O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador OESP. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador OESP. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Que Brasil Lula projetará nas próximas viagens? - Paulo Sotero (OESP)

 Paulo Sotero, um experiente jornalista, indica que o crédito diplomático concedido a Lula e ao Brasil no momento eleitoral e no início deste governo está se esvaindo, pelo fato do presidente estar fazendo as escolhas erradas, não só com respeito à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, mas também na própria região, ao preferir elogiar ditaduras e esquecer suas vítimas. A Venezuela, sem guerra nenhuma, “exportou” tantos cidadãos quanto a Síria, em guerra civil há 12 anos. PRA

O Estado de S. Paulo.

ESPAÇO ABERTO

Paulo Sotero

Jornalista, É Pesquisador Sênior Do Brazil Institute Do Wilson Center, em Washington

Que Brasil Lula projetará nas próximas viagens?

Seria uma lástima se Lula e Biden desperdiçassem a oportunidade de serem sal da terra e luz do mundo, com a bênção do papa e o aplauso da comunidade mundial

Por Paulo Sotero

07/06/2023 


Visto de Washington, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fez amigos nem influenciou países no acanhado começo de seu inusitado terceiro mandato no Palácio do Planalto. Ao contrário, desapontou aliados tradicionais na Europa e nas Américas ao persistir na conhecida trilha das oportunidades perdidas, que vai no sentido oposto do objetivo declarado de promover o interesse nacional e fazê-lo projetando a liderança do Brasil em temas centrais para nós e nossos vizinhos. Quem sabe as bênçãos de Santo Antônio, São João e São Pedro iluminarão o caminho do presidente e o ajudarão a colher bons frutos em sua próxima viagem internacional, este mês, durante as festas juninas.

Em Paris, Lula tratará com seu colega francês, Emmanuel Macron, de dois assuntos que estão no topo na agenda internacional: a guerra deflagrada pela injustificável invasão da Ucrânia pela Rússia, a primeira entre duas nações europeias desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945; e o urgente desafio de conter as mudanças climáticas e preservar o meio ambiente – este tema da primeira encíclica do papa Francisco, que pede um envolvimento substantivo do Brasil. Ambas as discussões continuarão no Vaticano, com votos de sucesso dos amigos do País ao redor do mundo.

O que fará Lula? Adiará a escolha e correrá o risco de perder o bonde da História, calculando que o País será chamado à mesa de negociações quando a realidade as impuser? Se esse cálculo se comprovar correto, o que o Brasil aportará, além de boas intenções e capacidade diplomática? Mas, se o cálculo se mostrar equivocado e o País for alijado das conversas, por irrelevante ou não confiável, hoje um cenário plausível, o que fará o presidente?

Não há respostas prontas para essas perguntas, até porque elas só terão credibilidade se resultarem de um debate interno que o País até hoje não teve fora dos rarefeitos círculos acadêmicos e intelectuais. Fazê-lo agora, para começar, impõe o difícil reconhecimento de que o Brasil diminuiu de tamanho relativo na última década, especialmente durante o abjeto governo de Jair Bolsonaro, e terá de encontrar seu caminho num ambiente internacional muito diferente daquele no qual Lula ascendeu ao poder na primeira década do século.

As escolhas que Lula fez até agora, com a ajuda de seu assessor internacional, o ex-chanceler Celso Amorim, claramente não foram satisfatórias para uma parcela importante dos eleitores que o levaram ao poder num país dividido e polarizado. A demora em condenar a criminosa invasão russa da Ucrânia e o desejo de ficar em cima do muro em nome de uma suposta neutralidade expuseram a pusilanimidade nacional ao mundo, que esperava mais da maior democracia do Hemisfério Sul. Nos EUA, onde os funcionários mais e melhor conhecem o Brasil, a decepção veio à tona em declarações públicas hostis de ex-diplomatas e comentários de gente influente no Executivo e no Congresso. Resumindo, o Brasil deixou de reconquistar o espaço que perdeu durante o calamitoso governo de Bolsonaro e terá a missão de Sísifo para reparar o mal feito.

Some-se a isso uma pronunciada queda de interesse pelo País em Washington, o que dificulta a construção de agendas positivas de cooperação e investimentos. Este panorama desolador pode ser revertido por Lula, se ele tiver interesse e disposição política para tomar um rumo mais produtivo nas relações com aliados tradicionais como os EUA, sem prejudicar os laços com a China, hoje o maior parceiro comercial do Brasil.

Para tanto, o líder brasileiro terá de superar ressentimentos e preconceitos ideológicos e retomar o caminho virtuoso das escolhas corajosas que fizeram dele e do Brasil na década de 1980 exemplos a serem seguidos. Terá Lula a energia e a ousadia necessárias para reinventar-se aos 77 anos? Uma visita bem preparada à Casa Branca e um fim de semana com o presidente Joe Biden em Camp David certamente ajudariam, e por isso merecem consideração em Brasília e em Washington. Tais eventos seriam recebidos como golaços diplomáticos nos dois países e alterariam o panorama internacional de forma significativa. Abririam perspectivas de cooperação econômica, política e cultural entre as duas maiores democracias multirraciais e multiculturais das Américas, para benefício de ambas e de seus vizinhos.

Não menos importante, Biden e Lula, de 80 e 77 anos respectivamente, projetariam a vitalidade das sociedades que lideram e reacenderiam a chama da esperança num mundo melhor em dois países que ainda enfrentam as consequências de séculos da escravidão de africanos que, libertados, deram a ambos e ao mundo culturas densas e ricas nas artes, na música e na literatura. Seria uma lástima se Lula e Biden, dois homens de origens humildes, desperdiçassem a oportunidade única que a História lhes oferece de serem sal da terra e luz do mundo, com a bênção do papa Francisco e o aplauso da comunidade mundial. Não é pouco. E, quem sabe, talvez seja suficiente para o Nobel da Paz.


terça-feira, 23 de maio de 2023

O gradual esvaziamento do Itamaraty - Rubens Barbosa (OESP)

 O GRADUAL ESVAZIAMENTO DO ITAMARATY

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 23/05/2023

 

A política externa, nos últimos 200 anos do Brasil independente, sempre teve um papel muito relevante na defesa do desenvolvimento econômico, dos interesses concretos do país, de sua projeção externa e mesmo de uma atuação, muitas vezes, acima da capacidade de seu poder efetivo. 

 

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas. Internamente, emergiu uma tecnocracia que passou a representar interesses setoriais no exterior, como a área econômica, o setor agrícola, o de defesa e o de polícia. Externamente, o mundo se transformou pela rapidez da informação, a facilidade dos contatos entre chefes de estado com conversas e encontros frequentes. Nos últimos 15 anos, um novo elemento contribuiu para o esvaziamento do Itamaraty: a politização e a partidarização da política externa e a atração de lealdades ao presidente, ao ministro e `as ideias por eles defendidas. Essa tendência vem acompanhada pela redução de recursos orçamentários e de crescentes dificuldades enfrentadas pelos diplomatas em termos de fluxo de carreira que tornaram o seu trabalho mais difícil e suas funções diplomáticas mais burocráticas e menos estimulantes para o desempenho de suas missões. Exemplos recentes desse esvaziamento político são a retirada da CAMEX, da APEX, a dualidade de funções entre a assessoria presidencial e o ministro do exterior, a perda de espaço nas secretarias internacionais dos ministérios, a ação subnacional, a marginalização dos embaixadores nas reuniões em nível de chefe de Estado, a perda da coordenação das negociações internas nas áreas de comércio exterior, inclusive no tocante ao Mercosul, ao meio ambiente e às agendas multilaterais (direitos humanos, energia, costumes, gênero e outras).

 

Isso significa que estamos assistindo o fim da presença do Itamaraty e a perda de espaço das embaixadas no exterior? Fora dos quadros do Itamaraty a quase 20 anos, tenho um distanciamento que me coloca em posição de oferecer algumas considerações pessoais longe de interesses corporativos ou posições defensivas, mas apenas voltadas para o que me parece mais relevante para o país.

 

Nos dias de hoje, visto do ângulo dos interesses permanentes do Brasil e não do governo de turno, o Brasil e o mundo mudaram. Quatro milhões de brasileiros em todos os continentes, esperam assistência não só para providências pessoais, mas sobretudo para apoio em momentos de crise nos países em que vivem. O cenário global, para países do porte do Brasil, apresenta novos e significativos desafios geopolíticos que, em muitos casos, parecem ser ignorados internamente como se o país fosse imune ao que acontece no exterior, seja na área econômica, na de defesa, na saúde, na inovação e na tecnologia. A pandemia e a guerra na Ucrânia, além da rápida mudança na ordem internacional com o isolacionismo dos EUA, a crescente tensão entre os EUA e a China, o reaparecimento da Rússia transformaram o cenário global, colocando os países, e o Brasil não é exceção, cada vez mais dependentes do exterior em muitas áreas, inclusive tecnológicas e industriais. O 5G e a Inteligência artificial, as restrições derivadas de preocupações protecionistas e de meio ambiente e mudança de clima, sem falar nas questões de segurança e de defesa são novos desafios. Integração regional (que o Brasil deveria liderar), abertura de novos mercados para produtos brasileiros, novos acordos de livre comércio, a formação de blocos políticos e econômico-comerciais são algumas das realidades que qualquer governo brasileiro terá de enfrentar nos dias de hoje e no futuro previsível.

 

O Itamaraty, como sempre fez no passado, poderá, de maneira eficiente, ajudar a interpretar o momento de transição para um mundo pós ocidental, como acentuado por Lula na reunião do G7. Nesse contexto, ao invés de esvaziar a Instituição, os governos teriam de fortalecer a estrutura da chancelaria, com reforço orçamentário e humano, para que possa atuar como uma antena de captação dessas mudanças e oportunidades, um instrumento de negociação em novas áreas (tecnologia e inovação), um braço (assistência técnica) para o exercício de “soft Power” na América Latina e na África, um fator de inteligência para a segurança nacional e defesa, um suporte eficiente para a ação de outros órgãos federais, estaduais e de apoio à comunidade brasileira no exterior e aos empresários.

 

No momento de polarização interna, deve ser lembrado, tanto aos governantes, quanto aos diplomatas do Itamaraty, que a diplomacia, como carreira de Estado, tem um dever de lealdade ao governo legitimo do momento ao implementar suas decisões, sem evidentemente ser partidária e muito menos militante do partido e do governo no poder.  O embaixador, como representante do Presidente da República, do governo e de seus ministros, é o responsável pela autoridade do Estado no país em que está acreditado e uma relação de confiança deve existir como pressuposto de seu trabalho. O Itamaraty tem de ser revigorado e recuperar sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais e sua competência para articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior.

 

Rubens Barbosa, ex-embaixador em Londres e em Washington. Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)

 

terça-feira, 25 de abril de 2023

A parceria estratégica com a China - Rubens Barbosa (OESP)

 A PARCERIA ESTRATÉGICA COM A CHINA

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 25/04/2023

 

         O saldo da visita de Lula a China foi positivo, mas, de novo, o marketing foi muito negativo em função dos arroubos verbais presidenciais sobre a guerra na Ucrânia e a parceria estratégica com a China. Apesar de toda sua experiência, Lula está ignorando alguns princípios básicos na diplomacia: saber ficar calado, falar pouco e ter um discurso moderado. Era previsível a repercussão na mídia norte-americana e nacional pelo que foi interpretado como mudança da posição do Brasil e pelas críticas aos EUA. A coincidência da visita do ministro do exterior da Rússia Sergey Lavrov, logo em seguida a visita a Beijing, e a notícia do veto russo `a venda de munição a Alemanha para fornecimento a Ucrânia e possível cooperação nuclear também ajudaram a colocar em dúvida a equidistância brasileira. 

Quando a China propôs uma parceria estratégica com o Brasil na década dos 90, o governo brasileiro apreciou o gesto e proclamou o novo nível do relacionamento bilateral. Acontece que o governo chines havia estudado por muito tempo o que queria dessa parceria e, nos últimos 15 anos, definiu seus interesses e objetivos na área agrícola e mineral. Passados três décadas dessa parceria estratégica, o Brasil ainda não definiu como quer se beneficiar dela.

O comunicado conjunto, publicado ao final da visita, em grande parte incluiu declarações de intenção, que poderiam estabelecer as bases da parceria estratégica, segundo o interesse brasileiro: cooperação nas áreas de economia digital, comércio eletrônico, tecnologia de informação, IA, centro de pesquisa, desenvolvimento e inovação, luz sincroton, cooperação espacial. Caso o governo, o setor privado e a universidade realmente se emprenharem para concretizar essas intenções, tecnologia e inovação poderiam sintetizar o interesse brasileiro na parceria estratégica. Assim, como fez a China nas áreas de seu interesse, cabe ao Brasil tomar as medidas internas necessárias para desenvolver a cooperação em todas essas áreas. O Brasil está atrasado nos avanços científicos e tecnológicos em muitas áreas. Surge a oportunidade de recuperar o tempo perdido e colocar o país na linha de frente da pesquisa e desenvolvimento na inovação, no 5G e na IA. Esse pode ser a longo prazo o principal resultado da visita. Caso a parceria estratégica entre o Brasil e a China se desenvolva e se amplie, será importante dinamizar os mecanismos de cooperação existentes com os EUA, assinar o Acordo com a UE e continuar os entendimentos para a adesão a OCDE ou com quem estiver disposto a colaborar com o Brasil. 

Apesar da retórica da reforma da governança global, o comunicado defende o fortalecimento da ONU e da OMC. A China evitou comprometer-se quanto a candidatura brasileira ao Conselho de Segurança da ONU, quanto a proposta de formação de um grupo da paz para o fim das hostilidades na Ucrânia e a compra de aviões da Embraer. E o Brasil, a aderir `a Rota da Seda. Houve, em separado, uma longa declaração sobre meio ambiente e mudança de clima, acordo do BNDES e Banco chines para empréstimo de US$1,1 bilhão para investimento em infraestrutura, além de acordos comerciais entre empresas e estados.

         Os contrastes e os resultados entre a visita a Washington e a Beijing ficaram evidentes, mas podem ser explicados pela diferente natureza dos encontros com Biden e com Xi Jinping. Nos EUA, a ênfase foi política, com o fortalecimento da democracia e das instituições, além da nova prioridade de meio ambiente e mudança de clima. Na China, foi econômica e comercial, tanto que os aspectos políticos da guerra na Ucrânia, da Rota da Seda, dos semicondutores, da moeda foram minimizados no comunicado conjunto.

         Apesar das críticas, até aqui, não há evidência concreta de que o Brasil esteja abandonando a política, na defesa do interesse nacional, de manter-se equidistante nas tensões entre os EUA e a China, mesmo com a contradição entre princípios e valores e interesses, como de resto ocorre com todos os países, inclusive os EUA e as nações europeias. As declarações presidenciais sobre a guerra na Ucrânia – retificadas no discurso escrito durante a visita do presidente da Romênia e atenuadas ainda mais na visita a Portugal – não devem gerar consequências negativas contra o Brasil, mas podem acelerar o gradual esvaziamento do Itamaraty, como evidenciado na entrevista ao final da visita a Beijing, conduzida por Mercadante e Haddad e não por Mauro Vieira e nas viagens de Amorim a Colômbia, a Rússia e a Ucrânia.

Com a crescente tendência geopolítica de formação de dois polos, repetindo em outras bases a Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, o Brasil tem de definir de forma mais clara seus interesses a fim de sobreviver `a divisão das atuais superpotências. Para manter uma autonomia estratégica na confrontação, não ideológica e militar, mas econômica, comercial e tecnológica, entre as superpotências, e apoiar a multipolaridade, o Brasil tem de manter seu relacionamento com os EUA, a China e a Rússia afastado de considerações partidárias, ideológicas e agora também geopolíticas, que possam, de uma maneira ou de outra, acarretar algum tipo de restrição econômica ou comercial contra interesses concretos brasileiros.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do IRICE e membro da Academia Paulista de Letras

 

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Lula perdido no vasto mundo - Rolf Kuntz (OESP)

ESPAÇO ABERTO

Lula perdido no vasto mundo

Rolf Kuntz

O Estado de S. Paulo, 23/04/2023

Com muito falatório e pouco governo, Lula se afunda em bobagens, iguala agressor e agredido e assusta os parceiros ocidentais 

O mundo, mundo, vasto mundo de Carlos Drummond de Andrade é certamente maior que o universo petista, insuficiente até para eleger o candidato Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. Aparentemente esquecido da ampla diversidade política de seus eleitores, o presidente Lula insiste em agir como se o Brasil e o sistema internacional fossem extensões de Vila Euclides, berço sindical de sua carreira pública. Rebaixado à condição de pária pelo presidente Jair Bolsonaro, o País começou, com a mudança de governo, a retomar sua posição no sistema regional e na ordem global. Esse retorno seria mais fácil e mais seguro se o principal porta-voz brasileiro parasse de falar bobagens, levasse em conta o Direito Internacional, deixasse de afrontar sem razão Estados Unidos e Europa e considerasse mais seriamente os interesses nacionais.

O presidente brasileiro poderia, talvez, pensar no exemplo de seus gentis anfitriões na China, maior parceira comercial do Brasil. Sem descuidar de seus interesses, os chineses continuaram, nos últimos três anos, tomando espaço dos exportadores brasileiros nos maiores mercados sul-americanos. Em 2022, ocuparam o primeiro lugar nas vendas à Argentina.

O presidente Lula conseguiu impedir, por enquanto, acordos comerciais entre a China e outros países do Mercosul. Mas só impedirá a desorganização do bloco se coordenar uma negociação conjunta com os chineses. Isso dependerá muito mais de ação diplomática e de bons argumentos práticos do que de retórica. Paraguaios e uruguaios têm respeitáveis motivos, há muito tempo, para abandonar a fidelidade a um bloco estagnado e distante dos objetivos originais de cooperação produtiva e de inserção global.

Mas o presidente Lula tem mostrado mais inclinação para a retórica, para as picuinhas e para o falatório de palanque do que para a administração e para as políticas mais ambiciosas. Demorou cerca de três meses e meio para apresentar suas metas fiscais e formalizar o compromisso, ainda discutível, com o equilíbrio das contas públicas. Esse objetivo dependerá, como já indicaram analistas, de maior arrecadação, embora o ministro da Fazenda negue a intenção de impor maior peso aos contribuintes. Além disso, nenhum plano ou roteiro de governo foi apresentado até agora. Mas o presidente encontrou tempo para tolices administrativas, como a transferência da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), importante instrumento da política agrícola, para o insignificante Ministério do Desenvolvimento Agrário – uma decisão tecnicamente injustificada e obviamente ideológica.

Na política externa, as manifestações mais ostensivas têm sido grotescas ou desastrosas. A viagem à China foi encerrada com uma declaração infantil sobre a predominância do dólar em negócios internacionais. Sem se envolver no episódio ridículo, o presidente Xi Jinping até pode ter gostado da canelada nos Estados Unidos, mas certamente conservará o enorme volume de reservas cambiais em moeda americana, cerca de US$ 3,1 trilhões.

Se a segunda maior economia do mundo conserva esse dinheiro, deve haver uma razão ponderável, assim como deve haver uma boa razão para o uso do euro no dia a dia da União Europeia. Ninguém está proibido de negociar com outras moedas, especialmente em blocos econômicos, mas quem quer acumular reservas em reais, liras turcas ou pesos argentinos? Lula terá, em algum momento, considerado essas questões?

Nem todas as falas de Lula têm sido, no entanto, inconsequentes e engraçadas. Ao tratar como equivalentes um Estado agressor, a Rússia, e um Estado agredido, a Ucrânia, o presidente brasileiro atropelou uma das noções mais importantes do Direito Internacional, enunciada no artigo 51 da Carta das Nações Unidas e amadurecida em séculos de negociações e de elaborações teóricas.

Pelas normas internacionais, a violência só é admissível como resposta a um ataque. Também é inaceitável a chamada agressão preventiva – quando se fala, por exemplo, no perigo potencial gerado pela expansão da Otan ou quando se denuncia, com ou sem razão, a existência de armas de destruição em massa num país qualquer. O ataque à Ucrânia é tão contrário à regra internacional quanto foi a invasão do Iraque no começo deste século.

Pode-se até desculpar, em Lula, a ignorância da lei internacional, mas, neste caso, ele ignorou também uma norma simples do Código Penal e, é claro, uma regra básica da ética e da civilidade. Ao cometer esse erro, alinhou o Brasil à política criminosa de um autocrata. Diante da reação internacional, e certamente aconselhado por auxiliares mais informados e mais sensatos, o presidente mudou suas palavras e condenou, na terça-feira, a violação territorial da Ucrânia. Mas a tentativa de correção soou fraca e foi insuficiente para anular o enorme equívoco das declarações anteriores. Com tantos desastres, Lula talvez entenda, finalmente, a conveniência de falar menos, de consultar mais os assessores mais prudentes e de – afinal – dar mais atenção ao trabalho e começar, de fato, a governar o País.


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Rui Barbosa, internacionalista - Celso Lafer (OESP)

 

RUI BARBOSA, INTERNACIONALISTA!

Celso Lafer, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores
 O Estado de S. Paulo, 16/04/2023

 Rui é um paradigma de advogado que soube valer-se do Direito como instrumento estratégico da sua ação política. Foi o que o singularizou no cenário nacional, mas é também a relevante marca de sua atuação internacional. Dela advém o seu legado para a construção do capital diplomático do Brasil e a contribuição para pioneiramente afirmar o lugar do nosso país no mundo.

A Conferência de Paz de Haia de 1907 foi o primeiro grande ensaio da diplomacia multilateral do século 20, pela abrangência dos 44 Estados soberanos da época que dela participaram. Foi também a primeira expressão da “diplomacia aberta”, sensível às aspirações pacifistas da opinião pública internacional da época.

Rui foi o chefe da delegação brasileira e atuou em estreita coordenação com o chanceler Rio Branco. Tinha todas as qualidades para o novo da diplomacia parlamentar do multilateralismo: o pleno domínio dos assuntos da pauta, a vocação de infatigável trabalhador, a capacidade de exprimir-se – inclusive de improviso e com perfeição – em francês, a língua oficial da conferência. A isso se conjugou a combatividade, que sempre o caracterizou, como advogado, político e parlamentar.

Rui em Haia contestou a igualdade baseada na força e sustentou a igualdade dos Estados lastreada no Direito. Essa contestação colocou em questão o exclusivismo até então preponderante das grandes potências na ordem mundial. Sua posição representou a primeira formulação do Brasil em prol da democratização do sistema internacional. Abriu espaço para respaldar inovadora perspectiva da nossa política externa: a pauta diplomática do País não se circunscreve a questões específicas; transita pelos seus “interesses gerais” na dinâmica do funcionamento da ordem mundial.

Em Haia, Rui valeu-se do Direito como instrumento de sua ação. Tinha muita consciência da interação política/Direito. “Não há nada mais eminentemente político do que a soberania.” A diplomacia, dizia, “outra coisa não é que a política (...) sob a mais elegante de suas formas (...)”.

Traçou neste contexto para o Brasil uma política do Direito Internacional. Esta retém plena atualidade na sintonia com os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil. Em Haia, encontrou o tom certo de um estilo diplomático para afirmar com firmeza e sobriedade a posição independente do País, cuja especificidade era distinta dos que imperavam na “majestade de sua grandeza” e dos que se encolhiam “no receio de sua pequenez”.

Rui fez uma observação que antecipou o tema da credibilidade internacional e do soft power: “Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca em nossos dias os povos subsistem de sua reputação no exterior”.

Outra ação diplomática de Rui foi em Buenos Aires, onde representou o Brasil no centenário da independência da Argentina. Ali, destacou a relevância do potencial de cooperação entre Argentina e Brasil na “ideia a realizar” de uma vasta construção política, econômica e jurídica. É, assim, um patrono da parceria que antecipou a atualidade de um dos temas fortes da agenda diplomática de nosso país.

Em conferência na Faculdade de Direito de Buenos Aires, analisou o impacto no Direito da escalada da violência que estava caracterizando a 1.ª Guerra. Observou que, dada a “interdependência em que as nações mais remotas vivem uma das outras, a guerra não pode isolar-se nos Estados entre os quais se abre o conflito”. Seus estragos e misérias repercutem sobre a fortuna dos povos mais distantes. Antecipou, assim, o tema da indivisibilidade da paz, cuja atualidade a guerra da Ucrânia realça.

Rui extraiu de sua avaliação da guerra um novo papel para a neutralidade: “A imparcialidade na justiça, a solidariedade no Direito, a comunhão na manutenência das leis escritas pela comunhão: eis a nova neutralidade”.

E mais: “Entre os que quebram a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade, e não há imparcialidade entre o Direito e a injustiça. Quando entre ele e ela existem normas escritas, que os definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade: é praticá-la”. Foi nesta moldura jurídica que o Brasil se incorporou aos aliados em 1917. Da lição de Rui tenho me valido para indicar qual deve ser a posição do Brasil na guerra da Ucrânia.

Rui internacionalista voltou-se para a afirmação e a legitimação do lugar do Brasil no mundo. Resultaram de seu empenho em arguir a partir da perspectiva do Brasil, que não era e não é uma grande potência, os méritos da reputação e da credibilidade nacional e, ao mesmo tempo, a validade mais abrangente da domesticação pelo Direito da Força e do Poder, assim como o do benefício da juridicidade nas relações internacionais. Valeu-se neste empenho do Direito com ideias próprias, fruto da transformação reflexiva da abrangência dos seus conhecimentos jurídicos na condução diplomática.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Após denúncias contra diplomatas, Itamaraty realiza seminário para combater assédio - Julia Lindner (OESP)

Após denúncias contra diplomatas, Itamaraty realiza seminário para combater assédio

Por Julia Lindner
Estadão, 16/03/2023 | 06h00

O Itamaraty organizou um seminário interno sobre as condutas exigidas dos diplomatas em serviço no exterior. Proposto pela corregedoria do ministério, terá como um dos temas “Assédio moral e sexual: como evitar e como denunciar”.

No mês passado, o Ministério de Relações Exteriores (MRE) afastou embaixadores do Brasil em Mali e no Kuwait após acusações de assédio moral contra funcionários e ações inapropriadas.

https://www.estadao.com.br/politica/mariana-carneiro/apos-denuncias-itamaraty-realiza-seminario-para-combater-assedio-moral-e-sexual/ 

==========

Se posso oferecer alguma contribuição, seria este livro, no qual consta um capítulo meu, sobre o Itamaraty, mais algumas matérias sobre meu caso pessoal:

4051. “Assédio institucional no Itamaraty: breve abordagem e depoimento pessoal”, Brasília, 21 dezembro 2021, 25 p. Ensaio preparado como colaboração a livro a ser editado pela Afipea, sob coordenação de José Celso Cardoso: “Assédio institucional no Setor Público Brasileiro”, tratando do caso do Itamaraty. Revisão entre 24/12/2021 e 12/02/2022. Publicado in: José Celso Cardoso Jr., Frederico A. Barbosa da Silva, Monique Florencio de Aguiar, Tatiana Lemos Sandim (orgs.), Assédio Institucional no Brasil: Avanço do Autoritarismo e Desconstrução do Estado. Brasília: Afipea; João Pessoa: Editora da Universidade Estadual da Paraíba, 2022, capítulo 9, p. 389-427 (livro disponível no link: https://afipeasindical.org.br/content/uploads/2022/05/Assedio-Institucional-no-Brasil-Afipea-Edupb.pdf); divulgado no blog Diplomatizzando (4/07/2022; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/07/assedio-institucional-no-brasil-avanco.html). Relação de Publicados n. 1448.


3614. “Kafka no Itamaraty”, Brasília, 1 abril 2020, 3 p. Nota sobre a intimidação sobre diplomatas pela Administração do MRE. Divulgada no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/kafka-no-itamaraty-paulo-roberto-de.html), FaceBook (link: https://www.facebook.com/paulobooks/posts/3128277090569053?__cft__[0]=AZVQH0N6bVCmc6pj5lVtkLPG6lEBu1QZ66IBGy8T9XXw7rCaqc_BMEocYXK75Os6L-dw0DGS5gibOM67gEsC6_dOvBmSN0RmVYiMVQS3ommSBbJ0jAM_cahMHU8d6X4VSf4&__tn__=%2CO%2CP-R) e Twitter (https://twitter.com/PauloAlmeida53/status/1246137308098768896). Reproduzido no jornal GGN, de Luís Nassif, son o título “Como Ernesto, o idiota, se tornou chanceler” (3/04/2020, link: https://jornalggn.com.br/artigos/kafka-no-itamaraty-por-paulo-roberto-de-almeida/). Matéria na revista Veja, versão eletrônica, sobre o mesmo tema, “Embaixador vai à justiça contra assédio moral e perseguição no Itamaraty”, por Edoardo Ghirotto (3/04/2020; links: https://veja.abril.com.br/politica/embaixador-vai-a-justica-contra-assedio-moral-e-perseguicao-no-itamaraty/ e https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/embaixador-vai-justica-contra-assedio.html), que remete à matéria “Os veteranos encostados no Itamaraty”, por Denise Chrispim Marin(20/09/2019; link: https://veja.abril.com.br/mundo/itamaraty-veteranos-encostados/); matéria atual reproduzida no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/embaixador-vai-justica-contra-assedio.html) e em diversas ferramentas de comunicação social.


Putin e Netanyahu provam por que coisas ruins acontecem para líderes ruins - Thomas Friedman (OESP)

Putin e Netanyahu provam por que coisas ruins acontecem para líderes ruins

Por Thomas Friedman
15/03/2023 | 20h00Atualização: 16/03/2023 | 07h34

É chocante para mim perceber o quanto Vladimir Putin e Binyamin Netanyahu têm em comum atualmente: ambos consideram a si mesmos grandes enxadristas estratégicos em um mundo que, pensam eles, todos os demais só sabem jogar damas. Mas ambos se equivocaram completamente em sua leitura do mundo em que operam.


Na realidade, eles erraram tão absolutamente que seu jogo dá a parecer que não é xadrez nem damas — é uma roleta russa; e de um só jogador. Roleta russa não deve ser jogada sozinho, mas é assim que ambos se encontram.


Putin pensou que era capaz de capturar Kiev em poucos dias e, portanto, sob um custo muito baixo, usar a expansão russa para a Ucrânia para impedir definitivamente a expansão da União Europeia e da Otan. Ele pode ter chegado perto disso, apesar do fato de seu isolamento e autoilusão terem resultado em seu equívoco em relação ao seu próprio Exército, ao Exército da Ucrânia, aos aliados da Otan, a Joe Biden, ao povo ucraniano, à Suécia, à Finlândia, à Polônia, à Alemanha e à União Europeia. Nesse processo, Putin transformou a Rússia em uma colônia chinesa de produção de energia que implora drones ao Irã.


Para alguém que está no comando do Kremlin desde 1999, é bastante erro.


Netanyahu e sua coalizão acharam que poderiam se sair bem com um rápido golpe no Judiciário disfarçado como uma “reforma” judicial, que os permitiria explorar uma eleição vencida por pouquíssima margem — cerca de 30 mil votos em um eleitorado de 4,7 milhões — para permitir a Netanyahu & Cia. governar sem ter de se preocupar com a única fonte de comedimento e contrapeso no sistema de Israel: seu Judiciário e Suprema Corte independentes.


De maneira interessante, na primeira reunião formal do gabinete de Netanyahu, em dezembro, o primeiro-ministro listou quatro prioridades de seu governo: bloquear o Irã, restaurar a segurança para todos os israelenses, enfrentar a crise no custo de vida e a escassez de moradia e ampliar o círculo de paz entre Israel e os países árabes de seu entorno. Netanyahu não falou nada a respeito de subverter o Judiciário, na esperança de empurrar sua manobra sem o público perceber.


Erro. A vasta maioria da população israelense entendeu tudo imediatamente e respondeu com a maior manifestação pública contra qualquer proposta de legislação já considerada na história do país.


A oposição agora se espalhou por toda a sociedade israelense e além: Netanyahu se equivocou com seu Exército, com o setor de startups de tecnologia de seu país, com Joe Biden e, mostram as pesquisas, com a maioria dos eleitores israelenses. Netanyahu também se equivocou com a base de seu partido: enquanto todas as semanas protestos massivos, de base ampla, têm sido organizados contra sua reforma judicial, nenhuma manifestação em grande escala de suas bases tem ocorrido em apoio à manobra.


Netanyahu equivocou-se até com alguns de seus mais ardentes apoiadores, os judeus americanos de direita. Miriam Adelson denunciou no Israel Hayom — jornal israelense de direita fundado por seu falecido marido bilionário, Sheldon — a maneira com que o primeiro-ministro tenta “avançar apressadamente” com uma mudança tão significativa. Isso levanta “dúvidas sobre objetivos fundamentais e preocupação de que esse movimento seja precipitado, insensato e irresponsável”, escreveu ela, acrescentando, “Motivações ruins nunca ocasionam bons desdobramentos”.


Para um indivíduo no sexto mandato de primeiro-ministro, é muito erro.


E então, o que vem depois? Você adivinhou: Netanyahu e Putin estão culpando agitadores e financiadores estrangeiros por seus problemas. É a cartilha do ditador. Enquanto Putin culpa regularmente os EUA e a Otan por suas derrotas na Ucrânia, o Times of Israel noticiou durante o fim de semana que Netanyahu e sua família começaram a sugerir que o Departamento de Estado é a mão invisível que financia os enormes protestos.


O jornal citou declarações de uma “autoridade graduada do governo” sobre uma viagem recente de Netanyahu a Roma — com uma atribuição de fonte jornalística usada costumeiramente pelo primeiro-ministro para ocultar sua identidade em reportagens — afirmando: “Há um centro organizado, a partir do qual todos os manifestantes se encadeiam de maneira ordenada. Quem financia o transporte, as bandeiras, os palanques? Para nós, isso é evidente.” O jornal acrescentou, “Outro membro do alto-escalão do premiê confirmou que a autoridade graduada se referiu aos EUA”.


Muito tempo no poder

Como dois líderes podem ter errado tanto apesar de estar no poder há tanto tempo? A pergunta responde a si mesma: eles estão no poder há muito tempo. Ambos têm inimigos fortalecidos e rastros de suspeitas de corrupção que lhes fazem sentir que não lhes resta alternativa a não ser governar ou morrer.


No caso de Netanyahu, isso significaria morrer figurativamente: ele está sendo julgado por várias acusações de corrupção e, se for condenado, poderá ser preso e testemunhar o fim de sua vida na política. No caso de Putin, significaria morrer literalmente, pelas mãos de seus inimigos.


Os temores “governar ou morrer” de Netanyahu o levaram a formar uma coalizão com dois condenados pela Justiça e uma galeria de violadores supremacistas judeus. Primeiros-ministros anteriores se esquivaram de muitos deles — incluindo o próprio Netanyahu. Mas em seu desespero, ele teve de buscar esses aliados porque tantos políticos decentes do Likud o abandonaram.


Putin, lamentavelmente, está muito além da construção de coalizão e do compartilhamento de poder. Esse era o Putin 1.0, no início dos anos 2000. O Putin 2.0, depois de 24 anos no comando, sabe bem que um líder como ele — que roubou tanto dinheiro quanto ele — não pode confiar em nenhum sucessor que o permita aposentar-se pacificamente em sua já descrita mansão de US$ 1 bilhão no Mar Negro. (O salário oficial dele é de US$ 140 mil ao ano.) Putin sabe que para continuar vivo ou pelo menos seguir vivendo livremente tem de continuar presidente a vida inteira. Portanto, as duas principais inovações de Putin não passaram das cuecas e guarda-chuvas envenenados para dar cabo de inimigos percebidos.


O mais interessante para mim é como tanto Netanyahu quanto Putin se equivocaram em relação aos seus próprios militares. Putin teve de apelar cada vez mais para presidiários e mercenários para levar adiante a parte mais pesada de seu esforço de guerra na Ucrânia, enquanto dezenas de milhares de russos fugiram para o exterior para escapar da conscrição.


Em Israel, pilotos da Aeronáutica, médicos do Exército e combatentes cibernéticos alertaram que as Forças de Defesa de Israel (IDF) simplesmente não baterão continência para um ditador israelense. Entre os críticos estão três oficiais aposentados liderados por Joab Rosenberg, ex-vice-diretor de análise da inteligência militar de Israel, que foi a Washington arregimentar apoio americano para impedir o golpe em câmera-lenta de Netanyahu.


Como disse recentemente Moshe Ya’alon, ex-ministro da Defesa de Netanyahu e ex-chefe do Estado-Maior israelense, em um comício em Tel-Aviv: “De acordo com minha experiência pessoal como soldado e comandante, se, Deus nos livre, Israel se tornar uma ditadura, nós não teremos soldados suficientes dispostos a sacrificar sua vida para defender o país, e isso provocará uma ameaça existencial ao Estado de Israel. Basta ver o pobre desempenho das Forças Armadas de Putin, sem espírito, nem confiança em seu ditador e seu caminho”, para perceber o que uma ditadura faz com um Exército.


Finalmente, Putin e Netanyahu subestimaram completamente a velocidade com que o rebanho de investidores globais fugiria de seus países diante de seu comportamento irresponsável. De acordo com o banco de dados fDi Markets, do Financial Times, no ano passado apenas 13 projetos de investimento estrangeiro direto foram detectados na Rússia, “o nível mais baixo desde que os registros começaram, em 2003″.


https://www.estadao.com.br/internacional/thomas-friedman-putin-e-netanyahu-provam-por-que-coisas-ruins-acontecem-para-lideres-ruins/

O temor de uma crise global: mercados financeiros cresceram enormemente - Celso Ming (OESP)

A ameaça de crise global | Crise no mercado financeiro exigirá dos bancos mecanismos de autodefesa, como contração de crédito e redução dos juros, que vão comprometer ainda mais a economia global


Por Celso Ming

             O Estado de S. Paulo, 15/03/2023


O colapso do Silicon Valley Bank nos Estados Unidos é a ponta de um iceberg que mostra vulnerabilidades do sistema financeiro global.


Por tudo quanto se sabe, o banco quebrou não por fraude ou por aplicação em ativos de qualidade duvidosa. Quebrou porque estava superaplicado no mais seguro título do mundo, o do Tesouro dos Estados Unidos (o treasury).



É fácil entender por que o treasury pode se desvalorizar e deixar um grande banco na pior, como aconteceu. Se os juros sobem rapidamente, os detentores de títulos não conseguem revendê-los no mercado pelo mesmo preço de face. Numa conta sem rigor aritmético, um treasury de US$ 1 mil que paga juros de 2% ao ano rende US$ 20 ao ano. Se os juros sobem para 5% ao ano, o novo treasury paga US$ 50 ao ano. Para render os mesmos US$ 50, o título de US$ 1 mil com juros contratuais de 2% ao ano tem de ser negociado no mercado a US$ 953. No caso do Silicon Valley, os correntistas correram aos saques – o banco teve de vender seus ativos a preços mais baixos e, de uma hora para outra, ficou sem caixa.


Isso não tem a ver com falta de segurança do título. Bastaria esperar pelo vencimento para garantir os retornos contratuais. O que houve foi um descasamento de prazos. Se essa complicação derrubar mais bancos, com fragilidades dessa ou de outra ordem, como é o caso do Credit Suisse, poderá tornar-se crise sistêmica.


No final dos anos 1970 e início dos 1980, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), dirigido então por Paul Volcker, atirou de repente os juros para 20% ao ano para combater a inflação. Mas, apesar da forte recessão que se seguiu, nada parecido aconteceu, porque o mercado financeiro dos Estados Unidos e do mundo era relativamente pequeno. Em 2015, o valor total dos ativos das instituições financeiras do planeta era de US$ 325 trilhões, cerca de quatro vezes o PIB global daquele ano. Hoje, está em torno de mais de US$ 485 trilhões. Uma trinca nessa barragem ficou muito mais perigosa.


Agora os organismos reguladores do sistema financeiro global e os grandes bancos centrais têm de dar prioridade para debelar o risco de uma crise sistêmica. Isso exige redução dos juros – o contrário do que vinha sendo programado. A dominância financeira, digamos assim, impede que os grandes bancos centrais executem a política monetária (política de juros) mais adequada para reconduzir a inflação para as metas estabelecidas.


Essa não é a única consequência macroeconômica importante. Os bancos serão obrigados a acionar mecanismos de autodefesa e isso exigirá contração do crédito e, assim, cobrará um preço em recessão.


Embora esteja menos exposto do que os países centrais, o Brasil não está ileso. O Banco Central do Brasil provavelmente terá de reduzir os juros. Forte retração do crédito, já restringido pelo fator Americanas, ficou mais provável. E o climão geral está mais para algum contágio via recessão.


https://www.estadao.com.br/economia/celso-ming/a-ameaca-de-crise-global/


China de Xi Jinping persegue maior relevância global - Joe McDonald (OESP)

 China de Xi Jinping persegue maior relevância global


Governo chinês tem sido cada vez mais assertivo desde que líder assumiu o poder, em 2012

Por Joe McDonald

ESTADÃO 13/03/2023


O presidente Xi Jinping conclamou a China a desempenhar um papel maior nos assuntos globais nesta segunda-feira, 13, após o governo chinês marcar um golpe diplomático ao se posicionar como anfitrião das negociações que produziram acordo entre Arábia Saudita e Irã no sentido da reabertura de suas relações diplomáticas.


Xi não deu detalhes sobre os planos do Partido Comunista, governante, no discurso que pronunciou na legislatura cerimonial da China. Mas o governo chinês tem sido cada vez mais assertivo desde que Xi assumiu o poder, em 2012, e pediu mudanças no Fundo Monetário Internacional (FMI) e outras entidades que, segundo Pequim, não refletiam os desejos de países em desenvolvimento.


A China deveria “participar ativamente na reforma e construção do sistema de governança global” e promover “iniciativas globais de segurança”, afirmou Xi, o líder chinês mais poderoso em décadas. Isso adicionará “energia positiva à paz mundial e ao desenvolvimento”, afirmou.


Na sexta-feira, Xi foi nomeado para exercer mais um mandato na presidência cerimonial, após romper com a tradição, em outubro, e se outorgar um terceiro mandato de cinco anos como secretário-geral do partido governante, colocando-se a caminho de se tornar líder vitalício.


O Congresso Nacional do Povo cimentou no domingo o domínio de Xi, endossando a indicação de seus apoiadores para primeiro-ministro e outras graduadas funções, em uma mudança que ocorre a cada década. Xi escanteou possíveis rivais e povoou os cargos mais graduados do partido governante com seus apoiadores.


O novo primeiro-ministro, Li Qiang, tentou tranquilizar empreendedores na segunda-feira, mas não deu detalhes sobre possíveis planos para melhorar as condições após o governo de Xi passar a década recente fortalecendo empresas estatais que controlam os setores bancário, energético, metalúrgico e das telecomunicações, entre outros.


Os comentários de Li ecoaram promessas feitas por outros líderes chineses nos últimos seis meses de apoiar empreendedores que gerem empregos e riqueza. Eles prometeram simplificar regulações e impostos, mas não deram nenhuma indicação de que pretendam controlar empresas estatais que, reclamam os empreendedores, drenam seus lucros.


O partido governante “tratará empresas de todos os tipos de propriedade igualmente” e “apoiará desenvolvimento e crescimento de empresas privadas”, afirmou Li. “Nossos principais quadros em todos os níveis devem cuidar sinceramente das empresas privadas e servi-las.”


Anteriormente, autoridades chinesas indicaram a realização de operações antimonopólio e de segurança de dados que retiraram dezenas de bilhões de dólares do valor de mercado das ações do gigante do comércio online Alibaba Group, e outras empresas de tecnologia estavam fechando. Mas os empreendedores se animaram novamente em fevereiro, quando um banqueiro famoso, que desempenhava um papel importante nos contratos do setor de tecnologia, desapareceu. A empresa de Bao Fan afirmou que ele está “cooperando em uma investigação”, mas não deu detalhes.


Li afirmou que criação de emprego será prioridade de Pequim, conforme o governo tenta ressuscitar o crescimento econômico, que despencou para 3% no ano passado, ao segundo menor nível em décadas. A meta oficial de crescimento para este ano é de “aproximadamente 5%”.


‘Dividendo demográfico’

O primeiro-ministro afirmou estar confiante de que a China será capaz de prosperar enquanto sua força de trabalho encolhe. O número de possíveis trabalhadores com idades entre 15 e 59 anos caiu mais de 5% em relação ao pico registrado em 2011, um declínio excepcionalmente abrupto para um país de renda média.


Segundo Li, ainda que a China esteja perdendo seu “dividendo demográfico” de trabalhadores jovens, mais educação significa que o país está ganhando um “dividendo em talentos”. Ele disse que cerca de 15 milhões de pessoas ainda ingressam anualmente na força de trabalho. “Recursos humanos abundantes ainda são a vantagem notável da China”, afirmou ele.


No exterior, a força de Pequim tem se construído sobre o volume de crescimento da China e sua posição enquanto segunda maior economia a promover iniciativas de comércio e infraestrutura que, preocupam-se Washington, Tóquio, Moscou e Nova Délhi, expandirão a influência estratégica dos chineses à sua custa.


Esses esforços incluem a Iniciativa Cinturão e Rota, para a construção de portos, ferrovias e outras infraestruturas relacionadas ao comércio em um arco de países que se estende do Sul do Pacífico até Ásia, África e Europa. A China também está promovendo iniciativas em comércio e segurança.


Uma Iniciativa Global de Segurança revelada em fevereiro afirmou que a China está “pronta para conduzir cooperação bilateral e multilateral em segurança com todos os países”. Pequim se ofereceu para ajudar países africanos a resolver disputas e estabelecer “um novo enquadramento de segurança no Oriente Médio”.


Também no mês passado, a China pediu um cessar-fogo na guerra da Rússia contra a Ucrânia. O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, elogiou o posicionamento chinês, mas afirmou que o sucesso de uma trégua necessitaria ações, mais que palavras. Pequim recusou-se a criticar o ataque do presidente Vladimir Putin contra a Ucrânia e acusou países ocidentais de provocar a invasão.


O governo de Xi desafiou EUA e Austrália no início de 2022 quando assinou um acordo com as Ilhas Salomão que permitirá que navios da Marinha e de forças de segurança da China permaneçam estacionados no país do Pacífico Sul.


O ministro de Relações Exteriores, Qin Gang, alertou Washington na semana passada a respeito da possibilidade de “conflito e confrontação” se os EUA não mudarem de curso nas relações, que têm sido tensionadas por conflitos sobre Taiwan, direitos humanos, Hong Kong, segurança e tecnologia.


Autossuficiência

Xi pediu na segunda-feira desenvolvimento tecnológico mais ágil e mais autossuficiência, em um discurso carregado de terminologias nacionalistas. Ele mencionou oito vezes o “rejuvenescimento nacional” ou restaurar à China seu lugar de direito enquanto líder econômica, cultural e política. Ele afirmou que, antes do partido governante assumir o poder, em 1949, a China estava “reduzida a um país semicolonial, semifeudal, sujeito a intimidação de outros países”.


“Finalmente nos livramos da humilhação nacional e o povo chinês é mestre de seu próprio destino”, afirmou Xi. “A nação chinesa se levantou, enriqueceu e está se fortalecendo.”


Xi também conclamou seu país a “alcançar indefectivelmente” o objetivo da “reunificação nacional”, uma referência à reivindicação de Pequim sobre Taiwan, a ilha democrática e autogovernada, como parte de seu território, a ser unificada obrigatoriamente à China, pela força se necessário.


O presidente da Micronésia, um arquipélago a leste das Filipinas, acusou a China de “guerra política”, em uma carta de 9 de março obtida pela Associated Press. David Panuelo afirmou que Pequim estava usando espionagem e propinas em um esforço para garantir que a Micronésia fique do lado da China ou neutra em um possível conflito com Taiwan. O Ministério das Relações Exteriores da China negou as alegações. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO


https://www.estadao.com.br/internacional/china-de-xi-jinping-persegue-maior-relevancia-global-leia-a-analise/ 

sábado, 11 de março de 2023

A primeira classe também cai (desindustrialização no Brasil) - Bolívar Lamounier (OESP)

A primeira classe também cai

A questão não é escolher entre a reforma econômica e a política. É ter coragem para fazer as duas ao mesmo tempo. Sem isso, cedo ou tarde vamos para o buraco

 

* Bolívar Lamounier, O Estado de São Paulo

  11 de março de 2023

 

Nem uma criança de dez anos imagina que um avião, quando cai, se divide em duas partes, a dos pobres esborrachando-se no chão e a dos ricos seguindo normalmente o voo.

Nos céus, a hipótese é delirantemente fantasiosa. Na terra, nem tanto. Já aconteceu, e aqui mesmo, entre nós. A indústria brasileira chegou a representar 27% do Produto Interno Bruto (PIB). Caiu para 11%, metade da primeira classe. Hoje, o que a sustenta, e o resto da aeronave, é a outra metade da primeira classe, principalmente a exportação de commodities, e queira Deus que o crescimento da China se mantenha.

A queda da indústria no PIB deveu-se em sua maior parte ao chamado “custo Brasil”, que talvez devesse ser rebatizado “custo Brasília”, à força da competição internacional, mas talvez em sua maior parte ao próprio empresariado industrial, que desde os tempos getulistas pretendeu assistir ao filme pagando meia-entrada, como se fosse estudante. Quebraram todos. Quebrou a indústria. Quebrou o governo. E quebraram os cinemas – essa talvez a pior perda.

No fundo, tudo se resume ao fato de o País não ter uma elite digna do nome. Desde o final do século 19, o mundo tem vivido duas situações. Ou tem uma elite bem caracterizada, mas que em certos momentos se comporta como um bando de jumentos, ou não a tem e passa a depender de um só líder. Na Alemanha, nas três primeiras décadas que precederam a 1.ª Guerra Mundial, ocorreram as duas coisas ao mesmo tempo. Havia uma cabeça capaz de pensar, a do primeiro-ministro Otto von Bismarck. Não por acaso, o Kaiser o demitiu em 1890. Em todos os outros países predominava a outra situação. Havia elites, e todas queriam a guerra contra os demais, com fins expansionistas. Foram, e aprenderam a lição: 20 milhões de mortos em combate mais 21 milhões de vítimas da gripe espanhola, consequência direta da guerr a.

Reduzidas as proporções – porque nossa briga é de cachorro pequeno –, uma situação análoga veio à tona em 1944, no debate entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin, e ecoava o emergente profetismo de Celso Furtado, que pregava a industrialização de qualquer jeito, pela substituição de importações, tendo como trunfo, nos anos seguintes, o abundante contingente de “paus-de-arara” que começou a vir do Nordeste e os parcos recursos que o Estado arrancava da sociedade e transferia aos industriais-estudantes. Na posição contrária, estava o economista Eugênio Gudin, que advogava um crescimento industrial balanceado entre indústria e agricultura. Recorde-se que, àquela altura, os pregoeiros da industrialização a qualquer preço viam a agropecuária como um zero à esquerda, desinformados de que a revolução pecuária já estava em marcha, deflagrada pelos fazendeiros de Uberaba, que haviam viajado à Índia para trazer os primeiros espécimes das raças zebuínas.

O problema, pois, como se vê, é que o Brasil nunca teve e não tem uma elite que se possa levar a sério. Permito-me recordar-lhes que elite não é uma casta com ares aristocráticos nem um grupo de bilionários sem vocação empresarial, que só pensa em conhecer todos os recantos do mundo. Não temos uma elite e temos, logo ali, espreitando-nos, um baita dilema. De um lado, a velha forma de crescer com recursos supridos por um Estado falido, fórmula perempta, mas que continua a contar com apoio político. Do outro, nosso longamente esperado “estalo de Vieira”: uma economia mais aberta, investimentos estrangeiros para um setor privado dinâmico, uma revolução tecnológica (como a que Estados Unidos e Japão fizeram cada um nas três últimas décadas do século 19) e uma revoluç ão política que liquide de vez a cabeça patrimonialista de nossa máquina de Estado.

O que acima foi dito leva à inevitável conclusão de que os 50% de miseráveis que vivem da mão para a boca nada podem ser responsabilizados por nenhuma ocorrida no céu ou na terra, no passado ou no futuro, com ou sem vítimas mortais. Aqui, estamos falando de um grupo que ganhou numa Mega Sena invertida, aquele que vive em favelas, nas periferias, debaixo de viadutos – ou na rua mesmo, quando até nas favelas lhe faltam vagas. Volta e meia me perguntam: “Mas não foi ela que elegeu os que mandam no País?”. É claro que foi. É a lei da oferta e da procura. Votou (com o voto obrigatório) no que lhe foi ofertado.

Queira Deus que Lula, que de Getúlio já herdou o figurino de “pai dos pobres”, não queira também herdar o de profeta da industrialização com recursos públicos inexistentes. Ou melhor, recursos existentes, mas que estão ferreamente guardados nos colchões da multidão de picaretas corporativistas e numa infinidade de patifarias insculpidas na Constituição e nas leis estaduais e municipais. A questão não é escolher entre as duas reformas acima alinhavadas, a econômica e a política. É ter coragem para fazer as duas ao mesmo tempo. Sem isso, esteja o leitor certo de que cedo ou tarde vamos para o buraco, no céu ou na terra, e qualquer que seja a nossa classe.

*CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A nova ordem econômica global e o Brasil - Rubens Barbosa (OESP)

A NOVA ORDEM ECONÔMICA GLOBAL E O BRASIL

 

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 28/02/2023


Em termos econômicos, desde o fim da Grande Guerra, em 1945, o liberalismo se impôs, com a redução do papel do Estado e a força do livre comércio, com a criação do FMI, Banco Mundial e GATT (depois OMC). A globalização, que aproximou países, empresas e pessoas, possibilitou a proliferação de acordos comerciais e o estabelecimento de cadeias produtivas baseadas na eficiência. O fim da URSS em 1991, com a nova ordem baseada em uma única superpotência, a entrada da China na OMC em 2001 e a realocação das cadeias produtivas para a China, confirmaram a ordem liberal. A volta da China como potência econômica e comercial global, trouxe o elemento geopolítico na cena econômica. Com Donald Trump, em 2017, são introduzidas medidas restritivas dos EUA contra a China, começa o esvaziamento da OMC e a perda de força das regras multilaterais de comércio. Essa tendencia é agravada pela pandemia e mais recentemente pelo conflito Rússia/Ucrânia e pelas tensões entre China e Taiwan, acelerando a configuração de uma nova ordem econômica.

                A nova ordem econômica mostra que a eficiência na definição de políticas econômicas é substituída por objetivos de segurança, soberania e poder. Evidências disso são o ataque ao livre comércio, a negociação de acordos comerciais regionais (não bilaterais), a realocação das cadeias produtivas, o crescente número de restrições comerciais por razões políticas e a busca de autossuficiência. A globalização passa por importantes ajustes com a descentralização das cadeias de produção, pelo aumento dos subsídios, do custo transporte e pela desorganização e os altos preços nos mercados agrícola e energético. Considerações sobre meio ambiente e mudança de clima passaram a ter impacto sobre as negociações comerciais. O nacionalismo representado pelo fortalecimento das economias domésticas para conseguir uma autonomia soberana em áreas consideradas estratégicas e a definição de novas políticas industriais nos EUA afetaram diretamente o liberalismo e o livre comércio, gerando tensões, com impactos globais. O populismo fortaleceu o intervencionismo protecionista. Considerações de poder, com base na segurança nacional passaram a influir na aplicação de controle de exportações como arma política, como as sanções, que incluíram, entre outras, a limitação do comércio dos semicondutores, a retirada de empresas chinesas da Bolsa de NY e o congelamento de reservas. Assim, a emergência da China e da Ásia como eixos de poder econômico, a disputa com os EUA, a guerra Rússia/Ucrânia, podem levar a uma nova Guerra Fria, em outras bases, com divisão do mundo (Ocidente/Eurásia), não em função de disputa ideológica ou militar, mas econômica, tecnológica e comercial.

                Em resumo, a nova ordem econômica está baseada na segurança de abastecimento e não no “just in time”; na realocação das cadeias produtivas, na segurança energética, no controle de investimentos, na formação de blocos regionais, na utilização da moeda como arma geopolítica e no mundo com crescimento reduzido e alta inflação.

                Qual o impacto da nova ordem sobre o Brasil? Colocando a casa em ordem, com políticas econômicas que respondam com eficiência aos desafios internos de aumento da produtividade e competitividade, e com uma visão pragmática em relação as transformações econômicas e políticas que estão correndo, poderíamos ser um dos beneficiários das novas circunstâncias internacionais.

A emergência da China e da Asia, sob o aspecto econômico, foi muito favorável aos produtos agrícolas brasileiros que encontraram novos mercado e preços elevados, tornando o Brasil um dos três maiores exportadores mundiais de alimentos. A realocação das cadeias de produção poderá abrir oportunidades para o Brasil em nível regional com investimentos em áreas de nosso interesse. O mercado de carbono, com a adequada proteção do meio ambiente, em especial da Floresta Amazônica, poderá representar ganhos financeiros significativos para empresas e para o país.

Esse é o pano de fundo quando se diz que o mundo mudou, coincidindo com o início do novo governo. São muitas as consequências negativas da nova ordem econômica sobre o Brasil. Estarão elas sendo levadas em conta pelo atual governo com visão estratégica? Como enfrentar o enfraquecimento do multilateralismo, com a perda de relevância da OMC, deixando países como o Brasil sem proteção jurídica para o desrespeito das regras internacionais? Como enfrentar as restrições comerciais políticas, os altos custos, a transformações tecnológicas com o 5G e a Inteligência Artificial? Como serão respondidas as restrições às exportações brasileiras, sobretudo pela política ambiental em relação à Amazonia, assim como aquelas em função da aprovação de nova regulamentação europeia de desmatamento? Como reduzir a vulnerabilidade, representada pela concentração das exportações em poucos mercados e produtos, e a dependência dos semicondutores, fertilizantes e insumos farmacêuticos. E a política para a reindustrialização?

Estamos voltados aos temas do século passado como a conclusão das negociações do Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia, o ingresso na OCDE e o financiamento de projetos em países vizinhos. 

Acorda Brasil!

 

Rubens Barbosa, presidente do IRICE e ex-embaixador em Londres e Washington


quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

O Mercosul à procura de um autor - Rubens Barbosa (OESP)

                                       O MERCOSUL A PROCURA DE UM AUTOR

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 13/12/2022


No dia 1 de janeiro, Lula assume a direção da máquina burocrática brasileira com enormes desafios políticos, econômicos, orçamentários, na área de educação, saúde, ambiental, cultural e por fim, mas não menos importante, na área externa. As questões políticas pendentes no âmbito do Mercosul são um desses desafios. 

O novo governo – a exemplo da Argentina - está indicando querer reabrir as negociações com a União Europeia para modificar certas decisões sobre a participação da indústria. Será que os outros concordam? A União Europeia tem dupla preocupação antes de colocar em vigência o acordo: assegurar o cumprimento das disposições sobre comércio e desenvolvimento sustentável, um dos capítulos do acordo, sem atrasar muito o já demorado processo de ratificação junto ao Parlamento Europeu. Para tanto, está sendo cogitado o fatiamento da aprovação do acordo: as cláusulas econômicas e comerciais entrariam em vigor imediatamente e as ambientais seriam mais demoradamente examinadas. Deve ainda ser lembrado que a UE está aprovando medidas restritivas a produtos agrícolas do Mercosul dentro da legislação de desmate de florestas e de descarbonização de empresas europeias (CBAM). 

O Uruguai, sem nenhuma coordenação com seus parceiros, e no contexto do que chamam de flexibilização do Mercosul, tomou duas iniciativas que despertaram reações negativas dos demais membros do Grupo sub-regional: iniciou conversas isoladas para assinatura de acordo individual com a China e agora pede a adesão ao antigo acordo TPP, que inclui 11 países asiáticos, liderados pelo Japão (os EUA se retiraram e a China cogita pedir a adesão). As iniciativas do Uruguai, algumas vezes estimuladas pelo ministro Paulo Guedes, `a revelia do Itamaraty, não teriam acontecido se o Brasil não tivesse abdicado de sua liderança da América do Sul e no Mercosul. Com a volta do Brasil, como disse o presidente eleito, as duas propostas serão de alguma maneira absorvidas e não deverão prosperar.  Tendo na Asia nosso principal parceiro comercial, com destaque para a China, no caso do ex-TPP, seria de nosso interesse examinar mais detidamente o assunto e talvez fazer o pedido de adesão coletivo do Mercosul. O pedido seria diplomático e levaria tempo para que os 11 países possam responder. Não haveria nenhuma negociação comercial pelo menos por um ano.

 

Com o Paraguai, além de projetos de fronteira que estão caminhando bem, há alguns temas difíceis que o novo governo vai ter de enfrentar logo no primeiro ano de governo: a renegociação do Anexo C do Tratado de Itaipu (não o Tratado de Itaipu) no tocante aos preços da energia gerada pela hidrelétrica, depois da finalização do pagamento em 2023 da dívida contraída para a sua construção. Em paralelo, o governo do Paraguai está pressionando o governo brasileiro para a construção de uma eclusa para permitir a total navegabilidade do Rio Paraguai, facilitando e ampliando o trânsito de mercadorias, agrícolas e minerais até os portos na saída da Bacia do Prata.

Por outro lado, a Venezuela está suspensa do Mercosul pela invocação da Cláusula Democrática, sem previsão de volta plena para o âmbito do grupo. A Bolívia por seu turno, desde o governo de Dilma Rousseff, está com seu pedido de adesão ao Mercosul parado em exame no Congresso Nacional. O novo governo brasileiro deveria encaminhar decisões a respeito dessas questões, de acordo com seu interesse, sem considerações ideológicas ou partidárias.

No tocante à União Europeia, não seria oportuno, nem condizente com nossos interesses, reabrir as negociações do acordo, o que adiaria ainda mais sua entrada em vigor. A solução de dividir o acordo aceleraria a ratificação e projetaria o Mercosul no complexo cenário internacional como uma alternativa viável para a ampliação das regras e do comércio bilateral ou regional. O Protocolo Adicional sobre as obrigações na área ambiental, se não for além do que está previsto no acordo não criaria maiores problemas. No tocante às restrições comerciais em processo de elaboração, a nova política ambiental e externa para a mudança de clima deveria ser transmitida de imediato às autoridades europeias para mostrar que elas não deveriam ser aplicadas ao Brasil pelas novas políticas ambientais de preservação da Amazônia na linha da preocupação europeia, como aliás já fizeram Noruega e Alemanha ao reconstituir o Fundo Amazônico.


Quanto à suspensão da Venezuela e a adesão da Bolívia, a simples discussão dos assuntos terá forte implicação para a política interna no Brasil e não seria oportuno acelerar qualquer decisão que promova a participação plena dos dois países, antes do encaminhamento de soluções para a democratização e o resguardo dos direitos humanos. Além disso, a volta e a entrada dos dois países não deveriam colocar em segundo plano as negociações comerciais, nem trazer de volta a experiência do Mercosul político e social dos governos anteriores do PT.

 

A reunião presidencial do Mercosul, realizada na semana passada, pouco acrescentou à discussão comercial e ainda agravou a tensão entre o Uruguai e a Argentina, pela ameaça de ruptura e pelos ataques do presidente argentino ao uruguaio sobre o TPP.

 

Rubens Barbosa, presidente do IRICE e membro da Academia Paulista de Letras.