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terça-feira, 15 de agosto de 2017

O Itamaraty e a nova politica externa brasileira (2016) - Paulo Roberto de Almeida

Um texto feito no final de 2016 para atender a dois convites de palestras de entidades acadêmicas, uma privada, onde ele deve ter sido bem recebido, e outra pública, onde deve ter causado espécie, senão horror. Eu sempre digo o que penso, independentemente do público e das circunstâncias, e não me importa chocar os presentes, que de vez em quando precisam, realmente, acordar para certas realidades, depois de 13,5 anos de "lulopetismo diplomático", que encantou muita gente no ambiente acadêmico, enganada pela propaganda mistificadora dos companheiros.
 


3061. “O Itamaraty e a nova política externa brasileira”, Brasília, 19 novembro 2016, 18 p. Revisto em 26/11/2016. Texto elaborado para palestras em geral, especialmente em circuito acadêmico. Circulado preventivamente para encontros com professores e alunos de duas entidades acadêmicas de SP.

 Uma versão resumida, em inglês, foi apresentada em outro forum: 

3062. “Itamaraty and the new Brazilian Foreign Policy”, São Paulo, 1 dezembro 2016, 7 p. Palestra na conferência “Geopolitics of the Global South: changing patterns of development”, realizada na FEA-USP, em cooperação com a Universidade de Pec, da Hungria.
 
 
O Itamaraty e a nova política externa brasileira

Paulo Roberto de Almeida
 [texto preliminar para debate; em revisão; não citar]


Vamos partir do título, “O Itamaraty e a nova política externa brasileira”, pois é por ele que se deve começar a discutir os argumentos substantivos aqui expostos.
O Itamaraty todo mundo sabe o que é, ou quem é: trata-se da assim chamada Casa de Rio Branco, de tão históricas tradições. Cabe registrar, contudo, antes de qualquer outra consideração, que o Itamaraty, enquanto corpo de burocratas federais dedicados às relações exteriores do país — ou mais exatamente, uma instituição que se ocupa da diplomacia operacional, o que é mera técnica —, não é o dono da, ou sequer o responsável principal pela política externa, seja ela nova ou velha. O Itamaraty apenas executa a política externa que é determinada pelo chefe de Estado ou de governo, o dirigente político que ocupa funções executivas em função das forças políticas que se alternam no poder, forças que emergem a partir das opções eleitorais do corpo eletivo, ou seja, das preferências políticas expressas regularmente nas urnas. Cabe ainda ressaltar que a política externa é, justamente, um dos temas menos debatidos nas campanhas eleitorais, inclusive e infelizmente nas disputas presidenciais.
Falar, por sua vez, de uma nova política externa implica em que existe, isto é, que existiu, uma velha, ou uma antiga política externa, em todo caso anterior, e que as duas se distinguem entre si. Existem casos de perfeita continuidade entre as políticas exteriores de dois governos diferentes, mas sucessivos, assim como existem casos de certa ruptura entre os padrões de uma e de outra. É verdade que a atual política externa brasileira se distingue, em várias de suas vertentes, da anterior, mas caberia explicar exatamente porque, como, e em quais elementos constitutivos a nova se distingue da velha, isto é, da precedente, como se tornou evidente com a mudança na chefia do executivo, no meio de um mandato de governo, entre maio e agosto deste ano. Creio que explicado o título, podemos ir aos pormenores desses dois conceitos interligados.

1. O Itamaraty: formulador ou mero executor da política externa?
O Itamaraty é, provavelmente, em escala comparativa em nossa região, ou até mesmo mundialmente, uma das instituições nacionais mais bem avaliadas do ponto de vista de suas qualidades intrínsecas, de sua organização, da preparação de seu pessoal, talvez até mais positivamente do que ele mereceria numa aferição mais realista, ou mais rigorosa, a partir de critérios baseados em resultados efetivos. Mas, admitamos que o Itamaraty seja de fato excelente, aparecendo, pelo menos, como dotado de um bom desempenho, no confronto com outras agências públicas nacionais, e até com instituições similares de outros países. Essas qualidades, supostas ou reais, explicam, em grande medida, a capacidade de projeção do Brasil no plano internacional, que é relativamente importante, até mais do que o permitiriam as dotações do país em termos de PIB per capita, de participação nos grandes fluxos internacionais de comércio, de capacidade de produzir poupança para fins de finanças e de investimentos diretos, de gerar tecnologia e outros ativos, ou a sua contribuição para os fluxos e estoques mundiais de conhecimento, de descobertas científicas ou de inovações produtivas.
O Brasil, como se sabe, registra uma grande diferença entre volumes brutos e indicadores ponderados per capita. Esse descompasso entre o seu tamanho nominal e a sua importância real na fixação das normas e linhas definidoras da ordem internacional acompanha o Brasil desde os primórdios de sua vida independente, há quase 200 anos, quando pretendíamos nos inserir entre os grandes, sem realmente possuir as condições para exercer poder, que é a capacidade de ditar as normas pelas quais, em nosso mundo ainda westfaliano, devem ser pautadas as relações entre os Estados. Ainda hoje, apesar de certa acumulação de ativos, o Brasil continua a experimentar tal descompasso entre ser e poder. A despeito de imensos recursos naturais, de uma grande população em um extenso território, e de um valor agregado anual que se situa entre os dez primeiros do mundo, os demais indicadores nacionais, quando aferidos de maneira ponderada, nos remetem a posições e classificações bem menos exitosas, sob qualquer critério que se selecione: PIB per capita, índice de desenvolvimento humano, volume do comércio per capita e sua fração nos intercâmbios globais, critérios educacionais ou de presença nas estatísticas de patentes ou em outras frentes da inovação produtiva (e competitiva).
Em outros termos, a nossa projeção internacional, graças em grande medida ao Itamaraty, foi bem maior do que o permitiriam as capacitações nacionais reais, o que pode ser considerado um critério de desempenho relativamente satisfatório em escala mundial, sob qualquer critério que se considere. Numa linguagem figurada, poder-se-ia dizer que o nosso PIB diplomático é superior ao PIB material, ou econômico, ainda que ele possa ser inferior ao PIB futebolístico, ou talvez ao PIB musical (pelo menos o da bossa nova) e o dos manequins da moda internacional, que são os grandes produtos de exportação do Brasil. Nem futebol, nem música, nem modelos da moda devem seu valor agregado ao Itamaraty, ou ao próprio Brasil, pois resultam de valores individuais que são próprios aos personagens que os encarnam. Mas talvez possa ser dito que a grande capacidade de projeção internacional do Brasil é também devida aos valores individuais dos diplomatas, burocratas em sua maior parte, embora alguns poucos tenham exercido funções diplomáticas sem necessariamente pertencer à carreira.
Este é, portanto, o Itamaraty, um corpo de funcionários dedicados, selecionados rigorosamente, capacitados continuamente ao longo da carreira, e aparentemente bem dotados das qualidades requeridas para projetar o Brasil externamente, através de suas habilidades diplomáticas, independentemente do conteúdo da política externa que são chamados a defender ou representar na prática corrente de suas atividades profissionais. Muito bem quanto a isso: mas e quanto à natureza da política externa que os diplomatas são chamados a implementar em nome do país? Esta é a segunda vertente desta minha exposição que leva o qualificativo de nova, por oposição a uma antiga. Vamos a ela.

2. A política externa e a diplomacia necessitam de títulos ou de rótulos?
A nova política externa, por suposição lógica, é a atual e corrente, uma vez que, por força da crise política vivida pelo Brasil no último ano e meio – e que de certa forma ainda se prolonga numa difícil fase de transição para um futuro político e econômico que permanece largamente indefinido –, acabamos de encerrar uma velha política externa, a dos companheiros, ou seja, a dos governos lulopetistas que se sucederam no poder, pela via eleitoral e de modo exitoso (até há pouco), entre 2003 e maio de 2016. Essa nova política externa não possui, ainda, se algum dia tiver, algum título unificador, ou slogan atraente, como várias anteriores. Mas esse tipo de rotulação não é de fato necessário para o desempenho satisfatório de uma determinada (ou de qualquer uma) diplomacia. Diplomacias efetivas devem poder se sustentar por si mesmas, sem qualquer necessidade de apoio em muletas terminológicas.
Existem muitas pessoas, dirigentes seguros de si, que gostam de bandeiras, de títulos, de caracterizações das políticas gerais ou setoriais, que então passam a ser implementadas sob o seu comando. Já tivemos o “50 anos em 5”, dos tempos de Kubitschek, depois um tal de “Integrar para não Entregar” da era militar, o mesmo que também exibiu, durante certo tempo, um tal de “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”. Sob os companheiros tivemos um inexplicável “Brasil: um país de todos”, como se o país não pertencesse especialmente a alguns deles, os companheiros mais iguais, hoje hóspedes de uma tal de República de Curitiba, lugar aprazível, que poderá no futuro ter até uma política externa. Mais recentemente tivemos até mesmo uma espécie de redundância em torno de um país sem miséria, o que nos transformaria, automaticamente ao que parece, em um país rico. Ainda estamos esperando o prometido país rico, aliás em meio à maior recessão de nossa história, em todos os tempos...
No que concerne não políticas gerais, mas especificamente a política externa, já conviveu com vários e diversos títulos, ou slogans. Já tivemos, por exemplo, em nossa trajetória diplomática, a Política Externa Independente, como se as políticas anteriores fossem, por indução indireta, dependentes ou alinhadas – embora isso pudesse de fato ocorrer –, o que não impede que a famosa PEI tenha deixado saudades em mais de uma geração de diplomatas, tanto que vários deles tentaram revivê-la em outras épocas e circunstâncias. Logo em seguida, porém, após o golpe de 1964, ela foi substituída por uma diplomacia de fato alinhada, como uma espécie de pagamento pelo apoio dado pelos Estados Unidos ao golpe militar, e que teve um embaixador (de origem militar) conhecido pela sua infeliz adaptação de uma famosa frase criada originalmente no contexto da General Motors: “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”. Mas esses arroubos de sabujice foram raros em nossa diplomacia.
Passado esse curto (1964-67) intervalo alinhado, tivemos a chamada diplomacia da “prosperidade” (1967-74), mais adiante a diplomacia do “pragmatismo responsável” (1974-79), seguida pelo “ecumenismo” do último governo militar (1979-85). A despeito de que nesse período fossem mais comuns os rótulos das diferentes diplomacias que se sucederam ao longo do regime militar, essas diplomacias foram, de fato, bastante diferentes entre si, contrariamente a avaliações de certos analistas que pretendem enfeixar todos os governos militares sob padrões similares de comportamento ou de postura externa. As distinções foram reais e importantes, embora não seja o caso de analisar aqui cada uma delas em detalhe, para justamente ressaltar as diferenças.
Não se pode esquecer, em todo caso, que, em outubro de 1977, o então ministro do Exército, general Silvio Frota, tentou derrubar o presidente, general Ernesto Geisel, sob a alegação de que este estava conduzindo, com seu chanceler Azeredo da Silveira, uma política externa considerada esquerdista. Algumas “evidências” foram trazidas em apoio a essa acusação: estabelecimento de relações diplomáticas com a China comunista, reconhecimento do governo instalado em Luanda – o do partido MPLA, de nítidas vinculações com a União Soviética, o que colocou o Brasil, surpreendentemente, como aliado dos cubanos, na luta contra os invasores sul-africanos –, postura favorável a considerar o sionismo uma forma de racismo, em resolução votada na ONU, além de diversos outros episódios de uma diplomacia bastante avançada para a época. No seu seguimento, o último governo do regime militar preferiu deixar de lado o pragmatismo e adotar a caracterização de “universalismo ecumênico”. Aparentemente, portanto, de um ponto de vista teórico, quanto menos legítimo é um governo, mais necessidade ele sente de arranjar um título bonito para suas políticas, inclusive a externa. Quem sabe não surge, no futuro, uma tese ou uma dissertação acadêmica sobre essa necessidade psicológica de se esconder atrás de um rótulo atraente ou racionalizador?
O primeiro chanceler da redemocratização, escolhido pessoalmente pelo presidente eleito indiretamente, Tancredo Neves, o banqueiro Olavo Setúbal, prometia uma “diplomacia de resultados”, mas ele ficou pouco tempo no cargo e sua diplomacia não foi seguida de uma avaliação independente quanto aos resultados efetivos. Já o primeiro presidente eleito diretamente depois do período militar, pretendia fazer o Brasil deixar de ser o primeiro entre os países subdesenvolvidos para converter-se no último dos desenvolvidos e, embora tenha contribuído para mudanças significativas na política externa, não pretendeu, nem os seus chanceleres o fizeram, inventar qualquer título apelativo para a sua política externa: ela teve, por sinal, dois chanceleres, ambos de fora da carreira, e três secretários-gerais do Itamaraty. Cabe aliás relembrar que, de maneira inédita nos regimes políticos brasileiros, tanto monárquico, quanto republicano, o período militar foi o único que atribuiu sistematicamente o comando do Itamaraty aos próprios diplomatas, provavelmente em função do respeito recíproco que mantinham as duas corporações mais antigas do Estado, a dos soldados e a dos diplomatas.
Os oito anos dos dois mandatos do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), cujo titular já tinha sido chanceler de um governo de transição (1992-93), tampouco tiveram um slogan nominativo para a sua política externa, mas o jornalismo e os analistas do setor a designaram como sendo uma “diplomacia presidencial”, em vista das inúmeras viagens e do envolvimento pessoal do presidente em sua implementação. Os opositores do governo e de sua diplomacia – adivinhem quem eles eram? – tentaram agregar outros epítetos, menos neutros, e mais politicamente marcados, a essa diplomacia basicamente profissional (uma vez que produzida essencialmente por diplomatas, a partir do Itamaraty e do próprio Palácio do Planalto, onde também trabalhavam diplomatas profissionais em sua assessoria internacional). Essa diplomacia, bastante exitosa, a despeito das turbulências financeiras do período, foi, provavelmente, uma das mais identificadas com o Itamaraty em todos os tempos (ou seja, até mais do que no período militar), já que ela era conduzida essencialmente a partir de sugestões e recomendações feitas pelos próprios diplomatas, com grande grau de adesão do presidente às linhas principais da política externa que vinha sendo operada pelos diplomatas desde a era militar.
Cabe aqui uma pequena digressão a esse respeito. Por paradoxal que possa parecer, o Itamaraty foi bastante livre, em suas ações e decisões, durante o regime militar, com as exceções esperadas que correspondiam a tabus e paranoias dos militares: Cuba, União Soviética, regimes esquerdistas na região, movimento comunista em geral (mas com aquelas adaptações que se conhecem na diplomacia Geisel-Silveirinha). De certa forma, o Itamaraty foi mais livre durante o regime militar do que sob o reinado recente dos companheiros, que mantinham o Itamaraty sob estreita vigilância, chegando ao ponto de um documento recente do partido companheiro – já expelido do poder – ter lamentado que o partido não tinha sido suficientemente atento quanto aos opositores “internos”, mais ativo quanto à “reeducação” de militares e diplomatas, ou que eles não tinham sido muito efetivos na promoção dos alinhados à sua causa. Tal “confissão” não deixa de ser uma demonstração explícita, entre muitas outras, do perfeito stalinismo que sempre caracterizou o pensamento da maioria dos apparatchiks neobolcheviques.
Em todo caso, assim que ele literalmente tomou o poder, o partido companheiro tratou de conseguir um slogan para a sua diplomacia, confirmando a “teoria” sobre a necessidade psicológica de um título qualquer, quando não se tem certeza de que os fundamentos de sua própria política são verdadeiramente legítimos e aceitáveis. Esse título foi encontrado, pelo único chanceler dos anos lulopetistas, na combinação de duas, talvez três, qualidades auto-atribuídas: a diplomacia companheira seria “ativa e altiva”, caracterização pro domo sua, à qual se agregou, diversas vezes, o complemento de “soberana”, como se também subsistisse alguma dúvida quanto a essa componente patriótica, quase militar, num partido que aparentemente se orgulhava de seu caráter internacionalista (como os antigos partidos comunistas da era stalinista, por sinal).
Que a política externa brasileira, nos dois mandatos do presidente Lula, tenha sido ativamente ativa, disso ninguém duvida; ela foi ativíssima mesmo, especialmente nessa vertente inaugurada no governo anterior, que consistiu em praticar a chamada “diplomacia presidencial” (mas os companheiros sempre recusaram esse epíteto, como recusaram qualquer coisa que provinha do regime anterior, sempre designado como neoliberal). Parece que eles faziam diplomacia presidencial um pouco como Monsieur Jourdain fazia prosa, isto é, sem o saber. Lula e seus companheiros de partido, mas também os companheiros diplomatas, nunca quiseram chamar a diplomacia de fato presidencial que eles praticavam de diplomacia presidencial, pois que isso os colocaria, simplesmente, numa linha de continuidade com o governo detestável de FHC. Não contentes em inventar a suposta “herança maldita” que eles teriam recebido – quando a deterioração econômica durante a campanha presidencial tinha sido provocada pelas posturas esquizofrênicas que esse partido tinha preconizado até então –, tudo o que os companheiros pretendiam era isto: estabelecer uma linha divisória, um momento de ruptura, uma diferenciação fundamental entre um suposto ancien régime tucanês, que eles se empenharam em atacar, desde o início, e um belo, lindo e patriótico nouveau régime companheiro, que teria inaugurado uma fase inédita no país, nunca antes vista no Brasil, desde Cabral, ou algo assim.
Eles precisavam, portanto, de palavras fortes, definidoras, para caracterizar a sua diplomacia revolucionária (inclusive para compensar a sua política econômica que era, de fato, neoliberal). Assim, que ela tenha sido classificada de “altiva”, isso já é uma qualificação pro domo sua, como se apenas os petistas tivessem defendido a autonomia nacional. Fica muito feio inventar coisas em causa própria, especialmente quando elas são introduzidas apenas para diminuir, espicaçar, denegrir a diplomacia anterior, que os companheiros sempre quiseram acusar de submissa a Washington, alinhada com o Império, voltada apenas para o Norte, enfim, essas coisas que eles foram alegando, apenas para realçar suas supostas qualidades superiores. Junto com a outra acusação, totalmente imprópria, de “herança maldita”, que eles quiseram colar no governo anterior – como se a deterioração da economia nacional não se devesse exatamente à péssima recepção que os mercados tiveram ao ver um partido anticapitalista chegar ao poder –, essa qualificação de diplomacia “altiva” representa uma das coisas mais sórdidas feitas pelo regime dos lulopetistas, ao lado da exploração de outros episódios políticos que foram manipulados por uma publicidade especialmente ativa, mas fundamentalmente mentirosa (e o que é pior, paga com nosso dinheiro e mais do que superfaturada).
Ainda na questão dos títulos e slogans, cabe registrar que o último, e totalmente mal sucedido, governo petista, o de Dilma Rousseff, não teve nenhum, assim como não teve, para todos os efeitos, nenhuma política externa. A despeito de ostentar, errática e sucessivamente, três ministros das relações exteriores, não se pode dizer que Madame Pasadena tenha exibido qualquer política externa digna desse nome, a não ser aqueles estertores bolivarianos que estiveram totalmente em convergência com sua desastrosa, catastrófica, política econômica, essa que jogou o Brasil na pior recessão de toda a sua história. Os maiores, e piores, momentos de sua política externa foram constituídos pela suspensão do Paraguai do Mercosul, e pela admissão política da Venezuela chavista no bloco, ambas iniciativas absolutamente ilegais, que não respeitaram sequer padrões básicos e normas estatutárias do Mercosul, nomeadamente o Tratado de Assunção e o Protocolo de Ushuaia, regulamentando a chamada “cláusula democrática” do bloco, um conceito que aparece como ironicamente invertido, em face do que foi perpetrado em 2012. Mesmo se os dilmistas, companheiros e diplomatas, tenham se esforçado para provar que a sua política externa era uma continuidade da anterior, ou seja, “ativa, altiva e soberana”, parece claro que ela não foi nem uma, nem outra, nem a terceira, uma vez que ela se colocou a serviço de forças não exatamente nacionais, sequer regionais.
Ainda, e finalmente, no capítulo dos slogans diplomáticos, o atual ministro das Relações Exteriores, senador José Serra, teria afirmado, numa recente alocução, que sua política externa seria “afirmativa”, que aliás é tudo o que se espera de uma diplomacia digna desse nome. Se ela vai ser, ou não, mais afirmativa do que a “ativa e altiva”, isso não se pode confirmar neste momento, mas voltaremos a ela mais adiante. Vejamos, ainda, algumas características dos governos e das diplomacias lulopetistas.

3. A velha política externa: a parábola do lulopetismo, entre AC e DC
O conceito de parábola aplicado à era lulopetista no Brasil, a partir da primeira década do novo milênio, pode ser visto em sua acepção matemática, ou seja, uma figura geométrica em forma de curva oblonga, cujos pontos são equidistantes em relação ao centro. De fato, a relação do Partido dos Trabalhadores com a democracia é equiparável a essa figura, na qual uma organização de inspiração e feitura neobolchevique fica girando incessantemente em volta dessa forma de governança política sem nunca dela se aproximar (e sem pretender fazê-lo). O partido se vale da noção de democracia para ganhar uma legitimidade que não merece, uma vez que dela sempre esteve distante.
Mas o lulopetismo, enquanto alegada doutrina “social”, também poderia ser identificado à versão religiosa da parábola, ou seja, uma narração alegórica, possuindo um pretenso fundo moral ou pretendendo registrar um ensinamento. Esse, segundo o evangelho da seita, seria o da justiça social. Na prática, usou-se desse subterfúgio para constituir um imenso curral eleitoral – o da Bolsa Família – que tomou o lugar do antigo voto de cabresto dos coronéis dos grotões, ao mesmo tempo em que o partido se dedicava a enriquecer os seus chefes, numa forte colusão entre capitalistas promíscuos e políticos corruptos raramente vista no Brasil, nas proporções que ela assumiu. Sob qualquer critério que se meça a extensão do assalto ao Estado e à nação, nunca antes se roubou tanto no Brasil como durante a era lulopetista. Não se terminou, ainda, de fazer a contabilidade completa da roubalheira, de toda forma, já inédita sob diversos critérios.
O experimento lulopetista de transgressão exagerada e criminosa ao que poderia ser considerado como um volume “aceitável” de roubalheira tem de ser visto na ótica da Dialética da Natureza, na qual Friedrich Engels examina o salto essencial da quantidade à qualidade; ela corresponderia, numa linguagem marxista, à passagem de um “modo de produção artesanal” da corrupção, no qual políticos roubam como sempre o fizeram, ou seja, em escala individual, para um “modo industrial de corrupção”, sob o qual o partido organiza a pilhagem sistemática do Estado e dos brasileiros, roubando numa escala jamais vista em nossa história, provavelmente nunca igualada em qualquer outro país do hemisfério, talvez do mundo.
O caráter do fenômeno já estava suficientemente explícito desde o Mensalão de 2005, como sendo um mecanismo implantando para fraudar a democracia, dedicado a comprar suficientes votos de parlamentares e de bancadas inteiras para sustentar o partido hegemônico no poder, pela via das propinas e falcatruas feitas com dinheiro público – ou seja, roubo declarado de empresas estatais – e também com dinheiro privado, isto é, extorsão contra capitalistas privados, mediante troca de favores em contratos superfaturados e outras combinações criminosas. Esse esquema já tinha sido revelado naquela ocasião, mas por covardia, pusilanimidade ou conivência da oposição castrada de que se dispunha naquela momento, não foi possível expelir os meliantes do poder. Infelizmente foi preciso aguardar uma década inteira para que o impeachment se consumasse e a gangue de meliantes políticos fosse apeada do poder, embora ainda não extirpada da vida pública (inclusive porque são muitos e diversos os atores).
O que se seguiu depois, em termos de processo gramsciano, foi tão relevante para a história política do país que uma nova cronologia poderia ser proposta para uma reavaliação do período recente. Se fôssemos adotar uma nova periodização para a política brasileira nas últimas duas décadas, poder-se-ia dividi-la de forma similar à da historiografia do mundo ocidental: AC e DC. Ao contrário, no entanto, da simbologia cristã associada a essa divisão – e a despeito de que o líder principal, provavelmente único, do lulopetismo tenha mais de uma vez se comparado a Jesus –, não se estaria desta vez fracionando a cronologia histórica em Antes e Depois de Cristo, mas sim em Antes e Depois dos Companheiros.
O marco divisor, no entanto, não se resumiria a um único evento, ou ano, mas a todo um período, os treze anos e meio, de janeiro de 2003 a maio de 2016, intervalo durante o qual os companheiros dominaram – e o termo se aplica especificamente em sua conotação patrimonialista – a política brasileira como nunca antes tinha ocorrido no país. Aqui cabe uma nova distinção quanto ao tipo específico de patrimonialismo: à diferença daquele tradicional, baseado nessa ausência de distinção entre a propriedade pública e as apropriações individuais dos dirigentes e líderes políticos, se poderia falar, pelo caráter partidário, organizado, sistemático das novas formas de apropriação, de um patrimonialismo de tipo gangster, como foi, na Argentina, em seu tempo, a República Sindical de Perón, de certa forma ainda viva pela força do justicialismo, mas no Brasil sem qualquer doutrina política especial, apenas uma espécie de peronismo de botequim.
Uma vez instalados no poder, os companheiros dele se apossaram rapidamente, e procederam à ocupação total do Estado (e de todo o resto), traçando uma estratégia de monopolização da dominação política por todos os meios, legais e ilegais, à disposição de seus dirigentes inescrupulosos, como revelado na sucessão incrível de escândalos e de falcatruas já objeto de investigações policiais e judiciárias. Nesse longo intervalo de tempo, nunca houve, verdadeiramente, distinção entre patrimônio público e apropriação privada, por métodos inclusive os mais escabrosos, como o roubo direto de bens que deveriam estar registrados em listas de bens da Presidência da República, a ponto de se poder justificar, efetiva e plenamente, no caso dessas apropriações dos companheiros, a denominação antes feita de um patrimonialismo gangsterista.
Nunca antes na história do país, ladrões vulgares se tinham instalado de maneira tão acintosa no comando do Estado. Enfim, desde o mês de maio de 2016, parece ter se encerrado a fase certamente a mais vergonhosa de todas do nosso itinerário republicano, esperando-se que para sempre (embora ainda persistam sérias e fundadas dúvidas a esse respeito). O regime finalmente interrompido, depois de 13 anos e meio de comando quase monopólico do poder, afetou praticamente todas as instituições de Estado e suas agências afiliadas, o que compreendeu, igualmente, o órgão estatal encarregado das relações exteriores do país: o ministério das Relações Exteriores. Vamos a ele, agora.

4. Construção e desmantelamento de instituições: o caso do Itamaraty
Instituições de Estado podem tanto ser o fruto de medidas puramente circunstanciais – no caso de alguma decisão de caráter conjuntural por parte de um governo especialmente empreendedor –, quanto emergir lentamente no curso de uma longa evolução política, construindo progressivamente o seu corpo especializado de profissionais, elaborando algum substrato doutrinal que congregue valores e princípios vinculados às suas missões próprias e, possivelmente, algum “esprit de corps” que consolide a “cultura” da instituição em causa. O Itamaraty pertence inegavelmente a esta segunda tradição de “institutional building”; ele sempre se mostrou orgulhoso de sua longa história de distinguidos serviços prestados ao Estado e ao país, sendo, ele mesmo, um dos construtores da nação, e não só no importante trabalho de fixação dos limites do território nacional, mas também na defesa constante dos interesses da pátria onde quer que estivessem seus representantes, diplomatas, cônsules e outros agentes e funcionários do Estado envolvidos ocasionalmente na agenda diplomática.
Ao oferecer aqui um depoimento pessoal, como diplomata, mas sobretudo como cidadão, sobre um período determinado de nossa história, me cabe talvez rememorar o título de meu livro mais recente sobre essa área central de minha atividade profissional, mas também objeto de minhas reflexões acadêmicas: Nunca Antes na Diplomacia: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014). Creio ter sido modesto no subtítulo, pois que o período iniciado em janeiro de 2003, concluído em maio de 2016, não foi simplesmente não convencional, mas um dos mais difíceis na longa história do Itamaraty. Inicialmente saudado como uma renovação bem vinda numa trajetória que era equivocadamente assemelhada a “trejeitos elitistas” e “submissão ao Império”, o Itamaraty ingressou, efetivamente, em tempos excepcionais, nos quais a diplomacia padeceu, em primeiro lugar, de uma dispersão de centros de decisão (com diversos “formuladores” de posições, por vezes divergentes entre si), em segundo lugar, de uma significativa alteração no próprio processo decisório, invertendo o fluxo normal de formulação de posições, que deveria ser da base para a cúpula, mas que tendeu a correr no sentido inverso.
Mais importante ainda, a diplomacia perdeu seu caráter suprapartidário e sua abrangência nacional, convertendo-se, como já salientado, num mero apêndice de interesses partidários, no sentido mais restrito do termo. Esse aspecto vem acoplado a uma quarta, e mais grave, característica, que vai pesar terrivelmente sobre o trabalho dos futuros historiadores, quando, mesmo depois da liberação de papéis confidenciais, eles quiserem estudar sobre como, e por que, foram tomadas determinadas decisões, como se conduziram determinadas negociações, como se passaram, efetivamente, determinadas ações da diplomacia brasileira, que não eram exatamente as da diplomacia profissional, mas correspondiam a iniciativas e empreendimentos tomados no Palácio do Planalto, executados por um número muito reduzido de atores, na ausência – volto a sublinhar a gravidade do procedimento – dos devidos registros nos anais da Casa. Pois bem, cabe, neste momento, decepcionar preventivamente os futuros, ou atuais, historiadores de nossa política externa, ao confirmar que eles, provavelmente, não encontrarão provas documentais, em número ou qualidade suficientes, para fundamentar ou explicar algumas dessas ações, porque esses registros simplesmente não existem, porque se trabalhou, durante bastante tempo, em especial em determinados episódios, sem que as comunicações pertinentes fossem feitas, ou seja, que se exerceu, até contra a vontade dos diplomatas, uma “diplomacia paralela”, no pior sentido do termo.
Creio que esse deve ser o pior legado deixado na memória documental do Itamaraty pelo regime lulopetista: a existência de canais não transparentes, para não dizer secretos, clandestinos, no limite ilegais, que não esclarecem devidamente sobre tenebrosas transações feitas pelos companheiros, geralmente feita com regimes aliados, os famosos bolivarianos, ou em operações até criminosas, feitas com regimes pouco recomendáveis. Por se tratar de algo substantivamente relevante, e não simplesmente decorativo, ou superficial, cabe agora, portanto, examinar, as principais características da diplomacia lulopetista, ou seja, a velha, para melhor distingui-la da atual, ou nova.

5. O AC-DC na área da política externa: uma diplomacia exótica
Essa classificação, “Antes e Depois dos Companheiros”, já sugerida no tocante à política brasileira dos últimos 13 anos e meio, poderia ser aplicada, talvez com mais forte razão ainda, à diplomacia desse período, na qual prevaleceu uma versão muito peculiar de nossa interface externa, e que alterou profundamente as bases sobre as quais se assentava tradicionalmente a política internacional do Brasil. Não se analisou ainda os seus efeitos reais nas relações regionais do Brasil, mas ela pode ter impactado de modo sensível a diplomacia profissional, com uma clara perda de credibilidade do país na região e no mundo. Em algumas áreas, como a da diplomacia regional, as mudanças introduzidas alteraram profundamente o modo pelo qual o Brasil se relacionava com os seus vizinhos do continente, no limite, inclusive, de graves infrações à conhecida norma constitucional da não interferência nos assuntos externos de outros países, por exemplo por ocasião de disputas eleitorais, como também já referido anteriormente.
Não cabe aqui o relato circunstanciado do que foi o período companheiro à frente da diplomacia brasileira, já classificado por mim como sendo o de uma “política externa exótica”, num dos capítulos do meu livro Nunca Antes na Diplomacia. Essa obra examina diversos aspectos bizarros da política externa companheira, entre eles a opção míope por uma coisa chamada de “diplomacia Sul-Sul”, o que nada mais é senão um desvio geograficamente determinista, e estupidamente ideológico, das tradições universalistas que sempre caracterizaram a diplomacia brasileira. O mandatário supremo – a quem, de modo submisso, o chefe da chancelaria chamava de “Nosso Guia” – nunca se pejou de reconhecer que, em seu governo, a diplomacia mantinha uma clara divisão entre, de um lado, as relações de Estado a Estado, à cargo da instituição diplomática oficial, e, de outro, as relações com os partidos de esquerda, sob a responsabilidade do seu assessor presidencial para assuntos internacionais (também chamado de “chanceler paralelo”, e talvez de fato). A distinção sempre foi muito clara e reconhecida por todos. Em outros termos, inaugurou-se no Brasil, em caráter praticamente institucional, a diplomacia partidária, o que não deixou de representar algo inédito no longo itinerário histórico do Itamaraty.
O aparelhamento companheiro da instituição diplomática só não foi tão completo e avassalador, como ocorreu em praticamente todos os demais órgãos do Estado, porque a legislação em vigor obstava a que cargos na Secretaria de Estado fossem ocupados por outros quadros que não aqueles selecionados por concurso de ingresso na carreira diplomática. Mas justamente: o lulopetismo diplomático passou a ser exercido com relativa proficiência graças ao bom funcionamento do aparelho estatal colocado a seu serviço, máquina operada por profissionais competentes, vários deles convencidos dos bons propósitos da causa, e até entusiastas por se engajar, enfim, na expressão externa de uma política enfim correspondendo ao Brasil real, já que a antiga diplomacia teria padecido de um indesejado viés elitista e conservador. O lulopetismo diplomático começou então a ser exibido como a nova representação de um Brasil finalmente comprometido com a transformação das relações iníquas e injustas que sempre prevaleceram na sociedade brasileira e, de forma geral, no mundo, o que permitia oferecer um bônus extra de legitimidade política, já que supostamente identificado com as “boas causas”.
O lulopetismo diplomático foi, assim, exercido pelos profissionais da área, mas estreitamente vigiado, controlado e guiado pelos apparatchiks do partido, devidamente orientados, todos eles, pelo Nosso Guia, cuja palavra era lei, para o bem e para o mal, nas grandes definições e iniciativas então tomadas nessa projeção internacional do demiurgo da causa. Todos os padrões tradicionais da instituição se dobraram ao novo gênio da política internacional, que se permitia até zombar dos profissionais, desprezar seus subsídios mais ou menos eruditos e talhados no formato aceitável ao ambiente externo, e que foram devidamente substituídos pelas mesmas arengas de sindicalista empírico, toleradas e até saudadas como sendo à imagem e semelhança do Brasil profundo, popular e popularesco como deveria ser. Esse lulopetismo diplomático alcançou todos os terrenos da diplomacia profissional, com ênfase nas questões regionais e do mundo em desenvolvimento em geral, este eleito como o terreno de ação privilegiada da nova doutrina, pois que supostamente em oposição política aos antigos poderes “hegemônicos”, e consequentemente aliados na grande causa mudancista em escala mundial. As consultas bilaterais com os atores do chamado “Sul Global” – uma total ficção em termos geopolíticos – passaram a ser guiadas por novas “alianças estratégicas”, invariavelmente escolhidas, até preventivamente, entre parceiros supostamente engajados nas mesmas causas. Havia aqui um profundo equívoco quanto às alianças estabelecidas até preventivamente com parceiros preferenciais, que estariam, supostamente, convencidos dos grandes mitos entretidos pelo lulopetismo diplomático, quais sejam, o de “mudar a relação de forças existentes no mundo”, e a de “inaugurar uma nova geografia do comércio internacional”.
O lulopetismo diplomático definiu, desde o início, quais seriam as novas linhas de atuação, de forma independente das bases econômicas e materiais das relações internacionais do Brasil, doravante concentradas numa suposta identidade de interesses que partia das mesmas concepções políticas equivocadas que guiavam o partido em sua Weltanschauung. Ele passou então a se exercer em toda a sua plenitude, primeiro para exaltar o Nosso Guia, em suas novas roupas – quase como na fábula –, e ele tinha especial prazer em reforçar sua diplomacia personalista e megalomaníaca, já visando atingir os pináculos da glória nos palcos internacionais, sobretudo nas esferas regional e africana, nas quais brilhou como nunca, na base de mistificações políticas (“sem tutela do império) e históricas (a tal de “dívida brasileira” derivada do tráfico escravo). Os profissionais da área lhe forneceram os meios e os modos de expulsar o império do âmbito regional, criando e reformando organismos que fossem exclusivamente sul-americanos ou latinos, o que correspondia inteiramente às diretrizes emanadas do Foro de São Paulo, uma organização inteiramente controlada pelos dirigentes castristas. A ação externa se exerceu obviamente além desses interesses vinculados, mas nenhuma das iniciativas e atuações contradisse ou deixou de corresponder aos interesses desse grupo pouco transparente, e de fato vinculado a lideranças externas.
O lulopetismo diplomático, justamente, substituiu a definição sensata da política comercial em função dos interesses exclusivos do setor privado da economia – que é quem, finalmente, exporta e importa, e cria empregos e riqueza segundo seus critérios basicamente microeconômicos – para grandiosos planos de redefinição completa dos fluxos de comércio segundo parâmetros ideológicos, começando pelo unilateralismo da diplomacia Sul-Sul para se estender a uma completa estupidez proposta pelo Nosso Guia, consistindo na “substituição de importações” brasileiras em favor desses parceiros do Sul, sobretudo os regionais, mesmo que – e isto está documentado – os produtos ofertados fossem mais caros do que alternativas “hegemônicas”, uma vez que se tratava de “ajudar países mais pobres do que o Brasil”. Paradoxalmente, e contraditoriamente aos objetivos dos lulopetistas, o comércio do Brasil cresceu mais em direção de parceiros tradicionais do que no sentido privilegiado pela ação dos novos mandarins da política comercial, o que pode ser aferido por uma consulta às estatísticas de comércio exterior; quanto ao comércio com a China, não se poderia, honestamente, coloca-lo no patamar convencional dos fluxos de intercâmbio natural, uma vez que ele é feito, em grande medida, de compras chinesas de commodities brasileiras – ou seja, puramente demanda chinesa – e não necessariamente de intercâmbios construídos a partir da interação normal entre duas economias interdependentes ou complementares.
Finalmente, o lulopetismo diplomático consistiu, basicamente, numa política externa exótica, feita de um enorme engajamento em ambiciosas iniciativas, em grande medida fora da agenda diplomática tradicional do Itamaraty, por certo permitindo uma enorme projeção externa do Brasil (sobretudo em benefício do seu propulsionador original), mas que tampouco redundaram em ganhos permanentes para o país. A projeção externa também se deu por meio de uma exagerada expansão da representação oficial no plano bilateral – com custos cumulativos pesando permanentemente sobre um orçamento não muito elástico, além de sujeito às flutuações do câmbio – e de criação de novos organismos e foros politicamente alinhados com as preferências dos companheiros, de duvidosa utilidade do ponto de vista dos interesses nacionais.
O Mercosul, por exemplo, deixou de ser um espaço de integração econômica e de liberalização comercial, para se converter num palanque político, com retrocesso real em relação a seus objetivos originais. Tanto foi assim que o atual chanceler, antes e depois de passar a comandar a diplomacia brasileira, chegou a questionar seriamente a real utilidade do bloco para o Brasil, uma vez que ele tinha perdido importância na interface comercial global do país e impedia a negociação de acordos comerciais individuais com países ou outros blocos de comércio. Não existe, ainda, uma definição quanto aos novos caminhos do Mercosul, e o assunto de sua reconstrução segundo os objetivos originais do Tratado de Assunção permanece sob exame.
Entrados, por fim, na era DC da diplomacia brasileira, cabe, portanto, examinar alguns elementos da nova política externa a cargo do governo cujo mandato se estende até o final de 2018. O que poderia ser dito da nova diplomacia de um governo que precisa executar, primordialmente, uma difícil e dolorosa operação de ajuste econômico interno, em função da Grande Destruição provocada pelo nefasto regime lulopetista?

6. A nova política externa: o retorno a uma diplomacia profissional
Os contornos específicos da nova política externa não foram, ainda, exatamente detalhados pelo governo que deve conduzir o Brasil até o final de 2018, a não ser por um parágrafo genérico na posse do vice-presidente efetivado no cargo, e também por um parágrafo inicial no discurso de posse do novo chanceler, em 18/05/2016. Na apresentação das suas dez diretrizes de política externa para o seu mandato à frente do Itamaraty, o chanceler José Serra declarou expressamente em sua primeira diretriz:
A diplomacia voltará a refletir de modo transparente e intransigente os legítimos valores da sociedade brasileira e os interesses de sua economia, a serviço do Brasil como um todo e não mais das conveniências e preferências ideológicas de um partido político e de seus aliados no exterior. A nossa política externa será regida pelos valores do Estado e da nação, não do governo e jamais de um partido. Essa nova política não romperá com as boas tradições do Itamaraty e da diplomacia brasileira, mas, ao contrário, as colocará em uso muito melhor.

A segunda diretriz também é digna de nota, embora ela corresponda, como todas as demais, ao que é normalmente esperado de uma diplomacia “normal”, ou seja, uma que se guia pelos princípios e valores expressos na Constituição, e que se conforma aos padrões correntes inscritos nos instrumentos do direito internacional, vários deles, aliás, desrespeitados seguidamente pelos companheiros, como por exemplo o apoio, diversas vezes explícito, do presidente Lula a candidatos de esquerda na região e alhures, o que contraria o conhecido preceito da não ingerência nos assuntos internos de outros países:
Estaremos atentos à defesa da democracia, das liberdades e dos direitos humanos em qualquer país, em qualquer regime político, em consonância com as obrigações assumidas em tratados internacionais e também em respeito ao princípio de não ingerência.

Independentemente, portanto, do caráter mais ou menos “afirmativo” da nova política externa, que poderá vir a ser o seu título oficial, ou o seu slogan preferido, o que realmente a distingue da antiga, ou da velha (ainda que recente) é essa recusa do caráter partidário da diplomacia brasileira, algo que realmente caracterizou a diplomacia dos companheiros. Regimes parlamentaristas, ou presidencialismos de tipo congressual, como os existentes no Atlântico norte, podem não avaliar de maneira adequada, ou correta, o caráter claramente partidário da política externa, uma vez que se toma por normal e esperado, nesses regimes, o caráter justamente partidário das alternâncias que se processam nas políticas de governo e na política externa. Não se leva em conta, no caso do lulopetismo, o caráter profundamente sectário assumido pelas políticas públicas de modo geral, e o caráter sigiloso de determinadas políticas setoriais, o que justamente permitiu um assalto ao Estado – e às principais empresas públicas e privadas – em escala jamais vista anteriormente. Não se considera, por exemplo, o que já foi referido aqui, quanto à natureza secreta, clandestina, não documentada, de determinadas iniciativas e ações tomadas em direção de regimes ainda mais fechados, os chamados bolivarianos ou certas ditaduras consolidadas, com as quais os mais iguais dentre os companheiros mantinham longevos laços de colaboração e provavelmente também de cooperação em operações que ainda não foram reveladas em toda a sua extensão, parte provável de uma imensa rede de transações financeiras criminosas.
O retorno a uma diplomacia profissional significa, antes de mais nada, que o Itamaraty, e não mais apparatchiks atuando sob critérios pouco transparentes, voltará a assumir – o que de fato já ocorreu – um papel central na diplomacia brasileira, com o devido registro de todas as ações e iniciativas como sempre ocorreu na chancelaria. Tal fato não impede o novo chanceler, retomando a tradição igualmente anterior, de ser um político eleito no exercício do mandato, como ocorreu durante todo o Império, na velha República, e durante quase toda a República de 1946, complementados, também, pela nomeação de grandes figuras da vida pública, juristas ou intelectuais de renome. Isso também não impediu o novo chanceler, Senador José Serra, de desenvolver iniciativas pessoais que correspondem às suas próprias percepções dos desafios e prioridades mais relevantes para o Brasil, nos planos regional e mundial.
O novo chanceler decidiu convocar, por exemplo, uma reunião ministerial dos países do Cone Sul sobre segurança nas fronteiras, com vistas a discutir e encaminhar soluções a alguns dos mais graves problemas que afetam todos os países da América do Sul: o tráfico de drogas, contrabandos diversos, lavagem de dinheiro, ingresso ilegal de armas e outros materiais, atividades criminosas transfronteiriças dos mais diversos tipos. Ele também decidiu, com seu colega da Defesa, estabelecer um mecanismo de coordenação entre os dois ministérios, que deverá resultar num exame conjunto das agendas de ambos, de avaliação de convergências e interfaces pertinentes nas áreas respectivas de atuação, com vistas a reforçar possíveis ações recíprocas e interligadas, tanto no plano dos temas de caráter político-estratégico (principalmente na América do Sul, mas podendo se exercer também em direção da África), quanto nos de tipo industrial-tecnológico, ou seja, alcançando a base industrial de defesa.
Os demais elementos constantes nas diretrizes ministeriais estabelecidas ao início da atual gestão do chanceler Serra à frente do Itamaraty conformam temas e questões já relativamente bem conhecidos, ou inteiramente dominados, pelos diplomatas profissionais, quer se trate de política comercial e negociações multilaterais nessa área, quer se refira à coordenação e consulta com parceiros ditos estratégicos em diversas regiões do globo. A América do Sul e a África continuarão a merecer, como anteriormente, uma atenção especial da diplomacia profissional, mas desta vez de maneira totalmente pragmática, sem o vezo ideológico do lulopetismo e as preferências político-partidárias característicos do finado regime dos companheiros.
Em outros termos, a parábola exótica da diplomacia lulopetista finalmente veio a seu termo esperado, e a política externa brasileira volta a dispor de um consenso entre os principais formadores de opinião, assim como no seio da sociedade, de modo geral, condição da qual ela tinha sido afastada desde o início do regime companheiro. Nesta nova fase, as melhores tradições do Itamaraty poderão voltar a ser exercidas com o profissionalismo pelo qual o ministério sempre foi conhecido, contribuindo e colaborando no processo de formulação de posições diplomáticas em bases essencialmente técnicas, desprovidas dos vieses ideológicos e outras perversões sectárias do lulopetismo diplomático. A Casa de Rio Branco está, assim, pronta a oferecer ao chefe de Estado as opções que sempre se apresentam em política externa, no saudável equilíbrio permitido pelo exame isento das questões da agenda externa e tendo como parâmetro único e exclusivo o interesse nacional concebido de maneira ampla.

Referência a outros trabalhos do autor:
Paulo Roberto de Almeida: “Uma seleção de trabalhos sobre a política externa brasileira na era Lula, 2002-2016”; disponível na plataforma Academia.edu: https://www.academia.edu/26393585/Trabalhos_PRA_sobre_a_politica_externa_brasileira_na_era_Lula_2002-2016_; igualmente relacionado no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/08/trabalhos-pra-sobre-diplomacia.html).

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 26 de novembro de 2016

Valores e principios (apenas alguns) - Paulo Roberto de Almeida



Paulo Roberto de Almeida

Aproveito um texto anterior, para reafirmar algumas simples ideias sobre mim mesmo:


O que vai transcrito abaixo é uma espécie de declaração de princípios e valores, feitos ao sabor do teclado, sem preparação e sem reflexão, apenas juntando os elementos que acredito essenciais numa vida dedicada à leitura, à reflexão, ao ensino, enfim, ao conhecimento e à inteligência. Ele passa por uma mensagem unilateral e erga omnes...

Amor: a Carmen Lícia, e a toda a minha família, que ainda vai crescer;
Atitude geral: ceticismo sadio;
Paixão: pelos livros, em todas as suas formas, de quaisquer idades, tempo e lugares;
Comportamento: contrarianista tranquilo;
Educação: de preferência autodidata, nas leituras, nas viagens, na observação do mundo, tal como ele é, nas experiências da vida, mais do que nas instituições regulares;
Dedicação: ao ensino, à transmissão do conhecimento, pois é uma forma de aprender;
Ideologia: a da racionalidade, que também pode ser uma mania ilusória;
Religião: nenhuma em especial, ou nenhuma tout court, ou seja, irreligiosidade total e absoluta, mas profundo respeito pelas religiões (não todas, como podem ser essas “teologias da prosperidade” ou aquelas muito intolerantes), pois elas estão e estarão conosco por toda a existência humana, quer gostemos ou não;
Vocação: não muito bem definida: entre aprender, ensinar, propor, enfim, aquela mania que tem todo letrado pretensioso de ser conselheiro do príncipe, sem desejar sê-lo verdadeiramente, pois sabe que príncipes não seguem os pretensos conselheiros;
Projeto de vida: colaborar nesse vasto empreendimento reformista para deixar o Brasil um pouquinho melhor, quando eu o deixar (ou quando ele me deixar), do que o país que eu encontrei, quando tomei consciência, na minha primeira adolescência, da porcaria que era em termos sociais, humanos, educacionais e políticos;
Aspiração: que toda criança pobre, ou da modestíssima condição social como era a da minha família, em minha infância, pudesse ter, atualmente, uma educação pública comparável em qualidade à de que eu desfrutei, em décadas passadas, e que me habilitaram, justamente, com a biblioteca infantil que frequentei desde antes de aprender a ler, a adquirir as alavancas necessárias para ascender na escala social, apenas pela dedicação ao estudo, pelo conhecimento acumulado, pelo saber adquirido autodidaticamente, pelo esforço próprio, enfim;
Alergia: à burrice, não à ignorância dos que não tiveram chance de aprender, mas à obtusidade daqueles que tendo chance de o fazer, preferiram ficar na escuridão;
Aversão: à estupidez de certos letrados, por fundamentalismo, ideologia, oportunismo ou qualquer outro motivo não legítimo;
Objetos de desejo: livros, sobretudo aqueles antigos, não mais disponíveis em livrarias, e difíceis de encontrar em bibliotecas medíocres como são as nossas;
Mania: de ler o tempo todo, em qualquer circunstância, em qualquer lugar (menos no banho pois já fizeram livros digitais mas ainda não impermeáveis, a não ser os de bebês), mania que pode irritar quem me dirige a palavra nos momentos de concentração, e quando eu respondo “sim, sim...”;
Escola econômica: aquela que apresenta os melhores resultados práticos, com pouca, ou até nenhuma teoria; já passou da hora de aderir a este ou aquele guru das “melhores receitas econômicas”, e se contentar com a modesta racionalidade dos procedimentos testados e aferidos como efetivos; eles geralmente passam mais pelos mercados livres do que pela regulação estatal (mas reconheço que parece impossível desembaraçar-se desses ogros famélicos que nos dominam;
Filosofia política: a da maior liberdade individual, o que não chega a ser uma filosofia política, mas é um princípio de vida a que se chega depois de se conhecer todas as construções humanas que pretenderam organizar a vida em sociedade;
Política prática: nunca fazer parte de nenhum partido, nunca adentrar na política com ares de salvador da pátria, mas observar e estudar a todos meticulosamente, pois dependemos todos, quer queiramos ou não, da atividade daqueles que se dirigem à política por vocação, por interesse pessoal, por oportunismo, ou por qualquer outro motivo não confessado;
Time de futebol: nenhum, absolutamente nenhum; apenas apreciando alguns jogos; tenho horror a essas torcidas de bárbaros fanatizados;
Lei: a do maior esforço, ou seja, nunca se contentar com as explicações simplistas, mas sempre questionar o fundamento de qualquer afirmação ou argumento que lhe apresentarem;
Responsabilidade: totalmente individual, ou seja, nunca atribuir à sociedade, ao Estado, ou até à família, aquelas bobagens que cometemos, que são cometidas por seres totalmente adultos e absolutamente responsáveis pelos seus atos;
Desafio constante: procurar defender o que se acha certo, aquilo de que se tem certeza de ser o melhor, mesmo em detrimento da conveniência pessoal, ou de interesses momentâneos;
Princípio, valor e finalidade de vida: sempre aprender, sempre procurar transmitir o que se sabe (as vezes até o que não se sabe exatamente também, mas que se desconfia que pode ser útil), sempre fazer o melhor dentro das possibilidade de cada um, nos limites da capacidade individual;
Finalizando: procurar fazer tudo o que me dá prazer intelectual...

Addendum: ficaram faltando alguns elementos indispensáveis na vida mundana:
Dinheiro: justo o necessário para comprar livros, viajar, frequentar restaurantes italianos de par le monde; o resto é mesada para pequenas despesas...;
Bebida: sem maiores vícios: taças de vinho nas refeições, cervejinha nas horas vagas;
Outros vícios?: quase nenhum: não jogo, não fumo, não faço apostas, não assino correntes em favor ou contra qualquer coisa, inclusive em prol de distribuição gratuita de livros; basta-me uma velha mania...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de novembro de 2016

A dimensão diplomatica no pensamento economico de Roberto Campos - Paulo Roberto de Almeida

Este foi o primeiro trabalho que fiz, ao correr da pena, ou direto no teclado, sobre o Roberto Campos, preparatório a todos os demais trabalhos feitos em 2017, e que resultaram nas colaborações a dois livros, um que eu próprio organizei, este aqui: 

Paulo Roberto de Almeida (org.), O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Editora Appris, 2017, 373 p.; ISBN: 978-85-473-0485-0)


com dois capítulos, ademais de outros acréscimos editoriais: 
“Roberto Campos: o homem que pensou o Brasil” [Introdução], pp. 19-33 
 e “Roberto Campos: uma trajetória intelectual no século XX”, pp. 203-355

e este outro, com o qual colaborei nada menos do que três vezes, ou seja três capítulos distintos:
Ives Gandra da Silva Martins e Paulo Rabello de Castro (orgs.), Lanterna na Proa: Roberto Campos ano 100 (São Luís, MA: Resistência Cultural Editora, 2017, 344 p; ISBN: 978-85-66418-13-2) 


“Bretton Woods: o aprendizado da economia na prática”,  pp. 52-56
“Fundando um banco de desenvolvimento: o BNDE”,  pp. 71-74
 “Roberto Campos: receita para desenvolver um país”,  p. 245-248

O trabalho foi feito sem consulta a fontes, apenas destacando o que eu mesmo conhecia das atividades de Roberto Campos, pela leitura anterior de suas Memórias, ou de outros textos. Eu ainda não tinha buscado todos os seus livros, os quais li, ou reli, nos dois primeiros meses de 2017.
Este aqui foi escrito improvisadamente em meados de novembro de 2016.
Paulo Roberto de Almeida 


A importância da dimensão diplomática no pensamento econômico e na atividade pública de Roberto Campos

[Notas preliminares]

Todos os homens públicos chamados a exercer funções executivas pela via do  mandato popular, e mesmo tecnocratas guindados a posições de igual responsabilidade sem dispor necessariamente de um mandato político, moldam suas ações e decisões por meio de uma combinação variável entre formação teórica – geralmente de tipo acadêmico, mas também resultante de uma educação qualquer – e experiência prática, ou seja, aquela que se adquire ao longo da vida, no contato com a máquina pública ou com atividades no setor privado. Os polos inevitáveis de qualquer ação governamental são justamente constituídos pelo relacionamento complexo entre esses três fatores: uma formação teórica do indivíduo chamado a desempenhar funções públicas, o peso das atividades produtivas, que são majoritariamente dominadas, nas economias de mercado, por empresários privados, e a própria atividade governamental, que é representada pelo ambiente regulatório criado pelo Estado para enquadrar essas atividades privadas.
Roberto Campos não foi, provavelmente, o primeiro, ou o único, membro do Serviço Exterior brasileiro dotado de formação econômica que tivesse desempenhado funções importantes na burocracia pública, ao longo da República de 1946 e, depois, durante o regime militar, e mesmo mais além. Mas ele foi certamente um dos poucos, senão o único, economista de formação que tenha se beneficiado de suas atividades enquanto agente diplomático para moldar suas ações e decisões de cunho econômico enquanto exercendo funções públicas de relevo, ao longo desses diferentes regimes políticos, que se estendem de meados dos anoso 1940 até praticamente o final do século 20. Essa rara combinação de sólida formação teórica, no campo da economia, com a experiência prática adquirida na diplomacia, e seu envolvimento em conferências diplomáticas em momentos decisivos da formulação e implementação da ordem econômica mundial que, de certa forma, ainda é a nossa – qual seja, o universo conceitual e organizacional de Bretton Woods e do sistema multilateral de comércio – permitiu que Roberto Campos combinasse essa expertise nascida do estudo da economia com a vivência real em instâncias definidoras da estrutura contemporânea da economia mundial para exercer seus talentos na burocracia pública o com brilho invulgar que sempre o caracterizou, e que o marcaram como um dos homens públicos que mais influência exerceram tanto sobre o ambiente regulatório brasileiro dessas décadas, quanto sobre o próprio debate público na área econômica (e até política), ou seja, sobre o pensamento econômico brasileiro da segunda metade do século 20 (e de certa forma ainda hoje). Ele se coloca naquela categoria de pensadores levados ocasionalmente a se desempenhar em funções públicas, capazes, assim, de exercer tremendo impacto sobre as ações e as concepções de muitos outros homens públicos, e mesmo sobre a sociedade em geral.
Numa comparação talvez exagerada, Roberto Campos poderia ser equiparado a homens da estatura de George Kennan, nos Estados Unidos, ou da de Raymond Aron, na França, ou seja, cidadãos dotados dessa rara combinação de conhecimento derivado do estudo e de uma grande experiência de vida obtida na convivência direta com momentos decisivos da história mundial – as duas grandes guerras da primeira metade do século, a depressão econômica, a emergência do socialismo como força mundial, a reconstrução econômica das democracias de mercado, a Guerra Fria e a descolonização, a inserção dos países em desenvolvimento na ordem mundial – e que puderam, a partir daí, influenciar políticas públicas e o próprio debate de alta qualidade na sociedade de forma geral, vindo a converterem-se em referências obrigatórias tanto na definição prática dessas políticas, quanto no conteúdo e no estilo do pensamento político e econômico, e diplomático também, que marcaram suas sociedades respectivas.
Roberto Campos teve a rara chance de, começando sua carreira diplomática pela embaixada em Washington, integrar a delegação brasileira à conferência de Bretton Woods, em julho de 1944 nos Estados Unidos (não propriamente como delegado, mas como assessor diplomático da delegação), e de ter assim assistido ao momento definidor da ordem econômica mundial do pós-guerra. Posteriormente, ele também integrou, sempre como assessor e não delegado, a representação brasileira à Conferência das Nações Unidas sobre comércio e emprego, realizada em Havana, de novembro de 1947 a março de 1948, e que, na sequência das primeiras negociações do Gatt, em Genebra, definiu algumas das grandes linhas do sistema multilateral de comércio que, com as mudanças institucionais posteriores, ainda é o nosso. Mesmo que a Organização Internacional do Comércio, aprovada pela Carta de Havana, não tenha se materializado na prática, permanecendo o Gatt provisoriamente em vigor durante aproximadamente meio século (até a constituição da OMC, em 1994), foi ali que foram longamente discutidos todos os temas que integram o debate econômico mundial das últimas seis décadas, e praticamente até hoje. Como diria o ex-Secretário de Estado americano Dean Acheson – bem mais a propósito da ONU do que das demais organizações do multilateralismo contemporâneo – em suas memórias, Roberto Campos esteve “presente na criação” das mais importantes organizações do multilateralismo econômico, quando também se tratava de integrar as economias socialistas e as em desenvolvimento numa ordem que, até a primeira metade do século 20, era dominada exclusivamente por um pequeno número de potências econômicas e militares do Atlântico norte, exercendo sua influência, ou controle direto (pelo colonialismo europeu) sobre mais de dois terços da população mundial.
Pouco depois dessas duas experiências decisivas em sua vida pessoal e enquanto agente diplomático, o jovem Roberto Campos engajou-se num mestrado em economia na Universidade George Washington, na capital americana. Sua dissertação defendida em 1948 se situa, justamente, na confluência do pensamento econômico neoclássico – como aliás era o de Keynes, em sua formação inicial – e das novas ideias que estavam emergindo nessa mesma época a partir do mestre de Cambridge (e ex-funcionário do Tesouro britânico na conferência de Paris ao final da Grande Guerra), com sua críticas ao Tratado de Versalhes de 1919 (As Consequências Econômicas da Paz) e às limitações da economia convencional para tratar dos profundos desequilíbrios surgidos a partir daquela guerra global, definida por George Kennan como o mais importante conflito seminal (isto é, geradora de novos conflitos) do século 20. Entre a Economics de Marshall (mestre de Keynes) e a Macroeconomics do próprio Keynes, a ciência econômica conheceu progressos teóricos relevantes, e aplicações práticas imediatas, influências absorvidas pelo jovem diplomata economista na sua trajetória posterior como homem público chamado a posições de relevo sem necessariamente dispor de mandato popular durante a parte mais ativa de suas atividades governamentais.
Essa combinação de sólida formação teórica e contato íntimo com os intensos debates práticos que se travaram nas grandes conferências econômicas do pós-guerra, e imediatamente depois do mestrado em Washington, uma nova experiência prática no âmbito da Comissão Econômica Mista Brasil-Estados Unidos, entre o final do governo Dutra e o início do mandato constitucional de Getúlio Vargas, no quadro da República de 1946, permitiram a Roberto Campos usar tanto a Economics neoclássica, quanto a nova Macroeconomics, de inspiração keynesiana, para moldar o seu pensamento e ação no curso das décadas seguintes de atividades governamentais e diplomáticas. Elas foram basicamente duas: primeiro a de diretor do BNDE, criado em 1953 sob recomendação direta do relatório da Comissão Mista Brasil-EUA, e que teve papel importante na montagem do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek em meados dessa década; e a de embaixador do Brasil nos Estados Unidos, nos governos Jânio Quadros e João Goulart, numa das mais conjunturas mais dramáticas da história política, e econômica, do Brasil moderno, quando processos inflacionários e estrangulamentos cambiais impactaram tremendamente o debate político em curso no governo e na sociedade, culminando, como se sabe, no golpe militar de 1964.
Roberto Campos já se tinha afastado de suas funções diplomáticas à frente da embaixada em Washington quando o golpe ocorreu, e não o fez porque participasse de qualquer conspiração contra o governo em vigor, mas porque estava em desacordo com várias das medidas adotadas de modo intempestivo por Goulart, sob a recomendação de conselheiros basicamente ignorantes em matéria econômica, mas que comprometiam profundamente a credibilidade do Brasil junto aos países credores, essencialmente os próprios Estados Unidos. Era natural, assim, que, dotado de capacidade intelectual e de experiência prática no terreno das relações econômicas internacionais, ele fosse chamado a colaborar com o novo regime, o que ele fez na posição de ministro do Planejamento, convertido em órgão permanente da administração pública. Tratou-se, sem qualquer exagero, do mais profundo e do mais impactante processo de reformas econômicas e administrativas de que se tem notícia em qualquer fase da vida política da nação, caracterizado por mudanças que exerceram influência sobre as décadas seguintes, de certa até a atualidade.
Interessante considerar que, contrariamente às suas inclinações perfeitamente liberais da última fase da sua vida, a atividade pública de Roberto Campos nos anos 1950 e 60 estiveram inseridas num molde conceitual e operacional que privilegiava a ação do Estado na definição das grandes linhas da construção de uma moderna economia de mercado no Brasil, país marcado pela insuficiência de poupança privada, de competências técnicas na própria sociedade e de um empresariado ainda tateante em face das novas características da economia mundial, o que fazia com que o governo fosse chamado a atuar na ausência de mercado de capitais próprios e de capital humano para impulsionar a atividade produtiva a partir unicamente da iniciativa privada. Roberto Campos participou, e comandou, ativamente, desse processo de Nation building e de economic construction, que em grande medida foi feito “pelo alto”, como nas experiências precedentes da Alemanha, ou do Japão, que supriram pela ação do Estado as deficiências do setor privado que tinham sido determinantes no caso da primeira revolução industrial, a da trajetória britânica de desenvolvimento original.
Esse “estatismo” de Roberto Campos, do qual ele viria parcialmente a se arrepender em fases posteriores de sua vida – quando condenava o “dinossauro” da Petrobras e o gigantismo de todo o aparato estatal na vida econômica da nação –, não o impediu de reconhecer a validade da ação pública na definição das grandes linhas de políticas públicas na área econômica e da formulação de projetos de desenvolvimento nos mais variados setores da atividade produtiva. Ele apenas pretendia limitar a ação do Estado ao mínimo indispensável para garantir a solidez da iniciativa privada, nacional ou estrangeira – uma vez que ele era totalmente aberto aos investimentos diretos estrangeiros em várias, senão todas, áreas da economia nacional – com aquele sentido de planejamento que ele tinha conhecido nos primórdios de sua vida ativa entre o final dos anos 1940 e meados dos 50: Plano Salte, do governo Dutra, criação de várias estatais no segundo governo Vargas, inclusive o BNDE ao qual esteve ligado desde o início, Plano de Metas na campanha de JK à presidência e diversas outras iniciativas de que participou na passagem para a década seguinte, como as negociações em torno da dívida pública externa brasileira, junto a credores bilaterais e internacionais.
Em todas essas etapas de sua vida pessoal e nas atividades públicas que foi chamado a exercer, as experiências obtidas e consolidadas por Roberto Campos no decorrer de sua vida diplomática inicial foram essenciais, senão decisivas e mesmo indispensáveis para a formação e a formulação de um pensamento econômico eclético, aberto às mais diferentes influências de escolas econômicas e, sobretudo, marcadas pela observação e participação direta em momentos decisivos do ordenamento econômico mundial em curso no imediato pós-Segunda Guerra, quando ele ainda era um simples assessor das delegações brasileiras. Seu senso prático, sua flexibilidade de ação, e o seu vasto conhecimento (e até erudição) com respeito ao debate econômico em curso no mundo praticamente não conhecem equivalente em quaisquer outros representantes da vida pública nacional nessas cinco décadas a partir da República de 1946 e durante todo o regime militar e mais além.
Praticamente, Roberto Campos ainda é influente no debate público de qualidade, tendo sido pioneiro, e até premonitório, na formulação de políticas públicas que seriam adotadas apenas posteriormente, como as privatizações, um necessário rigor no trato do orçamento público e na definição das mais importantes políticas setoriais (a comercial e a industrial, por exemplo, mas também na tributação e nos mercados de capitais). Como Raymond Aron, ele teve razão antes do seu tempo, e por isso foi, em grande medida, denegrido por contemporâneos – chamado, por exemplo, de Bob Fields pela esquerda e até por colegas diplomatas, por se posicionar claramente em favor da participação do capital estrangeiro na economia nacional – e condenado por supostos nacionalistas antigos e estatizantes de sempre, por sua postura essencialmente liberal e esclarecida no trato das políticas econômicas. Ele foi certamente único entre os diplomatas, mas também original entre os economistas, e a combinação entre essas duas qualidades é que fizeram dele o grande estadista que foi na história contemporânea do Brasil.

[19/11/2016]

A Grande Guerra e seus efeitos sobre o Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Ao início de 2014, fui contatado pelo grande jornalista Alberto Dines para participar de uma série de emissões que ele pretendia fazer sobre a Grande Guerra e seu impacto no Brasil, ao que respondi positivamente.
Tive certo trabalho para gravar minhas emissões (que obviamente ficaram muito grandes e pesadas) e para encaminha-las a seu destino (das quais apenas uma pequena parte foi utilizada, obviamente).
Mas, como sempre faço, também escrevi um texto a respeito, bem mais baseado em conhecimento acumulado do que em novas pesquisas ou leituras a respeito, ao sabor da pena, como se diz.
Meu registro sobre esse trabalho segue abaixo, com a transcrição, em seguida, de meu texto preparado para minha intervenção audiovisual.


2622. “A guerra de 1914-1918 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes”, Hartford, 26 junho 2014, 5 p. Roteiro para gravação de um depoimento em vídeo para emissão especial do Observatório da Imprensa, sobre o impacto da Primeira Guerra Mundial sobre o Brasil em termos políticos, econômicos, culturais e militares; depoimento por meio de webcam; feitas duas gravações de dois minutos cada e enviadas via Dropbox. Texto publicado em Mundorama (28/07/2014; ISSN: 2175-2052; link: http://www.mundorama.net/?p=14424 ); postado no Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/06/o-brasil-e-primeira-guerra-mundial-no.html). Emissão “Os 100 anos da guerra que não acabou”, com Alberto Dines, Programa n. 736 do Observatório da Imprensa (em 5/08/2014; link não mais disponível; participação PRA: entre 35:44 e 37:14, ou seja, 1,5mns). Relação de Publicados n. 1138.

 Transcrição como referido acima, copiado de meu próprio blog:

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O Brasil e a Primeira Guerra Mundial no Observatorio da Imprensa - texto de Paulo Roberto de Almeida

O Alberto Dines, coordenador do Observatório da Imprensa, pediu-me para colaborar com um programa que está montando para ser transmitido pela TV Educativa em agosto, quando se comemoram (ugh!) os cem anos da Primeira Guerra Mundial. Eu deveria, em princípio, falar de seus impactos sobre o Brasil, nos aspectos econômicos, políticos, culturais, etc.
Para guiar minha participação, como sempre faço quando vou falar em público, na rádio ou na TV, mesmo que não leia absolutamente nada, eu costumo preparar um texto, que me permite organizar as ideias, separar os temas relevantes e sistematizar os argumentos.
Agora me dizem que eu tenho direito a 1 minuto e meio, já que o programa tem menos de uma hora, e são várias entrevistas, documentários, documentos, narrador, enfim, o normal costumeiro num programa desse tipo.
1,5 minuto não dá para falar grande coisa, por isso vou ter de selecionar.
Para não perder o texto já escrito, vou postar aqui, apenas para receber comentários dos interessados no assunto, e depois preparar algum artigo mais estruturado para publicação.
Portanto, é o que segue, escrito às pressas, sem intenção de ser artigo ou ensaio, apenas um texto-guia para servir no momento da gravação.
Paulo Roberto de Almeida
A guerra de 1914-18 e o Brasil
Impactos imediatos, efeitos permanentes

Paulo Roberto de Almeida
Texto-suporte para gravação-vídeo de programa especial do
Observatório da Imprensa, sobre o impacto da Grande Guerra sobre o Brasil.

Sumário:
1. O que era o Brasil em 1914, e o que representou a guerra europeia?
2. Impactos imediatos do conflito iniciado em 1914
3. Impactos de mais longo prazo, efeitos permanentes

1. O que era o Brasil em 1914, e o que representou a guerra europeia?
Para abordar o impacto da guerra de 1914-1918 sobre o Brasil seria preciso ter bem presente o que era o Brasil em 1914, o que era a Europa, o que ela representava para o Brasil nessa época, e o que a guerra alterou no padrão de relacionamento, direta e indiretamente. Vamos resumir um complexo quadro político, econômico e diplomático.
O Brasil de cem anos atrás era o café, e o café era o Brasil. Toda a política econômica, aliás toda a base fiscal da República e dos seus estados mais importantes, assim como a própria diplomacia, giravam em volta das receitas de exportação, que compreendiam tanto ao próprio produto, e que faziam a riqueza dos barões do café, quanto os impostos de exportação, que afluíam ao orçamento de São Paulo e dos demais estados produtores. Dez anos antes, angustiados por um problema que eles próprios haviam criado, a superprodução de café, esses estados realizaram um esquema de valorização do produto, via retenção de estoques, no famoso Convênio de Taubaté, para cujo financiamento tivemos, pela primeira vez, a participação de bancos americanos. Os próprios banqueiros oficiais do Brasil, os Rothchilds de Londres, haviam se recusado a fazer parte do esquema, pois se tratava de uma típica manobra de oligopolistas contra os interesses dos consumidores. O Brasil dominava então quase quatro quintos da oferta mundial de café, e essa posição lhe assegurava a capacidade de fazer grandes manobras.
Mais tarde, em 1914, justamente, outros concorrentes tinham entrado nesse lucrativo mercado, a Colômbia, por exemplo, que sem poder competir em quantidade, começou a dedicar-se a melhorar a qualidade dos seus cafés. Na mesma época, o Brasil estava sendo processado em tribunais de Nova York, por praticas anti-concorrenciais na oferta de café, justamente. Foi também quando os mercados financeiros se fecharam repentinamente para o Brasil, com o estalar da guerra em agosto desse ano. O Brasil sempre dependeu do aporte de capitais estrangeiros, seja para financiar projetos de investimento em infraestrutura – que eram feitos sob regime de concessão, num esquema muito similar ao que viria a ser conhecido depois como PPP, ou seja, parcerias público-privadas, com garantia de juros de 6% ao ano –, seja para o financiamento do próprio Estado, que vivia permanentemente em déficit orçamentário.
O Brasil já tinha efetuado uma operação de funding-loan en 1898, isto é, um empréstimo de consolidação trocando os títulos das dívidas anteriores por novos títulos, e tinha conseguido fazer um novo pouco antes da guerra, e já não mais teve acesso ao mercado de capitais durante toda a duração do conflito europeu. Este representou um tremendo choque para a economia brasileira, pois os mercados europeus ainda eram importantes consumidores dos produtos primários de exportação, e os principais ofertantes de bens manufaturados, equipamentos e, sobretudo, capitais, ainda que os Estados Unidos já fossem o principal comprador do café brasileiro desde o final do século 19, e que suas empresas já tivessem começado a fazer investimentos diretos no Brasil.

2. Impactos imediatos do conflito iniciado em 1914
O espocar dos canhões de agosto representou, em primeiro lugar, uma interrupção nas linhas de comunicação marítimas, já que a Alemanha tinha construído para si uma marinha de guerra quase tão importante quanto a da Grã-Bretanha. Mais adiante a British Navy consegue desmantelar boa parte da frota germânica, mas de imediato, os transportes marítimos com os portos da Europa do norte foram bastante afetados pelas batalhas navais e pela ação dos surpreendentes submarinos alemães. Mas mesmo os estoques de café nos portos de Trieste, no Mediterrâneo, ficaram retidos, sob controle dos impérios centrais, neste caso da monarquia multinacional representada pela Áustria-Hungria, que seria desfeita com a derrota em 1918.
O produto mais importante de exportação do Brasil foi, assim bastante afetado pela perda de importantes mercados consumidores, o que aumentou tremendamente a dependência da demanda americana. Mas, os principais financiadores externos da jovem República ainda eram banqueiros europeus, agora comprometidos com a compra de títulos da dívida nacional de seus próprios países. A Alemanha também se tinha convertido num importante parceiro comercial do Brasil, além de ter iniciado um itinerário promissor com alguns investimentos diretos de suas empresas e casas comerciais. Outros mercados do velho continente também se viram engolfados no conflito, causando novos e continuados prejuízos ao Brasil.
O debate interno, sobre quem o Brasil deveria apoiar na guerra europeia, também foi importante, colocando importantes intelectuais em oposição, assim como tribunos e magistrados dos dois lados da cerca. O grande historiador João Capistrano de Abreu foi considerado um germanófilo, ao passo que Rui Barbosa insistiu na culpa moral da Alemanha, que tinha invadido e esquartejado a Bélgica, um país neutro. Uma das vítimas desse debate passional foi o próprio sucessor de Rio Branco, o chanceler Lauro Muller, considerado talvez menos isento por causa de sua ascendência alemã: ele renunciou ao cargo quando o Brasil fez a sua escolha. A maior parte da classe culta no Brasil, os membros da elite que adoravam gastar seus mil-réis nos cabarés de Paris, era evidentemente francófila, mas os alemães ajudaram a empurrar o Brasil para o lado da aliança franco-britânica ao atacarem navios comerciais brasileiros no Atlântico, quando o Brasil ainda era oficialmente neutro no conflito. Acabamos entrando modestamente na guerra, quase ao seu final, enviando um batalhão médico para a França.
No conjunto, a guerra representou imensas perdas comerciais e financeiras para o Brasil, que tentou se ressarcir, na conferência de paz de Paris, sem obter de verdade satisfação plena por suas reivindicações de obter compensação pela apropriação de navios alemães: os próprios países europeus se encarregaram de extorquir a Alemanha o máximo que puderam, e o caso do Brasil não era julgado realmente importante em face do conjunto de demandas dos países mais afetados pela guerra.

3. Impactos de mais longo prazo, efeitos permanentes
Os efeitos mais importantes da primeira guerra mundial, porém, não se limitaram aos terrenos militar e comercial, mas foram verdadeiramente impactantes no domínio econômico no seu sentido mais lato, provocando mudanças extremamente importante nas políticas econômica de todos os países, com consequências negativas para todo o mundo, e moderadamente positivas para o Brasil. Uma das primeiras consequências econômicas da guerra foi a cessação de pagamentos entre os inimigos, o que era lógico, com a cessação de toda relação comercial, confisco de bens e sequestro de ativos financeiros. Os países suspenderam o famoso padrão-ouro, ou seja, a garantia em metal das emissões de moeda papel; ainda que teoricamente em vigor, para alguns países, e a despeito de tentativas de seu restabelecimento ao final do conflito, ficou evidente que o lastro metálico tinha deixado de fato de ser um fator relevante nas políticas monetárias dos países. Todos os governos, depois de esgotadas as possibilidades de financiamento voluntário interno do esforço de guerra – via emissão de bônus da dívida pública, e até mediante empréstimos compulsórios – passaram a imprimir dinheiro sem maiores restrições, provocando a primeira grande onda inflacionária nas economias contemporâneas.
Mais impactante ainda foi a intervenção direta na atividade produtiva, não apenas desviando para a produção de guerra quase todas as plantas industriais que tivessem alguma relação com o aprovisionamento bélico, inclusive alimentar, de transportes e comunicações, mas também via controles de preços, restrições quantitativas, mobilizações laborais e vários outros expedientes intrusivos na vida do setor privado. Nacionalizações e estatizações foram conduzidas por simples medidas administrativas e a planificação nacional tornou-se praticamente compulsória. O mundo nunca mais seria o mesmo, e nesse tipo de economia de guerra estaria uma das bases dos regimes coletivistas que depois surgiriam na Europa, o fascismo e o comunismo.
O Brasil não foi tão afetado, naquele momento, pela estatização, mas ele também sofreu esses impactos de duas maneiras. De um lado, as dificuldades de aprovisionamento e de acesso a mercados levaram ao estímulo a novas atividades industriais no país, ainda que com todas as restrições existentes para a compra de bens de produção nos principais parceiros envolvidos no conflito. O mercado interno se torna mais relevante para a economia nacional. De outro lado, o nacionalismo econômico conhece um novo reforço nesse período. O Brasil já tinha uma lei do similar nacional desde o início da República, mas a guerra ajuda a consolidar a tendência introvertida, a vocação de autonomia nacional que já estavam presentes no pensamento de tribunos e de empresários. O Brasil encontrou naquela situação uma espécie de legitimidade acrescida para continuar praticando aquilo que sempre fez em sua história: a preferência nacional e o protecionismo comercial como políticas de Estado.
Este talvez seja o efeito mais importante, ainda que indireto, da guerra europeia sobre o pensamento econômico brasileiro, especialmente em sua vertente industrial. As gerações seguintes, sobretudo aquelas que ainda viveram a crise de 1929, e uma nova guerra mundial, dez anos depois, consolidaram uma orientação doutrinal em economia que também tendia para o nacionalismo econômico, uma política comercial defensiva, uma vocação industrial basicamente voltada para o mercado interno e uma tendência a ver no Estado um grande organizador das atividades produtivas, quase próxima do espírito coletivista que vigorou na Europa durante o entre-guerras e mais além.
Essencialmente, a geração de militares que passou a intervir de forma recorrente na vida política do país, ao final da Segunda Guerra, e que depois assumiria o poder no regime autoritário de 1964, era em grande medida formada por jovens cadetes que tinham feito estudos e depois academias militares no entre-guerras e na sua sequência imediata, e que tinham se acostumado exatamente com esse pensamento: um intenso nacionalismo econômico, a não dependência de fontes estrangeiras de aprovisionamento (sobretudo em combustíveis e em materiais sensíveis), a introversão produtiva, a ênfase no mercado interno, enfim, tudo aquilo que nos marcou tremendamente durante décadas e que ainda forma parte substancial do pensamento econômico brasileiro.
Tudo isso, finalmente, foi o resultado político e econômico da Primeira Guerra Mundial, que durante muito tempo ficou conhecida como a Grande Guerra. Os custos e as destruições da Segunda foram mais importantes, mas as alterações mais significativas nas políticas econômicas nacionais, no papel dos Estados na vida econômica, já tinham sido dados no decorrer da Primeira. O mundo mudou, a Europa começou sua longa trajetória para o declínio hegemônico, e o Brasil deu início ao seu igualmente longo itinerário de nacionalismo econômico e de intervencionismo estatal. Parece que ainda não nos libertamos desses dois traços relevantes do caráter nacional.

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 26 de junho de 2014.

2622. “A guerra de 1914-1918 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes”, Hartford, 26 junho 2014, 5 p. Roteiro para gravação de um depoimento em vídeo para emissão especial do Observatório da Imprensa, sobre o impacto da Primeira Guerra Mundial sobre o Brasil e a região; depoimento por meio de webcam: padrão quicktime (.mov), full HD, 1920x1080 pixels, 16:9, NTSC, 29,97 fps; em torno de 2 minutos; envio por via web-transfer ou FTP.

World War I and the Triumph of Illiberal Ideology - Matthew McCaffrey (Mises)

World War I and the Triumph of Illiberal Ideology

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Mises Daily, 08/14/2017

Just over a century ago, in August 1914, the major European nations plunged their peoples into one of the most disastrous conflicts in history. The First World War claimed at least seventeen million lives, destroyed the social and economic fabric of Western Europe, and played a vital role in the expansion of state power around the world. It is therefore difficult to exaggerate its importance.
The causes of the war are too many and too complex to discuss in a short article (however, for those interested, the late Ralph Raico provides a fascinating overview here). I will discuss only one general problem that helped fuel the catastrophe: the ideological shift that occurred in Europe in the late 19th and early 20th centuries away from the liberal philosophy of laissez-faire and laissez-passer and toward autarky, protectionism, nationalism, and imperialism. Mises, himself a veteran of the First World War, identified these latter ideologies as joint causes of numerous conflicts. Furthermore, he repeatedly warned that war is a necessary outcome of abandoning economic freedom, which is inextricably tied to the spirit of liberalism and its philosophy of peace:
Aggressive nationalism is the necessary derivative of the policies of interventionism and national planning. While laissez faire eliminates the causes of international conflict, government interference with business and socialism create conflicts for which no peaceful solution can be found. While under free trade and freedom of migration no individual is concerned about the territorial size of his country, under the protective measures of economic nationalism nearly every citizen has a substantial interest in these territorial issues. (Mises, 1998 [1949], pp. 819-820)
Economic nationalism, the necessary complement of domestic interventionism, hurts the interests of foreign peoples and thus creates international conflict. It suggests the idea of amending this unsatisfactory state of affairs by war. Why should a powerful nation tolerate the challenge of a less powerful nation? Is it not insolence on the part of small Lapputania to injure the citizens of big Ruritania by customs, migration barriers, foreign exchange control, quantitative trade restrictions, and expropriation of Ruritanian investments in Lapputania? Would it not be easy for the army of Ruritania to crush Lapputania’s contemptible forces? (Mises, 1998 [1949], p. 827)
By and large, these are the kinds of international conflicts that developed in the decades prior to 1914. As relative free trade declined and imperialism flourished, a culture of militarism swept Western Europe, triggering a race to accumulate military assets and materiel on a previously unknown scale.  By the outbreak of the conflict, every major belligerent except Britain had also adopted conscription so as to ensure an abundant supply of human as well as physical resources. Such policies could only end in disaster.
It is important, however, that even though many soldiers were compelled to fight, extraordinary numbers also volunteered for service, especially in the early days of the war. This fact is not so astonishing once we acknowledge the role of ideology. Throughout the 19th century, the nation-state had come to play an increasingly important role in forming the identities of many young European men. This development added a personal ideological dimension to warfare that was largely new, and which also created divisions along political lines among peoples who could otherwise have been at peace. It also helps explain the patriotism and nationalism that lead so many volunteers so unwittingly to the slaughter. Crucially, these sentiments were nurtured and reinforced by many important institutions of European society, especially its intellectual classes, who bear a large portion of the blame for rationalizing and glorifying war.
To take only one example, in his book A History of Warfare, John Keegan recounts a call to arms issued jointly by the rectors of the Bavarian universities on August 3rd, 1914:
Students! The muses are silent. The issue is battle, the battle forced upon us for German culture, which is threatened by the barbarians from the East, and for German values, which the enemy in the West envies us. And so the furor teutonicus bursts into flame once again. The enthusiasm of the wars of liberation flares, and the holy war begins. (quoted in Keegan, 2004 [1993], p. 358; emphasis in original)
This passage hints at the ideological climate in much of Europe after its retreat from an all-too-brief trend toward liberalism. Yet even including the melodramatic rhetoric, the ideas invoked above are indistinguishable from ones made today by both military and culture warriors. The use of religious language to frame a political conflict, the idea that war has been forced upon the blameless, and the claim that barbarians from foreign nations represent an existential threat to civilization that can only be overcome by abandoning reason and resorting to violence based on appeals to tribalism and a (different) barbarian heritage, are still familiar in an age when the European empires have been replaced by an American one. They also run strongly counter to the principles of liberalism.
Historically, the immediate result of the rectors’ appeal was the mass enlistment of German students; so many volunteered that they formed two new army corps. These men were flung almost untrained into battle against British regulars at Ypres in October, 1914, where 36,000 were massacred in only three weeks (Keegan, 2004 [1993], pp. 358-359).[1] This senseless death did not, however, serve as a rebuke to the military class, much less provide an impetus away from international and domestic conflicts; instead, it was simply mythologized and used for propaganda by the Nazis in the Second World War.
The lesson then is that the human costs of war do not in and of themselves teach anything to those who are not willing to listen. War will not cease until the ideas that support it are removed, and until they are, their costs will simply be used as justifications for further conflict. In Mises’s words, “To defeat the aggressors is not enough to make peace durable. The main thing is to discard the ideology that generates war” (Mises, 1998 [1949], p. 828).

[1] I have been unable to verify this estimate, and other sources suggest the number killed was significantly lower. In any case though, casualties were horrific.