Ainda há militares em Brasília?
Merval PereiraO Globo, domingo, 10 de julho de 2022
A exacerbação da retórica radicalizada do presidente Bolsonaro à medida que se aproximam as eleições, com indicações de dificuldades quase intransponíveis para sua reeleição, demonstra que ele não está aceitando a derrota e prepara o terreno para uma subversão do resultado. Informações não desmentidas de que a recente reunião ministerial, além da ilegalidade de ter tratado da campanha eleitoral, foi uma exaltação a um golpe de Estado com ares de legalidade, fazem com que o sinal de alerta tenha sido ligado em diversas instituições democráticas, e provocou a denúncia do Observatório para Monitoramento dos Riscos Eleitorais no Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Bolsonaro ameaçou as eleições novamente na reunião ministerial no Planalto. O caso é mais sério porque o general Braga Netto, ex-ministro da Defesa, estava presente, e o atual ministro da pasta, general Paulo Sergio, respaldou as ameaças, ao afirmar que o TSE não respondeu às demandas das Forças Armadas. O primeiro absurdo é fazer reunião ministerial para tratar de eleições durante o expediente dentro do Palácio do Planalto, e pedir aos ministros que participem da campanha.
Os relatos indicam que o presidente disse que, se as informações pedidas pelas Forças Armadas não forem dadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ele não participará da eleição. Isso é diferente de “não vai ter eleição”, como vinha ameaçando. Pode desistir, se sentir que vai perder já no primeiro turno? Não parece de seu feitio, o que aumenta a possibilidade de que pode tentar decretar um estado de sítio, ou medida semelhante. O que passa pela cabeça dele não pode ser coisa boa, porque está batendo com muita persistência nas urnas eletrônicas, e nos dias mais recentes tem claramente estimulado uma reação de seus seguidores: “Vocês sabem o que têm que fazer”, disse Bolsonaro nada enigmático.
Ele não tem escrúpulo, vai avançando sobre as leis e sobre os limites, e os tribunais ficam numa situação difícil porque, se impugnarem sua candidatura, o que já merecia ter acontecido, tantas são as ilegalidades que comete, irão provocar uma grande reação – que é o que ele quer -, e, se não fizerem nada, permitem o avanço sobre a democracia. Como o Congresso tem a maioria governista e está fazendo manobras para aprovar benesses sociais para ajudá-lo, não há medida de contenção à vista.
Como estamos antevendo uma tentativa antidemocrática de contestação dos resultados da eleição presidencial como a levada adiante pelo então presidente Donald Trump com a invasão do Capitólio em Washington, seria bom também relembrar episódios edificantes das Forças Armadas dos Estados Unidos na contenção dessa tentativa de golpe. A principal autoridade militar dos EUA, o chefe do Estado-Maior Conjunto, general Mark Milley, tão preocupado estava em que o então presidente e seus aliados tentassem um golpe que se uniu a outras autoridades com o objetivo de parar Trump.
Não foi apenas o comunicado oficial colocando de prontidão as Forças Armadas para defender a democracia. O livro dos repórteres do The Washington Post Carol Leonnig e Philip Rucker, ganhadores do Prêmio Pulitzer, intitulado I Alone Can Fix It ( “Só eu posso resolver”, em tradução livre), uma frase usada por Trump que os autores ironizam, descreve como Milley e os outros membros do Estado-Maior tomaram a decisão de renunciar para não cumprir ordens que considerassem “ilegais, perigosas ou imprudentes”.
A obra conta os bastidores do último ano do “catastrófico” governo de um Trump desequilibrado após perder a eleição de 2020. Milley conversou com autoridades e políticos, e garantiu que Trump e seus aliados não conseguiriam fazer nada sem os militares: “Eles podem tentar, mas não vão conseguir. (…) Não dá para fazer isso sem a CIA e o FBI. Nós somos os caras com as armas”.
Ele acreditava que Trump estava fomentando uma agitação com o intuito de invocar a Lei de Insurreição e convocar os militares. Após a insurreição de 6 de janeiro, o livro diz que Milley fez teleconferências diárias com Mark Meadows, chefe de gabinete de Trump, e o então secretário de Estado Mike Pompeo, assim como com a presidente do Congresso, Nancy Pelosi. Quando Trump demitiu o secretário de Defesa Mark Esper em novembro, Pelosi foi um dos vários congressistas que ligaram para o general Milley. “Estamos todos confiando em você”, disse. “Lembre-se de seu juramento”.
Após a insurreição de 6 de janeiro, Pelosi disse ao general que estava preocupada com a possibilidade de que Trump , que ela considerava louco, usasse armas nucleares durante seus últimos dias no cargo. Ele a tranquilizou: “Seguiremos apenas ordens legais. Só faremos coisas que sejam legais, éticas e morais”.
Por que não relembramos esses episódios de resistência democrática de militares, ou ainda o julgamento a que está sendo submetido Donald Trump pelo Congresso dos Estados Unidos, para exorcizar essas ameaças ? A frase famosa “Ainda temos juízes em Berlim”, que enaltece a independência do judiciário a favor de um camponês que estava sendo ameaçado pelo rei Frederico II, merece uma repetição: “ Ainda temos militares em Brasília?”.