E não seriam agentes triplos? Os companheiros exibem uma tal sede de enriquecer rapidamente, que não podemos excluir nada, nem mesmo gente que trabalha para três potências ao mesmo tempo (ainda que um ou outra não seja exatamente uma potência, apenas um "amigo" de tempos amargos...).
Paulo Roberto de Almeida
El País, 5/07/2014
Um escândalo com grande potencial destrutivo acaba de estourar em Berlim. Em um momento em que o Governo alemão parecia decidido a virar a página das escutas no celular da chanceler Angela Merkel e recuperar as boas relações com Washington, a detenção de um agente duplo ameaça reavivar os problemas diplomáticos entre as duas potências. A procuradoria federal informou nesta sexta-feira que na quarta passada foi preso um alemão de 31 anos que trabalhava ao mesmo tempo para os serviços secretos de seu país e para os dos Estados Unidos. O paradoxo é que o suposto espião passava informações, entre outros assuntos, sobre as atividades do comitê parlamentar criado precisamente para investigar as escuras realizadas durante anos pela agência de segurança norte-americana.
Pouco depois de a notícia ser divulgada, Berlim reagia com um golpe sobre a mesa. “O Ministério de Relações Exteriores convocou hoje o embaixador dos EUA em Berlim, John Emerson, para manter uma conversação sobre o caso”, publicou o ministério em sua conta oficial do Twitter. O Governo pediu ao embaixador “uma explicação rápida”, acrescentava um porta-voz oficial. Esse passo dado pelo ministério dirigido pelo social-democrata Frank-Walter Steinmeier é menos agressivo que uma hipotética convocação de seu embaixador para consultas, mas constitui de todas as formas um claro sinal da indignação que se apodera de Berlim.
O comitê que investiga as escutas também foi espionado
Merkel foi informada da detenção na quinta-feira, o mesmo dia em que manteve uma conversa telefônica com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Trata-se do mesmo homem que em janeiro se comprometera a não voltar a espionar a chefe do Governo alemão. O porta-voz da chanceler se apressou a tachar o ocorrido como “muito grave”. Ao mesmo tempo, os social-democratas, parceiros do Governo de grande coalizão, exigiram explicações imediatas do que o jornal Süddeutsche Zeitung, de Munique, considerou que poderia ser “o maior escândalo envolvendo um agente duplo depois da Segunda Guerra Mundial”.
O comunicado da procuradoria não dá margem a dúvidas. “Tramitou uma ordem de prisão pela suspeita de que o acusado trabalhava para um serviço de inteligência estrangeiro”, diz. O detido, segundo diversos órgãos da mídia alemã, tinha vendido à Embaixada norte-americana informação procedente da comissão parlamentar que investiga o escândalo das escutas telefônicas levado a cabo pela NSA, a Agência de Segurança Nacional, dos EUA.
O jornal Bild adiantava que o detido atuou como agente duplo durante os últimos dois anos e que poderia ter furtado 218 documentos confidenciais. “O empregado do serviço de inteligência alemão entrou em contato em 2012 com a Embaixada dos Estados Unidos em Berlim para lhe oferecer documentos interessantes”, explica o jornal popular. Em troca desses papéis o jovem alemão teria recebido 25.000 euros (75.200 reais) dos serviços secretos norte-americanos. Ele também entrou em contato com os russos, mas não chegou a fechar um acordo com eles.
O agente vendeu à Embaixada dos EUA 218 documentos furtados
O comitê parlamentar que pode ter sido espionado não quis convocar no mês passado o ex-analista da NSA que vazou informações sobre as escutas norte-americanas, Edward Snowden, para uma audiência no Bundestag. Apesar dos protestos da oposição de verdes e esquerdistas, os partidos da base governista – os democrata-cristãos e social-democratas– desistiram assim de jogar sal na ferida aberta no final do ano passado, quando se descobriu que nem mesmo Merkel estava a salvo da espionagem norte-americana. A decisão de não levar Snowden a Berlim desanuviava a frente política, mas não a judicial. O procurador federal, Harald Range, anunciou em 4 de julho a abertura de uma investigação sobre as escutas. É no marco desse processo que na quarta-feira foi detido o agente alemão que vendia informações sensíveis ao amigo americano.
É cedo para calcular as repercussões que o novo escândalo pode ter nas relações entre Merkel e Obama, dois líderes que nos últimos meses, forçados por crises como a da Ucrânia, haviam recuperado uma comunicação fluida. Pareciam distantes aqueles dias de finais do ano passado nos quais a chanceler, pressionada pela indignação nacional, enviara a Washington uma delegação para exigir explicações. Mas a revelação de que os responsáveis por investigar a espionagem eram por sua vez espionados ameaça voltar a esquentar a situação.
“O Governo alemão vai esperar para conhecer os resultados da investigação. Se for preciso tomar decisões em conformidade, isso será feito, mas por hora será preciso esperar”, respondia ontem o porta-voz de Merkel. Mais direto se mostrava o deputado verde, membro do comitê parlamentar que investiga as escutas, Konstantin von Notz, que recordava que, segundo a Constituição, o Parlamento é o responsável por controlar os serviços de espionagem. “Embora só pela tentativa de alterar esse princípio, essa é uma questão que merece uma dura resposta diplomática”, acrescentava.
Casa Branca se esquiva de comentar a suposta trama
A Casa Branca se esquivou nesta sexta-feira de responder sobre a detenção na Alemanha de um espião que supostamente trabalhava para os Estados Unidos. “Não temos nenhum comentário a fazer”, reagiu por correio eletrônico Caitlin Hayden, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional.
A prisão do duplo agente ameaça tensionar as relações entre ambos os países, deterioradas pelas revelações do último ano sobre a espionagem da NSA (a sigla em inglês da Agência de Segurança Nacional). “Não posso censurá-la por se sentir ofendida”, admitiu há alguns meses o presidente Barack Obama, depois da revelação de que a NSA havia grampeado o telefone da chanceler Angela Merkel. Na quinta-feira Obama e Merkel falaram por telefone. No resumo da conversa apresentado pela Casa Branca não consta a abordagem da prisão do espião nem as escutas da NSA.
A Alemanha vem tentando negociar, sem sucesso, um acordo de não agressão em matéria de espionagem entre ambos os países, semelhante ao que os EUA têm desde a II Guerra Mundial com o Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Esses países mantêm o compromisso de não espionar uns aos outros e de compartilhar informações. O diário The Washington Post revelou esta semana um documento oficial que cita os países nos quais a NSA tem autoridade para espionar. São 193. Somente quatro não figuram na lista: os parceiros de Washington na aliança de espionagem.
Obama reconheceu o dano à confiança mútua causado pelo escândalo da NSA e garantiu que essa agência não espionaria mais a chanceler Merkel nem outros líderes de países amigos. Mas esse compromisso não inclui nem os parceiros de Merkel nem seus ministros nem outros altos funcionários do Governo alemão. A NSA se reserva o direito de continuar agindo em território alemão, do mesmo modo que fazem agências estrangeiras nos EUA.
A espionagem entre amigos é uma realidade assumida pelos EUA e a maioria dos Estados. Nos EUA está preso Jonathan Pollard, um cidadão norte-americano condenado à prisão perpétua em 1987 por espionar para Israel, um dos aliados mais estreitos de Washington. Em outro caso famoso, o Governo francês expulsou em 1995 o chefe da CIA em Paris por espionagem comercial.
Como diz uma velha máxima da espionagem, os serviços secretos não têm amigos: só têm objetivos.
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