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terça-feira, 5 de setembro de 2017

A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016: livro de Rubens Ricupero (em breve)

Rubens Ricupero lança
 “A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016”

Em edição de capa dura e ilustrada, obra única sobre a história das relações do Brasil com o mundo terá lançamentos em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte, a partir do dia 3 de outubro

Poucos países devem à diplomacia tanto como o Brasil. Além da expansão do território, em muitas das principais etapas da evolução histórica brasileira, as relações exteriores desempenharam papel decisivo. Com seus acertos e erros, a diplomacia marcou profundamente a abertura dos portos, a independência, o fim do tráfico de escravos, a inserção no mundo por meio do regime de comércio, os fluxos migratórios, voluntários ou não, que constituíram a população, a consolidação da unidade ameaçada pela instabilidade na região platina, a industrialização e o desenvolvimento econômico.

Até recentemente, a história das relações diplomáticas do Brasil se refugiava quase em notas ao pé da página ou, no melhor dos casos, em parágrafos esparsos dissociados do eixo central da grande narrativa. Com uma carreira dedicada ao serviço público, especialmente ao Itamaraty e à ONU, o diplomata e professor Rubens Ricupero enfrentou o desafio de “inserir o fio da diplomacia na teia sem costura da vida nacional, da qual é indissociável”. Aos 80 anos,  lança obra que é fruto de uma vida de ensino da história da política exterior brasileira: A diplomacia na construção do Brasil (Versal Editores).

As primeiras de uma série de palestras seguidas de sessões de autógrafos pelo país serão realizadas nos dias 3/10 no CIEE,  4/10, na FAAP e em 7/10, na Japan House, em São Paulo; dias 18 e 20/10, no Rio de Janeiro, respectivamente na Livraria Argumento do Leblon e no Itamaraty; e nos dias 9 e 10/10, em Brasília.

Com capa dura, 784 páginas e ilustrado com mapas, desenhos cartográficos e 80 imagens da história e da diplomacia, o livro analisa a diplomacia como causa e consequência da política interna e da economia do período colonial até os dias de hoje, incluindo a atual
crise brasileira. Mostra, ao mesmo tempo, como a política externa contribuiu para a definição dos valores e ideais da identidade do país, de como os brasileiros se veem a si mesmos e sua relação com o mundo.

 Com documentos originais dos arquivos norte-americanos, o livro traz revelações novas sobre episódios como a intervenção militar de 1964 nos seus aspectos externos. Recorre a perspectivas comparativas com países latino-americanos e os Estados Unidos e renova a maneira de examinar a diplomacia em estreita ligação com os fatos políticos e as condições econômicas. “A ambição da obra é dialogar com os estudantes e também com aqueles que se interessam pela história do Brasil e sentem curiosidade pela forma como o país se relacionou com o mundo exterior e foi por ele influenciado”, explica o autor.


A DIPLOMACIA NA CONSTRUÇÃO DO BRASIL
Autor: Rubens Ricupero
Editora: Versal Editores
Formato:  17,5 x 24 cm
Páginas: 784
Preço: R$ 89,90

EVENTOS DE LANÇAMENTO
3 de outubro – São Paulo
Horário: 19,00 h
Onde: CIEE – Centro de Integração Empresa-Escola
Rua Tabapuã, 540 Itaim Bibi

4 de outubro - SÃO PAULO
Horário: 18,30h
Onde: FAAP, Centro de Convenções,
Rua Alagoas, 903 Higienópolis

7 de outubro- SÃO PAULO
Horário: 10,30h
Onde: Casa do Japão, na Avenida Paulista, 58


9 e 10 de outubro - BRASÍLIA
Quando: 9 de outubro, 17hs; palestra seguida de coquetel
Onde: Palácio Itamaraty, Auditório Wladimir Murtinho

Eventos a serem determinados para o dia 10/10

18 de outubro - RIO DE JANEIRO
Horário: 19h
Onde: Livraria Argumento Leblon

20 de outubro – RIO DE JANEIRO
Horário: 10:00h
Onde: Palácio do Itamaraty
 Debate com a participação de Rubens Ricupero, Marcos Azambuja e Gelson Fonseca (Celso Lafer a confirmar).

SOBRE O AUTOR
Nascido em São Paulo em 1937, Rubens Ricupero ingressou no Instituto Rio Branco em 1958 e iniciou a carreira diplomática em 1961.

Embaixador do Brasil junto às Nações Unidas em Genebra, Suíça, nos Estados Unidos e na Itália, foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, ministro da Fazenda durante a implantação do Real, subchefe da Casa Civil e assessor especial do presidente José Sarney. Atuou como assessor de política externa de Tancredo Neves na campanha para a Presidência da República, em 1984/5, e registrou a experiência no livro Diário de bordo: a viagem presidencial de Tancredo Neves (2010). Entre 1995 e 2004, dirigiu como Secretário Geral a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), em Genebra.

Diretor, mais tarde Decano, da Faculdade de Economia e Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), professor do Instituto Rio Branco e da Universidade de Brasília, colaborador dos mais influentes órgãos de imprensa do país e de publicações especializadas nacionais e estrangeiras, Ricupero é autor de nove livros sobre história diplomática, política, comércio e economia internacional, entre os quais se destacam Rio Branco: o Brasil no mundo (2000), O Brasil e o dilema da globalização (2001), Esperança e Ação A ONU e a busca de desenvolvimento mais justo (2002). A diplomacia na construção do Brasil é sua mais recente obra.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

A Corrupcao da Inteligencia - livro de Flavio Gordon (entrevista, OESP)


 Para Flavio Gordon, a inteligência de esquerda, que apoia o PT, também deveria responder pela corrupção ocorrida nos governos petistas

‘Os intelectuais se tornaram cúmplices do poder’, afirma antropólogo
José Fucs, O Estado de S. Paulo, 02 Setembro 2017

O antropólogo social carioca Flavio Gordon, de 38 anos, já apoiou o PT e esteve até na posse de Lula em Brasília, em 2003. Nos últimos anos, dizendo-se decepcionado com as práticas do partido no poder e incensado pelas ideias de pensadores conservadores, como o filósofo e cientista político alemão Eric Voegelin e o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, Gordon deu uma guinada ideológica radical para a direita. Em seu novo livro A Corrupção da Inteligência – Intelectuais e Poder no Brasil (Ed. Record), ele analisa como a esquerda brasileira conquistou a hegemonia na área cultural e faz uma crítica contundente ao papel submisso da intelectualidade nos governos petistas. Em entrevista ao Estado, Gordon diz que os intelectuais de esquerda “se tornaram cúmplices do poder” e também devem ser responsabilizados pelos desvios ocorridos nos governos petistas.

O antropólogo Flavio Gordon, autor do livro 'A Corrupção da Inteligência' Foto: Wilton Junior/Estadão

Para começar, o senhor poderia dizer a que exatamente se refere no livro ao falar dos “intelectuais”? Quem se enquadra nessa categoria?
Uso o termo “intelectual” em dois sentidos, um mais direto e outro mais crítico. O sentido mais direto baseia-se no conceito adotado por Thomas Sowell, intelectual e economista americano. No livro Intelectuais e Sociedade, ele inclui nessa categoria, sem qualquer juízo de valor, todos os que vivem das palavras, que se comunicam com o público, a “classe falante”. São professores e estudantes universitários, principalmente das chamadas humanidades, jornalistas, escritores, críticos, pessoas que lidam com a formação da opinião pública. O sentido mais crítico, no qual me concentrei, é o de Antonio Gramsci, o ideólogo do Partido Comunista Italiano, que vê o intelectual mais no sentido orgânico, como aquele que exerce uma influência política em nome de um determinado partido, que expressa mais ou menos os interesses da classe que ele pretende representar. O Gramsci ampliou o conceito de intelectual e incluiu artistas e influenciadores de opinião. Para ele, qualquer uma pode ser um intelectual e contribuir para reforçar uma determinada visão política e ideológica na sociedade. No livro, eu uso também o termo “inteligência” em dois sentidos ambivalentes. Pode significar tanto a “classe” dos intelectuais, quando se aproxima do conceito russo de inteligentsia, como um atributo individual.

Quando o senhor fala em “corrupção dos intelectuais” o que quer dizer com isso?
Estou me referindo a um processo em que os intelectuais abdicam de sua função primordial, de compreender e explicar a realidade, e querem interferir nos acontecimentos, em especial nos campos político e social. O problema não é os intelectuais se posicionarem politicamente. Isso sempre aconteceu, é natural. O grande problema é conceber a atividade intelectual exclusivamente como militância política. Um autor em que me baseio muito para criticar essa postura é o francês Julien Benda. Ele escreveu um livro clássico em 1927 sobre isso, intitulado A Traição dos Intelectuais, que teve muita influência na minha formulação.

Na prática, como esse fenômeno se manifestou no Brasil?
Depois da vitória do Lula, em 2002, os intelectuais, que tradicionalmente assumem um papel crítico em relação aos governos, se tornaram cúmplices do poder. A partir do momento que o PT dominou a máquina estatal, o “aparelhamento” se intensificou na área cultural. Houve um processo de “instrumentalização” da cultura, em função dos interesses partidários, nas universidades, editoras, redações de jornais, na chamada indústria cultural como um todo. Muitos intelectuais tornaram-se meros reprodutores do discurso oficial do partido e do governo. Outros ficaram em silêncio, adotaram uma postura de cumplicidade muda, com receio de sofrer represálias, ser mal vistos, prejudicar seus ciclos de relações. Foi um triste espetáculo.

O senhor pode citar um exemplo dessa “promiscuidade” dos intelectuais com o poder no País?
O caso do impeachment da Dilma foi escandaloso. Havia uma posição quase unânime na academia, principalmente nas ciências humanas, contrária ao impeachment da Dilma Rousseff. Tivemos até reitores de universidades federais se aproveitando de seu papel institucional para tomar posição contrária ao impeachment, de uma maneira claramente partidária e ideológica. Houve professors universitários de destaque chegando a comparar o impeachment da Dilma com o nazismo. O intelectual, o estudioso, tem de saber que uma coisa não teve nada a ver a outra. Se ele está disposto a sacrificar a própria reputação, a própria credibilidade, falando uma coisa dessas, é porque realmente a inteligência dele já está bastante corrompida.

Historicamente, de que forma se iniciou esse processo no País? Como se criaram as condições para que isso acontecesse?
A partir da década de 1960, começou a haver uma ocupação de espaço no modelo gramsciano, que prega a realização de uma revolução cultural antes da revolução política. A ideia é que antes de se tomar poder do Estado deve se preparar o terreno para quando os comunistas chegarem ao poder. Isso aconteceu nas universidades, nas editoras e também nas redações dos jornais. Criou-se todo um mecanismo de seleção de pessoas e de prestígios baseado nessa ideia de afinidade político-ideológica de esquerda. Passou-se a associar qualquer intelectual que não fosse de esquerda à ditadura. O pensamento conservador, liberal, foi sendo gradativamente banido, tido como não legítimo. A direita no Brasil se transformou num espantalho, numa fantasmagoria.
Até a década de 1950, isso não ocorria. Existia um debate profundo, até violento, entre grandes intelectuais brasileiros, das mais diversas orientações políticas, inclusive nos jornais. As discussões eram públicas. Hoje, na universidade, as opiniões são quase homogêneas. Mesmo que as pessoas não concordem com essa visão, elas acabam não se manifestando para não ter problemas.

Como o PT entra nisso?
Essa influência crescente do Gramsci no Brasil acabou provocando a saída de membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que não concordavam com a visão soviética de Luis Carlos Prestes, que era o grande líder da sigla. Muitos dos intelectuais que introduziram Gramsci no Brasil depois foram fazer parte do PT, no final da década de 1970 e começo da década de 1980, como os editores da Civilização Brasileira, os tradutores Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, que morreu há pouco tempo, cuja participação na fundação do PT foi fundamental. Então, o PT já nasceu mais ou menos nesse contexto, de mudança de postura de integrantes do Partido Comunista para uma visão mais cultural. Aí, muito antes de chegar ao poder, com a eleição do Lula, o PT já tinha conquistado essa hegemonia cultural, como preconizava Antonio Gramsci. Quando o PT chegou ao poder, foi quase como uma coisa inevitável. Toda a narrativa era “finalmente chegou o Partido dos Trabalhadores”, “o encontro do Brasil consigo mesmo”, "a festa da democracia". Já havia todo um exército de intelectuais, jornalistas, formadores de opinião criando essa narrativa, preparando a sociedade para receber o PT. Quando o partido conseguiu chegar ao poder do Estado, já com a hegemonia cultural, foi muito mais complicado tirá-lo de lá.

No livro, o senhor diz que, por causa dessa postura, os intelectuais que sustentavam o PT também deveriam ser responsabilizados pelo que aconteceu nos governos petistas. Faz sentido culpá-los pelo envolvimento do partido em atos de corrupção?
Evidentemente, não digo que haja uma relação direta entre os políticos do PT envolvidos em corrupção e os intelectuais que os apoiam. O vínculo dos intelectuais com os acontecimentos se dá pela forma como eles abordam ainda hoje a corrupção praticada pelos integrantes do partido. O PT foi a única agremiação que tinha por trás um exército de “corruptos intelectuais”, como eu os chamo, que lhe dava respaldo cultural e intelectual. Foi uma corrupção respaldada pela ideologia, a serviço de uma causa, em vez da corrupção tradicionalmente praticada no País. Quando você tem uma justificativa moral para o seu delito, ele tende a ser ainda mais grave, a se espalhar e a atrair mais adeptos.

A corrupção dos intelectuais nos governos do PT foi respaldada pela ideologia, estava a serviço de uma causa


Até que ponto os intelectuais tiveram um papel tão relevante na ascensão do Lula e do PT, como o senhor diz?
O poder cultural é de muito longo prazo. Há o poder econômico, o político, o militar e o cultural. Apesar de menos impactante de imediato, no longo prazo é o poder intelectual que vai moldando o imaginário das pessoas, construindo as narrativas, sedimentando as emoções e os sentimentos das pessoas. Então, o processo de conquista do poder pelo PT foi muito de longo prazo. Isso começou com um círculo pequeno de intelectuais, quando as ideias do Gramsci começaram a chegar para valer no Brasil, nos final dos anos 1960, bem antes de o PT surgir. Aos poucos, a coisa foi se espalhando e atingindo aquelas pessoas que estão na periferia da academia, que se formaram, mas não seguiram carreira acadêmica, como jornalistas e publicitários, que são muito suscetíveis à influência desses medalhões acadêmicos. A partir daí, as ideias começaram a circular através desses mediadores e foram chegando nos valores, na indústria cultural, na televisão. Foi isso que permitiu ao PT gozar durante muito tempo de certa imunidade de críticas. O PT era tratado até pouco tempo atrás como o partido da ética. Em vários momentos, criticar o Lula era algo visto como preconceito de classe, de região. Trata-se de um mecanismo supereficiente de silenciar as críticas e de proteção aos políticos petistas.

Agora, o senhor afirma que sem o apoio dos intelectuais o Lula e o PT não teriam chegado aonde chegaram. Não há certo exagero nessa visão?
Acredito que não, porque é justamente isso que cria a imagem mítica do Lula, em contradição com a realidade dos fatos. É isso que faz com que exista uma militância disposta a segui-lo, porque tem toda uma camada de mistificação, criada pelos intelectuais, pelos agentes culturais, impedindo as pessoas de visualizar a realidade. Só isso explica que, nesta altura do campeonato, o Lula ainda tenha algum capital político. Se fosse qualquer outro, que não se beneficiasse dessa hegemonia cultural, já estaria liquidado.
Eu costumo usar o exemplo do Demóstenes Torres, do DEM, que era um nome conservador. Depois que se revelou aquele escândalo dele, da ligação com o Carlinhos Cachoeira, aquela coisa toda, a carreira do homem simplesmente acabou. Ninguém saiu na rua para defender o Demóstenes Torres. Não houve intelectuais, jornalistas, artistas defendendo o Demóstenes. Isso é que chamo de poder cultural, para manter os cargos de poder, promover a mistificação dos políticos do partido. Sem isso, um partido não se mantém durante muito tempo no poder.

O senhor não está sobrevalorizando o papel dos intelectuais no PT?
Um dos insights que eu tive para escrever o livro foi tratar o PT não como Partido dos Trabalhadores, mas como Partido dos Intelectuais. Para mim, a base do PT são os intelectuais. O PT nunca teria chegado às dimensões que chegou sem o apoio dos intelectuais. Houve o movimento sindicalista, mas se o PT fosse só isso teria sido um fenômeno restrito. Tanto que a base que sobrou hoje, depois de o PT virar um partido relativamente popular, durante um período efêmero na sua história, foram os intelectuais, os acadêmicos, os universitários marxistas e gramscianos. Na verdade, o reduto do PT está na intelectualidade, na inteligência de esquerda brasileira. Inclusive, quando o PT surgiu, gabava-se muito disso.

Esse grupo que o senhor menciona, apesar de muito ativo politicamente, sempre foi muito pequeno. Como conseguiu alcançar esses resultados?
Há um grupo mais ativo, doutrinário, que é pequeno, mas muito bem posicionado. Há também os medalhões acadêmicos nas principais universidades federais, que usam suas posições para fortalecer essa hegemonia. Finalmente, há o grupo dos que se acomodam por causa desse mecanismo de hegemonia de que eu falei. Ele não se envolve no processo de maneira consciente, para que o deixem O PT nunca teria chegado às dimensões que chegou sem o apoio dos intelectuais em paz, para que possa seguir sua carreira acadêmica sem percalços, porque se não fizer isso vai sofrer muita pressão. No livro O Poder dos Sem Poder, o escritor e intelectual tcheco Václav Havel desenvolve o conceito do sistema pós-totalitário, num contexto que a União Soviética e os países satélites estão iniciando um processo de abertura. Mas mesmo com essa abertura, ele mostra que o sistema não acabou, mas tornou-se um totalitarismo mais silencioso, mais sutil. Isso acontece não só na academia, mas nas redações também. Tenho muitos amigos jornalistas que dizem que, em certos momentos, têm medo de expressar suas opiniões.

Ao falar da hegemonia cultural da esquerda no Brasil, o senhor critica também o PSDB. Qual o papel do PSDB nisso tudo?
Acredito que o PSDB teve um papel fundamental. Não o PSDB como um todo, mas o seu núcleo duro, o Fernando Henrique Cardoso, o José Serra. O Fernando Henrique, principalmente, foi um dos que estavam plenamente conscientes da estratégia de repartir o campo político brasileiro entre versões de esquerda, de banir a legitimidade política de qualquer coisa que não pertencesse às correntes da esquerda. A única direita permitida passou a ser a direita da esquerda. O PT e o PSDB têm as suas origens intelectuais na Universidade de São Paulo (USP) e travam uma disputa intestina pela hegemonia político-cultural da esquerda no país. O PSDB segue uma linha mais social-democrata, que pensa mais em resultados de longo prazo. Um termo que ficou muito na moda e agora acabou se tornando meio ridículo, mas que tem uma base real, é o tal do socialismo fabiano. De tanto o pessoal ter feito mau uso do termo, ele acabou perdendo o sentido, mas é bom recuperar o significado original. Ele designa os socialistas britânicos que tentavam um modo gradualista de instaurar o socialismo. No Brasil atual, essa turma é o PSDB. O PT tem uma visão mais radical, mais imediatista. Mas eles são “inimigos-irmãos”, como socialistas e comunistas na Europa, girondinos e jacobinos, mencheviques e bolcheviques. No fundo, com a estratégia do Gramsci, essas coisas se fundiam, havia muito diálogo entre eles. Essa oposição entre PT e PSDB é mais jogo de cena. Ela se dá muito mais em contexto eleitoral, de disputa de cargos, do que no contexto de disputa política no sentido mais nobre do termo.

Dentro do PSDB também tem gente como o João Doria, prefeito de São Paulo, e o Geraldo Alckmin, governador paulista. Não é preciso separar essas correntes que atuam no PSDB?
É verdade, há diferenças. Mas o Doria está surgindo agora. A gente não sabe direito o que ele é, nem se vai permanecer no PSDB. Agora, ele é meio um outsider do PSDB, tanto que não conta nem um pouco com a simpatia desse núcleo duro. O Alckmin, também, é um pouco democrata cristão, um pouco mais centrista. De todo modo, a esquerda se expande através de suas diferenças. Isso está meio que no DNA da esquerda, a ideia de uma evolução dialética. A direita, ao contrário, costuma se enfraquecer com os rachas internos. No momento, inclusive, a direita está vivendo uma disputa acirrada, muito feia, no Brasil. De repente, surgiu um pequeno espaço para a direita no País e tem gente indo com muita sede ao pote. Com a oportunidade de conquista do poder, acaba havendo uma disputa por posição, de vaidades. Mas é meio natural, nesse processo de renascimento da direita no País nos últimos anos, que cada um puxe para o seu lado.

O senhor afirma que, nos governos do PT, a esquerda recorreu a todos os expedientes possíveis para reforçar sua hegemonia na área cultural. Como isso aconteceu?
Basicamente, por meio do assassinato de reputação, da mobilização de agentes de influência em jornais, na academia, para deslegitimar quem ousasse alertar a opinião pública para o que vinha ocorrendo. A esquerda fazia associações entre os críticos ao PT e a elite, dizia que eles não gostavam do povo. Na A esquerda associava os críticos do PT à elite, para deslegitimar quem ousasse alertar a opinião pública época da União Soviética, os comunistas já faziam isso para demonizar os críticos do partido. É um fenômeno que autor frances Jean Sévillia chamou de “terrorismo intelectual”, em  referência ao papel desempenhado pelos intelectuais franceses depois da Segunda Guerra, que se aplica perfeitamente ao que aconteceu nas últimas décadas no Brasil e se intensificou nos governos do PT. Tivemos até alguns casos de violência, como ocorreu com aquela blogueira cubana, a Yoani Sánchez. Ela foi recebida por um grupo de militantes estudantis com muita violência e até impedida de dar palestras no País na base da força.

O senhor também tem uma postura muito crítica em relação ao Jornalismo nesse processo. Afirma que o Jornalismo, como a academia, foi essencial para sustentar o projeto do PT. Quer dizer que, no final, a culpa de tudo que aconteceu é da Imprensa?
Acredito que a Imprensa tem uma parte significativa de culpa, por ter evitado por muito tempo fazer críticas mais contundentes ao PT. A criação do Foro de São Paulo, organizado por Lula e Fidel Castro, durante muito tempo quase não repercutiu na Imprensa. Basta fazer pesquisa nos arquivos dos jornais. Toda aquela ligação do PT com a Venezuela, a Bolívia, o Equador, que era um projeto continental, o socialismo do século 21, não recebeu o tratamento devido. Depois do colapso da União Soviética, eles tinham o projeto de reconquistar o terreno perdido, de fazer na América Latina uma espécie de nova União Soviética. Ainda hoje todo o simbolismo é aquele simbolismo arcaico do comunismo, do imperialismo americano, é o mesmo vocabulário que se usava na década de 1960. A Imprensa teve um papel muito importante em não tornar isso conhecido e colocar esse tema no debate público. Não estou dizendo, obviamente, que todo mundo na Imprensa é petista Agora, até os críticos do PT restringiam suas críticas a alguns pontos e deixavam outras questões importantes de lado. Criticavam a corrupção, a má gestão, mas não tratavam desse projeto em comum, do Foro de São Paulo, desse projeto totalitário.
Mesmo os críticos da esquerda brasileira acabam cedendo à narrativa da esquerda europeia e americana ao cobrir os acontecimentos na Europa e nos Estados Unidos.

Em sua opinião, como essa postura da Imprensa se manifesta no dia a dia?
Algumas agendas são tratadas como se fossem uma unanimidade. Por exemplo, o aborto. Quase toda a imprensa aborda isso como um direito das mulheres, uma evolução, e trata quem é contra como atrasado, arcaico, fundamentalista. Com as questões do direito ao porte de arma, da maioridade penal, acontece a mesma coisa. Nas redações, a maioria dos jornalistas – você sente isso pela cobertura – é contrária a essas ideias. O próprio vocabulário usado no noticiário reforça essa percepção. Toda ideia que sai um pouco da bolha dos jornalistas é tratada de forma pejorativa. Toda a direita costuma ganhar os sufixos ultra ou extrema, mas você não vê quase nunca o uso do termo “extrema esquerda” ou “ultraesquerdista”. O ex-ombudsman do New York Times, Arthur Brisbane, falava que havia um progressivismo cultural nas redações dos grandes jornais americanos. Não vejo esse tipo de autocrítica no Brasil, com raras exceções.
O senhor conta no livro que não apenas votou no Lula em 2002, como foi à Brasília, para a posse. Hoje, se diz um liberal conservador. O que o levou a essa guinada ideológica? Alguma decepção, algum ressentimento?
Foram várias coisas que se combinaram para eu dar essa virada à direta De um lado, percebi que nunca fui de esquerda por convicção. Era de esquerda porque todo mundo era, porque ser de esquerda era, digamos, como respirar. Fazia parte da cultura da minha geração. Se não fosse de esquerda, não era bem aceito nos lugares, virava praticamente um ET. Por outro lado, estudei no IFCS, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, que é um dos núcleos da esquerda carioca há décadas. Com a convivência muito próxima com o pessoal de esquerda, fui percebendo uma série de incongruências entre o que eles falavam e o que faziam. Eu lembro que um dos momentos em que tive de profunda vergonha de mim mesmo foi no começo da faculdade. Eu me vi numa situação com um grupo de militantes estudantis do PC do B e do PT, fechando a Avenida Passos, no centro do Rio de Janeiro, na hora do rush, protestando contra o FMI, e o Fernando Henrique, no governo dele. Aí, eu observei o olhar descompromissado da população que circulava na região, os motoristas, o pessoal indo para o trabalho, e fiquei morrendo de vergonha. Aquilo me marcou profundamente. Eu pensei: essa manifestação aqui está falando do povo, mas não do povo real e sim de uma criação poética da própria esquerda. O pessoal não estava preocupado com as pessoas de carne e osso.

Os principais nomes do pensamento conservador são inexistentes na academia brasileira

Quais foram os pensadores que mais influenciaram essa sua guinada à direita?
Comecei a tomar contato com a literatura conservadora mais recentemente, com autores como o economista americano Thomas Sowell e o filósofo e cientista político alemão Eric Voegelin, e fui me identificando com essas ideias. Vi que tinha um substrato filosófico, teórico, para essas coisas em que eu sempre acreditei. Sempre fui um pouco desconfiado com a ideia de tentar realizar ideias criadas em laboratório. O filósofo Olavo de Carvalho também foi muito importante para mim nesse processo, um autor que me abriu uma série de referências que não tive na faculdade. Os principais nomes do pensamento conservador são inexistentes dentro da academia brasileira. Comecei a me voltar para uma tradição mais clássica e também para a filosofia medieval, escolástica. Li bastante Santo Agostinho, que teve um impacto muito profundo em mim. Tudo isso foi sedimentando uma visão mais sólida e mais consistente. Comecei a ler também muitos críticos da esquerda, ex-intelectuais de esquerda, sobretudo do leste europeu. Além disso, é claro, teve também todo o efeito da atuação da esquerda quando assumiu o poder no Brasil. Comecei a ver que era uma coisa perigosa, o aparelhamento, a mentalidade totalitária de lidar com a sociedade, o inchaço do Estado, tudo isso que aconteceu no País. No fundo, essa minha virada ideológica foi uma redescoberta, meio que uma volta às ideias que eu havia abandonado durante uma parte da vida para me acomodar ao ambiente que me circundava.

O senhor afirma que o Olavo de Carvalho foi um dos teóricos que marcaram o seu pensamento. Ele já se declarou várias vezes a favor da candidatura do deputado Jair Bolsonaro à presidência em 2018. O senhor concorda com ele?
O debate de nomes agora é muito prematuro. Mas acho que o Jair Bolsonaro representa uma parte das pessoas que se levantaram contra a esquerda durante esse período. É uma candidatura legítima, que representa os anseios de uma parte da direita brasileira, que não estão sendo correspondidos pela estrutura política do País, que não vinham tendo canais de expressão. Mas prefiro não entrar em discussões eleitorais no momento. Falta um ano ainda para as eleições e precisamos ver se esses nomes que estão surgindo agora vão se efetivar, quais partidos terão candidatos. Acredito que é o momento de discutir a política no sentido mais amplo, questões sociais mais profundas.

Na economia, as declarações de Bolsonaro mostram que as ideias dele são muito próximas das que o PT, o Lula e a Dilma defendem, como uma intervenção estatal muito forte na economia, aquela coisa do “Brasil grande” do Geisel. Como alguém que se diz liberal-conservador pode apoiá-lo, com essa plataforma econômica?
Mais uma vez, prefiro não entrar nessa discussão agora. Acho que não tem muito a ver com as questões mais duradouras de que trato no livro. A própria economia deve ser vista dentro de um contexto cultural. O Brasil tem muitos problemas a resolver antes de a gente discutir programas econômicos.

A candidatura de Jair Bolsonaro representa os anseios de uma parte da direita brasileira

O senhor diz que o livro foi a sua “carta de alforria”. Por quê?
Estou me referindo especificamente à linguagem da academia. Durante mais de 11 anos, eu me viciei pelo falso rigor, cheio de jargões e tecnicismos que predomina na academia, distante da linguagem culta e da boa escrita. O livro é uma espécie de libertação dessas amarras, onde eu pude me expressar como quis, de forma mais compreensível, sem ficar preso às etiquetas acadêmicas. Olhar para quem está fora da academia, não significa rebaixar a linguagem, mas falar linguagem culta comum, que as pessoas letradas vão entender.

A Corrupção da Inteligência
Autor: Flavio Gordon
Editora: Record
364 páginas, R$ 44,90
Capa do livro 'A Corrupção da Inteligência', de Flavio Gordon
  

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

A Corrupcao da Inteligencia: intelectuais e poder no Brasil - Flavio Gordon

Ao abrir as primeiras páginas deste livro, que estou lendo agora na versão Kindle, minha mente foi imediatamente levada para uma tarde da primavera de 2012, quando, na condição de professor convidado à Sorbonne para um curso de pós-graduação, viajei à Alemanha, com Carmen Lícia Palazzo, para visitar alguns novos museus que ainda não conhecia.
Fomos, assim, ao Museu dos Congressos do Partido Nazista, no subúrbio de Nuremberg, nos mesmos locais nos quais o NASPD, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores da Alemanha realizava seus congressos anuais, entre meados dos anos 1920 até quase o final da guerra.
Passei alguns minutos assistindo a documentários da época, transmitindo, por exemplo, discursos de Hitler à massa dos militantes do partidos reunidos no congresso, entre tochas e bandeiras, num clima que poderia ser apropriadamente descrito como de "fascínio doentio".
Não me guiei obviamente pelas palavras exatas de Hitler, em alemão, língua que conheço precariamente, e ative-me às legendas em inglês, absolutamete fieis ao que ele discursava. Independentemente, porém, da "gramática política", o que mais me chamou a atenção foi o ambiente geral do discurso, as invectivas de Hitler contra as "elites", as ameaças vindas do exterior, a "defesa do povo alemão" contra os inimigos que queriam humilhar a Alemanha e os alemães, seus olhos brilhando, e o fascínio das massas.
Impossível não lembrar, no mesmo momento, e o fiz involuntariamente, dos discursos de Lula, antes e depois de ter chegado ao poder, e do fascínio das massas presentes em Brasília, em 1o. de janeiro de 2003, quando de sua posse. As invectivas de Lula contra "eles", as "elites" que impediam o povo de resgatar a sua "dignidade", os "inimigos do povo" tinham uma inevitável semelhança com os discursos de Lula, sua postura, as mensagens que sempre veiculou em suas arengas intermináveis.
Esta foi a associação mais perturbadora que me deixou a visita ao Museu dos congressos do Partido Nazista, a despeito de todo o horror que nos provoca a mostra da degradação moral a que foi levado o povo alemão durante o domínio hitlerista.
Essa degradação moral está presente, creio, no livro de Flávio Gordon, que estou lendo agora.
Convido todos a também ler este volume, que talvez preencha uma função semelhante àquela provocada, muitos anos atrás, pelo livro de Harold Bloom, The Closing of American Mind.
Sim, a mente brasileira se fechou durante todos esses anos, e de certa forma ainda continua fechada, e essa obra nefasta é inteiramente devida aos nossos "subintelequituais", aqueles que eu  chamo de "acadêmicos gramscianos".
Recuso-me a chamar esses mistificadores universitários de "intelectuais", como o faz Flavio Gordon.
Com esta única restrição, convido à leitura do livro.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23 de agosto de 2017


A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil

Rio de Janeiro: Record, 2017 (versão Kindle)
 
O livro que explica, com clareza e precisão, a atual crise brasileira

Na última década, os brasileiros viram-se submetidos a um processo de corrupção endêmica e institucionalizada sem precedentes. Entre mensalões e petrolões, a nação assistiu embasbacada enquanto corruptos e corruptores descreviam, em tom de banalidade, alguns dos esquemas que possibilitaram o desvio de bilhões de dólares dos cofres públicos e, mais do que isso, a transformação do Estado e de suas instituições em instrumentos úteis aos interesses partidários mais sórdidos.
O Brasil que o PT criou é perigoso, feio, miserável e insustentável. Mas o que tornou tudo isso possível? O que possibilitou a chegada de figuras como Lula e Dilma Rousseff ao poder? O que entorpeceu a alma da sociedade brasileira tão profundamente para que ela se permitisse representar por personalidades tão toscas e malformadas? Quais são as raízes mais profundas da crise que aflige a nação? E qual foi o papel dos intelectuais brasileiros nisso tudo?
Estas são algumas das perguntas que o antropólogo e analista político Flávio Gordon busca responder, com invejável coragem e brilhantismo, nesta investigação vigorosa que o leitor tem em mãos. Dentre os muitos livros que buscam explicar a atual crise brasileira, nenhum tem a clareza, a precisão e a força explicativa que encontramos em A corrupção da inteligência.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

A morte misteriosa de diplomata brasileiro na Europa durante a ditadura - Livro de Eumano Silva



A morte misteriosa de diplomata brasileiro na Europa durante a ditadura
Livro-reportagem investiga episódio obscuro da história nacional e revela fatos novos sobre ações da diplomacia brasileira em apoio ao regime militar.
BBC BRASIL.com
26 JUL2017
16h30

Agosto de 1970. No auge da repressão durante a ditadura militar no Brasil, um jovem diplomata que servia na Embaixada do Brasil em Haia, na Holanda, aparece morto na cidade dentro de seu carro, com cortes pequenos no pulso esquerdo e um ferimento profundo no pescoço.
Paulo Dionísio de Vasconcelos (à esq.) e os trabalhos de investigadores no carro em que foi encontrado morto na Holanda; quase 50 anos depois, livro reconta história esquecida do regime militar
Foto: BBCBrasil.com

O caso levanta suspeita de motivação política. O mundo vive sob a tensão da Guerra Fria. Diplomatas ajudavam a ditadura na vigilância e até na perseguição a exilados políticos. Outros eram detidos e expulsos sob acusação de colaborar com organizações de esquerda, que sequestravam embaixadores estrangeiros para troca por presos políticos.
Em 24 horas de investigação, a polícia holandesa conclui que o mineiro Paulo Dionísio de Vasconcelos cometera suicídio, pouco antes de completar 35 anos. Responsável pela codificação de documentos secretos da embaixada, ele deixava uma bebê de dois anos e a mulher nos últimos dias de gravidez da segunda filha.
O inquérito se baseia em duas evidências: um inspetor encontrara uma lâmina de barbear numa poça de sangue no carro e testemunhas dizem que o diplomata vinha demonstrando sinais de nervosismo, ansiedade e depressão. Não há pista de um eventual assassino nem carta de despedida.
Órgãos de imprensa, alguns colegas de Itamaraty e a família levantam dúvidas sobre o inquérito. Fatos novos, surgidos nos meses seguintes, aumentam as incertezas, mas autoridades pouco se mexem para desvendá-los e o episódio acaba caindo no esquecimento da opinião pública.
Quase 50 anos depois, essa morte sob circunstâncias misteriosas é reconstituída pelo jornalista Eumano Silva no livro-reportagem A Morte do Diplomata: Um Mistério Arquivado pela Ditadura (Tema Editorial), que traz informações inéditas sobre o caso e os anos de regime militar no Brasil.
Silva cobriu política por mais de 20 anos em Brasília, é coautor de Operação Araguaia: Os Arquivos Secretos da Ditadura (Geração Editorial), prêmio Jabuti de livro-reportagem em 2005, e foi consultor da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), que apurou violações aos direitos humanos cometidas no Brasil entre 1946 a 1988.
Para reconstruir a história de Paulo Dionísio, que narra em estilo de romance policial, ele teve acesso a documentos, fotos e até ao diário pessoal do diplomata produzido durante o período na Holanda - centenas de páginas com desabafos, resenhas, opiniões e relatos.
A família também lhe concedeu uma procuração para acesso a documentos do Itamaraty sobre o caso.
Nesse trabalho de dois anos, Silva coletou informações que expunham o cenário que envolvia a diplomacia brasileira à época, inclusive com evidências da rede de vigilância montada para seguir a movimentação no exterior do ex-arcebispo de Recife e Olinda d. Helder Câmara (1909-1999), que denunciava prisões e torturas do regime para plateias internacionais.
"Tentei dar todos os elementos - os mesmos a que tive acesso - para que as pessoas pudessem avaliar o caso. É muito complicado saber como uma pessoa morreu se você não está perto. Como achava que não iria conseguir uma resposta definitiva, achei mais importante colocar todos os elementos. Seria isso suficiente? Não sei", disse Silva à BBC Brasil.


Resultado de dois anos de pesquisas, livro de Eumano Silva conheceu teve origem em trabalho de jornalista na Comissão Nacional da Verdade
Foto: Divulgação

Trajetória
Natural de São Domingos do Prata, região central de Minas Gerais, Paulo Dionísio de Vasconcelos vinha de uma família de elite. Seu pai, José Matheus, era médico e referência política na região - foi prefeito de São Domingos do Prata por dez anos. Cometeu suicidio em 1968, pouco mais de dois anos antes da morte do filho, cravando um bisturi no peito.
Paulo frequentou rígidos colégios internos. Estudioso, ainda na juventude exibia conhecimento do latim aprendido em escolas católicas, montava peças de teatro, mostrava gosto por Filosofia. Conhecido como Paulão, tinha mais de 1,90m de altura.
Formou-se advogado pela Universidade Federal de Minas Gerais e ingressou no Itamaraty em fevereiro de 1966. O trabalho na Holanda, onde chegara com a família em maio de 1969, era seu primeiro posto de relevância fora do Brasil. Como segundo-secretário, chefiava o setor de promoção comercial da embaixada.
Por ter feito um estágio em criptografia ainda no Brasil, ele acabou também sendo encarregado do serviço sigiloso - codificava e decodificava documentos secretos produzidos e recebidos pela representação brasileira em Haia.
Os manuscritos do diário, conta o jornalista Eumano Silva, revelam um diplomata aficionado por futebol (ele fazia longa análises táticas sobre jogos europeus), cheio de opiniões sobre assuntos da atualidade e que desfrutava de uma intensa vida social e cultural ao lado da mulher, Maria Coeli, namorada de adolescência.

Ansiedade e tensão
Por outro lado, as páginas descreviam também brigas constantes do casal - por "divergências na maneira de agir", como descreve o autor do livro -, chateações do trabalho diplomático e o clima de desconfiança vigente entre funcionários públicos naquele período.
"As perseguições políticas levam as pessoas a temer o que fazem e falam", relata Eumano Silva no livro, a partir de exemplos do diário do diplomata.
Paulo vinha reclamando, por exemplo, de pressões que recebia do Itamaraty para acompanhar os movimentos de d. Helder Câmara em viagens pela Europa - o diplomata costumava passar noites em claro para transmitir, em criptografias, entrevistas concedidas pelo religioso à mídia europeia.
Certa vez, teve que prestar esclarecimentos a superiores após ter comentado com colegas - sem ter informado previamente aos chefes - que assistira a uma entrevista com o religioso na TV holandesa.


Dom Helder Câmara em visita a Holanda em 1981; livros mostra como passos de religioso no exterior eram monitorados pela ditadura via Itamaraty
Foto: Marcel Antonisse/Wikimedia Commons / Divulgação

Também manifestava nervosismo com uma cobrança insistente do Ministério das Relações Exteriores sobre uma conta telefônica que havia sido gerada pelo inquilino do apartamento que ele tinha em Brasília - a linha era do Itamaraty, e a burocracia do ministério não aceitava as explicações do diplomata.
"Os elementos de angústia mais fortes que aparecem no diário estão no livro, quando ele fala do pai dele, de fraqueza", lembra Eumano Silva.
Poucos dias antes de morrer, Paulo Dionísio havia tido uma crise de impaciência após esquecer de postar uma carta da embaixada. A mulher o convenceu então a ir ao médico, que prescreveu um calmante leve.

Morte e fatos sem explicação
O corpo de Paulo Dionísio foi encontrado à tarde por um casal de estudantes, dentro de seu carro, estacionado ao lado de um bosque em Haia, numa rua paralela à praia. Naquele dia, ele dissera à mulher que iria à cidade vizinha de Utrecht, onde organizava uma feira comercial, passaria na embaixada e voltaria para casa.
Em três horas de buscas no veículo e nos arredores, a polícia não localizou nenhum objeto capaz de provocar os ferimentos que tinham causado a morte do diplomata. Numa segunda busca, já no final da noite, um inspetor encontrou uma lâmina de barbear numa espessa poça de sangue no tapete do banco da frente.
Em menos de 24 horas, a polícia de Haia ouviu várias testemunhas - como o embaixador do Brasil em Haia, colegas da embaixada, um padre amigo da família e a viúva Maria Coeli.
Todos descreveram que Paulo Dionísio andava muito nervoso e angustiado. Baseado na existência da lâmina e desses relatos, o inquérito apontou que houve suicídio, conclusão que o próprio embaixador Carlos Eiras reforçou à imprensa à época.
Mas a rapidez do inquérito (que não investigou o que Paulo Dionísio havia feito naquela tarde, por exemplo) e a localização tardia do instrumento do crime não eram as únicas "pontas soltas" do caso a alimentar questionamentos na imprensa, entre colegas de Itamaraty e a própria família do diplomata.
Naquelas mesmas semanas de agosto de 1970, Paulo Dionísio recebera, na embaixada, uma carta em papel timbrado de um suposto escritório de advocacia britânico, com as palavras "privada" e "confidencial".
A correspondência detalhava supostas situações e atos comprometedores atribuídos ao diplomata mineiro, como extorsões e posse de documentos de veículos e barcos alheios. Por meio do escritório de advocacia, um cliente chamado Jean Pierre Goehl cobrava a devolução de altas somas de dinheiro e dizia estar preso após ter sido alvo de "maldades", "maquinações" e "chantagens" de Paulo Dionísio.
"Ao mesmo tempo que culpa o diplomata, o remetente extorque e ameaça. Descreve uma situação de criminalidade. Não explicita que tipo de relação pessoal haveria entre o remetente e o destinatário da carta", descreve Eumano Silva no livro.
As cartas misteriosas continuaram a chegar nos meses seguintes à morte, mas acabaram sem explicação. A polícia holandesa disse que o caso estava encerrado e sugeriu que uma eventual investigação ocorresse em Londres. A Embaixada do Brasil na Holanda transferiu o caso à representação de Londres, que comunicou apenas, segundo mensagem do embaixador em Haia à cúpula do Itamaraty, que "nada" tinha sido apurado sobre o caso.
Não se sabe até hoje se a representação em Londres chegou a tomar alguma providência concreta nesse sentido.
O autor do livro destaca que "não há elementos que comprovem a veracidade dos acontecimentos narrados na correspondência". "Falta conexão entre os episódios descritos e a rotina do diplomata. As referências a vultosas quantias de dinheiro, Mercedes, motor de barco não fazem sentido para os familiares", escreve.
As cartas também citavam a presença do diplomata em Luxemburgo no ano de 1967, o que parentes dele sempre negaram - afirmam que, pelo que sabiam, ele havia conhecido a Europa apenas ao se mudar para Haia. Mas nunca foi possível encontrar um passaporte antigo dele para verificar essa situação.
Eumano Silva menciona duas hipóteses para a estranha correspondência: ação de golpistas que queriam se aproveitar da fragilidade da família para pedir dinheiro para abafar um escândalo inexistente. Ou a ação de algum serviço secreto tentando desestimular a família a contestar o resultado da investigação.
"Qualquer que seja a circunstância, se realmente aconteceu, as páginas expõem uma situação extrema. Merecedora de atenção especial por parte das autoridades brasileiras e holandesas", escreve.
Incerteza
O político Paulino Cícero de Vasconcellos, irmão do diplomata que foi deputado estadual, federal e ministro das Minas e Energia, viajou à Inglaterra atrás de pistas em 1975 e no começo dos anos 1990 pediu apoio do Itamaraty para encerrar as dúvidas, mas os documentos fornecidos não trouxeram novidades.
Em 2014, ele entregou documentos à filha caçula do irmão para que fossem levados à Comissão Nacional da Verdade, mas o material chegou na reta final dos trabalhos do grupo e acabou sem análise.
Maria Lucia Abbott, jornalista brasileira baseada em Londres que trabalhou com Eumano Silva no livro, foi a campo e em um mês e meio de trabalho reuniu indícios de que um advogado e um escritório com nomes citados nas cartas misteriosas realmente existiram na Inglaterra dos anos 1970.
"Quarenta e seis anos depois da morte do diplomata, com alguns contatos e entrevistas, a jornalista descobre pontos de conexão das cartas com a realidade na época dos fatos. Ao desprezar a busca de esclarecimentos, o Itamaraty exime-se de desvendar a autoria das cartas. Deixa na memória da instituição e da família Vasconcelos a incerteza quanto aos autores das cartas", escreve Eumano no livro.


Pesquisa para livro confirmou existência nos anos 1970 de escritório de advocacia em Kingston upon Thames, na Grande Londres (foto), que assina carta
Foto: Google Maps / Reprodução

O jornalista lembra que a documentação pesquisada para o livro mostra que "as embaixadas tinham outras tarefas mais urgentes" naquele momento, demandadas pela cúpula do Itamaraty e do regime: o monitoramento da imprensa e dos exilados e a propaganda da ditadura.
Nesse sentido, para além da reconstrução da história do diplomata, a pesquisa feita para o livro acabou trazendo à luz fatos históricos que não eram de conhecimento público.
Como a atuação do Itamaraty na difusão da versão - considerada falsa pela Comissão da Verdade - de suicídio do estudante e sindicalista Olavo Hansen, morto em maio de 1970 após ser preso pela repressão. Ou contatos feitos pela Embaixada do Brasil em Londres com a Scotland Yard, a polícia metropolitana da capital britânica, para monitoramento de exilados brasileiros.
Na história de Paulo Dionísio, a família não descarta a hipótese de suicídio - há, por exemplo, a sombra do ato cometido pelo pai dois anos antes e os relatos da própria mulher sobre o estado mental do diplomata nos meses anteriores à morte. Mas a dúvida permaneceu, relata o jornalista no livro.
"Ao procurar um fato citado nas cartas que tenha relação com a vida dele, não há. Mas por que então isso não foi dito na época, por que não apuraram, por que preferiram deixar a família em dúvida, realmente não sei", diz.
A BBC Brasil procurou o Ministério das Relações Exteriores para comentários sobre os fatos expostos no livro de Eumano Silva, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.