A segunda morte do Barão
Ricardo Seitenfus
Ao não conceder a devida importância à principal lição prodigada pelo Barão do Rio Branco – o estrito e intransigente respeito às decisões jurídicas que definiram as fronteiras na América do Sul – o atual governo brasileiro, além de cometer grave erro de apreciação sobre a suposta celeuma de Essequibo, abre uma fresta para possíveis futuras contestações, colocando em risco nossa soberania territorial.
Apoiado no equilíbrio do binômio Diplomacia e Direito – o primeiro como meio e o segundo como fim – o Barão moldou e esculpiu, ao final do século XIX e início do século passado, as fronteiras nacionais. Seu extraordinário labor resultou em ganhos de 900.000 km2, equivalente a mais de 10% do atual território brasileiro.
Governar é, antes de mais nada, prever. Brasília age de maneira imprevidente concedendo demasiada importância aos meios diplomáticos em detrimento dos fundamentos jurídicos. No caso de Essequibo, quais seriam estes últimos? Antes de mais nada, o respeito à arbitragem de 1899 que concedeu o território ao Reino Unido. Inclusive porque em 1904 o Brasil acatou, embora desfavorável, o Laudo Arbitral no litígio de Pirara, parte integrante da mesma disputa territorial.
Chegamos ao ponto de considerar a consulta aos eleitores patrocinada por Nicolás Maduro Moros como sendo uma questão interna, do domínio reservado do Estado venezuelano! Ora, este suposto “referendo”, além de um exemplo grotesco das singularidades dos ditadores sul-americanos, bem descritos por Gabriel Garcia Márquez, é uma afronta ao Direito dos Tratados. A propósito, essa consulta abriga um aspecto ubuesco na medida em que quem deveria ser consultado são os habitantes de Essequibo ou os guianeses e não os venezuelanos.
O segundo documento jurídico a ser respeitado em sua integralidade é o Acordo de Genebra de 1966 firmado entre Londres e Caracas cuja validade foi reconhecida por Georgetown por ocasião de sua independência. No afã de se libertar de sua colônia, o Reino Unido aceitou firmar o documento escancarando a porta para uma decisão judicial distinta aquela estabelecida em 1899. Contudo, ficou também definido que será única e exclusivamente sob os auspícios do Secretário Geral da ONU que o futuro de Essequibo será decidido.
Ao contrário da resposta dos eleitores consultados – e manipulados – por Nicolás Maduro Moros, António Guterres indicou que a Corte Internacional de Justiça deva pronunciar-se sobre o caso. Esta deveria ser a inarredável posição brasileira.
Falecido em 10 de fevereiro de 1912, uma semana antes dos festejos carnavalescos, o carioca José Maria da Silva Paranhos Júnior, foi pranteado pela nação inteira. A sociedade brasileira o eleva à ícone e à mito. Raramente em outras paragens um diplomata alcança esta simbologia.
Ciente do alcance do funesto acontecimento, o Marechal (Marechá) Hermes da Fonseca decreta luto oficial no Rio de Janeiro e adia o Carnaval para o dia 6 de abril. Carnavalesco, o Barão deve ter dado boas gargalhadas quando viu que os cariocas não respeitaram o luto e saíram às ruas para divertirem-se sob a batuta do Rei Momo. Em abril, graças ao Barão, haverá de maneira inédita, um segundo Carnaval. Uma marchinha assim cantava:
“Com a morte do Barão
Tivemos dois Carnavá
Ai, que bom! Ai, que gostoso!
Se morresse o Marechá!”
São vívidos o anedotário, as lendas e o folclore em torno do Barão. Contudo, sua maior obra é ter legado ao país um território continental definido através do Direito. Devemos saudar a segunda micareta de abril de 1912 e ao mesmo tempo repudiar sua possível segunda morte.
Ricardo Seitenfus, Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Genebra, autor de vários livros, foi representante da OEA no Haiti (2009-2011) e na Nicarágua (2011-2013).
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