Milton Friedman meets Bob Fields
O reencontro de dois grandes economistas
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de novembro de 2006
Não se sabe, exatamente, para onde vão os economistas quando morrem. Existem muitas controvérsias a respeito, tantas quantas são as doutrinas e escolas de pensamento que os dividem. Muitos devem seguir direto para o limbo, antes de serem eventualmente recuperados por algum doutorando em busca de novas ideias. Vários outros padecem anos no purgatório das posições controversas, antes de ascender ou descer na escala de preferências dos contemporâneos, passando então a desfrutar da justa recompensa pelos bons serviços prestados à sociedade ou da inevitável punição pelos desastres incorridos em função da aplicação de recomendações incorretas. Se Marx e Keynes estavam certos, nossa sina incontornável é a de continuar, durante longos anos, prisioneiros das ideias de economistas defuntos. Alguns deles, aliás, são bons carcereiros, como veremos a seguir.
Com uma diferença de cinco anos e alguns dias, Milton Friedman foi ao encontro de Roberto Campos em algum lugar desse espaço indefinido. Trata-se de um amplo salão com paredes forradas de livros, vários sofás de couro, nos quais descansam, sem harpas nem camisolas, alguns desses economistas dignos do registro histórico; num canto, uma mesa com whiskey e gelo, sobre a qual repousa uma foto de Keynes, numa outra, um computador ligado nas principais bolsas mundiais, sobre um fundo de tela com a efígie de Adam Smith. Tudo muito sóbrio, comme il faut...
“Welcome to a new world, Doctor Friedman”, acolheu-o Roberto Campos, “nós temos todo o tempo do mundo para repousar, discutir teorias econômicas, ou não fazer nada simplesmente, just sitting by with a glass of good scotch. Please, serve yourself”.
“Thank you Bob, but I don’t drink. Just call me Milton. Estou gostando do lugar: uma biblioteca aconchegante, um pouco de informação e companhia agradável. Vou me dar bem por aqui, mas a Rose vai fazer falta.”
“Certainly, Milton”, retrucou Campos. “Mas você também estava muito bem de onde veio, com as suas ideias sendo finalmente acatadas por todos, programas de TV defendendo a liberdade dos mercados e a redução do papel do Estado, algo impensável em minha própria terra”.
“Oh, it’s a long battle, you know”, lamentou o americano. “A gente passa a maior parte da nossa vida pregando no deserto, tentando convencer os homens a defender a sua prosperidade através da liberdade de mercados e da competição. Seduzidos pelos falsos profetas, que são os políticos, eles têm essa tendência inexplicável a preferir mais e mais leis, regulação e despesas públicas, como se esperassem que o Estado lhes fosse trazer a felicidade eterna. Como você bem sabe, Bob, essas boas intenções sempre produzem resultados deploráveis. Só depois que a gente se vai é que eles começam a se convencer do acertado de algumas ideias simples”.
“Do not blame yourself, Milton. Você foi tremendamente bem sucedido, muito mais do que eu, em todo caso. Veja o exemplo do Brasil: nós seguimos um dos seus conselhos, o da correção monetária das dívidas e da poupança, para preservar o valor dos ativos, e conseguimos criar um processo infernal que se arrastou durante décadas no limite da hiperinflação e que muito fez para agravar a já péssima distribuição de renda.”
“Eu sei disso, Bob, mas a minha recomendação era apenas voltada para preservar o sistema financeiro, protegendo poupadores contra os ganhos indevidos dos tomadores de crédito. Eu não esperava que no Brasil vocês fossem generalizar esse mecanismo em todas as vertentes do sistema. Vocês simplesmente criaram uma máquina realimentadora da inflação, o que nunca foi a minha intenção.”
“Bem, isso agora acabou, felizmente. Alguns poucos malucos ainda insistem em pedir um pouco mais de inflação, para garantir mais crescimento e emprego, mas eles não são tão ouvidos como antes. Em contrapartida, eles continuam se posicionando contra o liberalismo, sob o pretexto de que você o colocou a serviço de ditadores, como no Chile, onde as conquistas populares foram esmagadas em benefício do capital estrangeiro”.
“That’s untrue, Bob”, irritou-se Friedman. “Pinochet era um perfeito bárbaro, não apenas na repressão política. Ele pretendia dar ordens aos preços, da mesma forma como comandava seus soldados e nunca entendeu a economia. Eu apenas atendi a um chamado de ex-alunos que trabalhavam no ministério das Finanças, para dar conselhos sobre como domar a inflação, que teimava em persistir mesmo depois da abolição das medidas socialistas de Allende. Eu simplesmente fiz a recomendação óbvia para que deixassem os preços e os mercados livres e parassem de imprimir dinheiro, controlando na outra ponta as despesas públicas, inclusive as militares. Bastou isso para trazer a superinflação chilena a patamares razoáveis. Também insisti para que dessem autonomia às autoridades monetárias e liberdade aos empresários. Surpreende-me que in Latin America todos gritam contra o neoliberalismo, quando o Chile é o único país da região que cresce continuamente há quase duas décadas.”
“Isto é porque gostamos de encontrar bodes expiatórios para os nossos próprios problemas. Um dos maiores sucessos dos últimos tempos é o Fórum Social Mundial, criado no Brasil: milhares de jovens idealistas e alguns velhos esquerdistas que graças à globalização se mobilizam rapidamente para protestar contra a globalização. It’s insane Milton. Recentemente, ainda, eles voltaram a protestar contra as privatizações, usando o tempo todo moderníssimos celulares que eles nunca teriam se as velhas estatais do setor continuassem limitando a oferta de linhas e aparelhos. Just crazy...”
“Yes, that’s amazing. But tell me Bob, como vai o seu leftist president?”
“Oh, don’t worry Milton, ele é tão socialista quanto eu sou keynesiano, ou seja, quase nada, apenas uma tênue superfície para impressionar os últimos true believers, que infelizmente no Brasil ainda são em grande número.”
“Também pudera, Bob, você mesmo, com todo o seu credo liberal e privatista, fez mais para impulsionar o poder do Estado do que todos esses universitários marxistas que se reúnem regularmente para pedir mais controle de capitais e do câmbio, mais gastos públicos, menos abertura econômica, não aos acordos comerciais. Tell me frankly, Bob, você não se arrepende hoje desse stalinismo para os ricos que vocês criaram no Brasil?”
“Yes, that sad, Milton, I confess my error. Eu estava apenas tentando impulsionar a economia, na ausência de capitalistas schumpeterianos e de um verdadeiro mercado financeiro, funcionando à base de poupança privada. Reconheço que fomos longe demais, mas isso também porque os nossos militares alimentavam sonhos grandiosos de dominar ciclos industriais inteiros, construir processos produtivos totalmente nacionalizados e enveredar pelo caminho da grande potência econômica cuidando mais da superestrutura de ciência e tecnologia do que do ensino básico. Na crise do petróleo, insistiram ainda nos grandes projetos, fazendo dívida em lugar de reajustar a economia. Quando eu quis protestar, me mandaram como embaixador para Saint James’ Court, junto da rainha.”
“Ultimamente, o seu leftist president andou prometendo crescimento econômico a 5% ao ano. Is that possible, Bob?”
“Certainly not, Milton, as long as the State continuar como despoupador líquido dos recursos criados pelo setor privado. O Estado brasileiro arrecada mais de 38% do PIB em impostos e gasta 41%, considerando o pagamento da enorme dívida pública. Não há a menor hipótese de obtermos esse crescimento, pois investimos apenas 20% do PIB, sendo que o próprio Estado é responsável por menos de 2% do volume total. Sinto contradizer o meu presidente, mas ele divaga ou foi mal informado por assessores que não sabem do que estão falando.”
“E esse programa de ajuda aos pobres, Bob, o que você acha? Eles pretendem que eu recomendaria o mesmo, com o meu negative-income-tax. Is that correct?”
“Não é nada disso, Milton, o seu esquema se dirige aos working poors, ao passo que o nosso programa praticamente não tem contrapartidas e não constitui a remuneração por qualquer tipo de atividade. É muito diferente. Mas ele é obviamente muito apreciado pelos políticos, que constituem com isso um imenso curral eleitoral.”
“It’s a pity, Bob. Mas eu também tenho um motivo de remorso, no meu próprio país, ao ter sugerido, durante a Segunda-Guerra, a retenção do imposto de renda na fonte, como forma de alimentar as caixas do Estado, então necessitado de recursos. Nunca mais foi possível reter a sanha arrecadadora desse monstro burocrático e meus conselhos para a diminuição do tamanho do Estado sempre caíram no vazio”.
“Não lamente muito, pois suas recomendações eram justificadas em função do momento. A despeito disso, a carga fiscal no seu país tem se mantido rigorosamente em torno de 30% do PIB, com pequenas variações ao longo das últimas três décadas. No Brasil, saímos de menos de 20% nos anos 1970 para quase 40% hoje em dia, com tendência ao crescimento. Estamos no mato sem cachorro agora: o gênio saiu da garrafa e não conseguimos engarrafá-lo outra vez”.
“I recognize that you do have a great challenge on this: é praticamente impossível fazer o Estado retroceder uma vez que você alimentou o monstro. Mas, não percam as esperanças. Vejam o caso da Irlanda, certamente o melhor exemplo atual de mudanças estruturais, elevação dos padrões de vida e inserção internacional com base num modelo tributário de baixa imposição sobre os lucros e o trabalho e grande apoio à educação”.
“Sim, eu conheço o sucesso irlandês: quando eu era embaixador em Londres, eles tinham justo entrado na então Comunidade Européia, com uma renda per capita que era menos da metade da renda comunitária e muitos analfabetos na população ativa. Hoje eles ultrapassaram a renda da UE e estão começando a sentir o ‘desconforto da riqueza’. É um exemplo ainda melhor do que a China, que só é mais conhecido porque ela é grande e incomoda muita gente. Mas a Irlanda é certamente o exemplo a ser seguido”.
“That’s it, Bob, nem tudo está perdido. Vocês só precisam convencer as pessoas, o common people, de que este é o caminho a ser seguido. Aliás, basta olhar ali ao lado, e ver o exemplo do Chile. Como é que você não percebem isso, no Brasil?”
“Well, Milton, os melhores economistas dizem que o Chile não é exemplo para o Brasil: uma economia muito pequena e pouco diversificada, com uma inserção limitada às suas vantagens ricardianas, que estão nos produtos primários e recursos naturais.”
“My God, Bob, quando é que os seus economistas vão se dar conta de que não é o tamanho da economia que conta e sim a qualidade das políticas macroeconômicas? Não posso acreditar que continuem repetindo bobagens como essa, inaceitáveis em qualquer primeiranista de economia! Não importa o tamanho do país ou suas vantagens relativas e sim a forma como ele organiza o seu sistema produtivo para tirar o melhor proveito possível das capacidades dadas e das adquiridas, com base em políticas corretas, que estimulem a competição e a inovação.”
“Eu sei disso, Milton, mas essas verdades simples não entram na cabeça dos meus conterrâneos, mesmo na de alguns economistas respeitados...”
“Repita comigo, Bob, algumas verdades simples, que funcionam em qualquer tipo de economia. O segredo para o crescimento sustentado e o desenvolvimento social é uma boa combinação de quatro elementos essenciais: macroeconomia estável, microeconomia competitiva, alta qualidade dos recursos humanos e inserção nos fluxos dinâmicos de comércio e investimentos. Isso não tem nada a ver com economia keynesiana, austríaca, liberal ou neoliberal. É uma diferença entre boa e má economia. As simple as that!”
“You are right, Milton. Só podemos esperar que nossos cidadãos se convençam dessas constatações tão óbvias. Let’s keep trying, now from above...”
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de novembro de 2006