A política externa brasileira
para o Haiti e a Minustah
Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questões colocadas por pesquisador
da Universidade de Palermo, Argentina
1. Quando o Brasil começou a participar militarmente
da missão de paz no Haiti, tanto o presidente Lula como seu ministro, Celso
Amorim, utilizaram em seus discursos a palavra "solidariedade" para
justificar a intervenção no Haiti. Você acha que a participação brasileira na
MINUSTAH acontece sem outros interesses?
PRA: A palavra
“solidariedade”, ou quaisquer outras justificativas usadas pelo governo
brasileiro em conexão com a decisão brasileira de liderar a missão da ONU no
Haiti, configura uma racionalização a posteriori
de uma decisão essencialmente política, adotada pela cúpula do governo Lula
desde 2004, em função de outros interesses mais concretos do que a simples
“solidariedade” com o Haiti. Essa participação foi vista, em primeiro lugar,
como uma oportunidade para o Brasil realçar seu status internacional, sua
imagem externa, como parte de um projeto de projeção internacional do Brasil,
com vistas ao objetivo mais relevante (para seus promotores) da aceitação do
Brasil como um novo membro permanente do Conselho de Segurança das NU, no caso
de reforma da Carta da ONU e ampliação do CSNU. Obviamente fica mais
‘palatável’ e mais aceitável usar a justificativa da “solidariedade” com o povo
haitiano do que expressar claramente o desejo de ser aceito como candidato “natural”
ao CSNU.
Por outro lado, não se
pode dizer que “o Brasil”, ou seja, o país decidiu participar ou enviar tropas,
pois a ideia jamais foi discutida previamente com a sociedade brasileira ou
negociada com o Congresso, mas adotada como decisão executiva e depois
comunicada ao Congresso (que precisa aprovar o envio de tropas ao exterior). A
decisão sequer foi tomada pelo Itamaraty, ou seja, pelo corpo profissional de
diplomatas, e sim pela alta cúpula do governo, pelo próprio presidente e
assessores mais chegados, entre eles ministros do Palácio do Planalto, o
assessor presidencial para assuntos internacionais e, obviamente, o chanceler,
o mais diretamente interessado na elevação do status do Brasil ao papel de
membro permanente do CSNU. Trata-se, portanto, de uma decisão tomada por um
círculo restrito de pessoas, algumas pertencentes aos establishments
diplomático e militar, outras à cúpula do partido governamental (PT), mas
sempre como decisão pessoal, e voluntarista, jamais como o resultado de uma
avaliação cuidadosa das implicações do gesto ou como adesão obtida ao longo de
um processo de discussão em círculos mais amplos da sociedade. Não se conhece
nenhum estudo prévio colocando o problema e discutindo custos e consequências,
mas obviamente ocorreram trabalhos preliminares, sobretudo no âmbito militar,
examinando os requerimentos dessa participação, mas apenas depois que a decisão
já tinha sido tomada.
2. Alguns acadêmicos consideram que a participação
brasileira no Haiti está motivada por uma série de benefícios, que vão do
militar até o político. Você crê que o Brasil obtém "ganancias" por
participar na missão no Haiti? Sendo assim, quais seriam estas?
PRA: Certamente, e o
realce da imagem do país na comunidade internacional é apenas mais um desses
ganhos concretos. Este era um dos objetivos que motivaram a decisão; pode-se,
assim, dizer que os resultados foram os esperados. Existem vários outros
benefícios dessa participação, que não é de todo inédita (já que o Brasil tem
um histórico de participações em missões de manutenção da paz da ONU), mas
jamais nessa escala, com essa amplitude, em tamanha situação de
responsabilidade política.
Um dos benefícios diretos
– e mesmo indiretos – é a experiência adquirida, tanto no plano diplomático,
como propriamente militar, advinda de uma presença tão importante quanto a
engajada na missão do Haiti, em volume de homens, recursos, esforços de
coordenação nos planos bilateral, regional e multilateral, etc. Os militares
provavelmente ganharam mais experiência até do que os diplomatas, que assistem
a esse tipo de debate nas comissões da ONU de modo mais ou menos contínuo. Ainda
que o terreno seja relativamente limitado à situação de miséria, de ausência de
infraestrutura material e até ausência de governança no seu estado mais simples
(que seria a existência de forças precárias de segurança no terreno, existindo,
além disso completa ausência de meios materiais, de energia ou de quaisquer
outros atributos elementares de um Estado “normal”), a confrontação de
militares e funcionários civis do Brasil a tais tarefas de “nation building”
constitui um “benefício” importante da participação.
Num outro plano, pode-se
dizer que outros setores da sociedade brasileira podem também ser beneficiados,
como, por exemplo, os cidadãos engajados em cooperação internacional e, mais
importante, os fornecedores de bens e equipamentos que foram adquiridos pelas
forças brasileiras e que, eventualmente, serão usados posteriormente pelos
atuais beneficiários da ação brasileira. Não se pode, com efeito, eludir o fato
de que a participação implica a aquisição de volumes expressivos de materiais,
comida, equipamentos diversos, vindos de empresários e prestadores brasileiros.
Mesmo que grande parte disso seja usada pelas próprias forças brasileiras e não
pelo povo haitiano, existem benefícios retirados desse tipo de “compra governamental”.
Quando se fala em
benefícios, uma análise econômica elementar não pode deixar de falar também em
custos, ou efeitos menos positivos de qualquer tipo de ação. Existem custos
diretos e indiretos, entre os quais, os mais importantes são obviamente os
financeiros. A despeito de ser uma missão da ONU, ou seja, financiada
multilateralmente, não resta dúvida que o Brasil, e o orçamento do Exército (e
do Ministério da Defesa), arcam com boa parte dos custos e gastos não cobertos
inteiramente pela ONU. Tanto é assim que o próprio chanceler responsável pela
decisão da presença brasileira no Haiti, Celso Amorim, passou a pregar, uma vez
feito ministro da Defesa, já no presente governo Dilma Rousseff, a retirada do
Brasil. Interpreto isso como simples pressão orçamentária, pois recursos devem
estar faltando para as FFAA no próprio Brasil.
Existem os custos gerais
para a sociedade brasileira, pois os recursos retirados dos orçamentos
militares têm de vir de impostos e despesas que de outra forma seriam dirigidos
a prioridades internas do país, entre elas a redução da pobreza no próprio
Brasil, um país que não é tão pobre quanto o Haiti – de longe e há muito tempo um
Estado falido e completamente incapaz de cuidar do seu próprio povo – mas que tem
muito mais pobres, numericamente falando, do que toda a população do Haiti. Existem
custos políticos, também, e não são apenas os da oposição de esquerda –
latino-americana e de outros países – a uma operação identificada a uma
“invasão imperialista”, mas de vários outros setores que acham que o Haiti está
sendo “controlado” pelos EUA, França e, agora, com a conivência do Brasil, e
que o objetivo de toda essa operação de pacificação se destina a impedir uma
massa de haitianos de emigrar para outros lugares.
3. Segundo você, qual é a relação que existe entre a
participação brasileira na MINUSTAH e a obtenção de um assento permanente no
Conselho de Segurança da ONU?
PRA: A relação, do meu
ponto de vista, é total e direta: a decisão de mandar tropas foi tomada
pensando claramente em que essa presença representaria algo como um “bilhete de
ingresso” no CSNU. Pode ter sido um cálculo mal feito, e ingênuo, mas a conexão
entre a presença e o processo de reforma da Carta da ONU existia claramente na
mente dos decisores governamentais. Talvez se considere que, mesmo que a
reforma não tenha ocorrido agora, o fato dessa presença já coloca o Brasil na
condição de um dos candidatos ‘naturais’ ao CSNU, junto com Japão, Alemanha e
Índia, por acaso os países do G4, com os quais o Brasil se coordena para fins
de reforma da Carta da ONU.
4. Setores acadêmicos criticaram o governo brasileiro
por violar o princípio de não-intervenção em assuntos de terceiros estados,
inscritos no artigo número quatro da Constituição Nacional Brasileira. Você crê
que essa crítica é válida?
PRA: O Brasil, ou melhor,
o governo brasileiro certamente violou esse princípio, e de modo explícito,
várias vezes durante a presidência Lula, mas provavelmente não em relação ao
Haiti, que enfrentava uma situação de caos, de quase falência total do Estado e
do governo legal (de Jean-Bertrand Aristide), quando se decidiu tal ação no
âmbito do CSNU. Pode até ser que o Conselho devesse ter tentado primeiro
trabalhar com o presidente legítimo, antes de afastá-lo do poder, mas o fato é
que ele era uma das fontes de instabilidade, ao atuar de modo claramente
sectário no conflito com forças de oposição. O cenário no Haiti era de quase
caos total, e de muitas mortes provocadas na população civil inocente, à margem
dos enfrentamentos entre forças legalistas e apoiadores de gangues armadas de
oposição ao presidente. O fato é que o governo de Jean-Bertrand Aristide já não
conseguia assegurar condições mínimas de segurança para a população, e por isso
mesmo se houve violação do mesmo princípio no plano multilateral, tal
intervenção se deu em benefício do povo haitiano, não em contraposição a seus
interesses de segurança.
O Brasil, ou o presidente
Lula e membros do seu governo violaram várias vezes o princípio constitucional
da não-intervenção ao terem proclamado várias vezes sua simpatia e total apoio
político a candidatos presidenciais em pleitos de países vizinhos, em ruptura
com velhas tradições diplomáticas brasileiras de não se pronunciar nesse tipo
de evento. A preferência por determinados candidatos foi manifestada de forma
aberta, clara e explicitada por razões políticas e ideológicas (por serem os
candidatos líderes de esquerda, personalidades progressistas ou simplesmente
por serem considerados aliados do governo do Brasil num determinado contexto
político). Isso ocorreu em diversas e repetidas ocasiões em relação a pleitos
presidenciais na Argentina, na Bolívia, no Equador, no Peru, na Venezuela e em
várias outras ocasiões e oportunidades, inclusive mais de uma vez.
A mais grave infração ao
princípio constitucional – e também a tratados em vigor dos quais o Brasil é
parte – ocorreu, porém, no caso de Honduras, onde o governo do Brasil, mais
especificamente de Lula, patrocinou um espetáculo de instabilidade política
incompatível com as tradições diplomáticas e jurídicas do país. Um parlamento
atuante em uma democracia funcional poderia até ter processado o presidente por
crime de responsabilidade política, ou convocado o chanceler para explicações
cabais quanto aos motivos para o descumprimento do preceito constitucional da
não-intervenção. A crítica, portanto, não apenas é válida, como está
demonstrada concretamente em diversos exemplos como os mencionados acima (e
provavelmente vários outros menos conhecidos, sempre em conexão com vínculos
partidários do PT, em total contradição com obrigações constitucionais e
princípios diplomáticos do Brasil).
5. Você considera que, tanto o presidente Lula, como o
Ministério de Relações Exteriores do Brasil, usaram o novo conceito de
"não-indiferença" para legitimar a intervenção no Haiti?
PRA: O conceito de
“não-indiferença” foi expressamente construído, não pelo Ministério das
Relações Exteriores, mas pelo ministro pessoalmente, para “explicar”, a posteriori, ou para justificar, o
envolvimento do Brasil numa série de iniciativas que visavam justamente realçar
a posição do Brasil no cenário internacional, na ausência de maiores motivos
válidos ou legitimadores dessas iniciativas. Tenta-se validar essa noção, como
parte da “responsabilidade” do Brasil em face de problemas em determinados
países, mas o fato é que o Brasil poderia ter atuado por meio da ONU, ou de
outros órgãos intergovernamentais, quando ele preferiu atuar sozinho, para
construir essa imagem de país participante e interessado na resolução de
problemas em vizinhos ou em conexão com eventos fortuitos em lugares distantes.
Em relação especificamente ao Haiti, certamente não havia qualquer sombra desse
conceito no momento em que se tomou a decisão, adotada às pressas e de modo
algo improvisado. Ela não serviu, portanto, para legitimar essa “intervenção”,
senão muito a posteriori, quando a
presença já era um fato consumado.
Paulo Roberto de Almeida (Brasília, 3/11/2011)
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