Velhos textos, dos quais estávamos esquecidos, de vez em quando vêem à tona, relembrados por alguém ou por alguma circunstância fortuita.
Este aqui, por exemplo, parece que mereceria continuidade...
A pensar...
Paulo Roberto de Almeida
A parabola de Ícaro
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)
A lenda de Ícaro se refere, obviamente, ao filho de Dédalo, o construtor do labirinto do rei Minos, de Creta, que, ao revelar o segredo do palácio-prisão a Teseu, permitiu que o terrível Minotauro fosse morto. Condenado ao labirinto com seu filho, Dédalo trama a fuga por via aérea, fabricando asas a partir de plumas de pássaros, untadas com cera. O vôo de Ícaro pode ser descrito como uma parabola: atraído pelo esplendor do sol, ele se eleva em demasia no céu, para cair logo em seguida, devido ao derretimento da cera que prendia as plumas de suas asas.
Há muitas maneiras de interpretar o mito de Ícaro e seu vôo para a queda, mas eu prefiro me ater aos perigos do excesso de exposição, que pode colocar em risco qualquer situação aparentemente bem estabelecida. De fato, em várias circunstâncias da vida, encontramos casos de ascensão fulgurante, seguida de uma rápida queda, o que, aliás, corresponde ao movimento da parábola. Mas, ademais dessa acepção matemática, o termo parábola também pode se referir a uma narrativa de fundo moral, geralmente de origem bíblica, denotando um possível ensinamento virtuoso que devemos retirar de alguma adversidade sofrida. Em suma: uma alegoria de valor espiritual e forma racional.
A despeito da tristeza imediata, e dos dissabores ligados a algum desastre não definitivo – o de Ícaro, obviamente, foi irremediável –, devemos sempre retirar lições morais das frustrações que enfrentamos na vida. Com exceção da punição extrema, da qual não há retorno possível, todas as demais situações de “queda” são suscetíveis de nos trazer algum elemento útil na determinação de nossa própria responsabilidade sobre eventuais desastres incorridos. De certa forma, os desastres são ainda mais “úteis” do que os sucessos, uma vez que estes podem ser devidos à obra do acaso, ao passo que aqueles sempre derivam de erros que cometemos em situações de escolhas alternativas. A despeito da literatura de negócios enfatizar, por exemplo, os grandes casos de sucesso empresarial, com lucros extraordinários e desempenho excepcional de mercado, os casos de fracasso são igualmente significativos, se não mais, no exame ponderado de nossas próprias fraquezas estruturais e debilidades circunstanciais. O sucesso pode ser motivo de embriaguez; o fracasso desperta e estimula.
Gostaria de ver na parábola de Ícaro uma lição moral para um exame honesto e sincero de algum comportamento afoito, eventualmente determinado pela presença de um sol momentâneo que brilha à nossa frente, atraindo-nos pelo calor e pela luz, mas que pode se revelar perigoso para nossa própria sobrevivência (não necessariamente física, mas “espiritual”). Ao fim e ao cabo, Ícaro é o exemplo que queremos evitar, mas só nos lembramos de revisar nossos atos e palavras quando somos confrontados à ameaça de algum desastre iminente, ou, o que é pior, no seu imediato seguimento.
Qual foi a ação que determinou nossa queda, qual foi a palavra impensada que nos levou ao desastre, que seqüência de iniciativas ou gestos desastrados nos levaram à derrota ou à simples frustração, que ensinamento retirar da adversidade (que se espera) momentânea? E sempre nos perguntamos: como pudemos ser tão estúpidos? Salvo os espíritos fracos, em geral saimos mais fortalecidos desse tipo de situação, em todo caso mais modestos e humildes do que no começo, dispostos a reiniciar nossa aventura, desta vez desprovidos de excesso de otimismo e armados de algo mais do que plumas e cera. O distanciamento crítico em relação aos fatores de atração e de queda se torna não apenas recomendável como provavelmente necessário, se quisermos retomar nossa liberdade de iniciativa e de ação.
Em definitivo, o impetuoso Ícaro foi vítima de sua própria afoitez e precipitação. Melhor, talvez, ficar com o exemplo de Ulisses, famoso não apenas por sua força, destreza e bravura, amplamente demonstradas na conquista de Tróia, mas sobretudo por sua tenacidade em face dos mais diversos perigos e trapaças da sorte. Com paciência e cálculo inteligente, ele soube arrostar todas as dificuldades e adversidades que lhe foram apresentadas por monstros e sereias, navegando de forma persistente em direção da ilha de Ítaca. Ao chegar, ele ainda teve de enfrentar os vários pretendentes que disputavam sua Penélope. Mas, isso já é motivo para uma outra estória…
Brasília, 26 de outubro de 2004.
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