O que esperar do discurso de Lula na AGNU?
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Comentários prévios ao primeiro discurso de Lula 3, na AGNU, em seu retorno à diplomacia presidencial
Não cabe esperar nada de muito espetacular desse discurso, o que poderia ter ocorrido, em tom até grandiloquente, se por acaso a abertura dos debates na Assembleia Geral tivesse sido feita nas primeiras semanas do ano, quando do retorno de Lula à presidência, depois de amargar mais de um ano de prisão e de uma campanha dramática no país, nas eleições de 2022, até as ameaças de golpe, antes e já instalado no poder. O que havia de alívio e até de satisfação, em diversos interlocutores estrangeiros, com o retorno de Lula ao poder, se devia em grande medida à deterioração extraordinária da imagem externa do país sob Bolsonaro, como resultado de suas posturas notoriamente autoritárias, de quebra das tradições diplomáticas brasileiras, de destruição sistemática do meio ambiente e de descaso, ou até desprezo, pelos direitos humanos, territórios indígenas, ataques à imprensa e à própria democracia brasileira.
Essa boa acolhida, de princípio, feita a Lula, tanto pelos parceiros ocidentais, quanto, e mais enfaticamente pelos seus aliados do Brics ou do assim chamado Sul Global, começou a se desvanecer com suas declarações a respeito sobretudo da guerra de agressão da Rússia à Ucrânia. Desde as primeiras semanas, em viagens do próprio e visitas de personalidades estrangeiras, Lula confirmou sua estranha neutralidade objetivamente favorável a Putin, mesmo em seus crimes de guerra contra a Ucrânia, numa suposta alegação de “preocupações russas com sua segurança” (sic). Depois, Lula promoveu duas reuniões em Brasília e em Belém do Pará, respectivamente sobre o retorno da integração sul-americana nos moldes anteriores da Unasul e sobre o desenvolvimento sustentável na Amazônica (compreendendo oito países do continente), nas quais suas teses não foram acolhidas com o sucesso esperado, inclusive no acolhimento da Venezuela como se fosse uma democracia e em relação às metas de desmatamento ou exploração de recursos fósseis na região.
Em seguida vieram as reuniões do G7 em Hiroshima e do Brics em Joanesburgo, que também confirmaram sua postura como defensor informal de Putin, causando, novamente, novas reações negativas da parte das democracias avançadas da OCDE, que todas apoiam a Ucrânia na sua resistência a agressão criminosa da Rússia. Ou seja, Lula deixou de ser o democrata do Terceiro Mundo, defensor dos direitos humanos e de uma ordem mundial baseada em normas multilaterais e no Direito Internacional, para se converter em um aliado de duas grandes autocracias desejosas de constituir um bloco de aliados convergentes com uma visão não ocidental do sistema internacional e interessados na criação de uma ordem alternativa à atualmente existente. Sua entrevista à TV indiana, no quadro do encontro do G20, confirmou essa visão não comprometida com a defesa dos DH, ao questionar inclusive a continuidade do Brasil no Estatuto de Roma e a contestação da ordem de prisão decretada contra Putin.
Cabe registrar que, antes de se dirigir a Nova York, Lula passará por Cuba, tanto para uma visita bilateral a seus amigos da ilha dominada por uma ditadura comunista sexagenária, quanto para participar de uma reunião do G77, na qual ele tentará renovar suas pretensões a líder regional e grande sustentador dos interesses do chamado Sul Global, numa ampla gama de reivindicações, que sempre se baseiam na responsabilidade dos países ricos por todas as agruras que atingem os países pobres, desde os problemas do meio ambiente, da pobreza e da miséria, quanto da reduzida ajuda que os primeiros deveriam prestar a estes últimos.
O discurso de Lula na AGNU de 2023 ainda está sendo ultimado pelo Itamaraty, e depois será ainda revisto pelo assessor presidencial, o ex-chanceler pelos oito anos dos dois primeiros mandatos de Lula, Celso Amorim, considerado por muitos jornalistas como o chanceler real, ou virtual, ao lado de Mauro Vieira, que é uma espécie de titular nominal, sobretudo no que tange os grandes assuntos da agenda mundial e regional. Pode-se arriscar o seguinte, quando ao seu conteúdo: depois de quatro anos de discursos bizarros, nos quais Bolsonaro tratava mais de questões internas do que internacionais – no primeiro ano, em 2019, Bolsonaro disse que havia salvo o Brasil do socialismo –, Lula deverá ler, com o rigor que o Itamaraty sempre imprime a essas ocasiões, uma sucessão de posturas mais frequentes na pauta de interesses do Brasil – desenvolvimento, cooperação, multilateralismo, defesa de objetivos sociais, no sentido da redução da pobreza e desigualdades – e algumas mais ligadas à visão política do PT: a reforma da ordem internacional, a mudança da Carta das Nações Unidas com o ingresso de novos membros permanentes no seu Conselho de Segurança, as reivindicações mais agressivas quanto à responsabilidade dos países ricos no fenômeno do aquecimento global, e também pedidos mais insistentes para que esses países financiem não só os programas de combate ao desmatamento nos grandes países em desenvolvimento como a transferência de tecnologias para a transição energética e até industrialização sustentável.
Lula, provavelmente, se absterá de voltar ao assunto TPI – que já causou muita polêmica dentro e fora do país –, mas continuará oferecendo seus bons préstimos genéricos para contribuir com a cessação de hostilidade e para negociações de paz no conflito da Ucrânia. Ou seja, não será muito diferente daquilo que o Itamaraty e alguns assessores menos adeptos de declarações improvisadas como as que já foram feitos por Lula já vêm se esforçando por imprimir às declarações externa do Brasil, mas não será surpresa se Lula insistir nos seus temas preferenciais, vinculados às questões sociais. Recentemente foi firmado um acordo entre a FAO e o governo brasileiro para a criação de um “Centro Josué de Castro” no Rio de Janeiro, destinado ao combate à fome no plano internacional. Lembre-se que, já em 2003, Lula tento universalizar o seu programa brasileiro de Fome Zero, que não foi implementado por representar duplicação com iniciativas já tomadas pela própria FAO e pelo PNUD, sob a forma de um Programa Mundial de Alimentos.
Não se sabe se haverá algo mais ousado, ou até espetacular, mas o Brasil atual, inclusive por posturas de Lula já não muito bem recebidas por interlocutores tradicionais, não parece reunir as condições ideais para liderar novas iniciativas no plano multilateral, tanto porque o espaço para a cooperação vem sendo sensivelmente reduzido pelos sinais tangíveis de uma nova Guerra Fria, desta vez talvez mais econômica do que geopolítica. A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia introduziu realmente uma cunha entre as grandes potências democráticas e seus contendores autocráticos, com expectativas indefinidas por parte desse Sul Global, mais um logotipo sem características precisas do que uma realidade concreta em tornos de congraçamento de interesses claramente expressos. No momento, o que se tem é o velho G7 e uma OCDE de quase quarenta membros (vários ex-socialistas e alguns do antigo Terceiro Mundo) e uma tentativa de bloco contraposto a este, representado de forma mais nítida por um Brics ampliado e mais duas dezenas de candidatos em associar-se a ele (provavelmente visando mais cooperação generosa da China do que uma oposição direta às velhas potências coloniais, das quais também aguardam a ajuda habitual).
Lula ainda tem uma boa imagem em diversos meios, mas a nova Guerra Fria e o conflito na Ucrânia, assim como sua falta de liderança na própria região, podem ser óbices a uma consagração no cenário onusiano. Cabe registrar que o presidente Zelensky também estará presente: Lula vai se encontrar com ele? Provavelmente não, pois que já evitou esse encontro na reunião do G7 de Hiroshima.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4480, 15 setembro 2023, 3 p.
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