UM DILEMA BRASILEIRO
Bolívar Lamounier – 10.11.2021
Desde a antiguidade, sempre fomos aconselhados a nos conhecermos – nosce te ipsum, conhece-te a ti mesmo. Mas esse conselho foi sempre dirigido muito mais a indivíduos que à sociedade como um todo. A rigor, a ideia de uma sociedade, de um “todo” que deveria conhecer melhor seus problemas, a fim de facilitar a solução deles, é muito pálida ao longo de toda a história da filosofia política.
No mundo atual – e no Brasil isso raia à beira do escândalo-, o trabalho de conhecer à sociedade no sentido totalizante a que me referi no parágrafo anterior foi deixado a cargo das área das ciências humanas das universidades, cuja qualidade, como todos sabemos, é patética. As fortunas empresariais destinam-se basicamente a duas finalidades: projetos de pequeno alcance, destinados a proteger a reputação e aliviar a consciência de alguns, que buscam esse alívio mesmo sabendo que atuam numa escala liliputiana, e encomendar publicações caríssimas, em papel de primeira e ilustrações caríssimas, que dão uma notável fosforescência às marcas da empresa e superam qualquer alternativa como presentes de Natal. Atenção: sei que muitas dessas publicações são de grande valor para a conservação de nossa memória história. Mas adoraria saber quanto, anualmente, o empresariado gasta com esse tipo de publicação, em comparação com projetos que possam ter um verdadeiro alcance social.
Nos próximos dias, vou contar aqui algumas historinhas sobre fundações e indivíduos que fizeram um uso portentosamente relevante de seus recursos. Começo hoje com a questão racial nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra.
Reproduzo abaixo um trecho (pág. 117) de meu livro Tribunos, profetas e sacerdotes (Companhia das Letras, 2016)
“A coincidência temporal entre a fundação do Estado e a implantação do regime representativo foi uma circunstância benfazeja na origem dos Estados Unidos, mas é necessário apreciá-la na devida perspectiva histórica. Estamos falando de uma época em que o poder era praticamente monopolizado por uma estreita camada aristocrática e mercantil, que não necessitava legitimação por parte da sociedade inclusiva, até porque uma grande parte desta era constituída por escravos. Transcorridos dois séculos, no segundo pós-guerra, a realidade do país era outra: uma sociedade complexa e conflituosa, na qual numerosos grupos demandavam uma participação mais efetiva no sistema político e todo um rol de questões novas pressionava a agenda pública.
A questão racial
O que colocou a questão racial no topo da agenda intelectual americana ainda durante a Segunda Guerra foi o convite feito pela Fundação Carnegie ao economista sueco Gunnar Myrdal para elaborar um amplo estudo sobre o assunto. O resultado foi a publicação, em 1944, de An American Dilemma, um volume de quase 1500 páginas contendo uma cerrada análise das condições de vida dos negros e dos obstáculos à sua integração na vida social e política americana. A influência desse livro se fez sentir não apenas no plano das percepções dos americanos sobre os negros, mas em numerosas conexões específicas, sendo citado pela Suprema Corte no histórico caso Brown contra Conselho de Educação e permanecendo por muito tempo como uma referência obrigatória em programas de integração racial e ação afirmativa.
Esquematicamente, podemos dizer que Um Dilema Americano tem como base uma tensão conceitual básica. De um lado, o que Myrdal denominou causação múltipla e cumulativa: o emaranhado de círculos viciosos que perpetuava a condição de pobreza e marginalidade das comunidades negras. O fato que primordialmente caracterizava tais comunidades era, com efeito, o reforço mútuo de vários handicaps: a raça, a classe, as deficiências de escolarização e saúde, a desorganização familiar e a vitimização pela violência , entre outros. A condição social e cultural produzida por esse conjunto de fatores superpostos “ratificava” por assim dizer os estereótipos que alimentavam os preconceitos e “absolvia” os brancos dos infortúnios que eles mesmos causavam. Um diagnóstico sombrio, sem a menor dúvida. Mas a análise de Myrdal não desembocava num pessimismo paralisante graças ao outro polo da tensão conceitual a que me referi: a cultura política liberal e o regime democrático americanos. Um ponto fundamental da cultura político é, com efeito, a crença amplamente compartilhada em que todos os indivíduos são portadores de certos direitos básicos em virtude tão somente de sua condição humana. O regime democrático, por mais afetado que estivesse em seu funcionamento por preconcepções e interesses racistas, não era imune a questionamentos de legitimidade fundados na invocação dos valores de justiça, igualdade e liberdade que presidiram à própria fundação do país. A viabilidade e a pujança da nação dependiam em alguma medida desse parâmetro; pretender substituí-lo ou permitir que ele se mantivesse indefinidamente contaminado por uma concepção racialista da sociedade equivalia a comprometer seriamente seus fundamentos. Tendo identificado essa fenda simbólica, a estratégia sugerida por Myrdal era obter a maior publicidade para a causa negra. Nos anos 1950, o acerto de tais seria evidenciado pelo avanço do movimento dos direitos civis, a liderança de Martin Luther King e a clara tomada de posição da Suprema Corte contra a segregação. Longe de mim pretender que tudo isso tenha acontecido apenas em decorrência do American Dilemma. O trabalho de Myrdal levou em conta uma agenda política em certa medida já articulada por líderes negros, mas reagiu sobre ela, reforçando-a e multiplicando sua ressonância na opinião pública e na esfera política nacional.
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