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quarta-feira, 19 de junho de 2019

Irã, uma síntese histórica - Carmen Lícia Palazzo

Minha pequena colaboração com o que escrevi sobre o Irã e que também foi parte de um debate do qual participei. Fala-se muito nas atuais discussões entre o Trump e o governo iraniano mas, neste texto, faço uma abordagem mais histórica, que é a minha área.
Nem sempre há concordância entre cientistas políticos, internacionalistas e historiadores sobre temas que todos nós estudamos. É bom somar. Foto minha: cerâmica do período Ilkanida no Irã (peças feitas em torno do ano de 1300). Exposição no Metropolitan Museum de NY.

"IRÃ: reflexões sobre sua história.
Carmen Lícia Palazzo
Poucos países ocupam tanto o imaginário ocidental sobre o Oriente quanto o Irã. Por seu tamanho, por sua diversidade cultural, por sua movimentada história desde a Antiguidade e até por sua posição geográfica a sua presença tem sido sempre muito marcante. Em inúmeros museus tanto europeus quanto norteamericanos a arte iraeniana também está muito presente.

O primeiro aspecto importante a ser considerado quando se fala em Irã é o de que, há pelo menos 2500 anos, a história documenta a existência de uma identidade persa muito forte que não se diluiu na conquista árabe. Quando o império sassânida caiu, no século VII, em 637, não ocorreu, associada às conversões ao Islã, uma arabização  do Irã, que até hoje conserva o idioma persa, marco significativo de continuidade cultural, ainda que adotando o alfabeto árabe.

 A religião muçulmana foi o elo que ligou os povos do Oriente Médio no decorrer de uma conturbada história de invasões, de ascensões e quedas de dinastias e de conflitos tribais que conduziram a períodos de desorganização administrativa. A comunidade de uma mesma crença assumiu, pois, a função de estreitar os laços entre os fiéis, reforçando solidariedades. Mas a nova fé se desenvolveu em meio a referências anteriores, entre elas o zoroastrismo, o judaísmo, o maniqueísmo e o cristianismo.

No caso do Irã, o zoroastrismo deixou marcas profundas e, embora seu surgimento remonte talvez ao século VII ou VI a.C, foi com a dinastia sassânida que seu poder associou-se ao dos monarcas, tornando-se uma força que permeou toda a sociedade iraniana. Em alguns aspectos, o zoroastrismo antecipa o judaísmo, o cristianismo e o islã, pregando a existência de um paraíso que receberá os bons e um inferno para aqueles que se colocarem ao lado do mal. No entanto, para a doutrina de Zoroastro, o Criador (Ahura Mazda) e o Destruidor (Ahriman) detêm igual poder, são forças equiparadas num permanente combate e, neste aspecto, talvez seja possível observar certa semelhança na avassaladora preocupação com o mal na vertente iraniana do xiismo, largamente influenciado também pelo maniqueísmo.

Estas considerações são importantes para mostrar a especificidade iraniana. No século XX, a dinastia Pahlevi, que se auto-atribuiu origens históricas falsas, tinha consciência de que era necessário afirmar-se levando em conta uma cultura milenar e o orgulho persa de suas origens. No entanto, ao buscar a modernização  forçada e imediata, o primeiro xá, Reza, quis também apelar para o nacionalismo, evocando o mito ariano que  pretensamente considerava os indo-europeus superiores a todos os outros povos, demarcando assim o Irã dos demais países do Oriente Médio.
Tanto Reza quanto seu filho e sucessor, Mohamed Reza, buscaram justificativas na história pré-islâmica para seus governos autoritários, afrontando, desta maneira não apenas o clero xiita, mas todo um imaginário que desde o século VII vinha sendo construído da mescla de culturas árabe e persa.

Se o regime do último Xá caiu, sob a Revolução Islâmica, em 1979, devido ao descontentamento geral com os abusos de poder, com a corrupção e com a violência da repressão e da tortura, não seria menos verdade afirmar que o desrespeito a treze séculos de história após a conquista árabe também contribuíram para seu final.

É também evidente, no país, a complexidade de sua cultura e o fato de que se trata de uma sociedade multiétnica. Por mais que alguns governantes, desde o Xá Rezah Pahlevi, tenham procurado enfatizar as características arianas, indo-européias, dos persas, o país é realmente um mosaico de culturas e ainda hoje com forte presença, entre outros, de curdos e de azeris. Para dar uma idéia, cerca de 8 milhões de azeris vivem na República do Azerbaijão, enquanto de 16 a 23 milhões vivem no Irã (as estatísticas não são muito precisas...) No Irã vivem também de muitos judeus, presentes em diversos ramos do comércio. O país tem diversas sinagogas muito ativas.

O Irã é uma República Islâmica Xiita na vertente do xiismo duodécimo, que acredita que o 12º Imã está oculto para retornar no final dos tempos. É evidente que se trata de uma forma de religiosidade milenarista, bastante distinta do sunismo e com forte influência de milenarismos que o antecederam. É dentro deste contexto cultural que o governo se estrutura tendo um Líder Supremo, na verdade, em tradução literal, o Grande Jurista, que foi inicialmente Khomeini (1979-1988) e atualmente é Khamenei (desde1989), e abaixo dele o Presidente da República. É do Líder Supremo que emanam as decisões mais importantes, na medida em que ele seria inspirado pelo Imã oculto. Há também um Conselho dos Guardiães da Constituição, composto por 12 pessoas, teólogos e juristas, encarregadas de supervisionar todo o processo político, com o direito de vetar candidatos que se apresentem para concorrer às eleições. Assim, embora se elejam alguns candidatos reformistas e independentes, esta questão do veto é um sério entrave à existência de eleições efetivamente democráticas.

Outra peça-chave da estrutura do governo iraniano é o grupo da Guarda Revolucionária ou "Pasdaran". A guarda foi criada por Khomeini com o objetivo de unificar diversas milícias e também para fazer contrapeso ao exército, no qual o novo governo não confiava, já que muitos de seus membros haviam sido fiéis ao Xá deposto. Com o tempo, o grupo foi se mostrando extremamente leal à revolução e ao Líder Supremo, recebendo o mais completo e total apoio de Khamenei.
Os "Pasdaran" controlam, entre outros setores da economia, o petróleo, a indústria petroquímica, a indústria automobilística, o setor bancário, a indústria bélica, os laboratórios de pesquisa das universidades, o aeroporto internacional de Teerã e receberam também o encargo de executar todos os projetos de reconstrução do país após a guerra com o Iraque.

A imprensa ocidental, ao falar do Irã, se detém mais em casos específicos de repressão, bastante correntes. No entanto, a maior disputa interna é entre os Pasdaran e os Bazaaris, ou seja os comerciantes tradicionais, que têm perdido espaço e renda para o avassalador avanço dos negócios da Guarda Revolucionária. O governo deve necessariamente levar em conta os interesses majoritários dos Pasdaran em toda e qualquer medida que tome. São interesses econômicos em jogo, muito mais do que ideológicos, o que não impede, é claro, que eles também se considerem defensores da sharia e dos ideais da revolução.
Muitas vezes, no passado,  atribuiu-se importância exagerada aos inflamados discursos de Ahmadinejad cujo poder de manobra é bastante limitado pela presença de outros atores. Seu antecessor, Khatami, um clérigo bastante liberal e reformista, que chegou à presidência com uma expressiva votação, sofreu com as limitações impostas pelo Líder Supremo e pelos "Pasdaran", já que seu raio de ação era bastante limitado. Como a economia, durante seu governo, não apresentou os resultados esperados pela população, Ahmadinejad se lançou com um discurso populista que foi bem recebido pelos eleitores em 2005.
Já em 2009 tudo indicou que houve fraude nas eleições e o segundo mandato de Ahmadinejad não era mais condizente com as aspirações da população.

Tais considerações do ponto de vista da HISTÓRIA mostram a complexidade das relações internas do Irã, uma sociedade de embate entre múltiplos atores com problemas muito graves decorrentes da forte centralização do poder mas que, apesar de tudo, caminha para uma considerável modernização justamente pelo fato de que um destes atores, os "Pasdaran", tem grande interesse no desenvolvimento industrial e na pesquisa tecnológica de ponta.

Para quem se interessar em estudar mais esta questão dos poderes no Irã é interessante lembrar que alguns especialistas iranianos levantam a problemática do papel dos "Pasdaran" em relação ao exército convencional. Há um enorme risco de que o próximo Líder Supremo venha a ser apenas um fantoche nas mãos do grupo. Há também o risco de que, diminuindo muito o papel do exército, os Pasdaran ocupem todos os espaços políticos.
Um dos maiores desafios para o Irã atual é o de resolver seus problemas econômicos.

No que diz respeito às relações do Irã com outros países, raramente se faz alusão a um importante parceiro no  comércio e no intercâmbio tecnológico. Trata-se da Índia, que contribui em muitos aspectos do desenvolvimento da pesquisa no Irã e que recebe uma grande quantidade de estudantes iranianos em suas universidades. Um exemplo interessante é o do cinema iraniano, que tem recebido um grande, imenso apoio da tecnologia indiana.

Não é de hoje que o Irã se pretende um poder regional de maior importância e os discursos também refletem o desejo de hegemonia persa, há séculos resgatado pelos governantes nos momentos de crise.   A invasão americana do Iraque e a queda de Saddam foi altamente favorável ao Irã que agora exerce uma considerável influência entre os xiitas iraquianos, para desespero da Arábia Saudita e dos países do Golfo.

          No que diz respeito ao futuro da sociedade iraniana, independente da posição que o país venha a ocupar no Oriente Médio, é bastante possível se esperar que a modernização avance e as conquistas da sociedade civil  sejam o suficientemente significativas para que ocorram mudanças positivas para a população. Um dado importante para que se possa refletir sobre a modernidade no Irã é o fato de que as mulheres, apesar das limitações impostas pelos aiatolás, são atualmente maioria nas escolas (um pouco mais de 60% nas Universidades) e a taxa de fecundidade feminina caiu de seis filhos para dois. O país, portanto, está apto a alcançar níveis maiores de desenvolvimento, inclusive porque investe na pesquisa científica ( e este é um dado fundamental) e porque não é palco de enfrentamentos inter-religiosos dentro do país, já que é de absoluta maioria xiita.

No caso dos zoroastristas, o governo cedeu, permitindo toda uma série de comemorações que pretendia cercear, como o Nowruz, Ano Novo e o Mehregan, o Festival do Outono, dando-se conta do quanto esta religiosidade estava entranhada na cultura persa. Apesar do discurso extremista e da inegável repressão interna, a sociedade civil iraniana é dinâmica, há movimentos feministas importantes que têm alcançado alguns avanços com relação à posição das mulheres, principalmente no mercado de trabalho, e trata-se, no seu conjunto, de uma sociedade bastante estruturada e preparada para futuras mudanças.
                  O maior desafio é, sem dúvida, a questão das liberdades individuais pois a sociedade está ansiosa por mudanças. É provável que a latente crise econômica e o mais do que evidente excesso de subsídios e de controles por parte do Estado venham a ser o estopim de novas manifestações em um futuro recente, o que poderá acelerar algumas reformas importantes. Com tantos atores e uma estrutura política tão complexa não me parece que no Irã venha a ocorrer uma revolução ou uma guerra civil como o está sendo observado em outros países do Oriente Médio. Todo o contexto é muito distinto. Mas, de qualquer maneira, fazer previsões é sempre um risco pois são muitos os fatores em jogo e muitas as transformações regionais que devem ocorrer nos próximos anos. O que não podemos negar é que quanto mais o governo Trump se mostrar hostil ao Irã e quanto mais o ameaçar, mais ele estará reforçando o poder dos aiatolás. As ameaças externas sempre são boas desculpas para a consolidação dos regimes mais autoritários."

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