Grande Leitura!
A entrevista abaixo não está datada, mas imagino que tenha
sido concedida logo no início do governo populista que deu início à destruição
do Brasil, como enfatiza Janer Cristaldo, o grande intelectual brasileiro que
infelizmente faleceu em 2014.
Um pouco longa, mas toda ela é saborosa, como eram saborosos
todos os seus escritos.
Grato ao amigo Gil Rickardo, por me ter chamado a atenção
sobre essa entrevista, que de outra forma eu não teria lido, como aos seus
muitos outros textos reunidos em seu blog ou seus livros eletrônicos, disponíveis
nos links que ele apresenta ao longo da entrevista.
Paulo Roberto de Almeida
:: Entrevista
A contrapartida da papagaiada
por Diogo Chiuso e Sidney Vida (do Jornal Eletrônico O Expressionista)
Não é fácil entrevistar alguém que sempre tem algo
interessante a dizer, principalmente na hora da edição do texto. Essa é a parte
complicada quando o entrevistado é alguém como o jornalista Janer Cristaldo,
que deixou clara a impressão de que para cada assunto levantado caberia mais e
mais perguntas.
Felizmente no jornalismo online não temos os problemas
técnicos e de espaço em papel, como no jornalismo impresso. Portanto, no final
das contas, toda a complicação teve uma simples solução: publicar a entrevista
na íntegra, sem cortes, nem edição.
Mas não poderíamos privar os leitores de tentar conhecer como
Janer Cristaldo é pessoalmente. Já lá com seus 56 anos, mais parece um garotão
entusiasmado com a beleza das mulheres e das lindas cidades européias. Até hoje
não possui automóvel, pois preferiu gastar seu dinheiro em momentos bem vividos
em viagens à Europa, estampadas em lindas fotos de bares e cafés nas paredes.
"Adoro bares, aliás, é meu lugar preferido para a leitura", confessa,
apontado, numa das fotos o seu preferido, um café em Viena.
Além da agradável recepção em seu apartamento no charmoso
bairro paulistano, Higienópolis, Janer fez questão de nos guiar pela imensa
biblioteca que viaja pelo mundo das idéias, da literatura e até dos
"inimigos", como refere-se com zombaria aos comunistas. Relembra
fatos de sua infância em Dom Pedrito - pequena cidade do Rio Grande do Sul - e
fala de suas experiências nos jornais paulistas Folha de S. Paulo e Estadão.
Considera a imprensa brasileira, apesar de tudo, muito boa por abranger o mundo
todo na editoria internacional, diferente da americana e européia que
centralizam as notícias em informações "caseiras". Em compensação,
critica o jornalista que não gosta de ler e tampouco tem sua própria
biblioteca, pois esse profissional, segundo ele, tem a obrigação de conhecer
melhor o mundo em que vive.
Hoje, Janer escreve em diversos jornais na internet que dá a
ele a liberdade que jamais teria nos de papel, além de não precisar bajular o
grande público. Janer é polêmico, mas não por querer ser conhecido, obter fama
ou coisa parecida - que aliás diz ter ojeriza a essas coisas - mas, sim, por
não ser preso a nenhuma ideologia ou convicção religiosa: "...abandonei
Deus lá pelos meus dezesseis, dezessete anos, e senti uma baita sensação de
liberdade", afirma com a convicção de quem viveu muito bem a maior parte
da vida sendo ateu.
Janer Cristaldo é a essência do homem anti-politicamente
correto, no sentido de, com responsabilidade, falar o que pensa sobre qual for
o assunto, sem se importar com as reações adversas e o ranger dos dentes
daqueles que crêem nos objetos de suas críticas.
Portanto, o que o leitor verá a seguir são análises sérias e
contundentes de um homem que tem o que dizer, em contrapartida dos papagaios
que encontramos aos montes arrotando a sabedoria alheia, por não ter a
capacidade de pensar por si mesmo.
Atualmente a religião Católica, que é a mais praticada no
Brasil, parece estar meio sem rumo. Antigamente tínhamos o conhecimento muito
vinculado aos colégios católicos, além dos grande filósofos da Igreja como São
Tomás, Santo Agostinho etc. O que aconteceu para que a Igreja Católica perdesse
esse status de produtora de grandes pensadores?
A meu ver, hoje não há grandes pensadores, nem dentro nem fora
da Igreja. É como se os antigos tivessem esgotado todas as formas de enquadrar
o ser humano e a realidade, e não restasse aos contemporâneos senão
papagueá-los. No campo da filosofia ocorre a mesma coisa. Não se vê mais surgir
Sócrates, Kants ou Descartes. O que surgem são repetidores confusos.
Que mais pode acrescentar a Igreja ao que disseram os antigos
doutores? Além do mais, a Igreja tem uma espécie de AI-5, o dogma, que inibe
todo pensamento. Católico algum pode negar o dogma. Até mesmo um marxistóide
como Leonardo Boff tem de engolir a virgindade de Maria, tanto que ele escreveu
um livrinho, A Ave Maria - o Feminino e o Espírito Santo, endossando esse
fenômeno típico de certos pulgões da lavoura, a partenogênese. O pensador
católico tem também de engolir que o pão consagrado não é mais pão, mas carne,
e o vinho consagrado não é mais vinho, mas sangue. Mas atenção: pão e vinho não
são símbolos da carne e do sangue, mas a própria carne e sangue. Ou seja, todo
católico é no fundo um canibal ou hematófago. Impossível pensar a partir de
dogmas.
Só poderia surgir algum pensamento na Igreja no momento em que
esta abandonasse o dogma. E não só o dogma, mas também boa parte dos livros do
Antigo Testamento, e mais alguns do Novo, particularmente aqueles que defendem
genocídio, massacres, escravidão. Que esses livros permaneçam como documentos
históricos, muito bem. Mas deveriam ser eliminados do corpo doutrinário de uma
religião contemporânea, particularmente de uma religião que se pretende
defensora dos direitos humanos...
Embora o sr. seja ateu, deve concordar a base moral dos
últimos dois milênios da humanidade foi erguida sobre os ensinamentos
judaíco-cristãos. Como o sr. vê os ataques mútuos entre ideologias e religiões,
principalmente no século XX?
Em primeiro lugar, vamos acabar com essa história de sr. Até
parece que tu és mais jovem que eu (risos). Continuando: vocês falam na base moral
da humanidade. Da humanidade, não. Mas do Ocidente, pois no Oriente a realidade
é outra. Mesmo assim, a esses elementos judaico-cristãos se deve acrescentar o
legado greco-romano. Junte-se esses ingredientes todos e temos o que se
convencionou chamar de Ocidente. Quanto aos ataques mútuos, estes decorrem do
problema que já apontei, o dogma. Aliás, antes de serem mútuos, são internos. A
negação dos dogmas provocou cismas, perseguições, massacres, fogueiras.
Depois, surge o problema do monoteísmo, a origem da maior
parte das guerras. Com tanta pedra no deserto, Maomé inventou de subir aos céus
a partir de uma rocha sagrada para os judeus. Esta história é curiosa. No
espaço de uma noite, Maomé voou de Meca a Jerusalém, montado em uma mula alada
chamada Burak, com cabeça de mulher e rabo de pavão. Lá, da rocha onde Abrahão
iria sacrificar Isaac, subiu ao céu para receber a revelação. Toda pretensão
árabe a Jerusalém, todo o atual derramamento de sangue no Oriente Médio, tem no
fundo esta lenda estúpida. Árabes e judeus até hoje estão se matando em função
da luta pelas mentes de dois deuses ciumentos, Alá e Jeová. Cristãos e
protestantes estão se entredevorando na Irlanda, shiitas e sunitas se massacram
no mundo islâmico, cristãos e muçulmanos se mataram com gosto nas recentes
guerras iugoslavas. Melhor o antigo mundo grego. Os deuses eram tantos que
soaria ridículo um deles se declarar como único.
Qual o seu conceito de Deus?
Não tenho conceito algum de deus. Se tivesse, seria um crente.
Tenho, isto sim, um conceito da idéia de deus. Esta idéia responde, de forma
primitiva, é verdade, aos mais profundos anseios humanos. Primeiro, serviu como
tentativa de explicar o inexplicável. A medida em que o homem desenvolvia seu
conhecimento, esta idéia foi sendo relegada a um segundo plano. Quando a
física, a química, a biologia começaram a tornar o universo compreensível, deus
foi se reduzindo à sua insignificância. Isto permite que, no final do XIX,
Nietzsche proclame: Deus morreu. Verdade que o alemão se enganava. As multidões
contemporâneas, cada vez mais famintas de misticismo, reduziram o brado de
Nietzsche a um ingênuo wishfull thinking.
Hoje, Deus é uma espécie de esperança para as grandes massas
incultas. Aliás, desconfio que as pessoas que dizem crer em Deus, pouco estão
se importando com o tal de Deus. O que importa realmente é a transcendência da
própria alminha. Encontramos isto mesmo no universo pagão. Que eram os deuses
lares, manes e penates romanos, senão reencarnações dos próprios antepassados?
O homem que cultuava seus lares estava em verdade cultuando seus mortos. A
família era mais sólida naquele mundo pagão. A progênie era uma benção e a
infertilidade uma maldição. Quem não procriasse, uma vez morto não teria quem
lhe oferecesse os manjares que agradam aos lares.
O ser humano é um bicho que se viciou com a vida, aspira
ardentemente à eternidade. O que, se pensarmos bem, é um grande engodo. Se uma
vida já cansa, imagina ser eterno. Deus ainda tem algum prestígio porque
promete vida post-mortem, paraíso ou inferno conforme os méritos do cliente. Se
um deus dissesse: “olha, te comporta como quiseres, não tenho nada a ver com
isso, afinal depois da morte não existe nada mesmo”, é claro que esse deus não
teria Ibope. Eu ousaria avançar que, no fundo, ninguém crê em Deus. Prova disto
é o pavor dos crentes na hora da morte. Ora, a morte propicia o encontro com
Deus. Deveria ser ardentemente desejada. Mas não é isto que ocorre. Na hora do
jesus-está-chamando, até mesmo o papa busca medicina de ponta. Em A Peste, pela
voz do padre Panélou, Camus fala de antigos cristãos que se envolviam em
lençóis usados pelos pestíferos, para morrer depressa e mais depressa se
encontrarem com Deus. Este tipo de cristão não existe mais.
Alguns pensadores - e até o senso comum - costuma associar a
crença em Deus a manutenção de comportamentos éticos (os dez mandamentos, por
exemplo). O escritor Dostoievski chegou a afirmar que, se Deus não existe, tudo
é permitido. Há, no entanto, diversas interpretações para tal frase da mesma forma
que parte da filosofia ergueu uma ética sem Deus. Uma pessoa, enfim, pode ter
uma vida de virtudes sem Deus, sem esperar as recompensas transcendentais que
as religiões oferecem? Qual a sua posição diante de tal dilema?
Vamos aos fatos. Em primeiro lugar, Dostoievski nunca afirmou
isso. Se alguém afirmou, teria sido Ivan Karamazov, um de seus personagens. Não
se pode confundir personagem com autor. Em segundo lugar, Ivan tampouco afirmou
isso. Quem o afirmou foi Sartre, ao escrever que o existencialismo francês
estava fundamentado no argumento de Ivan Karamazov, de que se Deus não existe,
tudo é permitido. Os fatos são um pouco diferentes. Em verdade, Ivan conclui
que se Deus não existe, não existe imortalidade. E “se não existe imortalidade,
não existe virtude”. O que, aliás, confirma minha tese: o que preocupa
realmente as pessoas é a transcendência.
Para efeitos de raciocínio, admitamos a proposição “se Deus
não existe, tudo é permitido”. É uma proposição safada. Dita por um libertino,
significaria que tudo é permitido mesmo, já que Deus não existe. Elimina-se
qualquer ética, como se ética dependesse da existência de Deus e não de um
acordo entre homens. Dita por um crente, é um alerta: cuidado, se Deus não
existe, tudo é permitido. Para que tudo não seja permitido, é preciso que Deus
exista. Mas de que deus fala quem assim fala? É bom que lembrar que, no
universo do monoteísmo, os deuses são vários. Mesmo na Bíblia não existe um só.
A que deus se referem esses pensadores e o tal de senso comum? Ao que não só
permite, mas também ordena guerras, massacres, pestes e catástrofes? Ou àquele
outro que fala em amor e perdão? É bom ainda lembrar que este deus amoroso do
Novo Testamento, segundo o Apocalipse, deve voltar a ferro e fogo para fazer
tábula rasa do planetinha. Pela primeira vez, nos textos sagrados, Cristo monta
um cavalo, arma de guerra.
Quanto aos Dez Mandamentos: estamos naquele período histórico
em que religião não se distingue de legislação, onde ainda não há Estado mas
apenas um poder religioso. Ora, isto faz mais de três mil anos. De lá para cá,
o homem ocidental foi suficientemente sensato para separar as duas coisas. Uma
das grandes confusões de nossos dias é a falta de distinção entre preceito
religioso, preceito ético e lei. Lei deve ser cumprida, sob pena de sanção.
Preceito ético pode ser cumprido ou não, depende do conceito de ética de cada
um. Pode até ocorrer alguma sanção da comunidade, em caso de transgressão, mas
esta sanção não tem o aval do Estado, nem pode ser exercida através de força
policial. Quanto ao preceito religioso, este deve ser cumprido apenas pela
comunidade que crê naquela religião. Ou pelo menos assim deveria ser. Que os
cristãos considerem pecado o aborto ou o homossexualismo, isto é um problema
que diz respeito apenas à comunidade cristã. Tal condenação não pode ser
imposta a um Estado laico, como pretendem os papistas.Pessoalmente, não preciso
de Deus nem de recompensas transcendentais para ser honesto. E penso que não
somos poucos os que assim pensamos.
Mas no Brasil a questão religiosa é complicada. A maioria é
católica, porém, nada impede que freqüentem terrenos de candomblé ou até sigam
as doutrinas espíritas de Kardec, que aliás, o Brasil é um dos únicos países
que ainda levam à sério a "ciência-religião" deste francês. Na sua
opinião por que há esse desespero em querer salvar a alma? Neste sentindo o
ateu é mais tranqüilo, já que sabe que seu fim não é a eternidade proposta
pelas religiões?
O candomblé se deve à porção africana do Brasil. Há toda uma
população que não se reconhece no deus e santos brancos europeus. Apela então
às tradições animistas africanas. É uma religião de negros e pobres, mas que
gera muito dinheiro e poder, particularmente na Bahia. Até um comunista
empedernido como Jorge Amado achou melhor fazer o jogo dos orixás. Quanto ao
espiritismo, foi uma fórmula encontrada por um setor das elites brasileiras
para escapar ao catolicismo sem cair no animismo. O kardecismo tem suas origens
no mesmerismo, doutrina proposta pelo austríaco Franz Anton Mesmer, para quem a
alma humana ultrapassava os limites do corpo e atuava fora dele. Que o corpo
humano emitia radiações, compostas de elementos materiais, que seriam os
veículos transmissores da ação da alma e que continha forças vitais. Kardec -
em verdade Denizard Rivail - aproveitou esses elementos, mesclou-os com uma
teoria da reencarnação e estabeleceu bate-papos com os espíritos através de
mesas girantes. Não sei se já observaste, mas muita gente que perde um filho ou
pessoa próxima, logo é assediada pelos espíritas. Na ânsia de transcendência,
de comunicação post-mortem, há pessoas que caem no engodo. É uma variante mais
pragmática da vigarice da vida além-túmulo dos cristãos.
Kardec está sepultado no Père Lachaise, em Paris. Multidões de
brasileiros visitam sua tumba. Se fores perguntar a um francês quem foi Kardec,
ele não te dirá nada, pois nem sabe de quem se trata.
Eu não saberia dizer nem onde nem quando surge essa idéia
estúpida de salvar a própria alma, aliás tão estúpida quando a idéia de alma.
Isto é tarefa para historiadores, mas obviamente o cristianismo não é inocente
neste imbroglio. Claro que o ateu é um homem mais tranqüilo, ele dispensa
muletas espirituais. Mas atenção: há dois tipos de ateus. Há aquele que
simplesmente não acredita em Deus nem na craca metafísica que vem junto com
essa idéia, nem faz proselitismo Existe ainda um outro, o ateu militante,
aquele que procura adeptos para reforçar sua descrença. Este, na verdade, está
doidinho para acreditar em deus. Mal um deus qualquer lhe pisca um olho numa
esquina, ele adere de corpo e alma à nova crença..
Então Marx acertou em dizer que "a religião é o ópio do
povo"?
Ópio do povo e mais um pouco. Fonte de renda e poder para elites, atraso para o
pensamento e para a ciência, um peso inútil para o indivíduo. No caso da Igreja
Católica, é um tremendo fator de miséria para o Terceiro Mundo. O Vaticano tem
assento na ONU e sempre se opõe às políticas de controle da natalidade. Fator
de insalubridade, também. Toda vez que as autoridades falam em preservativos
para conter a Aids, não falta padre ou bispo que se manifeste contra. O Congo,
que tem uma população de 52% de católicos, está sendo arrasado pelo HIV, graças
aos padres que se opõem ao preservativo. Estas políticas merecem um só
adjetivo: criminosas.
Vamos falar de literatura. Na sua opinião, qual o valor dos
livros na vida de uma pessoa? E quais livros uma pessoa jamais deveria deixar
de ler?
Sem livro, não há cultura. Vê os índios, por exemplo. Há
tribos ágrafas no Brasil que continuam chafurdando no paleolítico, para alegria
e sustento dos antropólogos. O livro, primeiramente, com Gutenberg, e depois a
democratização do livro, com Aldus Manutius, foi uma poderosa ferramenta do
desenvolvimento humano. O livro liberta, nos livra de idéias pré-concebidas, de
crendices e religiões. Ensina e humaniza. Tem mais: se não for instrumento de
libertação, de informação e de degustação estética, para nada serve.
Curiosamente, um dos primeiros livros que me ajudou a jogar fora idéias religiosas,
foi a Bíblia. Não há fé que resista a uma leitura atenta da Bíblia. Lendo-a com
atenção, vê-se que deus é uma criação humana, e seu conceito depende de época e
geografia.
Mas o livro também tiraniza. Já deves ter notado o poder de
que se imbui um desses pregadores de rua, ou mesmo de púlpito, ao brandir uma
bíblia. Eles se apegam apenas a alguns aspectos da bíblia, os que mais convêm a
seus dogmatismos, e ameaçam a clientela com inferno, fogo e sofrimento eterno.
Não por acaso, o livro predileto deles é o Apocalipse.
Quanto aos livros que uma pessoa jamais deixaria de ler, a
pergunta é complicada. Eu diria que, ocidentais, todos temos de dar uma
olhadela em Platão e seus Diálogos. O Quixote é outro grande livro, mas
atenção: é preciso que o leitor goste da ironia literária, da Espanha e,
principalmente, da antiga Espanha. Sem isto, o Quixote pode tornar-se uma
leitura maçante. As Viagens de Gulliver, de Swift, este tremendo libelo contra
as instituições humanas, é outro livro importante. 1984, de Orwell, é
fundamental para conhecermos o debate do século passado. Para se ter uma idéia
das instituições do Ocidente, eu sugeriria A Cidade Antiga, de Fustel de
Coulanges. Para bem entender os fundamentos de nossa cultura, importante ler A
História das Origens do Cristianismo, de Ernest Renan. São sete volumes, mas é
leitura que prende. Particularmente para quem gosta de viajar, é uma visita -
ou revisita - a Jerusalém e Roma antigas.
Em matéria de poesia, penso que Fernando Pessoa é o grande
poeta do século passado, apesar de a universidade tentar destruí-lo com suas
análises teóricas. E sou apaixonado por José Hernández, este poeta maior da
América Latina, tão pouco conhecido no Brasil. Martín Fierro é certamente o
poema que mais adoro. A propósito, se alguém não o conhece, aqui está: http://www.literatura.org/Fierro.
Mas isso são as minhas leituras. Um outro leitor certamente
proporia outras. A leitura da Bíblia também é fundamental, não posso considerar
culto quem não a tenha lido. Mas é preciso lê-la sem fé, sem idéias
pré-concebidas, ou então a leitura só serve para reforçar fanatismos.
A literatura e a intelectualidade já estiveram muito ligadas à
boemia, principalmente nas décadas de 1920 e 1930, em que muitas obras
"nasceram" em meio a conversas de bar. Você não acha que existe hoje
uma certa predominância do meio acadêmico no processo de produção literária? O
escritor Gore Vidal acha, por exemplo, que a literatura norte-americana praticamente
transferiu-se para a universidade, confundindo-se com a crítica literária. Não
há uma separação muito abissal entre o escritor que narra as coisas do
cotidiano dos que fazem sua literatura com base na cultura adquirida na
universidade?
Considero a literatura como uma expressão da revolta. Ou a
literatura contesta a própria época, ou é mero entretenimento. A universidade é
uma instituição fortemente ancorada no stablishment. Quando a universidade
adota uma obra, é porque essa obra já perdeu sua força de contestação.
O suporte da indústria do livro, hoje, é a universidade. Se um
dia o livro foi um instrumento sem o qual a universidade não podia existir,
hoje a universidade é um instrumento sem o qual a indústria do livro perde seu
vigor. O que era fim, a aquisição de saber através da universidade, se tornou
meio para sustentação de um comércio. E o que era meio, o livro como
instrumento de deleite espiritual ou comunicação do saber, tornou-se fim, uma
mercadoria como qualquer outra, para alegria de editores e massagens no ego de
escritores com boas relações junto ao MEC e crítica acadêmica. Claro que estou
falando da área humanística da universidade, e particularmente dos cursos de
Letras. Na área científica e tecnológica encontramos mais seriedade.
A universidade está até mesmo determinando como deve ser feita
a literatura. Há milhares de escritores escrevendo para agradar acadêmicos.
Mais ainda: a universidade preserva em formol autores que há muito deveriam
estar sepultados. Os acadêmicos criaram um mercado artificial, que chamo de
indústria textil - textil assim mesmo, sem acento, a indústria do texto - e só
assim certos defuntos ainda nos chateiam. Machado de Assis é um deles. Duvido
que algum editor apostasse na publicação do Machado se este não fosse leitura
obrigatória de vestibulares e ementas universitárias. Mas Machado até que tem
algum valor, como referência histórica. Que mais não seja, como cronista de sua
época. O pepino são as clarices lispector da vida, as lígias telles, os
guimarães rosas. São elefantes brancos que estariam repousando em paz nos
cemitérios de paquidermes, não fosse a venda forçada imposta pela universidade.
Guimarães Rosa, por exemplo. Todo mundo cita e ninguém lê. Não fosse a pressão
universitária, jamais seria reeditado. Além disso, em Grande Sertões, perdeu
uma excelente oportunidade de escrever o grande romance homossexual brasileiro.
Diadorim era mulher. A família está salva.
Certa vez, em uma palestra na PUC de Porto Alegre, afirmei
mais ou menos isso. Após a palestra, uma professora me procurou. Disse-me
sentir-se gratificada ao ouvir aquilo, pois ela não suportava a Clarice
Lispector, seus alunos abominavam a Clarice Lispector e ela tinha de impor a
Clarice Lispector a seus alunos. O que me espanta em tudo isto é que os universitários
engulam calados estas imposições curriculares, sem nenhum protesto, nenhuma
proposta de mudança de currículo. Há uma indústria estatal no país, títulos que
são impostos à rede escolar por compadrismos dos autores ou herdeiros de
autores junto ao MEC ou universidades. A audácia que se atribui aos jovens é
mero chavão. Os jovens são covardes e, de um modo geral, engolem tudo que se
lhes serve.
Denuncia-se muito a corrupção no governo neste país, mas
ninguém ousa denunciar a corrupção no santo dos santos, a universidade. Lygia
Fagundes Telles, por exemplo, que participou de uma comissão que escolheria 300
títulos a serem comprados pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento da
Educação, teve o desplante de sugerir um livro seu, "Ciranda de Pedra"
para a lista dos trezentos. Do dia para a noite, sua cotação subiu nesta
suspeita bolsa de valores. Segundo a revista Veja, seu passe foi comprado pela
editora Rocco, para a publicação de doze livros, por 500 mil reais. Ora, isto é
corrupção.
Mas nem Machado de Assis escapa?
Quando o Machadinho estava preocupado com o tremendo drama da
Capitu - se ela corneou ou não o marido - Nietzsche estava lutando a tapa
contra Deus, Dostoievski estava discutindo os grandes problemas da condição
humana, o assassinato, o poder, a revolução. Marx (sem entrar em seus méritos
ou deméritos) já havia declarado sua guerra particular à Europa. A impressão
que se tem é que Machado desconhecia esses autores. Ou, se os conhecia,
preferiu ignorá-los. É muito pobre, muito tacanho. Mas Machado não tem culpa do
que mais me irrita nele: é sua circulação forçada nas escolas e universidades.
Sem falar que ele cometeu um pecado que não tem perdão, criou essa associação
de pavões medíocres que se chama Academia Brasileira de Letras.
Essa mediocridade está clara hoje, por sermos totalmente
órfãos de bons textos literários e dramatúrgicos, o que reflete,
principalmente, em nosso cinema, que não tem boas estórias para transpor para
as telas. Na sua opinião, por que isso acontece?
A escassez de bons textos não é só brasileira. É como se a
ficção, a força de multiplicar-se, tivesse se exaurido. O escritor tinha uma
função social importante até o século XIX, até a primeira metade do XX. Era uma
espécie de filósofo, maître-à-penser, o sonhador da comunidade. A indústria
editorial cresceu desmesuradamente e a literatura foi se banalizando. Imprensa,
cinema e televisão foram aos poucos invadindo o território antes ocupado pelo
escritor. Qual a diferença entre um filme e um romance? Do ponto de vista estrutural,
nenhuma. Do ponto de vista prático, no filme há imagens e sons, e além disso
pode ser degustado em menos de duas horas. Em uma época em que as pessoas são
pouco dadas à leitura, isto se reflete na literatura.
Houve época em que escritores promoviam revoluções. Que fez
Marx, que influiu no século passado de ponta a ponta? Marx não fez nada senão
escrever. Mas o mundo mudou. As revoluções hoje são feitas por cientistas e
técnicos em laboratórios. A pílula anticoncepcional foi mais eficaz que milhões
de palavras contra o obscurantismo. O chip de silício aproximou mais os homens
que inflamados discursos em prol da solidariedade.
Pessoalmente, não leio mais ficções. Cansei. O autor leva
muito tempo e muitas páginas querendo criar um clima especial, para então
plantar sua tese. Sei disso porque cometi algumas ficções. Prefiro ensaios, que
são mais diretos, e particularmente ensaios históricos. E adoro essa novela sem
fim nem roteiro, as notícias do mundo que o jornalismo traz. Leio hoje os
jornais com o prazer que um dia li ficções. Há romances para todos os
paladares, sempre segundo a fórmula do antigo folhetim. Desde clássicos antigos
como A Guerra dos Seis Dias, Watergate, A Guerra no Golfo, A Queda do Muro,
Ex-URSS, O Conflito nos Bálcãs, até outros mais contemporâneos como A Guerra no
Iraque, Intifada em Israel, Rio sem Lei, O Presidente Analfabeto. São obras
surpreendentes, que autor algum, por mais imaginoso que seja, ousou conceber.
Para você qual o melhor escritor de todos os tempos?
Pergunta complicada. Dentro do pequeno universo que li, o que
mais me toca é José Hernández, talvez por minhas origens gaúchas. Martín Fierro
é minha bíblia predileta. Quanto me exilei na Suécia no início dos 70
(voluntariamente, bem entendido, afinal ninguém me obrigou a sair do país)
levei no bolso um pequeno exemplar de Fierro. Invejo a capacidade de síntese de
um Renan. É preciso muito talento e obstinação para montar aquele imenso
quebra-cabeça histórico. Invejo também a intuição de Orwell em 1984, a meu ver
a obra mais importante do século passado. Não quero dizer que estes sejam os
melhores escritores de todos os tempos. São apenas os que mais admiro. Ah!
Tenho também de pôr Pessoa nesta cesta básica. Foi o outro autor que levei em
minha bagagem para Estocolmo. Hernández e Pessoa foram os amigos que
reconfortaram naquelas noites brancas, solitárias e geladas de Estocolmo.
Fale um pouco sobre os seus livros e quais as influências
literárias que você teve para escrevê-los; e aonde eles podem ser achados pelos
leitores interessados?
Meu primeiro livro foi um ensaio sobre a Suécia dos anos 70, O
Paraíso Sexual Democrata. Publiquei depois vários livros em papel e eletrônicos
(contos, dois romances, crônicas, ensaios) e traduzi vinte títulos do sueco,
espanhol e francês, entre estes praticamente toda a obra de Ernesto Sábato.
Como as publicações em papel estão todas esgotadas, o leitor pode encontrar os
eletrônicos no E-books Brasil. Dois
romances, Ponche Verde e Laputa. O primeiro é um romance de exílio, dez anos na
vida de um grupo de gaúchos que sai de Porto Alegre e perambula por Estocolmo,
Berlim e Paris. O segundo, as angústias de um professor de Letras em uma ilha
tropical, leia-se Santa Catarina. Mensageiros das Fúrias é minha tese de
doutorado em Letras Francesas e Comparadas na Sorbonne Nouvelle (Paris III).
Nesta tese, em torno às obras de Albert Camus e Ernesto Sábato, há um capítulo
que hoje não assinaria mais, é o capítulo sobre o Che Guevara. Ocorre que Sábato
o tomou como personagem em Abadón, o Exterminador, e faz do assassino frio um
herói generoso e sonhador. Eu endossei a proposta do autor, também tomei Che
como personagem. Hoje, considero que não se pode maquiar impunemente um
personagem histórico. Sábato, tenho hoje de convir, caiu na armadilha do
Terceiromundismo. Foi cúmplice póstumo deste mito que só tem atrasado a América
Latina.
Mais os ensaios Engenheiros de Almas (sobre o stalinismo em
Jorge Amado e Graciliano Ramos), Qorpo Santo de Corpo Inteiro, Ianoblefe
(ensaio jornalístico sobre essa tremenda farsa que foi o massacre de ianomâmis
em 93) e A Indústria Textil, ensaios sobre a corrupção literária e
universitária. Textil assim mesmo, sem acento, a indústria do texto. Em
crônicas, há mais títulos: Crônicas da Guerra Fria, EleCrônicas, Flechas contra
o Tempo, Ressentidos de Todo o Mundo, Uni-vos e o último, A Vitória dos
Intelectuais, compilação de crônicas do ano passado. Minhas crônicas atuais, e
muitas das anteriores, podem ser encontradas no Baguete, Mídia sem mascara, Brazzil.com e Jornaleco.
Influências? Os autores que mais me transformaram, já os
citei. Aos leitores, recomendo minhas últimas crônicas. O jornalismo na Web não
depende de grandes custos em papel, máquinas, distribuição, logo não precisa
bajular o grande público. A liberdade que tenho nos jornais eletrônicos, eu
jamais a teria nos jornais em papel.
Você acha que o nível das nossas universidades melhorou ou
piorou nas últimas quatro décadas? Quais os motivos? Você não acha que está
sendo instituída uma supervalorização do diploma universitário?
Piorou, e piorou terrivelmente. Senti isso quando lecionei
Letras na Universidade Federal de Santa Catarina. No último ano de curso, meus
alunos não dominavam nem mesmo o português. Aí lembrei de meus dias de ginásio,
no Colégio Patrocínio, em Dom Pedrito, pequena cidade gaúcha na fronteira com o
Uruguai, na época com uns 15 mil habitantes. Completei o ginásio aos quatorze
anos, com um português impecável, um excelente francês, um inglês razoável e
arranhando um bom latim. Essa educação, que tive no ginásio, nenhuma
universidade fornece hoje. Basta ler os jornais e ver o resultado. Jornalistas
oriundos até mesmo da prestigiosa ECA já não conseguem conjugar o subjuntivo e
se enredam com os verbos reflexivos. O pronome reflexivo está em vias de
extinção. Urge criarmos uma Sociedade Protetora do Pronome Reflexivo, ou este
pronome desaparece da língua brasileira. Os jornalistas cometem até mesmo erros
crassos, como trocar a letras l (ele) por u. Sauva tua auma, como li certa vez
em uma cruz de uma Igreja no interior.
Certa vez, na Folha de São Paulo, escrevi a palavra “preito”
em um texto-legenda. Escândalo na editoria. Um subeditor veio reclamar que
ninguém conhecia aquela palavra, deveria ser palavra muito antiga. Ora, todas
as palavras são antigas, e a imensa maioria delas são bem mais antigas que nós.
Tenho dezenas dessas histórias. Isso nos dá uma idéia do nível do ensino
universitário hoje.
Quanto à supervalorização do diploma: o papelucho é algo mítico
para o brasileiro. Os mercadores do ensino sabem disso e as faculdades
proliferam como cogumelos após a chuva. Dessa expansão descontrolada decorre o
baixo nível dos cursos. Não há preocupação das universidades na seleção dos
melhores. As universidades querem clientes, e quanto mais clientes melhor.
Agora chegou no Brasil, tardiamente, a moda das cotas. Querem enfiar os negros
à força nas universidades, mesmo quando ineptos para o ensino universitário. Se
a moda pegar, vai piorar ainda mais. Todo brasileiro sabe que um marceneiro ou
mecânico ganha mais do que muito profissional diplomado. Mas há quem prefira
ganhar menos ou mesmo nada, desde que tenha o diploma na parede.
Como você vê a dicotomia entre o grande número de formados que
saem das universidades brasileiras todos os anos com a crescente queda de
oferta de empregos no mercado formal para pessoas qualificadas?
Isto não é difícil de entender. É decorrência do que falei
antes. Ninguém está preocupado com possibilidades no mercado, o que interessa é
o diploma. Em minha cidadezinha, vi gente pobre, pagando o que não podia a
faculdades particulares, para que os filhos tenham um diploma que não servirá
para nada. Diploma é sinal de status no Brasil. Que mais não seja, sempre pode
render um empreguinho público ou mesmo um casamento morganático. Só um setor
tem ganhos garantidos com a expansão descontrolada do ensino superior: os
mercadores de ensino superior. Em minha passagem pelo curso de Letras, vi que o
magistério pode não levar a nada, mas tem suas mordomias nada desprezíveis.
Bolsas no Exterior, congressos literários, intercâmbio universitário. Isto é,
turismo à la farta, boa gastronomia, vida sexual mais diversificada que na
província. Tudo isto às custas do contribuinte. Denunciei amplamente, na imprensa,
esta corrupção na Universidade Federal de Santa Catarina, que eu chamava de
UFSCTUR. Deu em nada. O reitor me processou, mas também não levou nada.
Na sua opinião o que é uma pessoa culta?
Culto, a meu ver, é o homem que conhece história suficientemente
para entender a época em que vive. Também acho que uma pessoa, hoje, para
entender o mundo em torno a si, deve conhecer pelo menos uns dois ou três
idiomas além do vernáculo. Idiomas são janelas abertas para o mundo e viver em
ambientes fechados não é nada salutar. Não se pode admitir que um brasileiro
medianamente culto não entenda espanhol, francês e inglês. Espanhol, porque é
língua irmã, língua do vizinho. Francês, além de ser língua irmã, é a língua
das artes. E inglês, queiramos ou não, é o esperanto que deu certo. Se não
entender estas três línguas, não saiu da aldeia.
Mas qual o incentivo para estudar se você pode virar um
jogador de futebol rico e famoso?
Bom, tens de convir que o jogador de futebol tem vida mais
dura que o intelectual. Transpira mais, faz mais esforço. Mas a fortuna só
bafeja uns poucos. Para cada moleque de favela que sonha ser um Pelé, há
milhares que não chegam sequer a um time de porte médio. A verdade é que o
futebol é um meio de ascensão rápida no Brasil, para quem nasceu pobre. É como
as touradas na Espanha. Ou como os seminários. A grande safra de padres no
Brasil - e provavelmente no mundo todo - depende de famílias pobres, que jogam
os filhos numa escola gratuita e num ofício que lhes dá alguma proeminência social.
Se o objetivo é ser rico e famoso, estudar de pouco vale.
O que você acha desta busca desenfreada nos dias de hoje -
principalmente dos jovens - por alguns valores como fama, poder, corpo
perfeito, riqueza e sexo. Essa busca demasiada de tais valores seria
característica do declínio da nossa civilização? Por que não se cultiva mais a
justiça, lealdade, honra, amor, honestidade e etc., em nossa sociedade?
Começo pela ordem inversa. Sexo é ótimo. Tens algo contra?
Riqueza não é ruim, não. Quem gosta de pobreza são os católicos e marxistas. Eu
adoraria ser rico. Seria pródigo, daria bolsas e viagens às pessoas que
julgasse merecê-las. Bill Gates doa um bilhão de dólares por ano aos países do
Terceiro Mundo. Te confesso que adoraria doar um bilhão de dólares.
Infelizmente, não posso doar nem mil. Corpo perfeito é uma bela idéia, desde
que não seja obsessão. O sedentarismo inerente à cidade deforma o corpo, mas
que fazer? Como dizia Sócrates: a vida no campo é linda, mas os amigos estão em
Atenas. Quanto a poder e fama, bom, são coisas que não me atraem. Para se
chegar ao poder é preciso mentir, bajular a opinião pública. Está aí o Lula.
Para chegar lá, mentiu a vida toda. Mas chegou.
Fama também exige mentir. A idéia de escrever para agradar o
maior número de pessoas possível me horroriza. Daí minha ojeriza a
best-sellers, sejam livros, sejam filmes. Best-seller, por definição, é algo
medíocre. Se o que escrevo não irrita boa parte de meus leitores, em algo devo
ter errado.
Quanto à justiça, todo mundo clama por ela. Tanto o Lalau como
o Fernandinho Beira-Mar se sentem injustiçados. Lealdade é virtude muito cara
aos gaúchos, mas quando falo em gaúchos me refiro àquele ser mítico já extinto,
que um dia habitou Uruguai, Argentina e a Fronteira Oeste gaúcha. Lealdade é
uma virtude camponesa, pouco encontradiça na urbe. Honra? Está fora de moda.
Hoje vale mais saldo bancário, carro importado, roupa de grife. Amor? É um mito
literário que surgiu nos poemas de Safo, de Lesbos, na Grécia, invadiu a Idade
Média e hoje rende milhões de dólares a indústria cinematográfica,
particularmente Hollywood. É talvez o mais lucrativo produto de exportação
ianque. Honestidade? Já encontrei pessoas que me confessaram ter vergonha de
serem tidos como honestos. Passam por panacas. Assim é o mundo em que vivemos.
Não adianta deplorar.
Quem gosta de música, quem precisa de música, acha-a uma
emoção, uma sensação, uma onda de prazer. Você não pode sentir prazer se não se
permitir sentir, principalmente no caso da música erudita - o prazer de um
Mozart, de um Beethoven, tem que penetrar em você suavemente, sem que você
perceba, dando uma sensação de bem estar. Mas é notório que nos últimos vinte
anos - sendo muito otimista -, a música erudita foi marginalizada na nossa
cultura; ninguém quer sequer experimentar tais emoções. Qual a sua opinião
sobre os ramos atuais da música erudita em nossa cultura?
Vou discordar de teus pressupostos. Existe, é claro, essa massa informe que vai
a megashows, curte rock, funk, reggae e barulhos do gênero. Ou essa música
fajuta caipira que de caipira nada tem. São multidões, como multidões são
também os leitores de Paulo Coelho ou Harry Potter. Essa gente não interessa,
são mercado. Mas a música erudita não foi marginalizada, não. Tenta encontrar
um ingresso para uma ópera em Paris, Roma ou Viena. Se não tentares com um mês
de antecedência, só vais encontrar o "assento do ceguinho". Em Nova
York, há duas salas de ópera, lado a lado, com espetáculos diários, eternamente
lotadas. Conheço pessoas que economizam o ano todo para fazer circuitos de
ópera em ópera no Exterior. Concertos de música erudita também são muito
concorridos no mundo todo.
Eu acho espantoso - e reconfortante - que obras de Mozart,
Verdi ou Bizet, escritas há séculos, ainda atraiam multidões. Não só atraiam,
como também comovam. Há momentos em Carmen ou Don Giovanni que até hoje nos
fazem chorar de emoção. A música erudita vem de séculos e tem excelente futuro
pela frente. Considerada a população do planetinha, seus cultores são minoria.
Mas é uma minoria de milhões. Outro dia, tomei um táxi com uma amiga, o taxista
escutava a Carmina Burana. Mal entramos, desligou. Minha amiga chiou: deixa aí.
Ele ficou surpreso, disse que o CD estava sendo um sucesso entre seus
passageiros. Estatisticamente, isto não quer dizer muita coisa. Mas já é algo.
Além disso, o CD e o DVD trouxeram a música erudita para mais
perto de seu público. Hoje, podemos assistir dezenas, centenas de vezes, a uma
ópera de Mozart. Ou as diversas encenações de uma mesma ópera. Mozart não teve
essa chance.
Por que tudo se politizou no Brasil? Ou é da natureza do homem
desde sempre?
Não me parece que o Brasil se tenha politizado. Há setores politizados, isto
sim. O povão gosta mesmo é de futebol, samba, carnaval, novelas da Globo,
Ratinho e Sílvio Santos, Fórmula Um e besteiras do gênero.
O que você acha das medidas do governo Lula? Você acha que
tais iniciativas diferem das do ex-governo FHC? Acredita que até terminar seu
mandato o sr. Luiz Inácio Lula da Silva finalmente cumprirá parte do ideário
socialista de suas propostas iniciais?
Lula começou com uma grande bobagem, o tal de Fome Zero. A meu ver, será este
programa o fator maior de desmoralização de seu governo. É uma idéia de jerico
dar de comer a uma grande massa. Há inúmeros planos assistenciais no Brasil,
desde o governo Fernando Henrique. No ritmo em que vamos, teremos em breve
metade do país trabalhando para sustentar uma outra metade ociosa e
improdutiva. Não se constrói riqueza deste jeito. Esta é a melhor fórmula para
chafurdar eternamente na pobreza.
Lula não está seguindo exatamente ao pé da letra o programa de
Fernando Henrique, está indo além. Fernando Henrique tentou taxar os inativos,
mas acabou desistindo. Para Lula, é uma questão de honra levar a velharada à
miséria. Com o argumento de acabar com aposentadorias milionárias, que são
exceção, quer tascar a mão no bolso de milhões de pessoas que estão longe de
receber aposentadorias milionárias. Não importa se isto ferir um dos pilares
dos regimes democráticos, o direito adquirido. O PT pode ter-se civilizado, mas
dadas suas raízes stalinistas, pouco está ligando para democracia. Quer fazer
caixa rapidamente. Como afirmou o presidente, nem o Congresso nem o Judiciário
irão impedi-lo deste propósito. Só Deus. Quanto ao ideário socialista, ao que
tudo indica, o PT, uma vez no poder, o abandonou. Ainda bem.
Mas o Brasil não está passando por uma revolução comunista aos
moldes de Antonio Gramsci?
Não creio. Se o PT tivesse ascendido ao poder nos anos 80,
quando ainda o urso soviético arrotava e fazia ouvir seu arroto no Terceiro
Mundo, sem dúvida teríamos corrido o risco de virar uma gigantesca Cuba.
Verdade que o socialismo serviu de bandeira para a tomada do poder. Mas, como
dizia Roberto Campos, o poder é como o violino: pega-se com a esquerda e
toca-se com a direita. Derrubado o Muro, desmoronada a União Soviética, não há
mais clima para aventuras socialistas neste mundo contemporâneo. Se os
brasileiros todos estrilam contra um salário mínimo de 75 dólares, não vejo
como reduzir, nos dias atuais, o salário de um médico ou professor
universitário a vinte ou trinta. O paraíso cubano, onde médicos e professores
foram reduzidos a esta condição de miserabilidade, só serve de referência para
militantes idosos, saudosos de suas bandeiras de juventude, e universitários
sem noções da História recente, como o são geralmente os universitários hoje. O
salário de um profissional liberal nos atuais países socialistas e
ex-socialistas, um mendigo diligente o tira em uma semana no Brasil. Tampouco
consigo imaginar os brasileiros se submetendo à tirania de um partido só.
O poder tornou o PT mais pragmático. Um dos últimos movimentos
no mundo a empunhar as bandeiras do obscurantismo hoje é a guerrilha católica
do MST, cujas lideranças cultuam assassinos como Mao, Lênin e Castro como
paradigmas para a sociedade. Há quem desconfie do namoro dos encanecidos
petistas com o regime de Cuba. Árvore velha não se curva, sob risco de quebrar.
Condenar Cuba, para vetustos senhores como José Dirceu, Genoíno, Tarso Genro,
seria algo como negar a própria biografia. O mesmo fenômeno vemos nas
universidades, onde velhos marxistas continuam fiéis à antiga crença. Negá-la
seria o mesmo que afirmar: “eu fui um idiota a vida toda e minha obra não vale
nada”. A um homem já maduro, é preciso muita coragem para tal admissão, e
coragem é moeda rara. O máximo que o PT conseguirá fazer é afundar um pouco
mais o país na pobreza. E daí não passa. Espero.
Quanto ao Gramsci, me parece que atualmente seu maior
divulgador é o Olavo de Carvalho, ao conceder-lhe créditos por esse pensamento
comunizante que ora vige no país todo. Discordo. Não consigo ver a militância
do PT, de Gramsci em punho, tentando encontrar em seus livros a fórmula de
introduzir o comunismo no Brasil. Não é preciso ler Gramsci para concluir que,
dominadas a universidade e a imprensa, tem-se o controle do que pensa a
população. As esquerdas brasileiras são malandras e não precisam de maiores
leituras para saber disso. O Olavo vê o mundo a partir de um prisma filosófico
e pensa que atrás de todo fenômeno social deve existir um pensamento. Ora, não
é bem assim. Basta apanharmos os milhares, talvez dezenas de milhares, de
jovens que se dizem marxistas. Raros, raríssimos, são os que leram Marx. Nessas
doutrinas messiânicas há algo de místico que não apela à razão, mas ao
irracionalismo. De fato, no Brasil le fonds de l'air est rouge, como diziam os
franceses em 68. Daí a estabelecer um regime comunista, vai uma longa
distância. Comunismo significa miséria. Se os brasileiros já acham injusto um
salário mínimo de 75 dólares, imagino que a população jamais aceitaria um
regime onde um médico ganha 20 dólares por mês.
Com a falência do chamado socialismo real, surgiu o neoliberalismo
(sic) como saída política e econômica para as sociedades ocidentais. Esse
modelo, no entanto, já começa a dar sinais de falência. O sr. enxerga uma
terceira via nesse processo ou uma saída inovadora baseada em novos princípios?
Isso de neoliberalismo mais me soa como insulto criado pelas esquerdas para
atacar o poder. Palavras como capitalismo, burguesia, classes dirigentes,
tornaram-se obsoletas com a derrocada do comunismo. Era preciso criar um novo
vocabulário, novos palavrões ideológicos. Conheço pensadores, teóricos e obras
do liberalismo. Do tal de neoliberalismo, não conheço nada. O PT usou muito o
novo palavrão em sua campanha. Agora, ao repetir o programa de Fernando
Henrique, faz boquinha de siri. As sociedades ocidentais encontraram uma boa
saída tanto no capitalismo como nas sociais-democracias, sistemas que aliás em
pouco diferem. Isso de buscar uma terceira via é recurso retórico dos
derrotados da história que não querem admitir que foram derrotados. Os petistas
já andam piscando o olho para a social-democracia, que até bem pouco era
considerada reformismo. Será divertido ver o PT, partido no governo de um país
pobre, sendo aceito pela Segunda Internacional, movimento de países ricos. Será
um vexame, algo como um penetra maltrapilho em baile da corte.
O que é ser um estadista? Você acha que houve algum em nosso
país?
Quem decide quem foi ou não estadista é a História e, no caso brasileiro, esta
senhora parece não ter-se decidido por nome algum. Mas há um grande má vontade,
um propósito veemente de negar a importância dos governantes militares de 64 em
diante. Da mesma forma que Francisco Franco salvou a Espanha - e a Europa, eu
diria - do comunismo, nossos militares salvaram o país desta peste que
contaminou o século passado. Da mesma forma que Franco, foram situados como
vilões. Até o século XIX, os vencedores escreviam a História. Do século XIX em
diante, graças à propaganda soviética, surgiu um fenômeno novo: os derrotados
passaram a escrever a História. Hoje, no Brasil, são cultuados como heróis os
apparatchiks financiados por Moscou, pagos para transformar o país numa tirania
comunista.
Podemos acreditar em um futuro para o nosso país?
Futuro é claro que o país tem, já que não há perspectiva alguma de que amanhã
desapareça do mapa. Como vai ser este futuro? Esta é a pergunta que se impõe.
Não sou nada otimista. Com as favelas se multiplicando, com os ditos moradores
de rua aumentando nas metrópoles, com o tráfico dominando e administrando
comunidades inteiras, com os sedizentes sem-terra invadindo fazendas,
repartições e pedágios, com um governo populista dando - ou pretendendo dar -
comida em vez de trabalho e educação, não consigo ver dias lindos pela frente.
Tenho mais de meio século de existência e neste curto tempo já vi países
escapando à pobreza e levando prosperidade a seus cidadãos. Sem ir mais longe,
aí estão a Irlanda, Espanha e Portugal, que deram um tremendo salto econômico
nas últimas décadas. Se antes forneciam mão-de-obra aos demais países europeus,
hoje têm de fechar fronteiras para escapar aos migrantes da África, Ásia e
Leste europeu. O Brasil marcha em ritmo de ganso: um passo, uma cagada. Vivi na
Europa e viajo seguidamente para lá. Cada viagem me dói na volta. Vejo países
cada vez mais lindos, organizados e ricos e volto a um país cada vez mais sujo,
bagunçado e pobre.
Qual a sua mensagem para os jornalistas que estão iniciando
sua carreira?
Resumindo: antes de mais nada, aprender português. Depois, ler
História.
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www.ebooksbrasil.org/eLibris/lerjornais.html
Janer Cristaldo
nasceu em 1947, em Santana do Livramento (RS). Formou-se em Direito e
Filosofia no Rio Grande do Sul e doutorou-se em Letras Francesas e ...
www.ebooksbrasil.org/eLibris/racismo.html
Crônicas de Janer Cristaldo, jornalista, advogado, licenciado em filosofia e doutor pela Sorbonne.
www.ebooksbrasil.org/eLibris/intelectuais.html
Janer Cristaldo
nasceu em 1947, em Santana do Livramento (RS). Formou-se em Direito e
Filosofia e doutorou-se em Letras Francesas e Comparadas pela ...
www.ebooksbrasil.org/eLibris/prazeres.html
Sobre os Prazeres da Teologia Janer Cristaldo Imagem da capa. O Jardim das Delícias Terrenas (1504) Hieronymus Bosch (c. 1450-1516) fonte digital
www.ebooksbrasil.org/eLibris/paraisosexual.html
Janer Cristaldo,
jornalista, advogado, licenciado em filosofia e doutor pela Sorbonne,
mostra em O Paraíso Sexual Democrata uma face surpreendente e ...
www.ebooksbrasil.org/adobeebook/rimbaud.pdf
Tradução: Janer Cristaldo. Capa: Rimbaud, aos 17, por Étienne Carjat provavelmente tirada em Dezembro de 1871. Fotografia conservada na BnF.
www.ebooksbrasil.org/eLibris/supremo.html
Crônicas de Janer Cristaldo, jornalista, advogado, licenciado em filosofia e doutor pela Sorbonne.
www.ebooksbrasil.org/eLibris/forcamitos.html
A Força dos Mitos Janer Cristaldo Fonte Digital Documento do Autor jcristaldo@gpmail.com imagem capa. La Maladie d'Antiochus ou Antiochus et Stratonice
www.ebooksbrasil.org/adobeebook/panait.pdf
11 de set de 2013 - Janer Cristaldo. Dominado de ponta a ponta por uma religião laica e assassina, o século passado pode ser denominado como o século ...
www.ebooksbrasil.org/eLibris/mensageirosdasfurias.html
Janer Cristaldo
Título original. Approches d'un thème littéraire: la révolte chez
Albert Camus et Ernesto Sábato Tradução Tania Koetz Capa Editora da
UFSC ...
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