A caminho de Ítaca...
como e por que sou professor
Paulo Roberto de Almeida
De todas as ocupações que fui dado até agora exercer, numa
vida nômade e aventurosa da qual guardo não poucos momentos de orgulho, a que
mais prezo e valorizo, obviamente, é a de professor, ou melhor de orientador de
ensino, uma vez que não sou professor em tempo integral, nem retiro meu
principal ganha-pão dessa nobre função de ‘mestre de artes e letras’. Não sei,
aliás, se tenho o direito de me considerar professor, no sentido estrito do
termo, já que nunca fui treinado para tanto, desconheço as mais elementares
noções de pedagogia e não tenho certeza, de fato, se ao exercer esse nobre
ofício minha real intenção é a de tentar ensinar algo a outras pessoas ou, como
parece mais provável, faço de tudo isso uma grande figuração e estou, de
verdade, aprendendo algo novo cada vez que me ocupo dessa absorvente atividade.
Antes que alguém pense que sou, apenas e tão somente, um
grande ‘embromador’, utilizando-me de inocentes alunos para, constantemente,
ensinar algo a mim mesmo, desejo retificar minhas palavras, e corrigir essa
sensação de improvisação no trato com o corpo discente. Acredito ter realmente
algumas coisas úteis a ensinar a outras pessoas, mais por desejo de transmitir
coisas novas, que venho aprendendo desde muitos anos, ao longo de constantes e
intensas leituras, do que propriamente por necessidade de ter uma segunda
profissão (ainda que, de fato, eu a considere a minha primeira e eterna
ocupação, ao lado desta mais formal que exerço temporariamente de diplomata).
Com efeito, não retiro, como disse, meu sustento dessa atividade que muitos
julgam paralela e exercida como uma espécie de hobby ou para complemento de salário. Longe disso, pois que nunca o
fiz, pelo menos desde que ingressei no serviço exterior brasileiro, pensando
nos retornos pecuniários que retiraria dessa dupla jornada de trabalho, muitas
vezes estafante e exercida contra meu lazer pessoal ou dedicação à família, ou
em detrimento da ainda mais prazerosa ocupação de simples leitor e
escrevinhador de coisas várias.
Nunca pensei em ser professor, achando que eu tinha, de
fato, qualquer coisa de extraordinário para ensinar a “mentes inocentes”, ou
que essa minha atividade temporária e fortuita iria fazer alguma diferença na
futura capacitação profissional daqueles temporariamente colocados sob minha
responsabilidade docente. O que de fato sempre me motivou a ensinar, ou pelo
menos a transmitir conhecimentos, foi uma espécie de motivação interior, algo
como uma compulsão inata que me impele a sistematizar o meu próprio
conhecimento e tentar repassar aquela maçaroca de idéias e conceitos sob uma
forma minimamente organizada, de forma a satisfazer minhas próprias
necessidades em termos de racionalização do saber adqurido nos livros (e também
na observação homesta da realidade) e de “atingimento” de uma nova síntese a
partir desses conhecimentos dispersos na “natureza”. Estou parecendo muito
dialético?
Não importa, desejo confirmar e reafirmar que o que me
impele a ser professor é mais uma força interna do que uma necessidade externa,
quaisquer que sejam as outras motivações aparentemente altruísticas geralmente
invocadas nessas circunstâncias (compromisso com o saber, transmissão de
conhecimento, desejo de formar os mais jovens, atendimento de uma vocação e
outras escusas do gênero). Sou professor porque eu mesmo “preciso” disso, não
porque outros possam eventualmente precisar de minhas competências gerais ou
habilidades específicas. Se desejar, você pode considerar isso altamente
egoísta ou profundamente narcisista: não me importo com as classificações
externas, pois minha motivação interior não vai mudar porque se descobriu, aparentemente,
algum motivo menos nobre, ou passavelmente autocentrado nesta principal “ocupação
secundária”.
É esta motivação interna, não necessariamente “espiritual”,
que me leva a desviar-me de outras atividades, talvez mais prazerosas – como o
próprio lazer pessoal, a convivência familiar ou o simples tempo alocado à
minha outra compulsão não tão secreta que é o hábito da leitura –, para dedicar-me a essas práticas docentes com
uma certa regularidade e constância. Nem por isso desprovidas de algum retorno
pecuniário: a despeito de já ter aceito dar aulas de mestrado gratuitas em
universidade pública – e de dar incontáveis palestras sem nunca ter sequer
invocado alguma remuneração em contrapartida, por vezes mesmo tendo incorrido
em despesas pessoais de deslocamentos a outras cidades –, o essencial das
minhas atividades docentes se faz segundo tradicionais práticas contratuais.
Nem poderia ser de outro modo: se eu deixo de ler ou de escrever para dar
aulas, que o ‘desvio’ de ocupação me permita ao menos alimentar esse terrível
vício da compra de novos livros e periódicos.
Tampouco eu poderia invocar como motivação ‘nobre’ a própria
arte do ensino. Sendo eu mesmo um autodidata radical, não me preocupa tanto o
que os alunos possam estar aprendendo, como o próprio conteúdo do que estou
ensinando, que pretendo seja o mais claro possível, o mais didático e o mais
completo dentro daquele campo de conhecimento. Transmito aquilo que sei, aos
alunos, depois, o encargo de reter o novo saber, de complementá-lo com as
muitas indicações de leitura que não me canso de fazer ou de interrogar-me
sobre algum aspecto pouco claro ou solicitar esclarecimentos adicionais sobre
‘coisas’ passavelmente complexas, quando não prolixas (sim: tenho esse péssimo
hábito, talvez pelo excesso de leituras, de “complicar inutilmente” a vida de
meus alunos, estendendo-me sobre longos períodos históricos, voltando a um passado
remoto para encontrar as causas de algum processo atual ou supondo um
conhecimento geral, sobre o Brasil ou o mundo, que simplesmente não existe mais
para a maior parte das gerações mais jovens). Nesse sentido, sou mais
‘substância’ do que ‘forma’, ao dar uma densidade no mais das vezes dispensável
a um conteúdo de aula que a maior parte dos alunos provavelmente preferiria
superficial ou no estrito limite do “necessário para fazer a prova”. Mas, como
disse, não estou principalmente preocupado com o que os alunos possam
‘aprender’ e sim com o que eu mesmo possa ensinar.
Tratar-se-ia, por acaso, de uma “má técnica docente”?
Talvez, ou quem sabe até, certamente. Minha didática está em ensinar, ou
transmitir conhecimentos, julgando que os alunos, ou ouvintes de alguma
palestra, serão suficiente maduros ou responsáveis para procurar, depois, seu
próprio aperfeiçoamento cultural ou intelectual, cultivando as boas práticas do
autodidatismo que eu mesmo reputo valiosas para mim mesmo (e assim tem sido
desde os tempos remotos em que aprendi a ler, na ‘tardia’ idade de sete anos).
Tão motivado sou pela necessidade interior e imperiosa de ensinar, que procuro
estender a tarefa além das quatro paredes da sala de aulas ou de um auditório
ou seminário acadêmico. Pela necessidade de complementar esse ensino fora do
período ‘normal’ de atividade docente, criei e mantenho, praticamente sozinho
(sem possuir as técnicas para tanto) um site de informação com motivações
essencialmente didáticas. Também tenho produzido material impresso como
derivação ou complementação das atividades didáticas: praticamente todos os
meus livros – com exceção de um grosso ‘tijolo’ de pesquisa histórica –
resultaram de aulas dadas, conferências pronunciadas, palestras proferidas,
seminários a convite (sim, nunca me ‘convidei’ para qualquer tipo de atividade
externa, tanto porque não conseguiria atender a todas essas oportunidades).
Tanto o site como os livros e trabalhos publicados, bem mais
até do que as aulas dadas em caráter necessariamente restrito, constituem,
obviamente, oportunidades para aparecer em público, me tornar conhecido, quem
sabe até ‘famoso’ em certos meios. Seria, então, por algum secreto desejo de
prestígio pessoal, de reconhecimento público, de notoriedade acadêmica, que me
obrigo a todas essas atividades cansativas, que não raro penetram fundo na
madrugada e ocupam quase todos os fins de semana, para maior angústia familiar
e evidente cansaço cotidiano?
Não posso, honestamente, recusar esse aspecto da
‘necessidade de reconhecimento’, talvez uma demonstração de ‘desvio de
personalidade’, buscando na exposição pública e no aplauso dos demais uma satisfação
de alguma necessidade ‘secreta’ que o excesso de timidez me impediria de realizar
de outro modo. Não creio, todavia, que esse aspecto seja determinante, tanto
porque tenho inúmeros outros trabalhos que permanecem rigorosamente inéditos ou
porque mantenho, em paralelo, alguma atividade de correspondente dedicado – e
não apenas em direção dos muitos alunos que me procuram pedindo ajuda em trabalhos
ou projetos de estudos – e algumas colaborações regulares (em matéria de
livros, por exemplo) com determinados veículos de divulgação que não
necessariamente levam minha assinatura.
A principal motivação, volto a reafirmar, é interna, e
deriva dessa minha inclinação pelo estudo, pela sistematização do conhecimento,
pela necessidade de eu mesmo ver claro no emaranhado de informações que recolho
diariamente de livros, jornais e revistas, pelo desejo subsequente de organizar
o conhecimento adquirido em uma nova ‘síntese combinatória’ e pela motivação
ulterior de tentar alcançar um público mais amplo ao colocar no papel, se
possível impresso e publicado, essa massa de conhecimentos que adquiro de forma
contínua e de modo interminável. Tanto é assim que acabo aceitando, contra a
opinião familiar e contra o que seria sensato do ponto de vista profissional,
dar palestras em alguns cantos recuados desse país continente que é o Brasil (e
até mesmo em outros países), sem outra motivação aparente (e real) do que a de
atender à solicitação de algum grupo de estudantes que acabaram descobrindo, na
internet ou nas bibliografias, algum livro ou trabalho meu, que estiveram na
origem dos convites.
Sem pretender dar qualquer conotação de ‘épico literário’ a
esse meu ativismo docente, algo de “jornada de Ulisses” pode estar escondida
nas minhas aventuras didáticas, no mar revolto das instituições de ensino
superior e nas enseadas mais movimentadas dos seminários acadêmicos. Com efeito,
minha busca incessante de ‘complemento professoral’ às atividades profissionais
normalmente desempenhadas no âmbito da carreira diplomática – já por si
suficientemente absorvente – pode ter esse sentido de unending quest, de busca incessante de algo mais, ou de itinerário
contínuo em direção de algo valorizado, que eu não bem precisar o que seja,
exatamente.
Na verdade, a comparação pode ser enganosa, pois mesmo
Ulisses sabia para onde queria ir, e a esse objetivo dedicou todo o tempo do
retorno de Tróia, ainda que tivesse sido constantemente desviado de alcançar
seu destino final pelas trapaças da sorte e pelos acasos da vida. De minha
parte, eu não sei exatamente o que persigo ao me ‘obrigar’, literalmente, a
exercer uma ‘segunda’ – ou primeira? – profissão, ao lado daquela que me
distingue socialmente, que me define institucionalmente e que me remunera
essencialmente.
Independentemente do destino final, o caminho de Ítaca é,
ele mesmo, a aventura de uma vida inteira, uma experiência gratificante (por
vezes ‘mortificante’) e, de certa forma, um reconhecimento implícito de uma
certa ‘dívida social’ que eu desejaria amortizar da forma mais inconsciente
possível. Como seria isso? Sendo eu originário de família modesta, morador, até
a adolescência tardia, de uma casa onde eram poucos os materiais de leitura e
relativamente raros os ‘livros sérios’, tendo feito toda a minha educação
formal em instituições públicas e tendo tido a chance de poder frequentar,
desde muito jovem, uma biblioteca infantil, aprendi a valorizar tremendamente o
hábito da leitura e o auto-aprendizado. Sou, essencialmente e verdadeiramente,
um autodidata, no sentido mais completo e profundo da palavra, algo não
necessariamente extraordinário ou excepcional, mas que no meu caso corresponde
inteiramente a toda uma realização de vida que devo reconhecer e valorizar honestamente.
Mas, onde entra Ítaca nessa história de self-made intellectual, de sucesso profissional pelo esforço
próprio, de mérito social pelo empenho no estudo e no trabalho? Creio que Ítaca
é uma espécie de ‘Santo Graal’ intelectual que persigo por simples desencargo
de consciência. Como aprendi por mim mesmo, mas também aprendi porque frequentei
escolas públicas que num determinado momento eram ‘boas’ – mas que hoje são
passavelmente sofríveis, quando não insuficientes para formar qualquer
estudante para o ingresso no terceiro ciclo – e sobretudo aprendi porque tive à
minha disposição uma biblioteca repleta de livros interessantes, acredito que
ao me obrigar a dar aulas eu esteja, talvez inconscientemente, procurando dar
aos outros aquilo que eu mesmo tive como ‘oferta da sociedade’, basicamente uma
boa escola pública e uma ‘grande” biblioteca infantil.
São essas instituições que fizeram de mim o que sou hoje –
ademais do esforço próprio no estudo e na leitura, por certo – e aparentemente
eu tenho um certo calling, um certo
dever de consciência de contribuir em retorno ao que obtive em priscas eras
(com perdão pela horrível expressão ‘pasteurizada’). Obviamente não estou
retribuindo na justa medida, pois que dou aulas e orientação a ‘marmanjos’ do
terceiro ciclo, não a ‘pequenos inocentes’ dos dois ciclos anteriores, mas é o
que eu posso fazer, com meu singular
despreparo para aulas de ensino fundamental, e meu (reconheçamos) bom
preparo para o ensino especializado, fortemente intelectualizado.
Voilà, minha ilha
de Ítaca é uma espécie de miragem, um ponto não alcançável no horizonte, jamais
realizado ou realizável, mas que conforma um objetivo material (e ‘espiritual’)
que me traz imensa satisfação pessoal: a necessidade de ensinar, um desejo
(agora não tão secreto) de contribuir para o engrandecimento alheio tomando
como ponto de partida os conhecimentos que fui adquirindo ao longo de uma vida
razoavelmente feliz, ainda que materialmente difícil, feita de muito estudo, de
leituras intensas, de escrituras compulsivas, de perorações infinitas, de um
constante navegar em busca de mais conhecimento, de mais informação, de um
pouco mais de compreensão (no sentido weberiano da Verstehen).
Não sei, aliás, se chegarei a alguma Ítaca algum dia: a
sensação que mais tenho é a de que sempre há uma nova porção de mar para além
do horizonte, de que a busca por conhecimento é infindável e propriamente
inesgotável. Mas, pelo menos, não busco o conhecimento pelo conhecimento, não
me retiro nos prazeres secretos da leitura pela leitura, como esses leitores de
Proust que fazem da busca do tempo perdido um exercício de indeclináveis
características de ‘eterno retorno’.
Eu acredito na ‘flecha retilínea do tempo’ (com os habituais
acidentes de percurso), acredito que o saber tem um caráter instrumental, de
liberação, de capacitação humana, de engrandecimento social, de aperfeiçoamento
da humanidade, de busca de valorização do que é belo, do que é útil e,
sobretudo, do que é bom. Nesse sentido, não sou relativista, nem agnóstico:
acredito que o exercício das paixões humanas – e, no caso, minhas atividades
didáticas ou professorais constituem uma ‘paixão’ – podem e devem servir a algo
de valorizado socialmente, não para uma mera satisfação pessoal de fundo
egoísta.
Repito: dou aulas ou orientação com um certo sacrifício
pessoal e familiar, e de forma nenhuma motivado pela remuneração ou pelo
prestígio vinculado a essas atividades. Eu o faço por necessidade interior e
motivado por um sentimento que poderia, honestamente, classificar como ‘nobre’.
Retiro satisfação social dos encargos docentes auto-assumidos, mas sobretudo
retiro satisfação pessoal pelo fato de estar ensinando algo a mim mesmo: esse
algo é a consciência de que pertencemos a uma entidade que nos transcende – sem
qualquer espiritualismo aqui – e que precisa melhorar constantemente para que
nós mesmos possamos ter motivos contínuos de satisfação social ou pessoal.
Sou perfeitamente materialista, mesmo correndo o risco de
ser incompreendido por causa desse conceito tão carregado de significados
obscuros e supostamente ‘vulgares’. Acredito que a elevação da humanidade se
dará por força e empenho pessoal de seus componentes irredutíveis, que são os
seres humanos como eu e você, que me está lendo neste momento. Eu procuro,
modestamente, contribuir com o meu pequeno esforço para a elevação dos padrões
materiais e morais da humanidade. Por isso tenho orgulho em ser professor ou
orientador, mesmo não necessitando fazê-lo por razões objetivas ou externas.
Se não me falharem as forças, continuarei a caminho de Ítaca
pelo resto de meus dias...
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)
Brasília, 18 de outubro de
2004
1345. “A
caminho de Ítaca”, Brasília, 18 out. 2004, 7 p. Ensaio sobre como e por que sou
professor, de caráter autobiográfico. Postado no blog DiplomataZ (23.11.2009; link: http://diplomataz.blogspot.com/2009/11/24-por-que-sou-professor-uma-reflexao.html).
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