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segunda-feira, 23 de março de 2020

Merquior, "O Príncipe dos sonâmbulos", por Martim Vasques da Cunha

José Guilherme Merquior

O príncipe dos sonâmbulos

Martim Vasques da Cunha

Medium, 14 de Março de 2020 

Quem tentou nos salvar dessa situação miserável de Carandiru Intelectual que vivemos nas últimas décadas, mas acabou caindo numa armadilha inesperada, foi José Guilherme Merquior, famoso ensaísta e diplomata, morto aos 49 anos de idade e que faria 79 anos em 2020, um dos desaparecimentos mais tristes que o Brasil já teve. Brilhante e precoce intelectual, a vida de Merquior foi marcada pelo estigma de enfant-terrible, pelo estilo claro na exposição de ideias filosóficas e na análise de obras literárias, passando pela depuração na chamada política liberal. Foi também um polemista incrível, que — apesar de se considerar um discípulo de Antonio Candido — lutou contra uma facção da Universidade de São Paulo (na qual se encontrava Marilena Chauí), mas sem perder a elegância que faltava aos monarcas daquelas bandas. No fim da vida, já alquebrado pela doença, quis realizar um projeto de nação, o último que o país teve, e que falhou por causa de um temor de enfrentar a imprevisibilidade da vida do espírito.
Contudo, ao mesmo tempo que Merquior quis incentivar a inteligência brasileira, pondo-a para funcionar por conta própria, ele acabou sendo, em vida, e depois com a morte prematura, uma de suas vítimas. Mas, antes de analisar-lhe a obra para descobrir qual foi a sua encruzilhada intelectual, temos de retratar o impacto da chegada do garoto-prodígio ao mundo das ideias brasileiras.
Com apenas vinte e um anos de idade, Merquior já tinha publicado vários artigos de crítica literária no suplemento cultural do Jornal do Brasil. Três anos antes do golpe de 1964, ele representava uma nova geração de críticos que substituiria os centauros que foram Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima, Gustavo Corção e Eugenio Gondim. Era impressionante em seus textos a facilidade que tinha para passar da literatura à estética, desta à política, retornando através da filosofia para fazer sua conclusão. Seu estilo era exemplar por não simplificar o tema, discutindo a ideia até o ponto em que se tornasse legível e legítima aos olhos do leitor. Nunca impunha sua visão de mundo, pelo menos não de forma explícita; nesse aspecto, era um diplomata por natureza, e a carreira que seguiu no Itamaraty foi só uma confirmação. Além disso, a grande vantagem de Merquior em relação a seus novos pares, como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, era que ele visava compreender o fenômeno social e estético como um problema, nunca como uma solução.
Isso, no entanto, foi no início da carreira intelectual. Com o passar do tempo, Merquior, apesar do pluralismo e da tolerância com outras ideias, firmou-se no propósito de acreditar numa razão histórica, nitidamente influenciada pelo Iluminismo (era fã de Voltaire, de quem trouxe um pesado busto na primeira viagem que fizera à Europa) e por Hegel, e em que o sentido desta História é imanente a ela. Portanto, era lógico — essa palavra que fascinava tanto Merquior — que este sentido se projetasse num progresso, no qual a liberdade, a democracia e a igualdade tivessem papel fundamental. No meio disso tudo, havia o equilíbrio do Estado. Para ter este desejado progresso, seria necessário elaborar um projeto de nação e para a nação, onde a harmonia estatal traria como consequência a igualdade.
Merquior começou como crítico literário e é em seus ensaios sobre Rainer Maria Rilke, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes que podemos perceber a semente de dois problemas. Primeiro, sua análise da poesia destes autores, reconhecidamente metafísicos (mesmo Drummond, na fase que vai de A Rosa do Povo a Claro Enigma, mostra que a desordem política é também uma desordem da alma), não aborda o problema religioso com profundidade. Para ele, a transcendência está no aspecto estético da obra, cuja forma se harmoniza com o conteúdo. Dessa maneira, Merquior já dá amostras de seu futuro namoro com o estruturalismo, ao qual vai se filiar, mesmo que de forma independente, por causa de seu futuro professor, Claude Lévi-Strauss. O segundo problema é sua completa falta de consciência das falhas do seu próprio racionalismo que surgiam nas entrelinhas de suas análises. Ao destrinchar Elegias de Duíno, de Rilke, Merquior aceita o mistério que envolve a obra, mas arrisca-se a explicá-lo por meio de sua forma artística, que fundamentaria o seu conteúdo.
A grande virtude do amor de Merquior pelas ideias é que ele não suportava desonestidade intelectual. É este mesmo amor que o levava a não considerar a poesia como a linguagem mais profunda que existe para representar a vida do espírito, limitando-a somente a um fenômeno estético. Seu amigo José Mário Pereira conta em seu relato memorialístico que Merquior ia à Igreja da Candelária, no Rio, e apreciava a arquitetura e as pinturas exibidas, com olhar extasiado pela beleza, apesar de, provavelmente, se questionar em seu íntimo sobre os aspectos religiosos.[1]
Infelizmente, isto não fica evidente em sua obra. Merquior tinha pavor de quem se opusesse a sua razão histórica e estética. Os títulos de seus dois primeiros livros demonstram isso: Razão do Poema e A Astúcia da Mímese, este último, inspirado na famosa expressão “astúcia da razão” de Hegel, um homem que entendia bem deste assunto. Quem quisesse colocar o insólito no debate intelectual, como o instinto, experiências transcendentais ou transfiguradoras, Merquior não hesitava em dar um peteleco e catalogar o sujeito de “irracional”, como se a razão em que acreditava fosse a única que prestasse.
Ainda assim, era capaz de lançar luzes sobre assuntos que ninguém tinha coragem de enfrentar. A crítica literária de Merquior é recheada desses momentos brilhantes. Seus ensaios sobre Drummond e João Cabral figuram entre os melhores da fortuna crítica destes autores. A visão em torno de Machado de Assis é a melhor introdução aos estudos literários de Antonio Candido, Raymundo Faoro, Jonh Gledson e Roberto Schwartz. Sua admiração por Robert Musil era exasperante, chegando ao ponto em que ele preteria Eliot justamente por causa de seu “pensamento irracional”.
Mas o que deixa o leitor aturdido é que Merquior via a cultura como um todo orgânico que tinha suas metamorfoses e nunca se petrificava em sistema ideológico. Foi isso que o salvou da influência marxista, já que, para ele, Marx havia reduzido todo o sentido da História a uma luta de classes que terminava em ditadura, não em liberdade. Desde o início, tinha uma visão democrática do processo histórico, e foi esta visão que o botou numa série de suspeitas no Itamaraty: seria ou não um esquerdista? É certo que Merquior ajudou numa exposição de fotografia cubana, mantinha correspondência intensa com Leandro Konder (de quem era amigo desde os vinte anos) e depois teria contato frequente com Darcy Ribeiro. Ironicamente, sua política de boas relações com a esquerda foi curiosamente manipulada pelos próprios esquerdistas, que afirmaram que ele era “reacionário”, “cabeça da ditadura” e, talvez o golpe mais sujo, “guru de Fernando Collor”.[2]
Merquior suportava a esquerda porque, desde o início de sua carreira, sabia que ela teria um papel importante em seu projeto sócio-liberal. Numa carta ao então presidente José Sarney, citada por José Mário Pereira, ele comenta que “Cuba não oferece maiores perigos na América do Sul”, por isso deveriam reatar relações com o governo de Fidel Castro, como um “gesto de grande charme para a esquerda”. “Eles ficariam meio ano digerindo este pitéu, obrigados a achar que ‘pô, esse Sarney não é assim tão reaça…’”. Numa outra carta, também endereçada a Sarney, Merquior escreve: “Temos que servir certos gestos simpáticos à esquerda, embora — ça va sans dire — sem comprometer a linha moderada, social-liberal, que presidiu a nova república. Uma ‘apertura a sinistra‘, sem exagero”.[3]
É por trechos como esse que percebemos como um homem inteligente pode errar miseravelmente. Merquior dava de bandeja o poder àqueles que, durante anos, reclamaram de perseguições e exílios. A pergunta que não quer calar era: sabia ele que este seria o fim de uma ordem política no Brasil? O que fica patente nos escritos de Merquior, quer sobre política quer sobre literatura, é sua ingenuidade. Ele não era malicioso; antes, acreditava piamente que seu projeto sócio-liberal ajudaria o Brasil a recuperar os rumos da democracia após vinte anos de ditadura militar — mesmo que tivesse que contorcer suas crenças ideológicas para que o seu projeto de poder desse certo.
O nó górdio da questão em torno do “fenômeno Merquior” é que ele analisava tudo sob o dogma da complexidade social. Assim, ficava praticamente míope ao fundo maior dos problemas que apresentavam seus estudos sobre ideologia e simbolismo. Seu mergulho no mar parava ao deparar-se com os corais — e ele não tinha coragem de ir adiante. Há em seus textos o medo secreto de tornar-se consciente dos problemas do espírito. Isso fica claro em sua análise sobre a ideologia, em que usa a metáfora brilhante do véu e da máscara. O véu cobria a visão de quem fazia e atuava nos interesses de determinada ideologia; a máscara era a face de quem via de fora e percebia o efeito nocivo dos dogmas ideológicos.[4] Para Merquior, no entanto, o véu e a máscara se tornaram um muro que o protegia dos seus dogmas do temor do irracional e do místico. Observem o que ele escreve sobre Jung:
Quanto a Jung, o cabeça de um renascimento romântico na teoria dos símbolos, seu rompimento com Freud deve ser encarado como um gesto essencialmente pré e não pós-freudiano. A despeito do valor heurístico limitado, mas real, da fantasia arquetípica, [Philip] Rieff mostra a verdade de modo contundente ao nos convidar a olhar para Jung como um estudioso fundamentalmente reacionário, em cuja obra a erudição teológica protestante, numa lamentável inversão, passa a atacar o que antes fora seu orgulhoso incentivo: o racionalismo crítico. A atitude cúltica de Jung para com a religião e com a cultura, sua “sabedoria” balsâmica, sua prosa tipo sábio e seu furor anticiência não forma mais do que os derradeiros arrebóis do “humanismo literário em sua forma mais vingativa” — e, como tal, algo que mais merece ser desmascarado do que louvado. De qualquer modo, o homem que escreveu tantos estudos eruditos sobre um conjunto tão vasto de símbolos e de suas transformações (bem como sobre os símbolos de transformação) encarava de fato o simbolismo como força sagrada, não como objeto de estudo crítico. Por isso, é mais do que conveniente aceitar o que ele diz e procurar alhures por princípios, e não simples pistas, de descoberta e explicação de questões simbólicas.[5]
Claro que a teoria jungiana tem suas falhas, mas Merquior fala mais neste trecho sobre o que o assusta do que propriamente do que ele defende. Seu maior medo é a via simbólica se infiltrando na sua amada razão, e assim ele vê os símbolos como um objeto crítico, apenas em seu sentido relativo, esquecendo-se do absoluto e do seu contato entre o humano e o divino. Além disso, critica Jung por seu “furor anticiência”, o que não corresponde aos fatos, pois o suíço foi o primeiro a procurar o físico Wolfgang Pauli para elaborar sua teoria da sincronicidade, além de trocar cartas com outros cientistas sobre os mais variados assuntos.[6]
Esta foi só uma amostra dos temores de Merquior. No entanto, não se pode duvidar de que Merquior sempre foi um crítico cultural que atendia corretamente à sua própria definição, explicitada no livro As Ideias e as Formas (título que, por si só, é uma profissão de fé no estruturalismo): “um ensaísta que analisa, de maneira original, no todo ou na parte, a cultura em que vive”.[7] Infelizmente, ficou apenas na parte — o todo foi deixado para trás, ou pior, o todo ficou nas mãos do fenômeno social.
É aqui que tudo se complica. O projeto socioliberal de Merquior, elaborado durante doze anos de estudos, ensaios e discussões com políticos, é um equívoco do começo ao fim porque parte de uma doença comum aos intelectuais daquele tempo: a divinização da História. No ensaio “A Regeneração da Dialética”, publicado no livro O Argumento Liberal, apesar de analisar a obra de Gerd Bornheim, e compará-la com Experiência e Cultura, de Miguel Reale, Merquior faz um elogio subliminar a Hegel. Era óbvio que mais cedo ou mais tarde isso acabaria acontecendo. Assim como acreditava Sérgio Buarque de Holanda, a busca de um sentido dentro da própria História levaria a crer que a história da salvação humana dependia de ninguém menos que do próprio homem. Não existe neste raciocínio a possibilidade de uma intervenção divina ou da graça — algo inviável para os padrões iluministas de Merquior. Leitor voraz de Kant, acreditava que o sentido da História era imanente — e a transcendência não passava de mera “irracionalidade”.
Isso termina na religião civil do Estado — ou, na visão ingênua de Merquior, em seu “equilíbrio social”. Ao comentar que a consciência humana, com Descartes e Hegel, tornou-se à parte de toda a interação do mundo, Merquior escreve que
Hegel fez do cogito não só um primeiro princípio, como um Todo — uma totalidade das totalidades, uma unidade absoluta. Simultaneamente, tentando escapar às dificuldades do platonismo e da metafísica cristã no tocante à justificação do finito, fez do seu Espírito absoluto algo autossuficiente, porém não atualizado. O Espírito hegeliano só se atualiza em todas as suas possibilidades ao fim de um longo processo: nesse processo, como “substância que é sujeito”, o Espírito se torna progressivamente objeto.[8]
Não se trata apenas uma maneira de demonstrar admiração por Hegel. Merquior está devidamente fascinado pelo idealismo alemão, acreditando que a consciência humana só se concretiza dentro de um longo processo histórico que, inevitavelmente, terminará no progresso e no equilíbrio das instituições.
O Espírito — um “eu que é nós”, no dizer de Hegel — é Deus, mas corresponde à consciência histórica do gênero humano […]. Hegel teria sido um criptoofita, um adepto clandestino da seita que, no paleocristianismo, adorou a Serpente como veículo da divinização do homem. O tema gnóstico da alienação positiva exalta o humano, por meio da identidade entre o Espírito e a consciência histórica; o tema gnóstico da retirada de Deus o glorifica ainda mais, pois confia ao homem a própria tarefa de redenção.[9]
Retira-se qualquer possibilidade de existência da graça divina neste raciocínio. Com a consciência humana abandonada por seu Absoluto — já que Deus se retirou deste mundo –, o que lhe resta é acreditar na razão que, como faz Merquior citando seu mestre polonês Leszek Kolakowski, “tem de ser ‘capaz de compreender a realidade como gestação da razão’”.[10] É a ideia de uma ideia, dentro de uma outra ideia — e, obviamente, isso não vai terminar bem.
Merquior insiste no erro como se estivesse amando o método do hábito. “Assim, a consciência que apreende o real sabe que esse ato de apreensão é parte, e parte motriz, da realidade”,[11] escreve. Não há mais o choque entre a apreensão da realidade e a realidade em si; a luta foi preterida para um dos lados, o que é sempre prejudicial quando se trata da abertura amorosa da alma. É então que vem a conclusão:
Talvez seja possível resumir a questão dizendo que, na dialética do Espírito progressivamente autoalienante (Espírito objetivo), até a reinteriorização-síntese que coroa todo o processo histórico-teológico (Espírito-absoluto), a filosofia, órgão supremo da conscientização da odisseia do Espírito, não pensa tanto sobre o mundo quanto pensa o mundo.[12]
O pensamento que deveria refletir sobre o mundo se torna o próprio mundo. A razão vence tudo, segundo Merquior. E, como o fim último de todo este processo histórico culmina com o Estado, seria coerente com seus propósitos iluministas esboçar um projeto nacional para um país que nunca teve uma visão adequada deste último. Merquior explica qual seria esta visão em seu livro A Natureza do Processo:
[A] consciência histórica deve ensinar-lhe a recusar juntamente ambas as falácias: a estadólatra e a estadófoba. Bobbio resumiu muito bem o problema ao advertir que o estado liberal não deve ser nem um mero guarda de trânsito, como preferem os neoliberais, nem um general, como pretendem os dirigistas “à outrance”. O guarda de trânsito se limitaria a tentar prevenir acidentes e trombadas no tráfico volumoso do desenvolvimento econômico e social contemporâneo, a que o estado — e o estado democrático, por definição — não pode ser indiferente. O general tentaria ordenar todas as ações da sociedade a partir de decisões tomadas exclusivamente por ele. No primeiro caso, a sociedade engoliria o estado; no segundo, o estado deglutiria a sociedade. Ora, na lição da história, a relação profunda entre os dois não é de contradição antagônica, e sim de implicação mútua.[13]
Sua visão equilibrada do Estado é uma doce idealização. Merquior parece se esquecer da sua natureza expansionista, em que, para preservar a natureza secreta do poder, se desdobra em inúmeros tentáculos de maneira tão sutil que o ataque à alma individual se torna imperceptível. “O Estado, no Brasil, não deve se omitir, nem precisa se demitir”, continua ele, “basta que não seja um estado comandado por petrograndistas e ocupado por novos emboabas”.[14] Para seu azar, ele foi justamente pregar este novo Estado no governo de Fernando Collor, repleto de emboabas.
Collor era um homem que se achava inteligente e acreditava que deveria se cercar de pessoas inteligentes, entre elas José Guilherme Merquior. No entanto, eram sujeitos que usavam o dom da inteligência para o proveito próprio. Merquior foi um dos poucos que realmente acreditavam que seu projeto daria certo porque era para o bem da nação. Foi ele quem escreveu o discurso de posse de Collor. “O principal redator do discurso de posse foi sem dúvida José Guilherme Merquior”, disse o embaixador e ex-ministro Marcílio Marques Moreira em seu livro-depoimento Diplomacia, Política e Finanças. Explica Moreira:
Gelson (Fonseca, embaixador) deu mais a forma, e Merquior, a substância. De Washington o presidente foi para o Japão e depois para a Europa, e ali se encontrou longamente em Paris, com Merquior, que era embaixador na Unesco. Depois, Merquior foi chamado ao Brasil. O presidente chamou também Vargas Llosa para conversar, porque ele era candidato no Peru, e até certo ponto os dois comungavam as mesmas ideias. Merquior participou da conversa. Ele me reportava tudo, infelizmente até o leito da morte.[15]
O encontro de Collor com Merquior e Vargas Llosa tem um relato mais detalhado no texto de José Mário Pereira. Cogitava-se a possibilidade do Ministério de Relações Exteriores para o jovem diplomata. Quem também estava presente no almoço era Roberto Marinho, que disse a Pereira:
Não tive oportunidade de conversar sozinho com o Collor. Aliás, tenho pouca intimidade com ele, apesar de conhecê-lo desde pequeno. Mas o Merquior foi prestigiadíssimo no almoço. A toda hora o presidente reportava-se a ele. Pediu-lhe, inclusive, que fizesse o discurso de saudação a Vargas Llosa.[16]
A nomeação para o ministério desejado não sairia (foi convidado para ser ministro da Cultura, mas recusou alegando que prejudicaria seus rendimentos), mas Merquior não guardou rancores de Collor. Fez mais dois discursos para o presidente, e voltou às suas funções na Unesco. Mesmo com o aparente rompimento de suas ideias em relação ao Plano Collor — uma verdadeira intervenção estatal digna da URSS — o prestígio de Merquior perdurou mesmo após sua morte, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso para a presidência. FHC defenderia o papel de Estado que Merquior via como “equilibrado” — e hoje o PT se apropria da mesma retórica da social-democracia obscurantista para legitimar o aparelhamento ideológico das instituições a serviço do mito da “revolução permanente”.
Mas qual seria a causa de tamanho equívoco, alarmante para alguém que possuía uma lucidez intelectual peculiar sobre a cultura do país? “Merquior foi a mente mais brilhante da minha geração”, disse certa vez Bruno Tolentino numa de suas palestras, “mas seu grande problema era que ele evitava a qualquer custo refletir sobre o problema da morte”. Segundo Tolentino, Merquior não enfrentava a morte e, quando soube de sua doença, seu reconhecido “estoicismo” era uma forma de fazer da situação uma espécie de “conta-gotas”. Ele explicita esta relação nos dois primeiros sonetos do ciclo de “A Indesejada”, publicado no livro Os deuses de hoje:
Penso em José Guilherme Merquior
como o deixei certa vez em Paris:
melancólico e ativo, um chafariz
de noções lapidares, do melhor
que até então lhe ouvira. O monitor
de ideias transformado em aprendiz
tardio e prematuro de uma dor
sem sentido, remédio ou cicatriz.
O embaixador na última audiência,
curvado sem querer na reverência
mais inútil que fez… José Guilherme
que eu mandei passear e dei ao verme
sem dar-me conta! Como dói a ausência
que lhe impus quando mais queria ver-me!
2.
Ninguém pensou menos na morte, creio,
do que aquele gnomo; mais ninguém,
que eu saiba, conseguiu passar tão bem,
tão distraído, no lugar mais feio
da esplêndida viagem: seu passeio,
rápido, sem paradas como um trem
direto, iria longe, mais além
dir-se-ia que não. Observei-o
mais de uma vez às voltas com alguém,
algum pobre-diabo a que o recheio
apodrecia, e vi-o sempre alheio,
sem compartir-lhe o drama, sem receio
de que a sorte o tratasse assim também.
Que o castigasse à hora do recreio. [17]
A tragédia de José Guilherme Merquior é que ele nem sequer teve tempo de rever suas ideias para, algum dia, reelaborá-las sob outro prisma, sem o muro do racionalismo. Praticou a mesma traição dos intelectuais que Antonio Candido e seus asseclas cometeram na cultura brasileira, trocando a preocupação das coisas perenes pelas paixões políticas. A ausência de preocupação dos problemas do espírito, substituindo-os pelo dogma da razão e da História, levou-o a uma encruzilhada que quase o aproximou de uma nova variação do ódio organizado, mesmo que fosse um ódio com toques de esnobismo. Seus ideais socioliberais influenciaram os burocratas e os revolucionários do poder que comandam este país e, se suas intenções eram as melhores, nunca saberemos, pois as consequências levaram o Brasil a uma crise espiritual sem precedentes.
É isso o que acontece quando uma sociedade inteira se enamora do fetichismo do conceito: o sistema ideal acaba matando o mistério da realidade. O Estado mínimo é um mal necessário, e o que o indivíduo tem de fazer é vigiá-lo com todas as armas de sua consciência, pronto para aceitar os enigmas da vida que a razão iluminista não consegue explicar. Os verdadeiros problemas que a existência apresenta são insolúveis, e não são em hipótese nenhuma a representação de um fenômeno social, por mais complexo que este possa ser. E, se são insolúveis, a única coisa que se pode fazer é tratá-los com carinho, nunca como se fosse um combate em que um sonho soluciona tudo. Quem caça a realidade acaba sendo caçado por ela.
Entretanto, o caso de José Guilherme Merquior deve servir de exemplo. Era um homem digno, brilhante, mas que se deixou levar por seu próprio medo e se tornou o príncipe dos sonâmbulos. Ao querer evitar a disseminação da estupidez institucionalizada, sem saber acabou levando o Brasil para o Carandiru intelectual em que se encontra agora. Sua morte prematura é a prova de que podemos cair nos mesmos erros porque também somos humanos, e também temos medo do inexplicável e do irracional — da realidade implacável que deixa tudo para o verme. Sem dúvida, o melhor para nós seria o hábito da História e a preguiça do Estado. Contudo, é nos tempos de crise que, entre as trevas, aparecem os primeiros lampejos de luz. A escuridão está aí, densa e compacta, mas devemos estudar a trajetória de Merquior para que nossa consciência não caia na mesma alucinação, e assim não sermos dominados pelo medo, pela inveja e pelo ressentimento.

Notas: 
[1] José Mário Pereira, “O fenômeno Merquior”. Texto publicado em novembro de 2001, em: http://www.olavodecarvalho.org/convidados/0122.htm. Acessado em 15 de fevereiro de 2015. Também editado em: José Mário Pereira, “O fenômeno Merquior”. In: José Guilherme Merquior, Verso Universo em Drummond. Trad. Marly de Oliveira. 3ª ed. São Paulo, É Realizações, 2012, p. 327–61.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.
[4] José Guilherme Merquior, O véu e a máscara. São Paulo: T. A. Queiroz, 1998, p. 2 e 28.
[5] José Guilherme Merquior, , O véu e a máscara. São Paulo: T. A. Queiroz, 1998, , p. 108.
[6] Ver o seguinte livro sobre a relação de Jung e Pauli: Arthur I. Miller, 137 — Jung, Pauli, and the pursuit of a scientific obsession. Nova York: Norton&Company, 2009.
[7] José Guilherme Merquior, As ideias e as formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 17.
[8] José Guilherme Merquior, O argumento liberal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 61–62. [Você poderia confirmar a paginação, Martim?].
[9] Ibidem, p. 64–65.
[10] Ibidem, p.65.
[11] Ibidem, p. 65.
[12] Ibidem, p.65.
[13] José Guilherme Merquior, A Natureza do Processo. Rio de Janeiro: Noiva Fronteira, 1982, p. 142–43.
[14] Ibidem, , p. 147.
[15] Marcílio Marques Moreira, Diplomacia, Política e Finanças. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p.231.
[16] José Mario Pereira, op. cit., p. 346. E também em: http://www.olavodecarvalho.org/convidados/
0122.htm.
[17] Bruno Tolentino, Os deuses de hoje. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 117.
[Excerto de A Poeira da Glória — págs. 548–560]

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