Lula desistiu de ir à China, vitimado, não pelo "comunavirus" como diria um beócio, mas por uma "leve pneumonia" segundo seus médicos. A postergação da viagem não me impede de reproduzir novamente o artigo que eu fiz no mês passado sobre as relações do Brasil com a China, como forma de debater a questão.
O Brasil e a China: até onde vai a relação estratégica?
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Artigo publicado na revista Crusoé (3/03/2023; link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/253/o-encanto-de-lula-pelo-duvidoso-modelo-chines/).
A sedução precoce pelo “modelo” chinês de crescimento
Em janeiro de 2002, pela primeira vez, o então presidente de honra do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, visitou oficialmente a China, a convite do governo chinês e do Partido Comunista da China, tendo sido recebido com todas as honras devidas a um prometedor futuro chefe de Estado. Sua comitiva, integrada por futuros ministros e personagens importantes de seu governo, um ano adiante – José Dirceu, então presidente nacional do partido; Jorge Viana, governador do Acre; Antonio Palocci, prefeito de Ribeirão Preto; deputados federais Paulo Delgado (MG) e Jaques Wagner (BA) –, foi recebida por Wei Jianxing, um dos principais dirigentes do Bureau Político Permanente do Comitê Central do PCC, em audiência calorosa no Grande Palácio do Povo, em Beijing.
De volta ao Brasil, publicou um artigo num dos veículos do PT, no qual exaltava o modelo econômico chinês, mas no qual cometia, igualmente, uma série de equívocos conceituais e factuais, os quais parece ter mantido mesmo passadas duas décadas dessa viagem inaugural de várias outras, ao longo dos anos. Ele dizia, por exemplo, que o gigante asiático tinha ¼ da população do planeta, mas apenas 7% das terras agricultáveis do planeta, e que ainda assim conseguia “produzir o suficiente para alimentar esse mundo de gente”. Primeiro erro, pois que a China não apenas já era um dos principais países importadores de alimentos, assim como de quaisquer outras matérias primas para abastecer seu já gigantesco sistema manufatureiro, voltado basicamente para exportações baratas em direção dos países desenvolvidos. O Brasil, justamente, já era um dos grandes exportadores de alimento e de vários produtos primários para a China, dela importando um oceano de manufaturados de baixo custo e de qualidade razoável.
Lula se surpreendeu com as altas taxas de crescimento da China, ignorando que países que partem de níveis muito baixos de desenvolvimento econômico e social – como ainda era o caso da China, recém-admitida na OMC, depois de 14 anos negociando sua adesão ao Gatt – tendem a apresentar taxas vigorosas de crescimento, mas que normalmente declinam a partir de certo estágio nos progressos alcançados. Ele também dizia, no seu terceiro erro, que a China tinha “diminuído significativamente a desigualdade social.” Ora, a China já era, e continua sendo, justamente o país campeão na progressão negativa do seu coeficiente de Gini, saindo dos modestos patamares de um país socialista miserável, para índices próximos ao do Brasil, à medida em que avançou na construção do seu “capitalismo com características chinesas”.
Baseado num relatório do Banco Mundial, Lula também afirmou que “a China foi nos últimos anos o principal país responsável pela diminuição da pobreza no mundo.” Totalmente correto, mas isso quem disse foi o Banco Mundial, não o PT, que continuava afirmando, junto com os neófitos do Fórum Social Mundial, muitos deles petistas, que a globalização só consegue produzir miséria e desigualdade. Ora, se tem uma coisa que a China de Deng Xiaping conseguiu fazer foi aderir entusiasticamente à globalização capitalista, coisa que os economistas do PT sempre olharam com extrema desconfiança. Ainda assim, Lula afirmou que a China fazia isso “modo autônomo e soberano”, sem que o FMI impusesse os “seus modelos econômicos”. Quarto erro, portanto, pois se tem alguma coisa que o FMI não faz é impor um determinado modelo econômico, contentando-se com implementar programas de ajuda econômica a países (inclusive socialistas) que incorrem em sérios desequilíbrios de balanço de pagamentos, como ocorria com o Brasil naquela época.
Numa das mais controvertidas afirmações de seu artigo, Lula escreveu: “Os chineses nos explicam que estão praticando o que chamam de socialismo de mercado. A impressão que dá é que eles estão aprendendo a ganhar dinheiro com os capitalistas, para gastá-lo como socialistas.” Tanta ingenuidade não chega a ser propriamente um erro, mas traduz um dos mais persistentes vieses econômicos da concepção fundamental dos petistas sobre o papel do Estado no desenvolvimento de um país: a China justamente cresceu e se desenvolveu à medida em que mais e mais atividades produtivas saíam das mãos tortas das empresas estatais para serem entregues ao setor privado, que atualmente já responde por mais de 2/3 do PIB chinês.
Outra ingenuidade transparece numa afirmação seguinte, segundo a qual a China participa da globalização, mas “não abre mão do planejamento, da definição de prioridades”, acrescentando que ela “não permite que o mercado decida em nome da sociedade.” Como se os países dotados de Estados organizados – entre eles todos os membros da OCDE e o próprio Brasil – não tivessem, igualmente, governos planejadores, estabelecendo prioridades para o investimento público. Partindo de patamares modestos, a China hoje apresenta o maior volume de investimentos saído diretamente do setor privado, mas o seu Estado precocemente weberiano – pelos mandarins, atualmente funcionários do PCC – sempre dirigiu os grandes investimentos públicos em infraestrutura e comunicações, como qualquer outro país racional.
A visita em grande pompa do presidente-trabalhador ao Oriente
Pano rápido: vamos passar à primeira viagem oficial de Lula, já como presidente, dois anos depois. Em seus discursos, na própria China e de volta ao Brasil, o presidente exagerou na retórica e passou a vender coisas que só existiam em sua cabeça. Em primeiro lugar, ele voltou a repetir uma de suas obsessões diplomáticas, mais constantes: a tal de “aliança estratégica” com o gigante asiático, aproveitando para dizer que “muita gente no mundo está torcendo para que essa aliança não dê certo”; era evidente a cutucada nos Estados Unidos, um atavismo em suas perorações, que só pode ser uma necessidade psicológica. Fui buscar o que pudesse justificar tal argumento de “aliança estratégica” no comunicado bilateral liberado no curso da própria visita e confesso a frustração: não há nada ali que possa dar respaldo a essa “aliança estratégica”, salvo a dupla repetição da expressão “parceria estratégica”, muito usada para descrever protocolarmente as relações do Brasil com outros países, como a Argentina, a Alemanha, a França, os próprios Estados Unidos, logo em seguida com a Índia e por aí vai.
De estratégico mesmo, eu encontrei no comunicado duas frases que a China exigiu e o Brasil cumpriu. Na primeira, o Brasil “concordou com a postura chinesa de que Taiwan e Tibete são partes inseparáveis do território chinês e manifestou seu repúdio a quaisquer ações e palavras unilaterais que visem a promover movimentos separatistas”. Na outra frase, a China agradeceu ao Brasil “pelo seu apoio na Comissão [hoje Conselho] de Direitos Humanos em Genebra”, isto é, o apoio diplomático da delegação brasileira para que não se examine de modo algum a situação dos direitos humanos na China, como se ela pairasse acima dos outros como um exemplo de tratamento aos nacionais nesse terreno.
Num de seus gestos mais ousados, em sua primeira e triunfal visita, Lula sugeriu que o Mercosul e a China firmassem um acordo de livre comércio, assim como acatou a sugestão dos dirigentes chineses no sentido de acatar, na OMC, o status de economia de mercado para a China. Nas duas posturas, e já de volta ao Brasil, Lula defrontou-se com a veemente oposição da CNI, da FIESP, e da maioria das associações setoriais a ambas propostas, e nunca mais se ouviu o presidente repetindo suas ousadias. Mas essa viagem pioneira não dispensou uma outra contrariedade aos interesses do Brasil, que foi o embargo chinês a carregamentos de soja brasileira que supostamente continham, misturadas, soja natural e variedades geneticamente modificadas, nada que os animais chineses não pudessem consumir, mas um gesto provavelmente destinado a rebaixar o preço do produto, que naquela altura já atingia níveis históricos na bolsa de commodities de Chicago.
O ideograma do BRICS na agenda estratégica da China
Lula foi a China algumas outras vezes, em visitas bilaterais ou no quadro do BRIC, que a China fez questão de aumentar para BRICS, com a incorporação da África do Sul, um país que não se enquadrava minimamente nos critérios originais do grupo, mas que convinha à China, já empenhada numa nova “conquista da África” para atender a imensa necessidade de matérias primas de suas insaciáveis indústrias. Ela continua procedendo da mesma forma, buscando “engordar” o BRICS com vários outros candidatos em desenvolvimento, como forma de administrar uma espécie de anti-OCDE, com países dispostos a sustentar sua grande estratégia de parcerias alinhadas numa frente contra as potências “hegemônicas” do Ocidente.
Ao transformar a antiga proposta de um economista de um banco de investimentos – que estava pensando unicamente numa boa carteira de oportunidades de retornos financeiros suculentos, em quatro grandes economias em desenvolvimento – em um foro diplomático, os “planejadores diplomáticos” do PT certamente não imaginaram que as duas poderosas autocracias do planeta, Rússia e China, poderiam usar o BRIC-BRICS para os seus próprios interesses nacionais, o que se revelou agora, e de forma especialmente dramática, a partir da guerra de agressão de Putin contra a Ucrânia, da qual Xi Jinping é bem mais “solidário” do que o foi Bolsonaro e, talvez, doravante, venha a ser Lula. Joe Biden tentou convencê-lo do contrário, ao que Lula desconversou, naquela velha cantilena de que a sua “guerra era contra a pobreza”, tendo recebido zero apoio para a sua proposta estapafúrdia de um “clube da paz”, com “países não envolvidos no conflito” (sic, três vezes).
Em sua próxima visita à China, Lula não deve voltar a sugerir o tal acordo de livre comércio entre o Mercosul e o gigante asiático – que já é, na prática, o principal parceiro de todos os membros do bloco do Cone Sul, em comércio ou investimentos –, nem ousará sequer mencionar aquela outra ideia maluca da “moeda comum”, que o chanceler russo, Lavrov, e as lideranças sul-africanas querem incluir na agenda da próxima cúpula do BRICS. Ele certamente voltará a saudar entusiasticamente a “parceria estratégica” – que os chineses realmente têm em alta conta – e proporá que ela se estenda a outros campos que não apenas o lançamento de satélites de sensoriamento remoto por foguetes chineses. Não sabemos se Lula mantém as mesmas ilusões atualmente como aquelas exibidas em suas duas primeiras visitas à China. Em todo caso, a visita, e o restabelecimento de boas e intensas relações, de todos os tipos – mas provavelmente não em direitos humanos e democracia, como pretende Biden –, corresponde aos mais altos interesses do Brasil, desde que não condicionadas a apoios indiretos aos estritos interesses nacionais, e estratégicos, da China, na sua postura de “rivalidade imperial” com os Estados Unidos.
“O oriente é vermelho”, poderão repetir os mais apegados à bandeira do PT, como se os atuais mandarins chineses, selecionados exclusivamente com base em suas capacidades administrativas (e não mais no marxismo embolorado de certos petistas), estivessem minimamente preocupados com ideologia, no novo “Grande Salto para a Frente” que eles estão decididos a empreender no caminho de serem reconhecidos como a versão 2.0 do outrora fabuloso Império do Meio. Desde as navegações portuguesas do século XV, o fascínio de Catai continua a seduzir o “extremo Ocidente” que veio a ser o Brasil.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 fevereiro 2023, 5 p.; Relação de Originais:
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