Acadêmicos receberam com grande entusiasmo a formação do grupo Brics, achando que seria finalmente a via para escapar do "hegemonismo ocidental". Eu sempre critiquei essa aliança contra natureza, essa ilusão descabida, um grande erro estratégico da diplomacia lulopetista. Muitos não gostaram, na diplomacia, mas não tenho por que esconder minha total desconformidade com essa miragem, como demonstrei por este livro publicado no ano passado: Paulo Roberto de Almeida: A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira (Brasília: Diplomatizzando, 2022, 187 p.; Kindle book; ISBN: 978-65-00-46587-7; ASIN: B0B3WC59F4; Apresentação link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/06/meu-proximo-kindle-sobre-miragem-dos.html).
O difícil caminho do não alinhamento do Brasil
Por Oliver Stuenkel
O Estado de S. Paulo, 30/01/2023
Com a decisão do Ocidente de fornecer mais de cem tanques à Ucrânia e o debate crescente sobre uma possível tentativa de reconquistar a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, o conflito na Europa entra em nova fase. Depois de o governo Biden ter fornecido quase US$ 30 bilhões em ajuda militar aos ucranianos desde o início do conflito, uma derrota ucraniana seria um desastre político dificilmente aceitável para o presidente americano, que já está se preparando para sua campanha de reeleição.
Da mesma forma, uma conquista russa de Kiev – o que parece ser a meta da contraofensiva militar que o Kremlin prepara – causaria um terremoto político na Europa, onde o premiê alemão Olaf Scholz, depois de muita hesitação, decidiu aprovar o envio de tanques à Ucrânia, país a menos de 700 quilômetros da fronteira alemã. Há pouca dúvida de que avanços decisivos russos aumentariam a probabilidade de o Ocidente fornecer caças à Ucrânia, algo inimaginável no início do conflito.
Do lado russo, também aumentaram muito as apostas: com uma onda nacionalista varrendo o país, Vladimir Putin sabe que uma derrota militar na Ucrânia representaria grave ameaça política. Tudo indica que o presidente russo está disposto a fazer o máximo possível – inclusive uma mobilização geral, que implicaria o envio de centenas de milhares de soldados para o front – para vencer o conflito. O Kremlin admitiu que tomou a decisão pouco usual de recrutar presidiários, como mercenários do Grupo Wagner, 40 mil dos quais, segundo estimativas, estão lutando na Ucrânia.
Com a guerra cada vez mais intensa, tudo leva a crer que o conflito contaminará a geopolítica ainda mais do que no ano passado, tornando-se um dos temas prioritários a ser discutidos nas principais plataformas multilaterais, como o G-7, o G-20, e o grupo Brics. Essa é uma notícia ruim para o Brasil, que deve participar de reunião dos três grupos, afinal, enquanto o País tem como brilhar na questão climática – tema que pode ajudar a reconquistar o status de ator indispensável no sistema internacional –, o conflito na Ucrânia dificulta a estratégia de não-alinhamento, pilar da política externa brasileira.
Tanto no encontro do G-7 quanto na cúpula do Brics, o Brasil estará em uma posição pouco confortável. Situações como a do recente pedido do governo alemão para o envio de munição brasileira – feito dias antes da visita do premiê a Brasília e declinado pelo presidente Lula – se tornarão mais comuns. Enquanto o G-7 fará uma declaração condenando a Rússia nos termos mais explícitos e buscará intensificar o isolamento econômico de Moscou – algo que o governo brasileiro não apoia –, o Brasil terá de se empenhar para evitar que a declaração final do grupo Brics vire um manifesto pró-Rússia. Afinal, com a postura cada vez mais pró-Moscou da África do Sul, o Brasil é o integrante que mais tem a perder com um posicionamento anti-ocidental do bloco.
Essa tensão intra-Brics não é nova: certa vez, em reunião preparatória para a cúpula do grupo em Moscou, um participante russo afirmou em discurso que o Brics deveria se posicionar como “bloco anti-ocidental”, ideia prontamente criticada por um representante brasileiro, o qual lembrou que o Brasil também faz parte do Ocidente e, portanto, rejeita a caracterização.
Com os dois lados dobrando as apostas na guerra, o Brasil precisa se preparar para o cenário de uma conversa global cada vez mais monotemática, a qual deverá levar a uma intensificação das sanções econômicas contra a Rússia, a mais volatilidade dos preços de alimentos e a espaço cada vez mais estreito para construir acordos em outras áreas. As negociações para se chegar a um acordo nuclear com o Irã são o melhor exemplo: com o regime em Teerã fornecendo drones à Rússia, é pouca a disposição ocidental de negociar com o país.
É impossível prever o percurso da guerra, mas tanto a queda de Kiev aos russos – forçando Zelenski a fugir – quanto a reconquista ucraniana da Crimeia, que provavelmente levaria a uma queda de Putin – são possibilidades reais ao longo dos próximos anos. Ambos produziriam transformações significativas no sistema internacional: uma derrota russa na Ucrânia aumentaria as chances de instabilidade na Ásia Central, antigo quintal de Moscou, além de um possível atrito na sucessão presidencial russa. A queda de Zelenski poderia causar uma onda de refugiados ucranianos com profundas consequências para a Europa. Todos os cenários teriam consequências amplas para a economia brasileira e sua inserção internacional.
* É ANALISTA POLÍTICO E PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV EM SÃO PAULO