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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sábado, 29 de outubro de 2022

Registro de uma primeira mudança fundamental, vinte anos atrás - Paulo Roberto de Almeida (2002)

Em 2002, contemplando a primeira mudança fundamental na política brasileira, eu redigia estas notas sobre o resultado das eleições que mudariam o Brasil de maneira significativa.

Brasília, 29/10/2022

 Crônica de uma Mudança Fundamental

Memórias para servir a uma nova História do Brasil

 

Paulo Roberto de Almeida

Início: 9 de outubro de 2002

959. “Crônica de uma Mudança Fundamental: Memórias para servir a uma nova História do Brasil”, Washington, 9 out. 2002, 3 p. Introdução ao registro de eventos, fatos e reflexões que pretendo fazer no curso das semanas e meses seguintes, como meio de oferecer testemunho pessoal sobre o processo de mudanças em curso no País a partir da definição de uma nova correlação de forças no sistema político nacional. Seguido por registros esparsos e ocasionais de fontes diversas. Inédito.


 

Introdução:

 

Tenho acompanhado o panorama político e social do Brasil desde os meus doze ou quatorze anos pelo menos, a partir do momento em que primeiro fui apresentado aos problemas políticos e econômicos do mundo contemporâneo, mediante o temor de uma confrontação nuclear a partir da crise dos foguetes em Cuba e, pouco adiante, desde o golpe militar de 1964, que interrompeu um ciclo da vida política brasileira.

Com efeito, à parte as imagens furtivas da era Kubitschek – mais ligadas propriamente à Copa do Mundo de Futebol de 1958 do que ao presidente “bossa nova” – e das eleições presidenciais de 1960 e seu imediato seguimento de episódios burlescos com a figura histriônica de Jânio Quadros, eu não tinha sido até então confrontado a questões reais do “mundo dos adultos”. Essa oportunidade chegou com a ameaça do confronto nuclear do segundo semestre de 1962, que primeiro me levou a interessar-me por problemas das relações internacionais e, oportunamente, pela situação de Cuba e seu estatuto especial no sistema interamericano. Cemecei a partir daí leituras dirigidas nessas questões internacionais, assim como o contato quase diário com os jornais, ou talvez mais corretamente, a leitura semanal do Estadão de domingo, aquele pesado calhamaço de notícias, de ensaios e de comentários que praticamente me formaram intelectualmente, tanto quanto os manuais escolares e os livros acadêmicos. Depois desse primeiro aprendizado prático de crises estratégicas, os meses seguintes foram ocupados pelos episódios agitados da crise política interna culminando no golpe de estado de 1964, que me lançou na atividade política já com um sentido determinado e uma orientação bem precisa quanto às minhas escolhas fundamentais. 

Não pretendo, contudo, retomar neste momento meu próprio itinerário político e ideológico, mas tão somente situar o quadro conceitual e os precedentes intelectuais em função dos quais decidi empreender, agora, o registro de um processo de mudanças – no plano societal brasileiro, no sistema político-partidário do País e na minha própria posição em relação a esses desenvolvimentos maiores – que desde muito antes das eleições de 6 de outubro de 2002 considerei como histórico e paradigmático de uma nova fase sendo inaugurada na vida nacional.

Consciente dessa importância, decidi iniciar um registro pessoal, necessariamente reservado mas não obrigatoriamente confidencial, dos eventos e processos mais importantes que estão enquadrando essa mudança fundamental na história atual do Brasil. Convencido também da utilidade de um registro objetivo e honesto, mas basicamente subjetivo (pois que pessoal e seletivo), das mudanças que possam estar sendo operadas em ambientes não exatamente cobertos pelos cronistas oficiais do Poder ou pelos escrevinhadores da imprensa diária, considerei particularmente interessante que essas memórias fossem sendo acumuladas contemporaneamente aos eventos que pretendo comentar, mais do que descrever, pois que elas devem coincidir com minhas quatro primeiras décadas do que se poderia chamar de “interação social consciente” com o mundo e com a sociedade que me cerca. 

Essa intenção já tinha sido aventada antes de 6 de outubro, e de fato, desde muitos meses, tenho acumulado notas e comentários sobre os aspectos que considerei mais importantes, ou interessantes, desse processo de mudança que sentia emergir como real a partir de pequenas indicações quanto à consistência das “transformações mentais” em curso no movimento que se converteu no centro do novo sistema copernicano da política brasileira. Uma consulta a meus trabalhos escritos – inéditos e publicados – poderia revelar em que sentido iam essas preocupações pessoais com as novas forças da mudança paradigmática: essencialmente no sentido de chamar a atenção para os limites impostos pelo sistema internacional e pelos constrangimentos internos (como pela racionalidade econômica stricto sensu) a essa “vontade de mudança” da nova maioria. 

Operada essa mudança, ou pelo menos tendencialmente, decidi começar este registro episódico, irregular e ocasional, para servir como uma espécie de “crônica dos eventos correntes”, tanto em relação a elementos externos – isto é, aqueles dos quais não sou parte direta, ou sequer interessada – como em face de aspectos internos, aqueles que envolvem minha própria ação ou interação com personagens, fatos ou processos que são consubstanciais a esse processo de mudança.

Não pretendo seguir um método particular e uniforme nestas “memórias”, sequer um padrão constante quanto ao registro desses elementos objetivos e subjetivos, pois como toda e qualquer memória, esta aqui também se faz de elementos diversos: notas pessoais, impressões de momento, “colagens” de documentos externos, compilação de dados ou registro de interações assistidas ou sabidas, enfim, retalhos de uma realidade bem mais complexa do que aquela suscetível de ser aqui captada e “explicada” (o que de toda forma estaria fora do alcance de simples memórias). Um único critério me serve de guia neste registro pessoal dos eventos correntes: a Honestidade Intelectual. Coloquei os conceitos em maiúsculas porque reputo essa dimensão essencial a qualquer testemunho que se pretenda legítimo ou fiel aos dados da história. Pretendo seguir escrupulosamente esse princípio diretor nas linhas e páginas que se vão seguir a partir de agora (pelas semanas e meses adiante, sem limites quanto ao “fechamento”), pois que se trata de postura que reputo como básica para mim mesmo como para qualquer relação que possa manter com colegas e outras pessoas com as quais possa vir a interagir. 

Uma última palavra introdutória a estas crônicas público-pessoais sobre uma mudança ainda em curso: apesar de intelectualmente marxista, pelo menos quanto ao método analítico, sou essencialmente “anarquista” no que se refere à postura em relação a autoridades ou instituições. Isto significa, apenas, que não fui, não sou, nem pretendo ser, filiado, associado, vinculado ou subordinado a qualquer grupo político ou filosófico, a qualquer agrupamento ideológico ou a qualquer entidade que possa representar alguma espécie de cerceamento de meu livre arbítrio intelectual. Ou seja, não tenho por hábito guiar meus escritos, reflexões, intervenções na realidade com base em programas, doutrinas ou posições que não representem meu próprio pensamento sobre a matéria, se possível alcançado mediante pesquisa em reflexão, ou mais frequentemente por meio de leituras e de muita informação (contínua, diversificada, intensa). Se posso resumir a postura, talvez devesse dizer que sou “marxista”, mas não sou “religioso”, isto é, não costumo pautar minhas reflexões e escritos por qualquer tipo de dogma ou verdade revelada. Independência absoluta, portanto, e honestidade intelectual, antes de mais nada.

Nada mais tenho a acrescentar nesta “introdução antecipada” à minha crônica pessoal dos eventos correntes. Chega de considerações abstratas: abro o caminho ao registro de uma mudança histórica recém iniciada.

 

Paulo Roberto de Almeida

Washington, 9 de outubro de 2002


1. Os dados da nova maioria

 

9 de outubro de 2002

 

            Transcrição de alguns parágrafos de trabalho meu, sob a rubrica “Conseqüências econômicas da vitória” (22.09.02), que primeiro antecipou a mudança em curso:

 

“No momento em que escrevo estas linhas, 21-22 de setembro de 2002, antes portanto de qualquer definição eleitoral, parece estar ficando muito claro que o Brasil se prepara para atravessar uma das mais importantes fases de transição política em toda a sua história contemporânea, equivalente, talvez, ao desmantelamento do Estado econômico varguista, supostamente operado durante os oito anos da administração FHC. / De fato, o País passou a viver, a partir do início da campanha eleitoral, em meados de 2002, uma situação de nítida recomposição das forças políticas e da própria estrutura da representação político-eleitoral, resultando no desmantelamento do sistema político varguista instalado a partir de 1945. (…) Cabe enfatizar essa realidade, inédita e surpreendente em toda a história política brasileira: esse partido, seja como referência positiva ou negativa, ocupa uma posição absolutamente central no sistema copernicano da política brasileira, em torno do qual todos os demais atores passam a se posicionar, a favor ou contra (não importa), como se ele fosse o paradigma de fato desse sistema político-partidário. Talvez no cenário pós-eleitoral essa centralidade venha a retroceder, em termos de forças e pesos reais na arena parlamentar, mas do ponto de vista político-ideológico ela parece destinada a perdurar.”

 

Apud: 

947. “Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!: As conseqüências econômicas da vitória (ou: manual de economia política para momentos de transição)”, Washington, 22 setembro 2002, 11 pp. Ensaio sobre o novo centro político que está se formando no Brasil a partir da transição operada na campanha eleitoral presidencial, com algumas recomendações de política econômica.

 


 

2. Os resultados 

 

            No domingo, 6 de outubro, 94.3 milhões de brasileiros atribuiram a Lula uma clara maioria nas eleições presidenciais, embora não a vitória esperada no primeiro turno. Ele obteve 46.4% dos votos válidos, colocando-o num segundo turo com o segundo mais votado, José Serra (23.2%) no dia 27 de outubro. Garotinho ficou em terceiro com 17.9% desses votos e Ciro Gomes terminou em quarto com apenas 12%. A abstenção foi de 17.8% e os brancos e nulos representaram 10.4% do total.

 

            No plano do Legislativo, a mudança foi também significativa: o PT elegeu 10 novos Senadores e 90 deputados, ficando com a maior bancada, seguido pelo PFL (84), PMDB (74), PSDB (71) e o PPB (49). Em princípio, quando a nova Legislatura se abrir, em feveereiro de 2003, o PT poderá fazer o presidente da Casa, a menos que recomposições nos demais partidos altere a maioria saída das urnas.

 

            A mudança de maioria pode ser evidenciada nestes números: a antiga aliança governamental perdeu 45 Deputados e 7 Senadores, ao paso que a oposição ganhou 42 Deputados e 4 Senadores.

 

            O cientista político David Flesicher, da Universidade de Brasília, elaborou os seguintes quadros para refletir a mudança de maiorias:

 

 

Table 1 - Summary of 6th October Elections for Congress

 

______________________________________________________

 

Presidential                   Federal     Senate                          Chamber  of  Deputies   

Coalition/                    Sept.                Feb.                    Sept.                      Feb.

Party*                          2002     Change   2003                      2002     Change   2003

_______________________________________________

José Serra

   PSDB                      24        -5        19                    94      -23        71

   PMDB                     14        -3        11                    87        -4         74

 

Lula

   PT                           08        +6        14                    58      +32       90

   PCdoB                    00        --         00                    10       +2        12

   PL/PSL                   01        +2       03                    27          0        27     

 

Ciro Gomes

  PPS                          02        -1        01                    12        +3        15

   PDT                        05        -2        03                    16        +5        21

   PTB                         05        -2        03                    33        -7        26

Garotinho

   PSB                         03        +1        04                    16        +7        23

 

Independents#

   PFL                         17        +2        19                    98       -14       84

   PPB                         02        -1        01                    53        -4        49

 

Small Parties

    Left                        00        - -        00                    00        +6        06*

    Right                      00        +1        01@                09        +6        15*

            

TOTAL                      81                    81                   513                  513  

 

______________________________

# - Parties that did not participate in presidential coalitions.

@ - PSD elected one Senator.

*- Small parties in the Chamber elected:

       Left - PV (5) and PMN 1.

       Right - PRONA (6), PSD (4), PST (3), PSC (1) and PSDC (1)

 

 

Table 2 - Possible Support Coalitions for Lula and Serra in Congress in 2003

 

______________________________________________________

 

Presidential                   Federal     Senate                          Chamber  of  Deputies   

Coalition/                    Feb.                                       Feb.

Party*                          2003       Lula     Serra                    2003      Lula       Serra

_______________________________________________________________________

José Serra

   PSDB                      19        08        19                    71        16        71

   PMDB                     11        04        11                    74        44        74

 

Lula

   PT                           14        14        00                    90        90        00

   PCdoB                    00        00        00                    12        12        00

   PL/PSL                   03        03        03                    27        27        18

 

Ciro Gomes

   PPS                         01        01        00                    12        12        00

   PDT                        03        03        00                    21        21        00

   PTB                         03        03        03                    26        26        26

 

Garotinho

   PSB                         04        04        00                    23        23        00

 

Independents#

   PFL                         19        04        19                    84        32        55 

   PPB                         01        01        01                    49        00        49

 

Small Parties

    Left                        00        00        00                    06*      06        00

    Right                      01@    01        01                    15*      00        15

            

TOTAL                      81        48        57                   513     309      308

______________________________

# - Parties that did not participate in presidential coalitions.

@ - PSD elected one Senator.

*- Small parties in the Chamber elected:

       Left - PV (5) and PMN 1.

       Right - PRONA (6), PSD (4), PST (3), PSC (1) and PSDC (1)

         

 

Transcrição: 9/10/2002