Da Arte (pouco nobre) de Inclinar
a Coluna
Paulo Roberto de Almeida
A coluna a que eu me
refiro aqui não é qualquer uma da arquitetura clássica – como as das ordens conhecidas
na Grécia antiga: dórica, jônica e coríntia – ou sequer as da história
mitológica, também grega: as famosas colunas de Hércules, o estreito que depois
foi batizado com o nome do conquistador árabe que deu início à conquista da
península ibérica. Quero falar da mais frequente e usual, aliás, de pleno
domínio de cada um de nós, ainda que de forma congenital: a coluna vertebral,
também chamada pelos anatomistas de espinha dorsal.
Ao falar da arte de
inclinar a coluna, eu me refiro, mais concretamente, a esse bizarro exercício
voluntário de dobrar a sua própria, em função de compulsões externas ou de injunções
internas. Excluindo a mesura gentil – plenamente integrada aos costumes protocolares
de certos povos, ou denotando alguma devoção religiosa, quando não o respeito
voluntariamente assumido em face de um soberano do qual se é súdito –, a
inclinação de que trato aqui tem a ver, precisamente, com a submissão
demonstrada por alguém a uma autoridade qualquer, mesmo quando não se trata
exatamente de uma autoridade, ou quando o respeito que essa pessoa deve a si
mesma recomendaria não praticar tal gesto.
Estou consciente de que na vida cotidiana,
somos sempre levados, de alguma forma, a praticar esse exercício: metaforicamente
falando, nos dobramos à vontade de um chefe no trabalho, aos ditames de um
comandante nas forças armadas, às diretrizes de uma real autoridade (o guarda
rodoviário, ou o policial do trânsito, por exemplo), às instruções de um
mestre-escola (e até ao orientador de tese, por mais absurdas que possam
parecer suas inclinações teóricas), quando não, cedo na vida, às ordens de pai
e mãe, antes que nos seja dado o direito e o dever de também fazê-lo em direção
de nossos filhos, eventualmente rebeldes a alguma recomendação de segurança ou
outra qualquer. Nos inclinamos com tão maior rapidez, e o respeito devido,
quando tais ordens, emanando de alguém que possui legitimidade para assim
proceder (isto é, tendo a lei a seu favor), se destinam a guiar nossas próprias
ações, ou representam nossa conformidade a regras comumente acordadas com
vistas a um benefício de interesse geral, ou da ordem pública (que não tem nada
a ver com uma pretensa “vontade geral”, à
la Rousseau). Somos levados a cumprir ordens, ou a obedecer (o que sempre
implica alguma inclinação de coluna simbólica), porque assim estão organizadas
as sociedades civilizadas, baseadas em regras de interesse comum, antes que na
prevalência da força ou da prepotência de uns poucos.
O “inclinar a coluna” aqui
visado tem a ver, mais apropriadamente, com o que Étienne De La Boetie já
chamou de servidão voluntária, ou seja, a predisposição de certos indivíduos –
mas pode ser também uma comunidade inteira, ou um governo – de se dobrar a um
poder qualquer, geralmente o do Estado, encarnado no governo de ocasião, ou de
certas potências de ocasião, numa total falta de confiança em suas próprias
capacidades ou virtudes. A atitude é mais frequente do que se pensa, e não se
manifesta apenas naqueles casos de privação extrema, sob o jugo da qual pessoas
que poderiam se desempenhar com suas próprias forças, para superar alguma
vicissitude temporária, preferem se entregar ao arbítrio de quem proclama poder
garantir sua subsistência ou segurança, em troca justamente da servidão aos
desígnios e causas do suposto protetor. La Boetie pensava, claro, na situação
limite que lhe era dado contemplar em sua época, caracterizada pela existência de
camponeses tão miseráveis ao ponto de ter sua sobrevivência ameaçada, e que
decidiam se entregar a um tirano qualquer ou aceitar defender suas causas, numa
escravidão sem grilhões aparentes e sem título de propriedade.
De fato, a servidão
voluntária geralmente se faz sem papeis, e ela é usualmente de caráter mental,
antes de se traduzir em um contrato qualquer, no oferecimento de algum posto ou
distinção de ofício, quando então a submissão assume todos os contornos da
situação descrita pelo pensador francês, amigo de Montaigne. O mais frequente,
nesse tipo de situação, é o contexto estamental, ou corporativo, no qual
indivíduos que desejam ascender funcionalmente se mostram servis e obsequiosos
aos que estão no topo da carreira, esperando, portanto, um empurrão ou até
mesmo uma âncora, para poderem se alçar acima da malta.
Não estamos falando de um
regime de castas, no qual a “ralé” pretende mudar a sua situação, mas de um
“conjuração dos iguais”, na medida em que alguns são sempre “mais iguais” do
que outros, e esses outros se conformam ao papel que lhes é atribuído pelos
primeiros. É um comportamento mais frequente do que se imagina, como tenho
observado, com essas minhas retinas fatigadas, ao longo de algumas décadas de
convivência com “iguais” e “mais iguais”.
Tampouco devemos
restringir a servidão voluntária, e a submissão consentida, aos comportamentos
individuais, o que nos remeteria ao terreno da psicologia, ou talvez até da
psiquiatria. Por vezes, comunidades inteiras se submetem ao domínio de um
tirano, como ainda assistimos na Alemanha nazista, três gerações atrás. Todo o
processo, tanto pela sua essência política, quanto pelas suas implicações
econômicas, foi capturado no livro seminal do economista e filósofo austríaco,
Friedrich Hayek, chamado justamente A
Caminho da Servidão (5a. ed.; Rio de Janeiro: Instituto Liberal,
1990; tradução e revisão: Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de
Morais Ribeiro; livremente disponível no site do Instituto). Como o próprio
Hayek esclarece, em seu capítulo inaugural, o ponto de partida de tudo foi a
Alemanha.
Visitando o museu de
Nuremberg dedicado ao partido nazista, no mês de junho de 2012, fiquei
impressionado pela abundância documental – cartas, jornais, livros, filmes – em
torno do fenômeno da captura hipnótica de toda uma população por um tirano
medíocre, mas que possuía o dom da palavra, como poucos em sua época. Usando os
recursos do rádio e da imprensa, e aproveitando-se da situação caótica, ou de
verdadeiro desespero econômico vivido pelo povo alemão, naqueles anos
conturbados do pós-Grande Guerra, de hiperinflação na década seguinte e crise
econômica dos anos 1930, o megalomaníaco líder racista conseguiu reduzir quase
toda a nação a um estado de submissão raramente visto nos anais da história.
Contemplando os materiais do museu, não deixei
de traçar paralelos com outras situações e com outros personagens, mais
próximos, talvez, de nossa história, embora seja difícil reproduzir novamente
os casos de colossal histeria coletiva, como observados na Alemanha dos anos
1930, até o turbilhão do desastre fatal na década seguinte. Fica, porém, a
advertência: messias salvadores, e seu séquito habitual de true believers – alguns deles por mero oportunismo, busca de
retornos materiais, ou ambição de poder – são sempre uma via perigosa para um
regime de liberdade.
Na verdade, a maior parte
dos casos individuais de servidão voluntária, ou de “inclinação da espinha
dorsal” se dão mesmo por oportunismo, sede de poder e desejo de glória e
prestígio. Em troca da proximidade com o poder, quando não da possibilidade de
se exercer algum poder, indivíduos aparentemente normais são capazes dos mais
inacreditáveis contorcionismos verbais e comportamentais, numa alteração de
personalidade que pode chegar a assustar os amigos e familiares. Sem desejar
reproduzir os alertas muito conhecidos de Lord Acton, é um fato que o poder,
sobretudo quando é absoluto, pode corromper absolutamente; se juntarmos a isso
certa inclinação autoritária, quando não totalitária, temos indivíduos que
ascenderam numa corporação “normal” e que de repente se transformam em servos
fiéis do poder encarnado pelos “mais iguais”. A submissão é tão forte que o
novo súdito voluntário é capaz de “vestir a camisa” de quem está no comando –
mesmo quando isso fica um pouco bizarro – e de pretender que todos os demais
façam o mesmo.
Quando isso ocorre, o
espírito de servidão ultrapassa a dimensão das carreiras individuais para
disseminar-se por uma corporação específica do Estado, quem sabe até por todo o
governo, comprometendo as posições internas e externas da nação. Como todos
sabem, as melhores políticas de bem-estar coletivo são aquelas que resultam de
um debate aprofundado na sociedade – que precisa ser absolutamente livre – e da
transposição desse debate para os corpos representativos da sociedade,
geralmente o parlamento – que também precisa ser autônomo, em relação ao poder
executivo – e não as que são oferecidas de cima para baixo, como se a
magnanimidade do líder do momento fosse uma garantia de boa qualidade dessas
políticas. Fica claro, nesse contexto, que comunidades dotadas de cultura
política elementar, quando não privadas de um mínimo de conforto material,
podem ser levadas a aderir ao líder da ocasião, que se aproveita dessas
condições para assentar um domínio sobre a maioria – que é sempre formada por
gente humilde – e que depois se projeta numa espécie de tirania da popularidade
(quando esta não é, ela mesma, construída por uma hábil e mistificadora máquina
de propaganda).
Espíritos fortes em outras
camadas da população podem resistir à vocação autoritária de um messias
autoproclamado, mas este sempre encontrará os servos voluntários de que
necessita para assentar o seu poder e a continuidade de seu mando. Os
oportunistas estão sempre dispostos a servir o poder do momento em troca de
vantagens materiais, e do desejo de honra e prestígio, que nada mais são,
finalmente, do que “virtudes humanas” muito corriqueiras. Se isso é certo, também
é verdade que essas virtudes também podem ser muito ordinárias, como é o
próprio ato de dobrar a coluna para servir voluntariamente um candidato a
tirano. Assim é o mundo, assim são as pessoas...
Nietzsche, a quem não
prezo particularmente, escreveu algo a respeito. Parece que Hitler e Mussolini admiravam
esse filósofo. Mas não é preciso sequer saber de sua existência e conhecer a
sua obra para exibir o perfil requerido ao cenário aqui traçado. Sempre devemos
esperar o melhor das pessoas; mas não custa estar atento para certas vocações
desviantes...
Brasília, 2411: 16 julho 2012.