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terça-feira, 14 de setembro de 2010
Livro: Lampreia e sua vida diplomatica
Momentos de uma diplomacia de vitórias e alguns ensinamentos
PorSergio Leo - Brasília
Valor Econômico, 14/09/2010, p. D10
Luiz Felipe Lampreia:
O Brasil e os Ventos do Mundo
Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, 344 págs., R$ 42,90)
Lampreia, sobre a questão nuclear nos anos 1960: "Uma das mais ousadas demonstrações de autonomia do Brasil"
A extensão - cinco décadas - da bem-sucedida carreira diplomática de Luiz Felipe Lampreia já recomendaria leitura atenta de suas memórias. O que Lampreia fez dessa longa carreira e a maneira detalhada e provocativa com que a relata no livro torna a leitura indispensável. Diplomata de uma família de diplomatas, ministro de Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso, Lampreia foi testemunha e ator de momentos cruciais da política externa brasileira, com algumas vitórias no currículo e lições aprendidas que compartilha no livro.
Lampreia começou a carreira na área comercial, em uma época em que a miopia de antigos diplomatas - entre eles, parentes seus - considerava o setor área pouco nobre da diplomacia. Nessa condição, recém-saído do Instituto Rio Branco, participou da primeira Conferência de Comércio e Desenvolvimento das Nações Unidas, a Unctad, quando alimentou "a ideia ingênua de que a união dos países em desenvolvimento nos daria força para mudar a face do comércio internacional".
Lampreia conta como foram fundamentais para decolagem da Embraer as delicadas negociações para exportar aos Estados Unidos. Relata como assistiu de lugar privilegiado às atribuladas relações entre o governo Ernesto Geisel e Washington. Ele era embaixador em Suriname quando, para evitar uma invasão americana, o Brasil conspirou para segurar no poder o ditador Dersi Bouterse e expulsar diplomatas cubanos que acorriam ao país.
Nas memórias do embaixador estão a diplomacia que viabilizou a construção do gasoduto Bolívia-Brasil e sua atuação como chanceler no encerramento da rodada Uruguai, que criou a Organização Mundial do Comércio e deixou uma agenda inconclusa de liberalização comercial.
Lampreia descreve os bastidores do programa nuclear brasileiro, até a decisão do governo Fernando Henrique Cardoso, sob críticas da oposição, de enterrar as suspeitas contra o Brasil ao assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear - até então rejeitado pelo Itamaraty por causa de seu caráter discriminatório, em favor das potências nuclearizadas.
O relato de cada momento desses é acompanhado de impressões pessoais e dados que contextualizam os eventos. É notável o fato de o diplomata que contornaria as resistências das Forças Armadas em assinar o TNP na década de 1990 ter sido o mesmo que, em Genebra, nos anos 1960, saudou a decisão brasileira de afrontar as pressões dos Estados Unidos e rejeitar o tratado por trazer "obrigações taxativas" para os países não nucleares e "apenas intenções vagas" de redução dos arsenais existentes. "Tomamos uma posição de discordância básica dos Estados Unidos. Era uma das primeiras e mais ousadas demonstrações de autonomia do Brasil."
Nas primeiras páginas, Lampreia faz um resumo da história diplomática do país, incluindo as idas e vindas nas relações Brasil-Estados Unidos até o golpe de 1964. O relato, de qualidade jornalística, permite constatar a recorrente preocupação da diplomacia brasileira em, como recomendava Domício da Gama, evitar buscar nos Estados Unidos conselho ou aprovação para as ações no continente, para não "abrir caminho a pretensões inadmissíveis". Lampreia coloca em destaque o "balizamento" de Domício da Gama para diferenciar-se do que classifica de "antiamericanismo" que nota em "colegas de geração".
A acusação de antiamericanismo, que o diplomata costuma levar ao debate público e é claramente dirigida aos atuais responsáveis pela política externa, não é, porém, acompanhada de explicações ou exemplos muito claros. É difícil descobrir, pela leitura do livro, por que exatamente eram justificadas por critérios racionais as resistências de Lampreia no governo Fernando Henrique à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), impulsionada pelo governo dos Estados Unidas, e constituiria apenas manifestação de "antiamericanismo" a resistência exibida pelos negociadores no governo de Luiz Inácio Lula da Silva em choque com o que o próprio Lampreia define como "relutância" americana a concessões significativas no comércio de produtos agrícolas.
Pessimista em relação às chances de um acordo de livre-comércio entre Mercosul e Estados Unidos ou com a União Europeia, Lampreia afirma, porém, que a Alca foi "uma oportunidade que poderia ter-se aberto, mas que foi perdida" pelo atual governo. Seu resumo da história dá, porém, margem a imprecisões, como a de localizar na reunião ministerial de Miami, em 2003, a ação que bloquearia as negociações, apontando um inexistente "veto" brasileiro e atribuindo aos Estados Unidos a proposta feita pelo governo brasileiro de "Alca em duas etapas" ou dois níveis. Na realidade, o colapso das negociações ocorreu em 2004, em Puebla.
Memória e documento, o livro de Lampreia é, também, uma clara tomada de posição no debate sobre a política externa brasileira, no qual o ex-ministro se destaca como um dos principais críticos à atual gestão do Itamaraty. Não à toa, embora haja elogios à posição alcançada pelo Brasil no campo internacional, é muito negativa a única menção ao atual ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, que, com Lampreia, atuou nos últimos momentos da rodada Uruguai. Amorim aparece apenas na comparação com o Itamaraty do governo Arthur Bernardes, que, em circunstâncias históricas e políticas bem diferente das atuais, tentou desastradamente um papel de protagonista para o Brasil na fracassada Liga das Nações.
A leitura das memórias do embaixador é facilitada e agradável graças à divisão dos capítulos, a princípio cronológica, seguida por pequenos relatos, país a país, da atuação do Itamaraty na gestão Lampreia, e concluída com a avaliação política dos desafios da diplomacia brasileira.
Na segunda seção, Lampreia conta, por exemplo, como agiu durante ameaças à democracia paraguaia e dá razões para as relações do governo com o governo autoritário de Alberto Fujimori, no Peru. Particularmente preciosos são o relato detalhado das negociações entre Peru e Equador, nas quais o Brasil teve papel de mediador bem-sucedido; a lembrança das conversas com Hugo Chávez, em que o presidente venezuelano insistia em aderir a um inexistente "Mercosul político"; a consulta frustrada a Fidel Castro sobre a disposição cubana em negociar o levantamento do embargo americano, feita por Fernando Henrique Cardoso, a pedido de Washington; e os bastidores da criação da OMC, quase implodida pela resistência americana a submeter-se a um organismo multilateral.
O livro termina com uma análise sobre as ações e o futuro da diplomacia atual, em que Lampreia repete muitas de suas críticas à política externa nos últimos anos, em temas como a aproximação ao Irã, o golpe em Honduras, a relação com os vizinhos sul-americanos. A visão do ex-ministro é compartilhada por vozes influentes na política e na diplomacia, embora sujeita a contestações dos que veem na atual política externa uma racionalidade não explicada somente por preconceitos ideológicos. As memórias de Lampreia são as de um homem público preocupado com o interesse nacional: sem cair na tentação do autoelogio vaidoso, levanta discussões e incentiva o debate político.
4 comentários:
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Olá Paulo Roberto!
ResponderExcluirNo relato do livro de Lampreia, você diz que o autor conclui sua obra fazendo uma "avaliação política dos desafios da diplomacia brasileira". Essas avaliações são de um período relativamente recente da política externa brasileira e, sem dúvidas, incentiva o debate político.
Gostaria de saber sua opinião sobre a relação entre memória e diplomacia: o estudo da memória de diplomatas do início do século passado, por exemplo, traria quais benefícios e consequências?
Marilia,
ResponderExcluirVoce nao prestou atencao ao que leu. Eu nao escrevi essa resenha ou análise do livro do Lampreia, que sequer vi, até agora, pois estou no exterior.
Eu postei o artigo do jornalista Sergio Leo, do Valor.
Pretendo ler o livro no final do ano, quando voltar ao Brasil.
Cordialmente,
Paulo Roberto de Almeida
Olá!
ResponderExcluirApesar do meu erro (e obrigada por me chamar a atenção)e, independente de você ter lido o livro, eu ainda gostaria de saber a sua visão a respeito da relação memória e diplomacia. É a sua opinião sobre a importância do estudo de memórias de diplomatas, mesmo daqueles que trabalharam no início da República, por exemplo, e não só dos atuais. É positivo para a sociedade, para os estudiosos apenas, para os diplomatas de carreira...
Poderia me conceder seu ponto de vista?
Obrigada!
Marilia,
ResponderExcluirPara atender expressamente a sua demanda, acabo de escrever pequeno trabalho sobre isso.
Veja em um novo post, no blog.
Paulo Roberto de Almeida