva à soberania brasileira, que, consequentemente, deve dispor de todos os recursos, inclusive os nucleares, para defender-se dos inevitáveis ataques do Império.

Portanto, concluem os Strangelove, a ratificação do TNP e a assinatura do Protocolo são somente demonstrações ou da subserviência “vira-lata” ou da ingenuidade civil. Além do reconhecimento da assimetria, o TNP e o Protocolo são a aceitação das salvaguardas que impedem de fato e de direito o desenvolvimento de tecnologia nuclear para a fabricação de artefatos militares. Como alertou o Gal. Barros Monteiro aos brasileiros alienados da “realidade do mundo”, os tratados impedir-nos-iam, por exemplo, de colocar ogivas nucleares “defensivas” nos mísseis dos nossos submarinos de propulsão nuclear, caso o Estado assim o decida.

Paulo Roberto de Almeida disse...

Paulo Amorim,
Desconheço, e suponho que não exista, "negociações diplomáticas" bilaterais EUA-Brasil sobre a conferencia de revisão do TNP e o Protocolo Adicional. Podem existir conversas, consultas, mas não negociações, pois isto se daria no quadro multilateral, e nisso o Brasil tem sido consistentemente defensivo.
A postura oficial brasileira, pelo menos deste governo, tem sido a de reclamar o desarmamento nuclear, num total irrealismo geopolítico (o que não tem nada a ver com conflitos militares e sim apenas com a expressão pura do poder).
A posição pessoal de alguns diplomatas e de militares nesse capítulo não é apenas ridícula -- claro, eles podem sempre alegar que são patriotas defendendo o interesse nacional e QUALQUER possibilidade futura de chantagem nuclear contra o país -- mas ela é é prejudicial aos nossos próprios interesses, em qualquer dimensão que se possa conceber, inclusive regional e de orçamentos públicos para fins de desenvolvimento.
Estamos na verdade retrocendo, primeiro mentalmente, depois materialmente.
Este o legado...
Paulo R Almeida