Derrota de Putin na Ucrânia pode ter consequências inimagináveis
Thomas Friedman, THE NEW YORK TIMES
O Estado de S. Paulo, 29/06/2023
Os acontecimentos recentes na Rússia se parecem com o trailer do próximo filme de James Bond: o ex-chefe, hacker e mercenário de Vladimir Putin, Ievgeni Prigozhin se rebela. Prigozhin, parecendo com um personagem saído diretamente de ‘Doctor No’, lidera um comboio de ex-detentos e mercenários em uma corrida excêntrica para tomar a capital russa, derrubando alguns helicópteros no caminho. Eles encontram tão pouca resistência que a internet está cheia de imagens de seus mercenários esperando pacientemente para comprar café pelo caminho, como se dissessem: ‘Ei, podem colocar uma tampa no café? Não quero sujar meu blindado.”
Ainda não está claro se o frio e calculista Putin dirigiu qualquer ameaça direta a seu velho amigo Prigozhin, mas o líder mercenário, sendo um velho laranja de Putin, claramente não estava assumindo riscos. E com razão. O sempre útil presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, que abrigou Prigozhin, relatou que Putin compartilhou consigo o desejo de matar o mercenário e “esmagá-lo como um inseto.”
Como o sinistro Ernst Stavro Blofeld, o vilão dos filmes de James Bond que lidera o sindicato internacional do crime Spectre e sempre era visto acaraciando seu gatinho branco enquanto tramava algum ardil, Putin é quase sempre visto em sua longa mesa branca, com as visitas geralmente sentadas no lado oposto da peça, onde, é possível suspeitar, uma armadilha espera pronta para engolir qualquer um que saia da linha.
A minha reação inicial ao ver o drama se desenrolar na CNN foi questionar se tudo aquilo era real. Não sou fã de teorias da conspiração, mas 007 — Viva e Deixe Morrer não tem nada a ver com esse motim com um roteiro escrito em Moscou — um roteiro ainda em produção, enquanto um Putin analógico tenta alcançar com a TV estatal russa um Prighozin digital que o cerca com sua comunicação via Telegram.
Responder a pergunta que muitos me fazem — O que Putin fará agora — é impossível. Eu seria cauteloso, no entanto, em tirá-lo de cena tão rápido. Lembrem-se: Blofeld apareceu em seis filmes do James Bond até que o 007 finalmente o derrotasse.
Tudo que se pode fazer por enquanto, creio, é tentar calcular os diferentes equilíbrios de poder envolvidos nessa história e analisar quem, nos próximos meses, pode fazer o quê.
As fraquezas de Vladimir Putin
Permitam-me começar com o maior equilíbrio de poder em questão, que nunca pode ser deixado de lado. E o presidente Biden merece os aplausos por ele. Foi graças à ampla coalizão reunida pelo presidente dos Estados Unidos para enfrentar Putin na Ucrânia que expôs a face do vilarejo Potemkin do líder russo.
Gosto da argumentação de Alon Pinkas, ex-diplomata israelense sediado nos EUA, em um artigo publicado no Haaretz nesta semana. Segundo ele, Biden entendeu desde o começo que Putin é o epicentro de uma constelação antiamericana, antidemocrática e fascista que precisa ser derrotada. E com ela, não há negociação possível. O motim de Prigozhin fez na prática o que Biden tem feito desde a invasão da Ucrânia: expôs as fraquezas de Putin, ferundo sua já abalada aparência de invencibilidade e sua suposta condição de gênio estrategista.
Putin, há muito, governa com dois instrumentos: medo e dinheiro, cobertos com uma capa de nacionalismo. Ele comprou quem poderia comprar e prendeu ou matou quem não podia. Mas agora alguns observadores do que acontece na Rússia argumentam que o medo está se dissipando em Moscou. Com a aura de invencibilidade de Putin abalada, outros poderiam desafiá-lo. Veremos.
Se eu fosse Prigozhin ou um de seus aliados, ficaria longe de qualquer um que passasse na calçada em Belarus com um guarda-chuva em um dia de sol. Putin tem feito um trabalho bastante efetivo eliminando seus críticos e ninguém pode subestimar o temor profundo dos russos sobre qualquer retorno ao caos do período pós-soviético, no início dos anos 90. Muitos deles ainda são gratos a Putin pela ordem que ele restaurou no país.
Um plano que pode dar certo
Quando analisamos o equilíbrio de poder de Putin com o resto do mundo as coisas ficam complicadas. No Ocidente, temos de temer as fraquezas de Putin tanto quanto tememos suas forças.
Ainda não há um sinal de que o motim de Prigozhin ou a contraofensiva ucraniana tenham levado a qualquer colapso significativo das forças Rússias na Ucrânia. Apesar disso, ainda é cedo para qualquer conclusão.
Fontes do governo americano dizem que a estratégia de Putin é exaurir o Exército ucraniano até o ponto em que ele não tenha mais suas peças de artilharia howitzer de 155 milímetros nem seus sistemas antiaéreos cedidos por Washington. Essas peças são a principal arma das forças terrestres ucranianas. Sem elas, a Força Aérea Russa teria alguma supremacia até que os aliados ocidentais tenham seus recursos exauridos, ou até Donald Trump voltar à Casa Branca e Putin conseguir algum acordo sujo com ele que salve sua pele.
A estratégia não é maluca. A Ucrânia gasta tanto esse tipo de munição — cerca de 8 mil por dia — que o governo americano está tentando encontrar reposição para elas antes que novas entregas industriais dessas peças cheguem no ano que vem.
Além disso, a logística é importante numa guerra. Também é importante se você está no ataque ou na defesa. Atacar é mais difícil e os russos estão entrincheirados e com toda sua linha defensiva minada. É por isso que a contraofensiva ucraniana tem sido tão lenta.
Como me disse Ivan Krastev, especialista em Rússia e diretor do Centro de Estatégias Liberais na Bulgária: “No primeiro ano da guerra, quando a Rússia estava no ataque, todo dia sem uma vitória era uma derrota. No segundo ano, todo dia em que a Ucrânia não está vencendo é uma vitória para os russos.”
Nós não devemos subestimar a coragem dos ucranianos. Mas também não podemos superestimar a exaustão do país como uma sociedade.
E como a história ensina, o Exército da Rússia tem aprendido com seus erros. John Arquilla, professor da Escola Naval de Pós-Graduação na Califórnia e autor de Blitzkrieg: os novos desafios da guerra cibernética, “os russos sofrem, mas aprendem.”
Segundo o professor, o Exército de Putin ficou melhor em manter a hierarquia da tropa no front. Além disso, segundo Arquilla, eles aperfeiçoaram o uso de drones em combate. Ao mesmo tempo, os ucranianos mudaram sua estratégia inicial, de usar unidades móveis menores, armadas com armas inteligentes, para atacar um imóvel Exército russo, para um perfil mais pesado e maior, com tanques e blindados.
“Os ucranianos agora estão cada vez mais parecidos com o Exército russo que estavam derrotando no ano passado”, disse Arquilla. “O campo de batalha nos dirá se essa é a melhor estratégia.”
Os riscos de uma Rússia sem Putin
Isto posto, devemos nos preocupar tanto com a perspectiva de uma derrota de Putin quanto de qualquer vitória. E se ele for derrubado? Não estamos mais na época do fim da União Soviética. Não há ninguém bonzinho ou decente ali. Nenhum personagem inspirado em Yeltsin ou Gorbachev está à espreita para assumir o poder.
“A velha União Soviética tinha algumas instituições estatais que eram responsável por manter o funcionamento da burocracia, bem como alguma ordem de sucessão. Quando Putin entrou em cena, ele destruiu ou subverteu todas as estruturas sociais e políticas além do Kremlin”, me explicou Leon Aron, especialista em Rússia do American Enterprise Institute, cujo livro sobre a Rússia de Putin sai em outubro.
No entanto, a História da Rússia traz algumas reviravoltas surpreendentes, ele diz. “Apesar disso, numa perspectiva histórica, os sucessores de líderes reacionários no país costumam ser mais liberais: o czar Alexander II depois de Nicolas I, e na URSS, Kruschev depois de Stalin, e Gorbachev depois de Andropov. Então, se houver uma transição pós-Putin, há esperança.
Apesar disso, no curto prazo, Se Putin for derrubado, podemos acabar com alguém pior. Como você, leitor, se sentiria, se Prigozhin estivesse no Kremlin desde hoje cedo comandando o arsenal nuclear da Rússia?
Um outro cenário possível é a desordem ou uma guerra civil e a consequente implosão da Rússia nas mãos de diversos oligarcas e grupos armados. Por mais que eu deteste Putin, eu odeio o caos ainda mais, porque quando um Estado do tamanho da Rússia colapsa é muito difícil reconstruí-lo As armas nucleares e a criminalidade derivadas dessa catástrofe mudariam o mundo.
E isso não é uma defesa de Putin. É uma expressão de raiva pelo que ele fez a seu país, tornando-o uma bomba-relógio continental. Ele fez o mundo inteiro refém.
Se Putin vencer, o povo russo perderá. Mas se ele perder e for substituído pelo caos, o mundo inteiro sairá derrotado.
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