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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

The Long Game: China’s Grand Strategy to Displace American Order, by Rush Doshi – Book review by Divyanshu Singh (Modern Diplomacy)

 Em vez da Longa Marcha, ou do Great Game, Long Game: é o caminho da China para superar os EUA, cem anos depois do início do regime comunista no país, ou seja, em 2049. 

Acompanharemos, se ouso dizer...

The Long Game: China’s Grand Strategy to Displace American Order, by Rush Doshi – Book review

Modern Diplomacy, June 12, 2022


This book is quite helpful for comprehending China’s foreign policy throughout the past four decades. China’s strategy and progress as a global force, according to the author, may be divided into three periods:

  1. The period from 1989-2008 as “Blunting”
  2. The period from 2009-2016 as “Building”
  3. The period from 2017- till date as “Expansion”

This is a lengthy and comprehensive analysis of China’s economic and military development over the past many decades. The narrative opens with an explanation of the CCP and what strategy implies. The genuine first section of the text commences from 1989 with the Tiananmen Square movement, the Gulf War, and the collapse of The Soviet Union. The author refers to these three factors as the “trifecta” that produced a new feeling of urgency in China to devise a strategy to confront the development of American dominance. Due to the recent economic openness with the United States, the procedure was intended to be slow yet thorough. At this point, China started to perceive the United States as a danger that ought to be “blunted.” The book then goes on to describe in great depth the institutions and military strategy the Chinese have established in order to establish a military force capable of countering the growing US challenge to their rule.

The second section of the book is much more contemporary, commencing with the 2008 global financial crisis and circling the Obama presidency. In this era concluding in 2017, the military, political, and economic entanglements are discussed individually (each in its own chapter). During the Trump presidency, the competition involving China and the United States began to become an integral aspect of the actual regional pivot. This third section begins there and is a much more informed conversation of the current situation between China and the United States. This new assertiveness is highlighted by Xi Jinping’s elevation to permanent leader of the CCP, having his tenure commencing in 2013 with the confirmation happening in 2018. China has becoming increasingly forceful, and the last chapter explains the story underneath the news items. The AIIB as well as BRI are discussed alongside Taiwan and certain other contentious issues. China had already risen, or the sluggish progress has become a pressing matter for China and the United States, the two remaining significant participants. China is assuming leadership of an increasing number of multilateral institutions, as the final section demonstrates in detail.

Although the concepts in the book are really intriguing, some portions might get tedious and monotonous. Every chapter and part start with a brief explanation of a concept. The author thereafter attempts to elaborate upon it with several facts and quotations from Chinese officials. It is not an easy read, but the material in the few chapters makes it worthwhile, especially the chapters involving China’s accession to WTO and their naval power projection after the global financial crisis of 2008. For example, with respect to WTO accession, it has been explicitly mentioned by author in one of his explanations that “China willing to make significant economic concessions for permanent MFN status—in effect trading away some of the benefits of protectionism for the security and strategic benefits that a deal would bring by reducing the risk of US economic coercion.”[1]

While the story behind China’s 1st aircraft carrier acquisition had some very interesting anecdotes such as “To avoid Western opposition to the purchase—and given China’s own reluctance to depart from the “hiding capabilities and biding time” guideline with a flashy public carrier acquisition that could frighten others. Almost immediately after signing on, Xu got to work cultivating an image as an outlandish tycoon who wanted to use the carrier to build a floating casino in Macao.”[2]

The abbreviations are infrequent enough to be manageable, but the content is much more of an academic observation than the kind of simple reading one may find otherwise. The book is presented from a narrow perspective (from the perspective of the America); however, it is ever more intriguing since it justifies to a considerable part the present strategy of the United States and the Biden presidency concerning China. A pictographic representation of data, maps, timelines etc. would have piqued the interest of the reader rather than just simple representation of data in the books, which would have made this book palatable to all kinds of readers (not just academic).

Nonetheless, the author has explained his reasoning rather effectively, and the book covers on extremely crucial subjects to comprehend the rationale of great power conflict in the twenty-first century, with a significant amount of anecdotal evidence with a solid understanding of realist theory. Anybody interested in understanding China’s previous, current, and foreseeable objectives including grand strategy should definitely read this book.


[1] Doshi, Rush. The Long Game (Bridging the Gap) (p. 145). Oxford University Press. Kindle Edition.

[2] Doshi, Rush. The Long Game (Bridging the Gap) (p. 191). Oxford University Press. Kindle Edition.


domingo, 12 de junho de 2022

O acadêmico e o militante: resenha do livro de P.R. Almeida, Apogeu e Demolição da Política Externa, por Sergio Florencio

 O acadêmico e o militante

 


Resenha (parcial) do livro de Paulo Roberto de Almeida: 

Apogeu e Demolição da Política Externa. Itinerários da Diplomacia Brasileira

Curitiba: Editora Appris, 2021.

Embaixador Sérgio Florêncio (12/06/2022)

 

O livro de Paulo Roberto de Almeida (PRA) é um percurso rico de dados e de reflexão sobre os territórios vizinhos da política externa e da diplomacia brasileira. É o denso depoimento de um diplomata de carreira que combina duas vocações raramente conciliáveis – o acadêmico e o militante. Geralmente situadas em terrenos opostos, quando as duas vocações se encontram, podem render bons frutos. É o caso de “Apogeu e Demolição da Política Externa. Itinerários da Diplomacia Brasileira”. 

A primeira explicação para esse difícil, mas frutífero encontro entre os dois personagens - o acadêmico e o militante - reside, no caso de PRA, no confronto entre uma formação intelectual sólida e diversificada – sociologia, relações internacionais, economia, história - e uma indomável natureza contestatária. 

Outra explicação resulta da trajetória profissional do autor, com experiência em postos de relevância política, como Washington, e de peso econômico, como Genebra e ALADI. Seu trabalho com dois embaixadores de reconhecido valor – Rubens Barbosa e Rubens Ricúpero – certamente também teve influência positiva. Ao mesmo tempo que ambos reconheciam o conhecimento e a erudição acadêmica de PRA, tiveram generosidade suficiente para respeitar sua natureza indômita de polemista, numa instituição pautada pela disciplina e pela hierarquia. 

Mas o reconhecimento do valor de PRA, por parte de colegas e amigos, não impediu que fosse vítima de injustiça. Suas contundentes críticas aos desvios e excessos da diplomacia da era Lula-Dilma lhe valeram longo ostracismo que estacionou sua carreira por uma década e meia. Somente na gestão do Chanceler Aloysio Nunes, no governo Temer, o valor de PRA foi resgatado. Então, como Diretor do Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais – IPRI, teve desempenho exemplar e altamente dinâmico. Foram frequentes os seminários no Instituto, sempre com a participação de prestigiosos acadêmicos brasileiros, norte-americanos e europeus. Era o homem certo no lugar certo. 

Mas o iluminismo foi efêmero. Bolsonaro assumiu a Presidência da República e logo inaugurou a barbárie numa instituição de reconhecida excelência. Com o auxílio do chanceler Ernesto Araújo, passou a vigorar a inédita diplomacia do delírio, da submissão, do orgulho de ser pária internacional, como por ele próprio declarado em formatura de alunos do Instituto Rio Branco. O destino estava traçado. PRA foi afastado do IPRI e por um motivo tão ridículo que merece ser lembrado – autorizou a publicação, nos Cadernos de Política Exterior da FUNAG, de entrevistas de FHC, de Rubens Ricúpero e do próprio chanceler. 

Recordo aqui essas adversidades da trajetória profissional porque PRA soube sublimá-las de forma original e criativa. Recolheu-se à Biblioteca do Bolo de Noiva, onde escreveu vários livros, produziu artigos contundentes, mas fundamentados, contra a atual política externa. O acadêmico abraçava o militante. 

 

A contribuição da historiografia para entender o pensamento diplomático

O livro tem grande utilidade para o momento atual do Brasil. PRA relata e analisa a “grande marcha” da diplomacia e da política externa, com foco mais detido nas últimas décadas e na passagem do Apogeu (1990-2010) para a Demolição (2019 até hoje). Atenção maior é dada à transição de uma diplomacia profissional, prestigiada no mundo pela credibilidade (período FHC) e pela projeção (era Lula), para uma diplomacia personalista, inimiga do interesse nacional: Presidente e Chanceler determinam aquilo que precisa ser “destruído”, de forma a adequar o sólido patrimônio do passado aos ditames de um governo de extrema direita, isolado no mundo e orgulhoso de ser pária internacional.

Apesar de ter o foco voltado para as últimas décadas, o livro começa pela historiografia das relações internacionais do Brasil. Assim, cobre terrenos que ajudam o leitor a melhor visualizar a transição do Apogeu para a Demolição, tanto no plano substantivo (política externa), como no plano operacional-institucional (diplomacia). 

Nesse início do livro, o leitor fica familiarizado com a contribuição para a política externa de conhecidos historiadores, como Francisco Varhagen, Oliveira Lima, João Ribeiro e Pandiá Calógeras. Ao mesmo tempo, são relembrados os grandes livros de síntese da história das relações internacionais do Brasil: Hélio Vianna, Delgado de Carvalho, José Honório Rodrigues, Amado Cervo, Clodoaldo Bueno e Rubens Ricúpero.

O acadêmico não deixa de registrar o valor do pai da historiografia, Varnhagen, mas o militante não perde a oportunidade de, citando José Honório Rodrigues, revelar a sombra desse pai – “extremamente parcial, adulador dos mais poderosos”. 

 Em Oliveira Lima – o maior dos historiadores diplomatas – destaca duas avaliações centrais sobre a política externa do Império: (i) “A Grã-Bretanha nunca exerceu sobre o Brasil a espécie de protetorado que, sob o disfarce de aliança, há um século exerce sobre Portugal”; e (ii) Ao analisar as questões do Prata, reconheceu que “a política de intervenção nunca aproveitou ao Brasil”. Acrescenta ainda que essa política, desde a Cisplatina, foi antagonizada pelos argentinos. “A guerra do Paraguai foi uma consequência da política brasileira, de intervenção, combinada com o exclusivismo ofensivo do segundo Lopez”. Sobre Mauá, “talhado para ser o agente de nosso imperialismo” ressalta a política de “franca intervenção” e especula que “a política do patacão teria porventura evitado a chacina”. 

Pandiá Calógeras, Ministro da Agricultura, Fazenda e o primeiro civil Ministro da Guerra, considerava a política externa como “um prolongamento da política interna, da mesma forma que Clausewitz considerava a guerra como a política que se desdobra nos campos de batalha”, o que lhe valeu o epíteto, atribuído por Tristão de Athaíde, de “o Clausewitz da história diplomática”. 

Dentre os manuais didáticos de história diplomática, PRA lembra a contribuição de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, que desenvolvem os conceitos de “alinhamento” e de “nacional desenvolvimentismo”. Mas os destaques maiores se dirigem a José Honório Rodrigues e a Rubens Ricupero. Para o primeiro, as premissas básicas de nossa política externa, desde a época colonial, sempre foram a acumulação de poder e a manutenção do status quo. Sustenta ainda que “toda política externa é uma expressão do poder nacional, em confronto antagônico ou amistoso, com os demais poderes nacionais”.

“A Diplomacia na Construção do Brasil”, livro seminal de Rubens Ricúpero, tem como motivação principal mostrar como a política externa era um fio inseparável da trama da história nacional. Para Ricúpero, nossa bibliografia os quase não falavam de política externa. Já as histórias diplomáticas continham o erro oposto: só tratavam de diplomacias, sem mencionar a política interna e a economia. Sobre isso, PRA escreve. “Ao produzir, portanto, sua versão da história da política externa, ele procurou mostrar como a diplomacia ajudou a dar forma à história e à identidade do Brasil”. Nessa linha, a diplomacia marcou profundamente cada uma das etapas definidoras de nossa história: abertura dos portos; independência; fim do tráfico de escravos; inserção no mundo (comércio, migrações, consolidação da unidade nacional – ameaçada pela instabilidade na região platina) ; modernização; industrialização; e desenvolvimento econômico. Essas marcas profundas na nossa história refletem a grande orientação “vocacional” da diplomacia brasileira: o trabalho de consolidação da independência e o reforço do processo de desenvolvimento econômico. 

 

As relações internacionais em perspectiva

 

(i)             A herança portuguesa: maldita na economia, bendita na diplomacia

O Estado brasileiro surgiu com a grave questão do reconhecimento do novo país, particularmente por parte da Grã-Bretanha, com a qual tínhamos pesados compromissos: o tratado de comércio de 1810; os empréstimos contraídos pela Coroa e assumidos pelo Brasil; e o problema do tráfico, o irritante nas relações, agravado pela prepotência britânica. A outra vertente de preocupação para a diplomacia imperial era o sempre precário equilíbrio no Prata. Era necessário sobretudo garantir a independência de Uruguai e Paraguai, ameaçados pelas pretensões argentinas de reconstruir o Vice-Reinado do Prata. A intervenção brasileira no Uruguai irritou Solano López e culminou na tragédia humana da Guerra do Paraguai, e no caos financeiro de sucessivos empréstimos externos.

A República nasce simpática aos EUA, entoando o refrão do Partido Republicano “Somos da América e queremos ser americanos”. (P.78) Mas a política externa ficou marcada pela falta de rumos, visível na sucessão de onze chanceleres em dez anos. Essa instabilidade da Velha República só foi estancada pelo Barão do Rio Branco, Chanceler durante dez anos, a quem coube a transição da velha hegemonia imperial britânica para a crescente ascendência da nova potência norte-americana. 

PRA conclui a breve referência ao Barão com interessante comparação com Oswaldo Aranha, que conseguiu “preservar tanto a autonomia do Brasil quanto alianças estratégicas ... numa conjuntura em que muitos apostavam na ascensão das potências fascistas”. (P.80) 

 

(ii)           Vargas e o segundo maior chanceler da história. JK sem Plano Marshall. O saudosismo inerente à PEI.

A referência de PRA à era Vargas também começa com um justo tributo a seu grande chanceler. “Sem a ação de Aranha talvez jamais tivesse acontecido a revolução de outubro de 1930 ... e talvez o Brasil tivesse ficado na incômoda posição dos argentinos, que se mantiveram neutros - na verdade simpáticos aos nazifascistas – até quase o final da guerra.” (p. 80)Os tributos prestados por PRA ao Chanceler contrastam com sua visão ácida a respeito do presidente, “Getúlio Vargas, como se sabe, era basicamente um hesitante, ainda que com várias qualidades maquiavélicas ... para preservar-se no poder durante breves 15 anos, como ele mesmo mencionou”. (p. 80) 

Ao avaliar a República de 1946, PRA cita Hélio Jaguaribe, para quem praticávamos então uma política externa tradicional, por ele chamada de “ornamental “e que outros apelidavam de “punhos de renda”. “De fato, antes que os militares entrassem com seus punhos de aço ... os bacharéis da diplomacia brasileira conduziram ... um alinhamento ao Ocidente durante a Guerra Fria, com alguns momentos de aparente modernização.” (p. 81). 

Nesse período, que coincide com a criação da OEA, na Conferência de Interamericana de Bogotá, em 1948, com a ascensão da CEPAL, com a Operação Pan-Americana de JK, a grande aspiração do Brasil era “que os Estados Unidos financiassem uma espécie de Plano Marshall para a América Latina”. (p.81) Na análise desse momento relevante de nossa história, PRA contrasta com muitos historiadores que lamentam e criticam a falta de visão e de solidariedade dos EUA em relação à América Latina e ao Brasil, ao negar vultosos recursos para o desenvolvimento da região.

 Em lugar dessa visão mais convencional de um antiamericanismo, o livro focaliza a ausência de reformas essenciais para habilitar a região a fazer uso produtivo de eventual ajuda externa. “Os EUA sempre responderam - aliás pela boca do próprio Marshall, em Bogotá - que os países latino-americanos deveriam reformar e modernizar suas estruturas econômicas, abrir-se ao comércio e aos investimentos estrangeiros, e apoiar- se bem mais nos capitais privados do que em grandes projetos governamentais, se desejassem manter ritmos de crescimento sustentável, ademais de melhorar a educação, a distribuição de renda e de terras.” (p. 81)

Essa manifestação do credo liberal de PRA fica clara ao enfatizar que o país “deu seu primeiro passo no sentido de avançar na industrialização plena nessa época”. “O Brasil, em todo caso, soube fazer algumas escolhas estratégicas, como foi a industrialização impulsionada pelos capitais estrangeiros da era JK, que os nacionalistas da época depreciavam como sendo entreguista e submissa ao imperialismo.” (81) 

Ao analisar esse período de nossa história que vai de Vargas a 1964, PRA explicita sua visão de mundo liberal. Podemos ver isso com mais clareza ao contrastar o perfil que ele traça de dois personagens -chave de nossa história. Um Vargas – “como se sabe, era basicamente um hesitante” - e um Juscelino, arquiteto do “primeiro passo (do Brasil) no sentido de avançar na industrialização plena “. (p. 81). Assim, na visão liberal de PRA, o “primeiro passo” não consistiu na substituição de importações operada por Getúlio com seu keynesianismo anterior a Keynes CSN, mas sim com o take off de JK, com os capitais privados da indústria automobilística e outras. 

Estamos visualizando o PRA militante liberal. Esse perfil se consolida, no plano da diplomacia, em sua avaliação bastante cética da “política externa independente”, iniciada com Jânio Quadros e Afonso Arinos, continuada com Jango e Santiago Dantas, que “converteu-se numa espécie de mito histórico, tendo sido magnificada muito além das realizações efetivas; ela aparece, retrospectivamente, como tendo sido excepcional, devido, em certa medida, à radical reversão de orientações na primeira fase do regime militar. “As a avaliações acadêmicas sobre a PEI, assim como as dos próprios diplomatas, estão talvez ainda impregnadas de certo viés saudosista e de algum sentimento de perda”. (p. 82) 

 

(III) Regime militar. Retrocesso na política doméstica. Avanço na economia, mas amplo estatismo. Política externa livre de interferências: o soldado valoriza o diplomata 

PRA avalia COM realismo e equilíbrio o regime militar, que reconhece como “período feito de grandes traumas políticos, é verdade, mas também de grandes avanços econômicos, ainda que marcados pelo grande centralismo estatal e uma política de enorme aquecimento da máquina econômica, o que parece ter ecos ainda hoje”. (p. 82)

Passado o triste, mas breve, interregno do alinhamento automático, com nossas tropas presentes na intervenção na República Dominicana, PRA assinala corretamente o padrão desenvolvimentista e terceiro-mundista da política externa do regime militar, em linha com teses reformistas da ordem internacional: tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento (PED’s), princípio da não-reciprocidade no comércio internacional e maior acesso a mercados, por parte das economias em processo de industrialização. 

Entretanto, essas virtudes precisam ser matizadas. “Os problemas da nova postura não estavam aí, contudo, e sim na tentativa de capacitação nuclear plena, inclusive para fins não declarados” (p. 83) e o rol de constrangimentos: salvaguardas aplicadas às tecnologias duais e sensíveis, conflitos potenciais com países nucleares e rivalidade com a vizinha Argentina. Os acertos na economia e na política externa tampouco escondem o abominável envolvimento do regime no “sangrento golpe militar” no Chile, contra o Presidente Salvador Allende e em outras operações clandestinas no Uruguai e na Argentina.

A avaliação do período me parece muito correta tanto no plano da substância (política externa), como na esfera institucional (diplomacia). “Pode parecer estranho, mas foi um dos períodos em que os diplomatas se sentiram mais “livres”... a corporação dos militares respeitava muito a casta dos diplomatas e lhe concedeu, salvo em poucas áreas consideradas de segurança nacional, ampla autonomia política e operacional”. (p. 84) Tendo subjacente a fórmula de Raymond Aron – soldados e diplomatas são os dois funcionários por excelência do Estado – PRA se refere ao “mútuo respeito que mantinham as corporações mais tradicionais do Estado brasileiro”. (p. 84) Daí deriva tanto o diagnóstico de “relativa introversão do corpo diplomático”, como o refrão elogioso de diplomatas latino-americanos – “Itamaraty no improvisa”. 

 

(iii)         As múltiplas vertentes da redemocratização. Experimentalismo que levou à hiperinflação. Reformismo econômico e credibilidade externa (FHC). Projeção externa matizada pelo partidarismo (Lula). O declínio da diplomacia (Dilma) e sua volta ao leito normal (Temer). 

O período pós-1985, foi marcado pela Constituição de 1988, portadora de importantes conquistas sociais mas, como corretamente apontado por PRA, também com impacto negativo, “distribuindo favores a todos, numa demonstração de inconsciência econômica que corre o risco de comprometer, de maneira estrutural e sistêmica, as possibilidades de crescimento sustentado no Brasil .. . O contrato social efetuado andou na direção de distribuir renda e favores, antes de acumular produção e renda ampliada.” (p. 89). Uma das consequências foi deterioração econômica, diversos planos de estabilização fracassados até o advento do Plano Real, com FHC à frente do Ministério da Fazenda e um grupo de economistas da PUC do Rio, com formação liberal. “Não parece existir, na história econômica mundial, algum outro país que tenha tido cinco ou seis instrumentos monetários sucessivos, num turbilhão de inflação e de mudança de regras. (p.89). 

O livro contribui para fazer justiça às transformações na política externa introduzidas em 1990. “O governo Collor tinha a pretensão de deslocar o país ... do grupo dos países em desenvolvimento para o clube da OCDE ... Collor operou, portanto, a primeira viragem decisiva na política nuclear brasileira, ao terminar com as loucuras militares, ao aceitar a ratificação plena do Tratado de Tlatelolco e ao dar prosseguimento à construção de confiança com a Argentina nessa área.” (p. 91)

No âmbito regional, transformou o processo de integração com a Argentina, iniciado em meados dos anos 1980. Mais de uma dezena de protocolos setoriais, visando à complementação produtiva e à abertura apenas recíproca, foram alterados. Com base na Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, os protocolos foram substituídos por um mecanismo automático, irrecorrível e universal de reduções tarifárias, destinadas a construir o livre comércio com a Argentina. “Nascia aí, verdadeiramente, o Mercosul, que só veio a ser quadrilateralizado um ano depois, mas sob os mesmos dispositivos de abertura econômica e liberalização comercial que tinham sido concertados entre os governos Collor e Menem.” (p. 92)

A curta transição, operada por Itamar Franco, teve a virtude de dar carta branca a FHC para formular e implementar o Plano Cruzado, em julho de 1994 - a chave da exitosa estabilização de um país com inflação crônica e galopante. “O Brasil passou de uma inflação anual de três dígitos para a casa do milhar e já tendo conhecido seis trocas de moedas no espaço de uma geração”. (p. 94)

Com a casa em ordem, FHC deu continuidade à abertura moderada no plano regional e global, abandonou o conceito difuso de América Latina para o espaço geográfico mais concreto da América do Sul. Além do reformismo econômico doméstico, avançou no diálogo com s instituições de Bretton Woods, o que foi providencial para o país enfrentar a sequência de turbulências financeiras internacionais : moratória mexicana de 1994; crise asiática de 1997; crise russa de 1998; e a própria crise brasileira do ano seguinte. Avançou também na “inserção do país nos foros mais sensíveis da agenda mundial de segurança – nos terrenos nuclear, espacial e de exportações de equipamentos de uso dual”. (p. 94)

O perfil acadêmico de PRA e sua natureza de contestador se combinam para, ao final da avaliação do governo FHC, fazer referências que, por um lado, são coerentes com a pesquisa acadêmica e, por outro, espelham sua militância liberal. Os trechos a seguir refletem essa dupla vocação. “Deve ser registrado, porque se trata de fato histórico importante para a trajetória ulterior do Plano Real, que o Partido dos Trabalhadores se opôs frontalmente à sua implementação, em qualquer de suas etapas, tentando inclusive embargar a Lei de Responsabilidade fiscal em processo movido junto ao STF. ... Felizmente, a primeira administração do PT soube preservar os elementos mais relevantes do Plano Real, ainda que nas administrações posteriores determinados aspectos (metas de inflação, superavit primário e flutuação cambial) tenham conhecido sensível deterioração, tal como confirmado pelos principais indicadores econômicos.”

Alguns livros e muitos artigos de PRA se dedicam à análise da atuação externa do período Lula-Dilma, por ele caracterizado como a diplomacia do “nunca antes”. “Diversas dentre as iniciativas exibidas posteriormente pelos governos do PT como feitos “inéditos” na política externa a partir de 2003 ... tinham sido de fato iniciadas sob os dois mandatos de FHC. ... O governo FHC se beneficiou apenas parcialmente do crescimento meteórico da China ... Bafejado pela procura chinesa, este último (Lula), pouco fez para estimular a competitividade brasileira, anteriormente beneficiada pelas medidas de abertura adotadas pelos governos FHC.” (p. 95)

Nessa linha, PRA refere a uma interpretação de Rubens Ricúpero, segundo o qual Lula conduziu uma política externa de roupagem gaullista, ou seja, moldada na figura do General De Gaulle. (p. 96). Segundo PRA, diversos colegas diplomatas confirmam que “o Itamaraty foi colocado a serviço pessoal do chefe de Estado, de suas muitas viagens e de sua desenvoltura nos contatos com vários líderes internacionais.” (p. 96) 

Em contraste com a divulgação ampla dos êxitos da diplomacia da era Lula, PRA focaliza episódios que resultaram em prejuízos ao país. O primeiro foi a passividade diante da expropriação dos ativos da Petrobrás, no âmbito da nacionalização dos hidrocarburos na Bolívia, então sob Evo Morales. O segundo foi a ruptura com o princípio da não intervenção em assuntos internos de outros países, evidenciada no apoio ostensivo do governo brasileiro a candidatos presidenciais no Peru e na Bolívia. Outro episódio foi a iniciativa turco-brasileira destinada a encontrar uma solução para o complexo nuclear iraniano, que resultou em derrota contundente dos dois países em votação no CSNU. 

Fonte adicional de prejuízo para o país foi a ausência do Brasil nas dezenas de acordos de livre comércio negociados nas primeiras décadas deste século. A hipertrofia da diplomacia presidencial também mereceu críticas, sobretudo pelo fato de algumas visitas do Presidente terem sido improvisadas, com falta de estudos e avaliações de diplomatas sobre os assuntos bilaterais ou multilaterais. PRA se refere de forma crítica e um tanto irônica, por exemplo, à proliferação, por iniciativa e sob os auspícios do Brasil, de reuniões de cúpula de Chefes de Estado da América do Sul e Caribe, dos países árabes e de nações africanas. “Nunca anates na história da região se fizeram tantas reuniões de cúpula, nunca antes os presidentes foram tão amigos entre si. Não se pode dizer, todavia, que a causa da integração tenha avançado satisfatoriamente, mesmo com toda a retórica a seu favor.” (p. 99) 

Ao referir-se aos três grandes objetivos da diplomacia lulista – cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; reforço e expansão do Mercosul; e conclusão exitosa das negociações multilaterais da Rodada Doha – PRA conclui que “nenhum deles foi conquistado, sequer arranhado.” (p. 98)

 A avaliação das diretrizes econômicas e da diplomacia de Dilma Rousseff é igualmente muito negativa, “pela mediocridade de sua política econômica e pela total inexpressividade de sua política externa”. (p. 100) Os fracassos: o diagnóstico de PRA a respeito do impeachment da Presidente é no sentido de que “a natureza da crise foi basicamente fiscal”: aceleração inflacionária acima das metas de inflação; alguma desvalorização cambial. As causas formais do impeachment incluem a manipulação do orçamento, o financiamento irregular de déficits setoriais, a utilização ilegal dos bancos públicos, e o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Tais irregularidades, somadas aos desentendimentos com líderes partidários e ao clamor das ruas, desembocaram no afastamento da Presidente.

Os revezes da diplomacia de Dilma em muito superaram os escassos êxitos: “a suspensão irregular do Paraguai do Mercosul, o ingresso ilegal da Venezuela no bloco, e a demissão do primeiro chanceler por causa de uma crise com a Bolívia”, provocada pelo asilo de senador boliviano por mais de 400 dias na Embaixada do Brasil em La Paz, e de sua retirada clandestina da Bolívia, com ajuda de nosso Encarregado de Negócios. (p. 101) 

Os dois chanceleres do governo Temer, José Serra e Aloysio Nunes, ao reduzirem a interferência partidária na política externa, foram objeto de uma campanha, no Brasil e no exterior, de uma campanha que denunciava o “golpe” do impeachment. Nas palavras de PRA, aqueles chanceleres conduziram “uma bem-sucedida reversão a padrões mais tradicionais de condução diplomática e de orientação em política externa”. (p. 103)

O livro de PRA, além da síntese de nossa historiografia, e da visão em perspectiva de nossas relações internacionais, examina, nos capítulos subsequentes, dois aspectos fundamentais de nossa ação externa: o processo decisório e as diplomacias presidenciais. 

 

(iv)          Política externa e diplomacia do governo Bolsonaro. O império da barbárie. 

A avaliação abrangente e altamente crítica de PRA a respeito da política externa e da diplomacia do governo Bolsonaro perpassa os diversos capítulos do livro. As duas vocações que se revelam nos trabalhos de PRA e indicados no início desta resenha - o acadêmico e o militante – aparecem, a partir de agora, com grande nitidez. Vejamos como se desdobra a análise crítica de PRA a respeito da ação externa do atual governo. 

 

(continua...) 

33 milhões de brasileiros têm FOME: 33 MILHÕES!!! - Carlos Brickmann

 

DAR DE COMER A QUEM TEM FOME

COLUNA CARLOS BRICKMANN

EDIÇÃO DOS JORNAIS DE DOMINGO, 12 DE JUNHO DE 2022

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Bolsonaro disse nos Estados Unidos que o Brasil alimenta um bilhão de pessoas no mundo. Talvez; mas falta alimentar 33 milhões de brasileiros para quem não há comida. Falta alimento? Não: falta administração. E, embora não falte dinheiro para mordomias nos três Poderes, jet-skys, motociatas, falta dinheiro para dar de comer a quem tem fome. Aos números: em 2009, no fim de seu segundo mandato, Lula criou o PNAE, Programa Nacional de Alimentação Escolar. Dilma assumiu, manteve o PNAE no mesmo valor. Temer assumiu, manteve o PNAE no mesmo valor. Bolsonaro também não mexeu em nada: para todos foi mais confortável fingir que não houve aumento de população de 2010 até 2022 e os preços não subiram em 13 anos.

Resultado: na pré-escola, há R$ 0,53 para encher o prato dos garotos da pré-escola, que ou se alimentam direito ou têm a saúde prejudicada para sempre. Os alunos do Fundamental e do Médio têm menos ainda, R$ 0,36 por pessoa. No ensino em tempo integral o custo vai de R$ 1,07 a R$ 2,00. Não é só isso: em muitos casos, a merenda escolar é a única refeição do dia.

Num país em que cada parlamentar tem até 80 assessores, os ministros do Supremo têm funcionários para puxar suas cadeiras, o presidente precisa colocar seus gastos no cartão em sigilo para evitar escândalo, candidatos usam bilhões públicos para a campanha, há gente que não sabe quando vai comer. Os campeões de gastos brigam entre si. Os famintos que se danem.

Alguém contesta?

Quem fez o brilhante levantamento foi a repórter Laura Mattos, da “Folha de S.Paulo”. Não há um pingo de partidarismo neste notável trabalho. Só há números, só há fatos: o PNAE deve atender a 40 milhões de estudantes de escolas públicas. Certas categorias profissionais mais iguais que as outras compram filé-mignon, salmão, picanha, com recursos públicos. Quem não tem o que comer simplesmente não come. Não, não há qualquer tentativa de reduzir gastos públicos. É como se os famintos simplesmente não existissem.

Sentindo-se em casa

Mas é injusto responsabilizar certas despesas de Bolsonaro pela falta de verbas essenciais. Agora, foi a Los Angeles participar da Cúpula das Américas (e se disse encantado com o presidente Biden). E, já que estava por lá, resolveu voar 3.500 km para inaugurar um vice-consulado que existe desde janeiro, em Orlando – onde fica a Disneyworld. Como perder a oportunidade? É lá que estão o Pateta, os Irmãos Metralha, João Bafodeonça, o rato Mickey.

Há até o Zé Carioca, que se veste igualzinho a um eleitor dele.

Armas, armas às mancheias

Anote: falta comida para alimentar 33 milhões de pessoas, falta dinheiro para a merenda escolar de 40 milhões de crianças, mas para armas o dinheiro sobra. A Polícia Militar do Rio vai entregar uma arma de fogo do Estado, gratuitamente, para 10 mil PMs da reserva remunerada. Cada PM aposentado poderá pedir três carregadores e um mínimo de 50 balas. Motivo? Segundo o porta-voz da PM, Ivan Blaz, os soldados reservistas poderão usar as armas para fazer “bicos” particulares como seguranças.

Com o nosso dinheiro

Constituição maltratada - Editorial Estadão

 A CF-88 já é uma barafunda que obsta um processo sustentado de crescimento econômico. A febre de PECs do bolsonarismo estúpido a está tornando uma caixa de contradições, um Frankenstein institucional. O mal permanecerá por anos. Os políticos do Centrão estão destruindo o Brasil!

Paulo Roberto de Almeida

Constituição maltratada

Ao emendar a Carta e mexer no sistema tributário por imperativos eleitorais, sem pensar no futuro, Brasil cria insegurança e desestimula investimentos

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo

12 de junho de 2022 | 03h00

 Em um país onde 33,1 milhões de pessoas passam fome diariamente, a obsessão de Jair Bolsonaro com os combustíveis já seria suficientemente ofensiva. Para além do fato de que a proposta de reduzir impostos para conter preços é altamente regressiva, a forma que o governo escolheu para colocar seu plano populista em prática representa um ataque à Constituição e ajuda a explicar as razões pelas quais o País não cresce há tantos anos. Mirando nos combustíveis, um governo que foi eleito sob o discurso “mais Brasil, menos Brasília” está disposto a ferir de morte o pacto federativo, arranjo institucional que garantiu aos Estados autonomia para definir um tributo que representa sua principal fonte de arrecadação, e, em reação previsível, parlamentares apresentaram uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para garantir compensação aos Estados.

A Constituição não é obra pronta e certamente está sujeita a atualizações. Tanto é verdade que deputados e senadores promulgaram 122 emendas constitucionais entre 1988 e 2022. Foram 22 nos três anos e meio de Jair Bolsonaro – um fenômeno, considerando o rito de tramitação e o quórum qualificado que as PECs exigem. Mas esse mesmo governo que conta com maioria no Congresso foi incapaz de aprovar as necessárias reformas para destravar a economia. 

Propostas que visam a uma ampla reforma tributária na Câmara (PEC 45/2019) e no Senado (PEC 110/2019) repousam nos escaninhos do Congresso. A construção de texto que dê fim ao manicômio tributário que vigora no País passa por um acordo entre União, Estados e municípios, mas pontes importantes que poderiam ser utilizadas na busca de um imposto único sobre bens e serviços foram queimadas pelo governo federal ao impor o teto do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na marra. A reforma administrativa (PEC 32/2020) permanece intocada desde que saiu de uma comissão especial em setembro do ano passado, sem qualquer perspectiva de ir à votação no plenário da Câmara. Por outro lado, articulações entre Senado e Judiciário apontam apoio ao retorno do anacrônico quinquênio a ser cristalizado na maltratada Constituição, e voltou a circular no Legislativo uma proposta que tira o poder das agências reguladoras. A quem e para que tem servido essa maioria parlamentar?

A forma como o mundo privado interpreta e reage a esses movimentos varia conforme os setores. Aqueles mais diretamente afetados pela imposição de um teto para o ICMS sobre bens essenciais, por exemplo, anseiam por sua aprovação. Com a inflação nos níveis em que está, qualquer migalha pode representar um alívio momentâneo na inadimplência e contribuir com as receitas de empresas que já atuam no País há muitos anos. É uma visão de curto prazo e focada em extrair benefícios próprios em um momento politicamente conturbado. Por outro lado, o Brasil está fora do mapa mundial das grandes transformações e do avanço tecnológico pós-pandemia. Estudo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) aponta que a taxa de investimentos no Brasil deve ficar em 18,4% do PIB neste ano, menor que a registrada em 139 países. O mundo investirá US$ 140 bilhões nos próximos dois anos para resolver o problema global da escassez de semicondutores, talvez o item mais importante para a indústria atualmente, mas segundo reportagem publicada pelo Estadão, nenhum quinhão foi reservado ao Brasil.

Investimentos relevantes para a economia são decididos de olho em um horizonte de médio e longo prazos. Estabilidade é condição mínima para convencer investidores a aportar recursos em qualquer país, bem como o respeito ao marco jurídico, legal e regulatório. Lamentavelmente o Brasil colhe o que planta quando a Constituição é alterada ao sabor dos interesses eleitorais, as alíquotas de um dos impostos mais relevantes do sistema tributário são definidas na base do grito e as reformas estruturais ficam para as calendas. Sem crescimento, até problemas que pareciam superados como a fome voltam a assombrar o País.


O Brasil está perdendo o rumo em sua postura enquanto nação civilizada? - Paulo Roberto de Almeida

 O Brasil está perdendo o rumo em sua postura enquanto nação civilizada?

Uma reflexão à sombra da guerra de agressão da Rússia autocrática contra a Ucrânia democrática

Paulo Roberto de Almeida

Que uma sociedade inteira viva anos, décadas de equívocos e escolhas erradas não é surpreendente: uma sociedade é algo muito complexo para ser totalmente controlada por um poder central; parece que só a Coreia do Norte conseguiu estabelecer o totalitarismo absoluto, o que nem a União Soviética, nem a China maoísta, muito menos a Cuba castrista ou o Irã teocrático o conseguiram.

Sociedades erram pelo peso do passado, pela força de líderes especialmente carismáticos e por rupturas muito fortes de seu tecido social (guerras externas, guerras civis, confrontos religiosos, epidemias, catástrofes naturais, etc.).

Mas é surpreendente que corporações educadas, como a diplomacia, por exemplo, embarquem em aventuras desprovidas da necessária fundamentação empírica por indução superior, como verifiquei na diplomacia partidária do lulopetismo triunfante. O entusiasmo da projeção externa ganhou terreno sobre a reflexão ponderada em torno de certos dossiês: o apoio a ditaduras execráveis, comandado pelos chefes megalomaníacos pode explicar em parte o desvario de certas escolhas diplomáticas.

Atuou, nesse caso, o constrangimento moral imposto pelo feudalismo do Itamaraty: os malfadados princípios da hierarquia e da disciplina, importados do estamento militar, foram mais fortes.

Funcionou em certos casos a prevalência da obediência sobre a inteligência, do voluntarismo sobre o conhecimento, da submissão sobre o pensamento crítico.

De minha parte, posso afirmar que nunca renunciei a pensar com minha própria cabeça, independentemente das propostas pouco fundamentadas que brotavam dos ideólogos de plantão.

Sempre me pautei pela exposição objetiva de meus argumentos sobre as políticas públicas, inclusive e sobretudo na diplomacia. 

Os petistas intolerantes me deixaram na geladeira por 13,5 anos. Continuei fazendo o que sempre fiz: lendo, refletindo e escrevendo, no meu quilombo de resistência intelectual, representado pelo blog Diplomatizzando e por meus escritos.


 Meu novo livro sobre a aventura do Brics é mais uma prova dessa disposição a resistir a uma diplomacia paralela sem base em nossos padrões de trabalho, que são o exame cuidadoso e circunstanciado de qualquer nova proposta antes de colocá-la em prática. O Brics entrou no entusiasmo de uma nova iniciativa apelativa, sem um mínimo de estudo ou embasamento técnico. Ninguém resistiu ao comando das chefias: foi levado de roldão na esteira da publicidade fácil na mídia internacional.

Sempre considerei o Brics uma miragem sem sentido e uma anomalia em nossa trajetória de difícil construção de uma diplomacia autônoma e operando estritamente em função do interesse nacional. O Brics representa uma renúncia a um projeto de diplomacia independente em favor de um mínimo denominador comum que, em última instância, é determinado por duas grandes potências autocráticas.

O caso trágico da guerra de agressão de um tirano obcecado contra o seu vizinho que buscava escapar do abraço do urso imperial coloca a diplomacia brasileira num dos maiores dilemas conceituais de sua história. Essa guerra de agressão confronta diretamente não só o Direito Internacional, consagrado na Carta da ONU, mas também a própria Constituição brasileira.

Como pode a diplomacia brasileira, seja sob Bolsonaro, seja sob Lula, contrariar princípios tão sagrados do Direito e até da moral, inclusive padrões civilizatórios, ao preferir se abster em face de violações tão flagrantes de cláusulas fundamentais de suas relações internacionais?

Como pode o substrato moral que ainda existe na diplomacia e na tecnocracia mais esclarecida do Brasil suportar o espetáculo grotesco dos crimes de guerra, possivelmente crimes contra a humanidade, certamente contra a paz, que emana da destruição mais cruel e desumana que vem sendo perpetrado continuamente contra a Ucrânia e o seu povo? 

É possível conviver com um horror que nos remete aos tempos mais sombrios do hitlerismo expansionista contra a pobre Polônia, contra as democracias ocidentais (começando antes, pela Áustria e pela Tchecoslováquia), e contra o aliado totalitário de ideologia oposta?

Que o atual mandatário brasileiro ainda decida apoiar objetivamente uma contrafação de Hitler é compreensível dentro da sua ideologia de direita extrema.

Que a diplomacia não se revolte contra a violação dos princípios mais sagrados que deveriam orientar a sua ação é menos compreensível. A permanência do e no Brics pode explicar em parte a atual flacidez moral que tomou conta do Itamaraty. Mas outras demonstrações imorais do atual chefe de Estado — no campo dos DH sobretudo — tornam insuportável o atual estado de coisas. 

Continuarei em meu quilombo.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 12/06/2022

Apresentação de meu livro A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira, no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/06/meu-proximo-kindle-sobre-miragem-dos.html).

Resumo:

Coletânea de ensaios e artigos se estendendo desde a concepção do conceito do Bric, na planilha de um economista profissional de um banco de investimentos, no início dos 2000, até a situação em 2022, depois da invasão da Ucrânia por um dos membros do Brics, a Rússia. A maior parte da análise é de natureza histórica, cobrindo aspectos econômicos e diplomáticos do empreendimento, e focando particularmente nos interesses do Brasil, suas motivações e capacidades, como um dos propositores originais do grupo, e a letra inicial no acrônimo apelativo. Pelo seu título, A grande ilusão do Brics, há uma clara visão crítica em torno das razões e motivações para a criação desse grupo, como se os quatro membros originais estavam tentando confrontar o G7 e buscando uma ordem mundial alternativa. Como revelado pelo subtítulo, o universo paralelo da diplomacia brasileira, existe também uma discussão sobre o tipo de novo direcionamento da política externa brasileira, fugindo de seus padrões tradicionais que visam a criação de uma postura autônoma nas relações internacionais, vinculando sua diplomacia essencialmente aos interesses nacionais de desenvolvimento econômico e social. 

Summary

 

A collection of essays and articles spanning from the inception of the Bric concept, at the table of a professional economist from an investments bank, in early 2000s, up to the situation in 2022, after the invasion of Ukraine by one of Brics members, Russia. Most of the analysis is of a historical nature, dealing with economic and diplomatic aspects of the endeavor, and focusing especially on Brazil’s interests, inducements, and capabilities, as one of the first proponents of the group, and the initial letter of the appealing acronym. By its title, The Great Illusion of the Brics, there is a clear critical standpoint about the reasons and motivations for the creation of this group, as if the four original members seek to be countering the G7 and looking to offer an alternative world order. As revealed by the subtitle, a parallel universe of the Brazilian diplomacy, there is also a discussion about a kind of a new driving line in Brazilian foreign policy, deviating from its traditional patterns towards the building up of an autonomous stance in regional and international relations, connecting its diplomacy essentially with its national interests of social and economic development.

 

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira

Índice

 

Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo

1. O papel dos Brics na economia mundial

O Bric e os Brics

A Rússia, um “animal menos igual que os outros”

A China e a Índia

E o Brasil nesse processo?

 

2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos

Esse obscuro objeto de curiosidade

O Brasil, como fica no retrato?

Russia e China: do comunismo a um capitalismo especial

O fascínio é justificado?

O que os Brics podem oferecer ao mundo?

 

3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil

Introdução: a caminho da Briclândia

Radiografia dos Brics

Ficha corrida dos personagens

De onde vieram, para onde vão?

New kids in the block

Políticas domésticas

Políticas econômicas externas

Impacto dos Brics na economia mundial

Impacto da economia mundial sobre os Brics

Consequências geoestratégicas

O Brasil e os Brics

Alguma conclusão preventiva?

 

4. A democracia nos Brics

A democracia é um critério universal?

Como se situam os Brics do ponto de vista do critério democrático?

Alguma chance de o critério democrático ser adotado no âmbito dos Brics?

 

5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics

Sobre um funeral anunciado

Qualificando o debate

O que define o G7, e deveria definir também o Brics e o G20

Quais as funções do G7, que deveriam, também, ser cumpridas pelo G20?

 

6. O Bric e a substituição de hegemonias

Introdução: por que o Bric e apenas o Bric?

Bric: uma nova categoria conceitual ou apenas um acrônimo apelativo?

O Bric na ordem global: um papel relevante, ou apenas uma instância formal?

O Bric e a economia política da nova ordem mundial: contrastes e confrontos

Grandezas e misérias da substituição hegemônica: lições da História

Conclusão: um acrônimo talvez invertido

 

7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009

Existe um papel para os Brics na crise econômica?

Os Brics podem sustentar uma recuperação financeira europeia?

A ascensão dos Brics tornaria o mundo mais multipolar e democrático?

 

8. O futuro econômico do Brics e dos Brics

Das distinções necessárias

O Brics representa uma proposta alternativa à ordem mundial do G7?

O que teriam os Brics a oferecer de melhor para uma nova ordem mundial?

O futuro econômico do Brics (se existe um...)

Existe algum legado a ser deixado pelo Brics?

 

9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição

O Brasil e os principais componentes de sua geoeconomia elementar

Potencial e limitações da economia brasileira no contexto internacional

A emergência econômica e a presença política internacional do Brasil

A política externa brasileira e sua atuação no âmbito do Brics

O que busca o Brasil nos Brics? O que deveria, talvez, buscar?

 

10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil

Uma sigla inventada por um economista de finanças

Um novo animal no cenário diplomático mundial

Existe um papel para o Brics na atual configuração de poder?

Vínculos e efeitos futuros: um exercício especulativo

 

11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria

Introdução: o que é um relatório de minoria?

O que é estratégico numa parceria?

Quando o estratégico vira simplesmente tático

Parcerias são sempre assimétricas, estrategicamente desiguais

A experiência brasileira de parcerias: formuladas ex-ante

A proliferação e o abuso de uma relação não assumida

 

Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia

Indicações bibliográficas

Nota sobre o autor