O GRADUAL ESVAZIAMENTO DO ITAMARATY
A política externa, nos últimos 200 anos do Brasil independente, sempre teve um papel muito relevante na defesa do desenvolvimento econômico, dos interesses concretos do país, de sua projeção externa e mesmo de uma atuação, muitas vezes, acima da capacidade de seu poder efetivo.
Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas. Internamente, emergiu uma tecnocracia que passou a representar interesses setoriais no exterior, como a área econômica, o setor agrícola, o de defesa e o de polícia. Externamente, o mundo se transformou pela rapidez da informação, a facilidade dos contatos entre chefes de estado com conversas e encontros frequentes. Nos últimos 15 anos, um novo elemento contribuiu para o esvaziamento do Itamaraty: a politização e a partidarização da política externa e a atração de lealdades ao presidente, ao ministro e `as ideias por eles defendidas. Essa tendência vem acompanhada pela redução de recursos orçamentários e de crescentes dificuldades enfrentadas pelos diplomatas em termos de fluxo de carreira que tornaram o seu trabalho mais difícil e suas funções diplomáticas mais burocráticas e menos estimulantes para o desempenho de suas missões. Exemplos recentes desse esvaziamento político são a retirada da CAMEX, da APEX, a dualidade de funções entre a assessoria presidencial e o ministro do exterior, a perda de espaço nas secretarias internacionais dos ministérios, a ação subnacional, a marginalização dos embaixadores nas reuniões em nível de chefe de Estado, a perda da coordenação das negociações internas nas áreas de comércio exterior, inclusive no tocante ao Mercosul, ao meio ambiente e às agendas multilaterais (direitos humanos, energia, costumes, gênero e outras).
Isso significa que estamos assistindo o fim da presença do Itamaraty e a perda de espaço das embaixadas no exterior? Fora dos quadros do Itamaraty a quase 20 anos, tenho um distanciamento que me coloca em posição de oferecer algumas considerações pessoais longe de interesses corporativos ou posições defensivas, mas apenas voltadas para o que me parece mais relevante para o país.
Nos dias de hoje, visto do ângulo dos interesses permanentes do Brasil e não do governo de turno, o Brasil e o mundo mudaram. Quatro milhões de brasileiros em todos os continentes, esperam assistência não só para providências pessoais, mas sobretudo para apoio em momentos de crise nos países em que vivem. O cenário global, para países do porte do Brasil, apresenta novos e significativos desafios geopolíticos que, em muitos casos, parecem ser ignorados internamente como se o país fosse imune ao que acontece no exterior, seja na área econômica, na de defesa, na saúde, na inovação e na tecnologia. A pandemia e a guerra na Ucrânia, além da rápida mudança na ordem internacional com o isolacionismo dos EUA, a crescente tensão entre os EUA e a China, o reaparecimento da Rússia transformaram o cenário global, colocando os países, e o Brasil não é exceção, cada vez mais dependentes do exterior em muitas áreas, inclusive tecnológicas e industriais. O 5G e a Inteligência artificial, as restrições derivadas de preocupações protecionistas e de meio ambiente e mudança de clima, sem falar nas questões de segurança e de defesa são novos desafios. Integração regional (que o Brasil deveria liderar), abertura de novos mercados para produtos brasileiros, novos acordos de livre comércio, a formação de blocos políticos e econômico-comerciais são algumas das realidades que qualquer governo brasileiro terá de enfrentar nos dias de hoje e no futuro previsível.
O Itamaraty, como sempre fez no passado, poderá, de maneira eficiente, ajudar a interpretar o momento de transição para um mundo pós ocidental, como acentuado por Lula na reunião do G7. Nesse contexto, ao invés de esvaziar a Instituição, os governos teriam de fortalecer a estrutura da chancelaria, com reforço orçamentário e humano, para que possa atuar como uma antena de captação dessas mudanças e oportunidades, um instrumento de negociação em novas áreas (tecnologia e inovação), um braço (assistência técnica) para o exercício de “soft Power” na América Latina e na África, um fator de inteligência para a segurança nacional e defesa, um suporte eficiente para a ação de outros órgãos federais, estaduais e de apoio à comunidade brasileira no exterior e aos empresários.
No momento de polarização interna, deve ser lembrado, tanto aos governantes, quanto aos diplomatas do Itamaraty, que a diplomacia, como carreira de Estado, tem um dever de lealdade ao governo legitimo do momento ao implementar suas decisões, sem evidentemente ser partidária e muito menos militante do partido e do governo no poder. O embaixador, como representante do Presidente da República, do governo e de seus ministros, é o responsável pela autoridade do Estado no país em que está acreditado e uma relação de confiança deve existir como pressuposto de seu trabalho. O Itamaraty tem de ser revigorado e recuperar sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais e sua competência para articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior.
Rubens Barbosa, ex-embaixador em Londres e em Washington. Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
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