sexta-feira, 24 de abril de 2020

O casamento inevitável entre Brasil e China no agronegócio - Marcos Jank (Valor)

O casamento inevitável entre Brasil e China no agronegócio

Jornal “Valor Econômico”, Suplemento Eu & Fim de Semana, 24/04/2020.

Marcos Sawaya Jank*

Ao atacar os chineses com falácias e teorias conspiratórias, o país pode alvejar um dos setores centrais para a saída da recessão que se apresenta.

“Para cruzar um rio, é preciso sentir cada pedra” - Deng Xiaoping

O magnífico ensaio “O que o Brasil quer da China?” de Philip Yang, publicado no Valor, mostra com precisão e incrível profundidade porque em apenas quatro décadas a China deslanchou, enquanto o Brasil manteve um crescimento pífio. Na sequência, Rubens RicuperoTiago CavalcantiRoberto Giannetti e Marcos Caramuru trouxeram diferentes facetas que complementam a explicação sobre o desenvolvimento desigual dos dois países.

O Brasil se tornou globalmente competitivo em agricultura e alimentos em boa parte graças à demanda chinesa. Se o Brasil não sabe bem o que quer da China, o setor privado do agronegócio entende perfeitamente que o seu futuro está umbilicalmente ligado ao gigante asiático.

Essa relação tem grande importância num momento em que figuras importantes do Executivo e do Legislativo brasileiro, em vez de se esforçarem para reduzir os efeitos econômicos e viróticos da pandemia, optam por criar um pandemônio desnecessário com a China. Ao atacarem a China com falácias e teorias conspiratórias, essas pessoas podem estar alvejando um dos setores mais centrais para que o país saia da recessão que se avizinha.

Brasil e China estão entre os quatro maiores produtores e exportadores mundiais de produtos agropecuários e alimentos. China e Hong Kong ocupam, juntos, a primeira posição no ranking das importações mundiais do agronegócio. São, também, o destino principal das nossas exportações neste setor (US$ 34 bilhões ao ano, ou 33% do total exportado), com um volume de exportações quatro vezes superior ao dirigido para os Estados Unidos.

O Brasil é o principal fornecedor de produtos agroalimentares para a China, respondendo por quase 20% das importações daquele país. A China responderá por um quarto do aumento do consumo de proteínas animais do mundo até 2030. Por isso, não é para menos que a China se tornou uma das principais fontes de investimento estrangeiro no agronegócio brasileiro.

A recente guerra comercial levou a China a elevar as suas tarifas de importação sobre produtos americanos. Em 2018/19 houve ainda a eclosão de uma terrível epidemia de peste suína africana, que dizimou quase metade do rebanho suíno chinês. Tais fatores fizeram com que as exportações brasileiras de algodão e carnes avícolas e bovinas disparassem, tornando o Brasil o principal supridor da China nesses produtos, além de liderar as exportações de soja em grãos.

O fato é que uma parcela significativa da oferta brasileira de produtos agropecuários e alimentos está “casada” com a demanda chinesa, sendo que não há cônjuge alternativo no mercado. Trata-se de um “casamento inevitável”, queiramos ou não, e ainda mais em tempos de Coronavirus, que desestabilizou o abastecimento doméstico chinês.

Para ficar bem claro aos sinofóbicos: os Estados Unidos não são alternativa de casamento para o agro brasileiro, mas sim um “noivo” concorrente e poderoso, turbinado por subsídios na veia de quase US$ 50 bilhões, se somarmos os dois pacotes de apoio que os agricultores americanos receberam para compensar a guerra comercial e a crise da Covid-19.

É interessante notar que o Brasil e a China reformaram profundamente os seus setores de agricultura e alimentos a partir dos anos 1970. Deng Xiaoping liderou o maior movimento de migração da história, no qual cerca de 300 milhões de chineses deixaram o campo para atender a imensa demanda de mão-de-obra da sua indústria manufatureira, que se integrava às cadeias globais de valor.

Esse movimento do governo chinês permitiu a modernização de parte da agricultura chinesa, com destaque para os setores de frutas, legumes e verduras e, mais recentemente, a explosão da chamada Agricultura 5.0, com seus drones, estufas, tecnologias digitais etc. Ao mesmo tempo, a China identifica a impossibilidade de atingir a autossuficiência em alguns setores e abre, de forma pontual e pragmática, o seu mercado doméstico para importações de grãos de soja, celulose, algodão e carnes.

Em paralelo, os anos 1970 no Brasil marcam o início do movimento de “tropicalização da agricultura” em direção aos cerrados do centro-oeste. Do lado da tecnologia, vieram novas variedades, correção de solos, plantio direto, duas safras no mesmo ano agrícola e o incrível fenômeno da integração lavoura-pecuária. Do lado das pessoas, uma nova geração de agricultores jovens, dinâmicos, motivados e tomadores de risco migra para as novas fronteiras com ganhos de gestão, escala e sustentabilidade.

Esses dois movimentos sacramentam o casamento entre o Brasil e a China no agronegócio, que prosperou a despeito das falhas de infraestrutura do primeiro e das dificuldades de acesso aos mercados do segundo. Trata-se de um movimento que se origina da demanda exponencial chinesa por alimentos e da alta produtividade alcançada pela tecnologia agrícola tropical. Definitivamente, ela não nasce de “visão estratégica” dos governos e da sua capacidade de planejamento.

Neste momento um novo desafio se apresenta para os dois países: o risco das zoonoses e seus impactos na qualidade e sanidade dos alimentos. Nos últimos 30 anos nos acostumamos a qualificar o aquecimento global, a desigualdade e o desemprego como os maiores problemas da humanidade. Não nos demos conta de que um inimigo invisível, que esteve sempre à espreita, ganhou enorme musculatura com a globalização: as pandemias originadas de zoonoses.

A Covid-19 não foi a primeira, e tampouco será a última epidemia que vem de animais domésticos e silvestres. Antes dela tivemos Aids, Ebola, Sars, Mers, gripe aviária e gripe suína. Nenhuma, porém, com capacidade de frear bruscamente a economia mundial.

Se a mudança do clima prometia matar paulatinamente o ser humano pela sua inação em relação ao planeta, a Covid-19 chega, sem aviso, para matar pessoas em hospitais despreparados para lidar com pandemias e na depressão causada pela parada da economia.

Estou convencido que segurança do alimento pode ser um dos principais itens de cooperação Brasil-China, países que sempre estiveram entre os líderes da produção, do consumo e do comércio de proteínas de origem animal e vegetal no mundo.

Comércio e investimentos dominam a pauta Brasil-China. Contudo, outros temas vêm ganhando importância na agenda bilateral do agronegócio, como por exemplo inovação, infraestrutura e sustentabilidade. A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e a China Agricultural University (CAU), classificadas entre as cinco melhores escolas de agricultura do mundo, lançarão em junho o livro “China-Brazil partnership in agriculture and food security”, uma obra que reúne artigos de duas dezenas de especialistas chineses e brasileiros sobre os temas apontados neste artigo.

Para finalizar, precisamos reconhecer que no casamento Brasil-China os noivos sempre serão muito diferentes. A China tem uma homogeneidade socioeconômica e cultural milenar, construída em torno da ética do confucionismo, que gerou um governo único e estável. O Brasil tem uma imensa diversidade étnica e cultural e órgãos de governo fragmentados e desorganizados, onde a insegurança jurídica torna até o passado incerto.

A China tem uma visão estratégica de longo prazo sobre o seu futuro, tendo realizado investimentos coletivos em educação e infraestrutura. O Brasil não consegue olhar além das emergências de curto prazo, campo que, no entanto, demonstramos uma combinação única de criatividade, improvisação e resiliência.

No campo comercial a China promoveu as suas exportações injetando doses cavalares de competitividade e inovação na sua indústria. Já o Brasil optou por proteger a sua indústria e substituir importações, isolando-se das cadeias globais de valor, exceto no agronegócio.

Finalizo afirmando que as relações Brasil-China no agronegócio sobreviveram apesar das visões preconcebidas e ideológicas dos sucessivos governos. Lula e Dilma privilegiaram a África e os países bolivarianos. Bolsonaro quer privilegiar o mundo rico ocidental, e principalmente os Estados Unidos.

Enquanto isso, seguimos ignorando que o mundo voltou a ser asiacêntrico, e particularmente sinocêntrico, do ponto de vista demográfico, econômico e de segurança alimentar. A relação Brasil-China no agronegócio não foi planejada ou construída. Mas se tornou um fato inexorável. E não adianta lutar contra os fatos. É melhor aceitá-los com objetividade e estratégia, como fazem os chineses, há milênios.

A frase de Deng Xiaoping que abre esse texto ilustra a essência do pragmatismo chinês. De nada serve alimentar ataques insanos a uma potência global que quer se aliar ao Brasil para garantir a sua segurança alimentar. De nada serve atacar pessoas que estão construindo as nossas pontes com o mundo, como a Ministra da Agricultura Tereza Cristina.

A resposta para a pergunta “o que a agricultura brasileira quer da China” é simples: queremos construir confiança e cooperação para atravessarmos juntos o rio turbulento da segurança alimentar, sem posições apriorísticas ou ideológicas.

(*) Marcos Sawaya Jank é professor de agronegócio global do Insper e titular da Cátedra Luiz de Queiroz da Esalq-USP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.