sábado, 18 de maio de 2024

Alberto da Costa e Silva – 1931-2023 - Homenagem de Celso Lafer (Revista do CEBRI)

 

Alberto da Costa e Silva – 1931-2023

Homenagem ao diplomata, poeta, historiador e ensaísta

Resumo

Texto de Celso Lafer em memória a Alberto da Costa e Silva (1931-2023), diplomata, poeta, historiador, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras.

Palavras-chave:

Alberto da Costa e Silva; memória; história; diplomacia; obra de vida.
Alberto da Costa e Silva. Midiateca do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP), por Maria Leonor de Calasans (2004).

Aperspectiva é um dos componentes organizadores da realidade, indicativa da circunstância do lugar em que estamos e nele nos localizamos para adquirir a mobilidade transformadora da razão e da sensibilidade. Recordo essa lição de Ortega y Gasset (1994), porque ela tem grande pertinência para pensar a política externa concebida como um ponto de vista sobre o funcionamento do mundo e a sua incidência em um país. Um país operacionaliza seu ponto de vista no trato oficial com outros países por meio de seu corpo diplomático.  

Alberto da Costa e Silva integrou o corpo diplomático brasileiro, nele ingressando depois de concluir o seu período de estudo no Instituto Rio Branco. Serviu na Secretaria do Estado e nas embaixadas em Lisboa, Caracas, Washington, Madri e Roma. Foi embaixador na Nigéria, em Portugal, na Colômbia e no Paraguai. Na operacionalização do ponto de vista do Brasil, no abrangente exercício do ofício diplomático, Alberto tornou-se um paradigma de tato, inteligência e zelo, que dele fizeram um dos grandes quadros do Itamaraty. Foi no período de sua vita activa diplomática que o conheci, dele me aproximei e tive a oportunidade de apreciar as suas altas qualidades.

Na operacionalização do ponto de vista do Brasil, no abrangente exercício do ofício diplomático, Alberto tornou-se um paradigma de tato, inteligência e zelo, que dele fizeram um dos grandes quadros do Itamaraty.

Alberto foi, ao mesmo tempo, um intelectual de grande envergadura, e o que singularizou o seu percurso foi a fecunda convergência de sua vocação para a diplomacia com a sua vocação de grande intelectual. Em Alberto, essas duplas e constitutivas circunstâncias de seus caminhos apuradamente confluíram. O olhar do diplomata abriu oportunidades para observar o mundo a partir do Brasil e, numa dialética de complementaridade, observar o Brasil a partir do mundo. 

Alberto observou que “o diplomata, como o poeta, trabalha com as palavras” (Costa e Silva 2002, 26). São palavras distintas cuja especificidade Alberto soube bem elaborar no seu percurso. Octavio Paz, que foi um grande poeta, um grande pensador e também um diplomata, cuja experiência do ofício alentou a sua obra, apontou em entrevista a Enrico Mario Santi (1994) que poesia e pensamento vivem em duas casas contíguas, mas entre elas existe um corredor que favorece a passagem de uma para a outra. Assim, os bons poetas frequentam o pensamento porque a boa poesia é lucidez. De maneira similar, o pensamento se alimenta da lucidez da boa poesia.

Foi o que ocorreu com o Alberto na especificidade do seu trânsito no qualificado uso da palavra. Daí o alcance que soube dar à diplomacia cultural como uma dimensão da política exterior brasileira, para a qual deu relevante contribuição na sua dupla condição de diplomata e pensador. Exemplificava como a cultura pode ser apreciada como convergência de influências e caminho para o entendimento. 

Alberto organizou o volume O Itamaraty na Cultura Brasileira, publicado em 2001 na minha gestão no Ministério das Relações Exteriores. Os diplomatas lá analisados dedicaram-se, na diversidade de suas obras e na especificidade dos seus interesses, à ampliação da dimensão fundacional da diplomacia brasileira no plano cultural. Trata-se de uma dimensão, como destaquei no meu prefácio, permeada pelo desafiante tema da identidade nacional e da projeção internacional do que é o Brasil. Como diz Alberto na apresentação do volume, na prática do ofício o diplomata “é o que se representa”. 

A representação é uma dimensão constitutiva da atividade de um diplomata, e Alberto inicia as suas considerações sobre o desafio da representação no teatro do mundo através da exegese do quadro de Hans Holbein Os Embaixadores. Destaca o pano de fundo do quadro, inter alia, grossos livros, cartas geográficas, um globo terrestre, uma luneta, um astrolábio, indicando assim que um diplomata deve olhar os astros e identificar os rumos do mundo para saber a que se ater, orteguianamente, no exercício de seu ofício.

A representação vai além da articulação e da negociação de interesses. Tem um componente de exprimir o potencial e a vis atractiva do que um país pode significar para os demais numa dada conjuntura histórica. Por isso, um diplomata deve conhecer bem o seu país para poder bem representá-lo. Essa foi uma característica da qualidade de Alberto no exercício do ofício de diplomata. 

Cabe também a um diplomata, para valer-me da terminologia da Convenção de Viena, promover relações amistosas com o país no qual está acreditado e assim, na medida do possível, transformar fronteiras-separação em fronteiras-cooperação. Foi o que fez Alberto com gosto e dedicação nos países em que serviu.

Alberto foi  um paradigma de diplomata que elaborou, na sua prática e na sua reflexão, com saber, competência e originalidade, uma diplomacia da cultura e do conhecimento, que alargou os horizontes da política externa brasileira. 

Em síntese, Alberto foi  um paradigma de diplomata que elaborou, na sua prática e na sua reflexão, com saber, competência e originalidade, uma diplomacia da cultura e do conhecimento, que alargou os horizontes da política externa brasileira. Faço estas considerações preliminares na perspectiva de um ex-ministro das Relações Exteriores para realçar o seu papel na diplomacia brasileira. É um ponto de partida para, como seu confrade na Academia Brasileira de Letras (ABL), ir além do que foi o seu gosto pelo ofício a que se dedicou por muitos anos e, desse modo, destacar o seu papel de grande intelectual e abrangente contribuição à cultura brasileira, que se alimentou da sua experiência de diplomata. 

Como é sabido, a dedicação à África foi um tema recorrente do seu percurso de diplomata, que se adensou subsequentemente na sua condição de grande historiador, cabendo registrar que a abertura à África da política externa brasileira, iniciada na gestão do chanceler Mario Gibson Barbosa, muito deve à sua instigante inspiração. 

A experiência do embaixador na Nigéria e no Benin, de 1979 a 1983, da qual guardou, como dizia, “gratidão enternecida”, foi um estímulo para aprofundar o seu interesse pela África e o seu entendimento de que “era necessário entender os africanos para melhor entender o Brasil”, nas palavras de Marina de Mello e Souza (2023) em recente artigo publicado na CEBRI-Revista.

A enorme erudição de Alberto sobre a África vivificou-se na  Nigéria pela combinação da palavra escrita com o dia vivido. “Tornaram-se menos imprecisos os significados de certas palavras, de certos gestos, de certas festas, de certos costumes e de determinadas instituições e mais perceptíveis os seus ecos no Brasil e o ir e vir das ressonâncias por sobre as águas do Atlântico” (Silva 1992, 2), como disse com vocação fenomenológica no seu livro A enxada e a lança: a África antes dos portugueses

Do que ele chamou “o vício da África” resultou uma excepcional obra de historiador que descortinou, com rigor e paixão, a História da África, a África no Brasil, o Brasil na África e a dinâmica do circuito da escravidão. Alberto, com seus generosos ensinamentos, trouxe a África como campo próprio de estudo em nosso país. A sua obra abre a nossa sensibilidade às memórias provenientes da África, que se somam, como ele diz, a outros enredos da vida brasileira – aos europeus, que sempre estiveram nos currículos de nossas escolas, e aos ameríndios, que neles deveriam estar. Desnecessário realçar a pertinência da obra de Alberto e sua visão para a agenda brasileira contemporânea. 

Alberto, com seus generosos ensinamentos, trouxe a África como campo próprio de estudo em nosso país. A sua obra abre a nossa sensibilidade às memórias provenientes da África, que se somam, como ele diz, a outros enredos da vida brasileira…

Alberto dominava igualmente o papel do enredo europeu na vida brasileira. Portugal, de minha varanda (1999) é um admirável ensaio de Alberto, representativo de como sua perspectiva é a expressão do melhor da janela de um diplomata de cultura e de conhecimento. Portugal, onde serviu como jovem diplomata e depois como embaixador, foi um posto no qual a sua naturalidade na interação, tanto com os artistas e escritores portugueses, quanto com as muitas vertentes do seu universo político, lastreou-se no seu domínio do mundo lusitano – o de um país que “de certa forma e ao seu jeito inventou para a Europa os oceanos” (1999, 24). 

As rotinas do dia a dia enquanto diplomata e da inserção de Portugal no mundo alimentou-se da aventura da sua sensibilidade cultural e política para intensificar e ampliar o diálogo Portugal-Brasil. Iluminou, com larga visada, as características da herança e da presença de Portugal no Brasil e do significado dos fluxos migratórios lusitanos para a construção da múltipla identidade do nosso país. Soube destacar, como grande intelectual, a relevância do idioma comum e do papel da língua portuguesa em Portugal e no Brasil, que nos singulariza e aproxima. Alargou esse horizonte para alcançar cinco países africanos que vivem as realidades das suas especificidades, para descortinar o potencial de concertação diplomático-cultural que amplia, com um toque próprio, o espaço do Brasil e de Portugal no mundo.

O espaço não me permite aflorar a amplitude dos caminhos intelectuais de Alberto, mas cabe destacar que tiveram um impacto irradiador com sua eleição para a Academia Brasileira de Letras e sua integração nas atividades da Casa de Machado de Assis, que presidiu com destaque. A presença de Alberto na ABL e as características agregadoras dos seus talentos e conhecimentos, do seu zelo pela instituição e da inteireza de sua personalidade, dele fizeram uma grande referência da Casa – um dos seus notáveis quadros – à semelhança do que ocorreu no Itamaraty. Com a eficaz sutileza de sua inspiração, a ABL, para falar com Bobbio, adquiriu a dimensão de um locus da política da cultura.   

Permito-me finalizar, como seu confrade e admirador, realçando que as suas memórias são um dos pontos mais altos da memorialística brasileira. Espelho do Príncipe (1994), cujo subtítulo é ficções de memória, não é propriamente uma autobiografia. Refaz liricamente as vivas lembranças do seu passado de criança. É, como o qualificou Da. Gilda de Mello e Souza, “um solilóquio da infância”, que ela toma como um ritual de passagem, uma travessia da infância à idade adulta, na qual Alberto, com pequenos toques, de maneira única, vai “impondo uma visão nova das coisas, da sensibilidade da relação com as pessoas, do escoar do tempo.” Corresponde, para lembrar a sua condição de poeta, ao que disse com a virtude da simplicidade na abertura de seu poema Hoje: gaiola sem paisagem: “Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora menino.”

Referências Bibliográficas

Lafer, Celso. 2023. “Alberto da Costa e Silva (1931-2023)”. O Estado de S. Paulo, 17 de dezembro de 2023. https://www.estadao.com.br/opiniao/celso-lafer/alberto-da-costa-e-silva-1931-2023/

Ortega Y Gasset, José. 1994. “El tema de nuestro tiempo”. In Obras Completas, de José Ortega Y Gasset, v. 3. Madrid: Alianza.

Santi, Enrico Mario. 1994. “Conversar es humano, entrevista a Enrico Mario Santi, Miscelanea III – Entrevistas”. In Obras Completas, de Enrico Mario Santi, vol. 15; México: Fondo de Cultura Económica.

Silva, Alberto da Costa e. 1962. Carda, fia, doba e tece. 1ª edição. Lisboa. 

Silva, Alberto da Costa e. 1992. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Silva, Alberto da Costa e. 1994. Espelho do príncipe: ficções da memória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Silva, Alberto da Costa e. 1999. “Portugal, de minha varanda”. Via Atlântica 2 (1): 20-40. https://doi.org/10.11606/va.v0i2.48731.

Silva, Alberto da Costa e. 2002. “Diplomacia e cultura”. In O Itamaraty na cultura brasileira, de Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora.

Souza, Marina de Mello e. 2023. “Os benefícios de um vício: Alberto da Costa e Silva e a África”. CEBRI-Revista 2 (6): 192-199. https://doi.org/10.54827/issn2764-7897.cebri2023.06.03.08.192-199.pt.

Recebido: 29 de fevereiro de 2024

Aceito para publicação: 1 de março de 2024

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Ex-presidentes do Banco Central criticam condução da política fiscal (Estadão)

 Ex-presidentes do Banco Central criticam condução da política fiscal

 O Estado de S. Paulo, 18/05/2024 

 

A condução da política fiscal brasileira foi alvo de críticas de ex-presidentes do Banco Central que participaram ontem de debate sobre os 30 anos do Plano Real, organizado pelo BC. A mesa foi moderada por Roberto Campos Neto, atual presidente da autarquia, e contou com a presença dos ex-presidentes Gustavo Franco, Gustavo Loyola, Pedro Malan e Persio Arida.

 

Malan, também ex-ministro da Fazenda, disse estar convencido de que a sociedade brasileira assimilou os benefícios da preservação da inflação sob controle, que influenciam no salário e transferência de renda, e disse acreditar que o governante que tiver posição leniente com ela não se sairá bem nas urnas.

 

Matéria completa clique abaixo:

 

https://istoedinheiro.com.br/ex-presidentes-do-banco-central-criticam-conducao-da-politica-fiscal/

 

500 Years of Resistance in Latin America and the Caribbean - International Conference


 

José Guilherme Merquior na ABL: Arnaldo Godoy

 Nada menos que brilhante: agradeço a Arnaldo Godoy a referência a uma das coletâneas que organizei improvisadamente sobre os trabalhos de Merquior. Abaixo, indico o link para essa brochura. PRA

DIREITO E LITERATURA: O DISCURSO DE POSSE DE JOSÉ GUILHERME MERQUIOR NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

 

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

 

José Guilherme Merquior (1941-1991) foi um intelectual, na mais precisa expressão desse termo. Escritor com visão abrangente dos problemas de seu tempo, e todos os tempos, também escrevia em língua estrangeira, a exemplo do inglês, idioma que usou no seu portentoso estudo sobre o liberalismo, livro que já resenhei nessa coluna. Nessa obra, traduzida para o português por Henrique de Araújo Mesquita, Merquior discorreu longamente sobre o tema (e o problema) do direito natural. 

Graduado em Filosofia e em Direito, tratou também de vários assuntos de especulação jurídica, o que lhe vale, certamente, a posição de importante jusfilósofo.  Essa classificação certamente seria por Merquior desprezadaafinal, foi um pensador acima de quaisquer tipologias e classificações. Insisto, no entanto, que há um importante legado de filosofia do direito na obra de Merquior, tema que merece estudo mais profundo. Não é o caso da presente crônica, que se ocupa do discurso de posse de Merquior na Academia Brasileira de Letras, em 11 de março de 1983.

Como se lê em Fábio Coutinho, ainda que em outro contexto, “o ingresso nas grandes academias representa, via de regra, a consagração dos homens e suas obras, culminando vidas inteiramente dedicadas ao trabalho intelectual”. É o caso, também exatamente, de José Guilherme Merquior. Um “caso único”, como lemos eminstigante ensaio de Paulo Roberto de Almeida; organizador de “José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro”cujo prefácio me parece o mais completo estudo sobre o intelectual aqui estudadoO discurso de Merquior como orador da turma do Instituto Rio Branco (em 1963), que Paulo Roberto Almeida acrescenta em seu livro, já revelava a intuição racionalizadora do orador: a verdade não seria apenas “a conformidade da ideia com o ser: é antes um comportamento (...) frente ao mundo objetivo, como se ele nos fosse estranho”.

Merquior foi antecedido na Academia por Paulo Carneiro, ocupou a cadeira n. 36, e foi saudado por Josué Montello. A cadeira fora ocupada por Afonso Celso, filho do Visconde de Ouro Preto, o último chefe de gabinete do segundo reinado. Merquior enfatizou as qualidades intelectuais de Afonso Celso, a exemplo da elegância do estilo (um estilo eminentemente verbal), o que despontavaobjetividade e clareza na exposição das ideias. 

Segundo Merquior, integridade e paixão marcavam Afonso Celso. Um nacionalismo que identificava como “positivo” era nítido no intelectual que homenageava, autor de um livro hoje pouco lembrado: “Por que me ufano de meu país”. Trata-se de um livro publicado em 1900, e que foi de algum modo mais tarde ridicularizado, por sua forma laudatória. 

O adjetivo “positivo” que Merquior acrescentou ao substantivo “nacionalismo” talvez revele, para o leitor contemporâneo, o pensamento requintado do acadêmico que tomava posse. Merquior enfatizou a coragem política de Afonso Celso, que fez o caminho inverso de seus contemporâneos. Com a Proclamação da República, muitos monarquistas se fizeram republicanos (os republicanos arrivistas de 15 de novembro). Afonso Celso fez a rota inversa: de republicano tornou-se monarquista, talvez até como enfrentamento ao oportunismo, a par de uma inegável homenagem ao próprio pai. Essa tensão (inclusive sob uma perspectiva freudiana, é tema de um instigante livro de Luís Martins, “O patriarca e o bacharel”). 

Afonso Celso fora corajoso na política e versátil nas humanidades (um polígrafo de valor). Ao lado de Eduardo Prado, Afonso Celso quixotescamente se colocou contra a República, segundo Merquior, que também lembrou que o vocábulo “brasilidade” fora por criado por Afonso Celso, que também atuou na Ação Social Nacionalista. Merquior o identificou como o “criador do ufanismo”.

Merquior seguiu a tradição dos empossados, e proferiu discurso centrado na figura de seus antecessores, acentuando o pensamento humanista que os marcava, fixando pontos de conexão histórica que implicavam no papel do intelectual na sociedade. Insistiu na necessidade de engajamento social do intelectual, tema recorrente nas reflexões sobre as relações entre os intelectuais e o poder, tema de um dos livros de Norberto Bobbio“Os intelectuais e o poder”

Merquior acentuou uma continuidade entre os ocupantes da cadeira n. 36, o que de alguma forma explicitava sua profissão de fé, simbolicamente, no sentido teológico de afirmação de posicionamento em relação aos dilemas da vida. Merquior havia discutido com profundidade a responsabilidade social do artista, em ensaio de 1963, publicado nessa obra prima de crítica e estética, que é a “Razão do Poema”, recentemente republicado em coleção coordenada por João Cezar de Castro Rocha. Nesse texto de crítica, Merquior sublinhou que “qualquer ideia acerca da responsabilidade social do artista tem de incorporar essa crença na arte como função cognitiva, porque, sob pena de andarmos em nuvens, não há outro meio de se exigir do artista uma determinada atitude a não ser reconhecendo nele um instrumento de visão”.

O patrono da cadeira n. 36 foi Teófilo Dias (o poeta das Fanfarras). Merquior lembrou que Teófilo Dias fora um protoparnasiano. Teófilo Dias era sobrinho de Gonçalves Dias, cuja “Canção do Exílio” Merquior analisou em “Poema do lá”, um dos mais conhecidos estudos de crítica literária que conhecemos, também republicado em “Razão do Poema”.

Certamente, Merquior é o intelectual brasileiro mais autorizado a falar sobre a relação entre os intelectuais e o poder, isto é, sobre a relação entre o pensador e a ação política. Celso Lafer, outro intelectual de importância superlativa, também da Academia Brasileira de Letras, afirmou em um documentário que Merquior fora o mais importante intelectual de sua geração. 

A propósito desse papel (e dessa função, pensador e política) Merquior exemplificou a complexidade da tarefa, tratando de dois outros antecessores da cadeira n. 36: Clementino Fraga (médico, que trabalhou com Oswaldo Cruz) e Paulo Carneiro (que foi embaixador, para quem saber é saber o quanto se ignora, e que conviveu com Guimarães Rosa e Sousa Dantas no fim da segunda guerra mundial). Merquior tratava de um “humanismo inclusivo”, metáfora que bem mostrava uma disposição para aproximar a academia da vida real, mediando cultura e emancipação. 

Ao tratar de Paulo Carneiro (que Merquior reputou como o último dos apóstolos de Augusto Comte no Brasil) o empossado fixou para o leitor atual as características dessa doutrina, distinguindo as diferenças entre positivismo-clima e positivismo-seita, fazendo-o inclusive com humor e graça, lembrando e contando uma anedota de Josué Montello

Não nos esqueçamos, Merquior era um liberal (na tradição de Isaiah Berlin)no sentido de enfatizar liberdade e autonomia no fortalecimento do indivíduo em face do Estado. Foi um defensor da democracia liberal e da economia de mercado, pontos que o aproximavam de Roberto Campos, outro expoente máximo da história do pensamento brasileiro. A ação prática é necessária, e sem essa, não se pode pensar em mudança social significativa. Qual a função do acadêmico na sociedade? A pergunta, parece-me o ponto central desse discurso memorável, que é um manifesto sobre a posição dos intelectuais na sociedade

Merquior encerrou sua fala lembrando que “mesmo na eventual divergência”, era a “via régia do conhecer e da paixão’ que o animava: “a paixão de compreender”. Essa orientação ao mesmo tempo prática e especulativa, a “paixão de compreender”, penso, seja o maior legado de José Guilherme Merquior, ainda que em forma de permanente inspiração.


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3894. José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro, Brasília, 19 abril 2021, 322 p. Coletânea de textos de e sobre o grande intelectual diplomata, com exceção do prefácio, agregado posteriormente. Em revisão para tornar o volume menos pesado. Versão abreviada, com links remetendo a pdfs em Academia.edu, 187 p. Postado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/46954903/Jose_Guilherme_Merquior_um_Intelectual_Brasileiro_2021_); divulgado no blog Diplomatizzando (20/04/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/04/jose-guilherme-merquior-uma-homenagem.html).

“Porto Alegre não deve copiar o mau exemplo de New Orleans” - Marina Amaral (Agência Pública)

 https://apublica.org/2024/05/porto-alegre-nao-deve-copiar-o-mau-exemplo-de-new-orleans/

*Porto Alegre não deve copiar o mau exemplo de New Orleans*

Marina Amaral

Agência Pública, 18/05/2024


Leio aqui e ali que a New Orleans pós-Katrina “traz lições” para Porto Alegre. No mesmo tom, noticia-se que o prefeito Sebastião Melo (MDB) contratou uma consultoria norte-americana “que atuou no Katrina” para fazer o plano de reconstrução da capital gaúcha. Ele ainda não sabe nem o quanto isso vai custar: a consultoria Alvarez & Marsal (A&M) ofereceu dois meses de trabalho gratuito antes de apresentar a conta para a prefeitura. No Brasil, a A&M é conhecida por empregar o ex-juiz Sergio Moro, depois de lucrar R$ 65 milhões como administradora judicial de empresas alvo da Lava Jato. 

“No momento, a equipe concentra seus esforços no diagnóstico e no plano emergencial de ações e, tão logo tenha a estrutura, apresentará cronograma para implementação", disse a A&M em nota publicada na Folha de S.Paulo. Quando indagado por que, afinal, havia decidido contratar a empresa, o prefeito simplesmente respondeu: “Eu decidi contratar uma consultoria, umas duzentas me ofereceram, eu decidi contratar essa, se ela for bem, bom, eu decidi, porque eu posso decidir”. 

Para além da aparente falta de critérios na decisão tomada, sem ouvir os especialistas brasileiros, como revelou o site Matinal, Melo parece desconhecer a desastrosa atuação da A&M em New Orleans que deixou como legado a demissão de mais de 7 mil professores de escolas públicas, a privatização da educação e saúde, o acirramento da violência policial e miliciana (o que ameaça acontecer por aqui) e, por fim, o branqueamento da população de New Orleans. 

A pretexto de retirar os desalojados, que foram impedidos de voltar, foi feita uma limpeza étnica na cidade turística, e a população negra, que correspondia a 75% da população total, caiu para menos da metade cinco anos depois da inundação que se seguiu ao furacão Katrina e deixou mais de 1.300 mortos no desastre.  

Até hoje a população original de New Orleans não se recuperou – há cerca de 100 mil habitantes a menos dos quase 500 mil que havia em 2005. Já a população negra, somando os que conseguiram por fim voltar, corresponde a 60% do total, boa parte dela concentrada na periferia depois de perder suas casas em bairros gentrificados na reconstrução. Muitos ainda lutam para pagar dívidas com moradia. 

Para saber o que aconteceu em New Orleans, e aprender com suas falhas – estas, sim, lições para nós, como notou a BBC –, o prefeito pode aproveitar que a energia foi restabelecida no Guarujá, o bairro onde mora, e assistir a Tremé, ótima série de David Simon (o mesmo criador de The Wire) que mostra a resiliência da cultura negra e os absurdos e injustiças cometidas na reconstrução de New Orleans com forte viés de racismo, principalmente por parte do governo federal de George W. Bush. 

Tremé é o nome de um bairro negro em New Orleans, berço do jazz e de tradições afro-americanas e creole da Louisiana, que foi um dos mais atingidos pela inundação. A série começa três meses depois do Katrina e acompanha a reconstrução marcada pelo lobby das empreiteiras e a corrupção das autoridades, ligados à desigualdade de tratamento a atingidos negros e brancos.

“ Como acontece em Porto Alegre: embora quase a cidade toda tenha sido atingida pelas águas, é a população de baixa renda que mais sofre com as consequências, sendo a grande maioria nos abrigos e também entre os que não terão onde morar, como reconheceu o próprio prefeito na mesma entrevista à Folha. 

Um levantamento feito pelo Observatório das Metrópoles mostra que os bairros pobres foram os mais atingidos na capital e na região metropolitana. “Nem todos os bairros mais pobres foram atingidos, mas todos os mais atingidos são pobres”, explicou o pesquisador André Augustin ao site Sul 21.

Há outras semelhanças mórbidas entre as duas cidades diante do desastre – “que não foi natural, mas provocado por gigantescas falhas humanas”, como gosta de repetir um personagem de Tremé, o professor de inglês Craig Bernette, que usa o YouTube para fazer denúncias contra as autoridades. É Bernette quem enuncia a verdade calada até então: o que provocou a tragédia em New Orleans não foi o furacão Katrina, mas a enchente que se seguiu por causa do rompimento dos diques por erros de engenharia e manutenção.

As falhas no sistema de prevenção de enchentes em Porto Alegre, de responsabilidade da prefeitura, e criticadas pelo presidente Lula, certamente também desempenharam um papel relevante na tragédia brasileira.

“ Lá como cá, também houve demora para acordar para a emergência climática com políticas públicas eficazes e o afrouxamento na legislação ambiental em plano estadual e federal. Não precisamos copiar mais fracassos. 

Aliás, vale lembrar ao prefeito Sebastião Melo que seu colega em New Orleans, Ray Nagin, foi condenado em 2014 a dez anos de prisão por corrupção, propina e lavagem de dinheiro na gestão da reconstrução. A sentença expirou em março deste ano e ele agora luta para reaver o direito de votar e, pasmem, de portar armas. 

Definitivamente, não precisamos desses exemplos. 

Marina Amaral

Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org

https://apublica.org/2024/05/porto-alegre-nao-deve-copiar-o-mau-exemplo-de-new-orleans/

A Rússia como nação cleptocrata: Putin sequestra ativos estrangeiros

 Já se sabia que Putin era um cleptocrata. Ele agora vai se apropriar de todos os ativos estrangeiros que estiverem ao seu alcance. As pendências vão se arrastar durante décadas, como os investidores estrangeiros entre 1917 e os anos 1990.

Lênin ordenou a nacionalização de todos os ativos estrangeiros em 1918; detentores de bônus da divida russa só foram receber alguma coisa, quem ainda detinha, nos anos 1990.

Putin está fazendo mesmo agora, por outras vias, inclusive preventivamente, pois que as reservas russas em divisas estão congeladas no exterior e suas receitas vão ser usadas para a reconstrução da Ucrânia.

A Rússia foi um pária internacional no imediato seguimento do putsch bolchevique, e vai virar um Estado pária novamente sob o neoczar Putin.

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From: jayinkyiv

Putin now kicks his looting into high gear, seizing cash and assets wherever he can find them.

Yesterday, the Russian government demanded IKEA pay $140,000,000 for some fabricated tax penalty and today they seize €463,000,000 from Unicredit.

It's all getting started.



A Primeira Vítima: as noticias falsas na tragédia do RS - Meio, edição especial

 A Primeira Vítima

Meio, edição especial

18 de maio de 2024

O tema desta edição é desinformação. Em meio à catástrofe do Rio Grande do Sul, grupos da extrema direita se mobilizaram para criar uma nova onda de campanhas de fake news ligadas à tragédia gaúcha. Ações como essas não surgem ao acaso, são coordenadas. Quem quer ganhar vantagem política ao custo de vidas? Quais podem ser as motivações dos grupos que querem criar notícias falsas que impeçam o socorro a vítimas e coloquem em xeque as iniciativas solidárias? E como diferenciá-las de distorções ou de meras críticas legítimas a autoridades e figuras públicas? Essas são as perguntas que norteiam a reportagem. Decidimos distribui-la a todos os assinantes, premium e gratuitos, por entender que a desinformação é um problema que impacta a sociedade como um todo, sobretudo em ano eleitoral. Portanto, debater esse tema com seriedade, trazendo informações confiáveis, é fundamental para preservar o debate democrático, um valor que estrutura nosso pensamento aqui na redação. Como jornalistas com anos experiência, sabemos o quanto custa produzir informação de qualidade, único antídoto para as fake news. E não só em dinheiro, mas em trabalho, nas horas e horas gastas com apuração e checagem de informações. Esta reportagem de hoje que você que não é assinante premium pode experimentar é uma amostra da produção exclusiva que fazemos todos os sábados. Quer ajudar no combate à desinformação? Assine o Meio, e contribua para a produção de um jornalismo a serviço da democracia. Os editores.

Edição de Sábado: A primeira vítima

Por Guilherme Werneck e Luciana Lima

No Palácio do Planalto, o alerta vermelho de que era preciso uma operação robusta da comunicação para combater notícias falsas sobre as cheias no Rio Grande do Sul acendeu na segunda-feira, 6 de maio. Nas redes, as atenções dos usuários estavam divididas entre dois impactos: conservadores estavam indignados com as cenas sensuais do show da cantora Madonna na Praia de Copacabana, que havia ocorrido na noite de domingo. Também todos assistiam, com perplexidade, aos vídeos divulgados da cheia do Guaíba, inundando Porto Alegre e a região metropolitana da capital gaúcha com as águas que já haviam causado estragos na região serrana do Rio Grande do Sul.

A notícia que preocupou o governo unia esses dois mundos. E inundava o Facebook e o Instagram. A narrativa era de que o governo federal, por meio da Lei Rouanet, havia patrocinado o show da Madonna e, por isso, deixado de enviar recursos para os gaúchos. Imagens mostravam cidades inteiras submersas, a estátua da liberdade da loja da Havan coberta pela metade, pontes e estradas se rompendo e gerando comoção no país. Não se imaginava no governo, no entanto, que isso seria o ambiente ideal para uma nova onda de produção de fake news “em escala industrial”, como classificou um servidor da comunicação da Presidência da República.

Quando a praia carioca recebeu a rainha do pop, a tragédia gaúcha não tinha uma semana. Lula havia visitado o Rio Grande do Sul no dia 2 de maio, na quinta que antecedeu o show. O presidente também havia dado início a articulações com os três Poderes da República, para viabilizar recursos, sem medida, fora do alcance da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao se deparar com a falsa notícia do financiamento da festa de Copacabana com recursos públicos, Paulo Pimenta, ainda no comando da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, estava no estado, na companhia do ministro da Integração Regional, Waldez Góes. Pimenta ordenou imediatamente um esforço máximo de sua equipe em Brasília para desmentir a enxurrada de notícias falsas. O ministro também decidiu gravar um vídeo para ser divulgado nas redes do Planalto. “Desde aquele momento, estamos 24 horas no trabalho de identificar e desmentir notícias falsas que envolvam o governo e o Rio Grande do Sul”, disse ao Meio, um interlocutor do Planalto.

Acontece que, no meio dessa imensidão de mentiras puras e simples, houve também muita confusão, insegurança e crítica — cada modalidade com sua dose de legitimidade. Num cenário absolutamente caótico como o que se instalou no Sul, com áreas inacessíveis e cada cidadão com um celular na mão, as (poucas) informações que circulam não vêm depuradas. Resultam da percepção momentânea, do temor, do desamparo. Quem está atuando de má-fé se aproveita desses momentos para avançar sua agenda — no caso da extrema direita, normalmente de descrédito das instituições e de fomentação de mais caos. Quem está na defensiva, por sua vez, pode acabar desqualificando preocupações e leituras autênticas, taxando tudo de falso ou de parte do mesmo movimento.

É justamente nessa sutileza entre o que é inverdade bruta e o que é distorção ou mera desaprovação que os mal intencionados prosperam. Não raro, eles pegam um fato verdadeiro, em que um cidadão pode ter feito uma reclamação perfeitamente plausível, e aumentam ou desvirtuam um pedaço dele, divulgam com tom de indignação e pronto. Uma meia verdade se torna uma fake news inteira. O governo federal foi um dos alvos preferenciais das notícias falsas. Não foi o único. Militares entraram na dança. Influenciadores. Cientistas. Jornalistas. Pessoas vulneráveis, com desejo de encontrar culpados por suas mazelas e com razões mais que aceitáveis para estarem indignadas mesmo, embarcam na onda.

A operação de guerra do Planalto

Ao começar a busca por notícias falsas, por perfis hostis ao governo, o Planalto se deparou com um “ecossistema de destruição”, termo usado por membros da equipe. A resposta precisava ser na mesma dimensão. Antes dessa guinada, um conteúdo da presidência na página da Secom “Brasil contra Fake” alcançava em média 1 milhão de visualizações, segundo exemplo citado por um palaciano. Diante da tragédia, o vídeo com o desmentido de Pimenta teve dois milhões de visualizações só no X. Quando o influenciador Felipe Neto retuitou, o ministro teve mais de um milhão de visualizações e dessa forma foi se multiplicando. “Era um assunto que realmente preocupava as pessoas”, concluiu, em reservado. Além disso, o governo passou a postar na página “Brasil contra Fake” todo conteúdo sobre o Rio Grande do Sul, o que deu subsídios para vários outros influenciadores produzirem conteúdo próprio informando sobre as ações para minimizar os efeitos da tragédia. Nesse trabalho, o governo classificou pelo menos quatro “macro-narrativas” que precisavam de respostas urgentes, tanto na comunicação quanto em ações políticas.

Uma delas se apoia na ideia de incapacidade e ausência do Estado para socorrer as pessoas. Foi nesse contexto que surgiram “notícias” de que o governo estava barrando caminhões da divisa com o Rio Grande do Sul para evitar que donativos chegassem à população. Seis caminhões foram, de fato, multados por excesso de peso. As multas foram anuladas e eles não foram retidos. Houve uma versão em que se creditava o bloqueio dos caminhões ao próprio governo do Rio Grande do Sul, o que também é falso. Uma meia verdade que passou a revolta depois de embrulhada em distorções. Houve ainda “notícias” de que o governo estava colocando sua logomarca em cestas doadas pela população civil para os desabrigados — uma ideia que, se não desmentida, acaba desmotivando pessoas que gostariam de doar.

Outro eixo identificado foi mais surpreendente. Diz respeito aos militares. Aqui, o governo enxergou um novo rancor da extrema direita, após o fracasso do golpe de 8 de janeiro. Essa ideia apareceu sob o lema “civil salva civil”. Na tese governista, pela primeira vez, a extrema direita estaria contra o Exército, que não impediu que Lula seguisse no mandato após os ataques aos prédios públicos. Alertada sobre essa narrativa, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse que chegou a observar filmagens de militares e agentes da Defesa Civil sendo gravados em um momento de descanso, após uma jornada extenuante de salvamentos. “Lidar com esse tipo de coisa é muito difícil. Se alguém roubou, entrou em uma casa, fez um saque, a gente chama a polícia e é um ladrão. Agora, o que você faz com o roubo da verdade? O que você faz com o roubo da decência? O que você faz com o roubo da sensibilidade?”, questionou a ministra em entrevista ao Meio.

O próprio comandante do Exército, general Tomás Paiva, tomou para si a responsabilidade de rebater a diferenciação entre civis e militares no socorro. “Estamos colocando todo mundo. Aqui não tem que ter diferença entre Exército, Marinha e Aeronáutica, Defesa Civil. Todo mundo está trabalhando nesse momento”, disse. E fez um apelo em entrevista à Globonews. “As fake news atrapalham as pessoas que estão ajudando, principalmente nossos militares, que são a grande maioria. Dos 20 mil agentes públicos que estão trabalhando aqui, aproximadamente 10 mil são do Exército. Essas pessoas têm família também, às vezes, estão deslocadas, só que não podem ir para casa. Estão dobrando três dias, quatro dias. Às vezes não têm tempo para tomar um banho”, disse o general.

Algumas narrativas parecem delírios. Principalmente as que se referem ao negacionismo climático e à ideia de que o clima é manipulado pelos seres humanos para subjugar povos. Na enxurrada de fake news monitoradas pelo governo, a teoria “HAARP” foi identificada em várias postagens. Ela atribui a antenas de um projeto científico americano chamado HAARPa responsabilidade pela tragédia, ideia totalmente rechaçada pela ciência. Num discurso menos delirante e mais palatável a quem não quer ter de transformar o próprio modo de vida, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) usou a tribuna para destilar negacionismo misturado a meias verdades. "Será que o que está acontecendo agora é porque emitimos mais carbono na atmosfera do que emitia-se em 1941? Não. A realidade é que cidades foram construídas, [gerando] mais asfalto, mais cimento, prédios, menos áreas de absorção de água nessa área que já é propícia a alagamentos. É o crescimento urbano desordenado.”

Outros parlamentares extremistas fizeram o mesmo, com todo tipo de assunto. Dos caminhões retidos ao fechamento de clínicas. O ministro Paulo Pimenta pediu, então, que a Polícia Federal abrisse um inquéritopara apurar a máquina de notícias falsas que passou a funcionar em meio à tragédia. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, tomou a atitude de acionar a Polícia Federal. Isso provocou os bolsonaristas, que tentaram usar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, comandada pela deputada Caroline De Toni (PL-SC), para tentar emparedar o governo.

A ideia era convocar Lewandowski para prestar esclarecimentos à CCJ, sob a acusação de uso da Polícia Federal para violar a imunidade parlamentar e a liberdade de expressão nas redes sociais. A reação, porém, foi amenizada após uma reunião marcada pela equipe que cuida da relação parlamentar do ministro na pasta da Justiça e Segurança Pública, que conseguiu articular uma conversa com Lewandowski. O deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP) forçava levar a convocação para o ministro, que o recebeu em seu gabinete, junto com a deputada De Toni e Eduardo Bolsonaro (PL-SP), e passou a explicar suas funções à frente da pasta.

Lewandowski reiterou que o ministério não tem poder para mandar abrir inquérito, como eles pensavam que poderia ocorrer. O que ele havia feito foi somente encaminhar o pedido da Secom do Planalto para a Polícia Federal, tudo sem análise de mérito. Também disse que confiava na capacidade técnica da polícia para separar o que é manifestação política do que é crime e que sobre esse trabalho ele, como ministro, não tinha qualquer ingerência. Enquanto o ministro ia falando, Eduardo Bolsonaro chegou a repetir que Lewandowski nunca foi seu alvo. O filho de Jair Bolsonaro, no entanto, não disfarçou seu foco no então chefe da Secom, que assumiu agora como ministro extraordinário para gerir a crise gaúcha. “Meu alvo nunca foi o senhor, meu foco é o Paulo Pimenta”, disse o deputado durante a reunião, de acordo com interlocutores próximos do deputado. O ministro, no entanto, não esboçou reação e reforçou sua disposição em atender a um convite futuro para esclarecer sua atuação na CCJ da Câmara.

Por que agora?

O surgimento dessa nova onda de fake news não pode ser considerado fruto do acaso. O pesquisador da David Nemer, professor de Estudos da Mídia na Universidade da Virginia e especialista em desinformação nas redes sociais, é enfático ao afirmar que é impossível pensar neste nível de desinformação sem pensar no planejamento e numa agenda. “Há uma econômica e uma política. Quem está por trás das fakes news quer ter um ganho, capitalizar em cima. No Rio Grande do Sul, a gente pode definir diversas agendas que podem explicar o porquê de as pessoas estarem tão empenhadas em desinformar”, disse ao Meio

Entre as principais agendas que engajam, segundo Nemer, estão a anticlimática, que desacredita o aquecimento global, e a agenda política, já de olho nas eleições municipais que ocorrem no fim deste ano. “Lá para outubro, muita coisa que está sendo plantada durante essa tragédia vai ser reutilizada”, afirmou. Ele defende que fenômenos como esse que estamos vendo em relação às notícias do Sul não podem acontecer apenas espontaneamente. “Quando a gente tem ondas intensas de desinformação, é porque o dinheiro para as campanhas voltou”, defendeu.

Por outro lado, o filósofo Pablo Ortellado, professor de Gestão em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo e colunista do Globo, pensa que a questão não está sendo tratada de forma adequada. “É muito difícil você separar uma campanha orquestrada de desinformação de as pessoas emitindo opinião, justamente por que essa ação política está acontecendo sobre uma indignação que é espontânea e legítima”, disse ao Meio, considerando que as ações do governo federal e dos governos locais antes e durante a tragédia no Sul podem ser passíveis de crítica.

O que Ortellado condena é a resposta do governo federal de enfrentar o problema com a criminalização, transformando suspeitas em inquéritos da Polícia Federal. O que ele defende é que a abordagem tanto do governo quanto da imprensa ao lidar com as informações falsas seja feita com mais respeito às pessoas. Sem arrogância. “Até porque tem as coisas que são claramente falsas, mas tem muitos casos intermediários, que são baseados na realidade e que sustentam essa indignação legítima. Você não pode chegar para a pessoa e falar que o que ela está dizendo é besteira”, defendeu, embora acredite que casos graves, em que esse tipo de notícia atrapalha buscas, o trabalho dos agentes públicos e até as doações, devam sim ser investigados pela polícia.

Os dois pesquisadores concordam que o atual momento é propício para a produção de notícias falsas. Nemer sublinha que tragédias como a do Rio Grande do Sul também ganham uma dimensão maior por conta de um fenômeno midiático chamado de névoa da guerra, que ocorre em territórios em que o acesso da imprensa é dificultado, como acontece hoje na faixa de Gaza, por exemplo. “Nesses territórios, embora o acesso esteja muito difícil, você tem algumas pessoas que conseguem reportar. Elas viram porta-vozes, o que lhes dá um imenso poder de informar o que está acontecendo ali no chão, mas, se essas pessoas tiverem agendas próprias, isso abre espaço para a potencialidade da desinformação”, explicou. Já Ortellado lembra que a difusão de boatos em momentos de pânico acontece desde o século 19, mas que o alcance muda com a internet.

Para Ortellado, a desinformação não pode ser vista apenas como uma tática da extrema direita. Ele usa um conceito do Berkman Klein Center, de Harvard, que vê o crescimento de um ecossistema de mídia hiperpartidário, que compreende páginas da internet, YouTube, sites de notícia e redes sociais. “É um ecossistema digital de esquerda e de direita que está veiculando informação e alimentando a militância e a cidadania engajada. O que eles fazem é abastecer as identidades políticas. De outro lado, você tem a imprensa, que teria o papel de fazer a apuração e poder fazer um contraponto aos excessos”, explicou, dizendo que no Brasil temos um sistema tripartite. “Temos o circuito hiperpartidário de esquerda, o de direita, e um outro da grande imprensa, que tem algum tipo de sobreposição com os dois, mas é praticamente um terceiro circuito. Ele até poderia fazer o contraponto, mas não consegue dialogar com os dois campos da polarização para exercer esse papel”, concluiu.

O papel da imprensa é lembrado também por Caio Cavechini, diretor da série Extremistas.br, disponível na Globoplay. "O jornalismo profissional faz um excelente trabalho em campo e nas redações, oferecendo contextualização, dando a dimensão dos estragos e, principalmente, trazendo com sensibilidade histórias dos afetados e dos que os ajudam heroicamente. Esse trabalho dos jornalistas certamente está impactando muitos leitores e espectadores e mobilizando ajuda fora do Rio Grande do Sul. Mas, como vemos, ainda não rompe com o ‘túnel de realidade’ no qual alguns dos brasileiros trafegam. Experiências anteriores diziam que grandes tragédias eram capazes de reunificar povos divididos, que na dor prevaleceria um sentimento de unidade e solidariedade. Infelizmente, isso ainda não aconteceu por aqui."

Tanto o Cavechini quanto David Nemer vêem uma diferenciação entre as redes de direita e de esquerda. Para eles, as redes de direita têm maior poder de mobilização. Parte disso graças aos algoritmos de redes sociais, que dão mais visibilidade a conteúdos que estimulam a radicalização. Nemer também lembra da primazia do WhatsApp no Brasil, e de como ele é ideal para a divulgação de notícias falsas, sem nenhum tipo de mecanismo de controle. O que Cavechini chama de radicalização que nasce do casamento do interesse político dos extremistas com a ganância das redes sociais . “A capacidade de mobilização, de aproveitar esse mecanismo, é o que mais me impressionou durante as gravações da série e é o que ainda me impressiona, com exemplos não apenas no Brasil”, disse. 

O Brasil experimentou um alto nível de desinformação nas últimas duas semanas. Em volume e em sofisticação nos métodos. Experimentou também uma de suas maiores tragédias climáticas, que deixaram as pessoas perdidas, frustradas, desesperançadas. O reencontro com a informação verdadeira, em que se distinga mais claramente o espaço de posicionamentos e reprimendas a autoridades e outras figuras públicas, é tão urgente quanto a agenda ambiental.


A economia de Paulo Guedes mostrada em filme em NY - Alexa Salomão (FSP)

 Faríamos tudo de novo, com mais intensidade', diz Paulo Guedes

Em lançamento de filme sobre sua gestão, ex-ministro diz que Brasil precisa superar o maniqueísmo e a parcialidade nas discussões politicas e econômicas

Alexa Salomão

FSP, 15.mai.2024 

Digitalização de processos, marcos legais do saneamento e de ferrovias, a Lei de Liberdade Econômica, privatização de estatais, reforma da Previdência. O filme "Caminho da Prosperidade", lançado em Nova York nesta terça-feira (14), procura sintetizar o trabalho do ex-ministro da Economia Paulo Guedes e de sua equipe na voz deles mesmos.

O filme traz 30 entrevistados. A maioria passou pelo governo. A exceção é o empresário Guilherme Afif Domingos, que abre a sequência de depoimentos, e o economista Carlos Langoni, que faleceu em 2021 e a quem o filme é dedicado.

A seção no Symphony Space, na rua 95, teve cerca de 200 convidados. Entre os presentes estavam a deputada federal Bia Kicis (PL-DF) e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que viu o filme sentado ao lado de Guedes.

À Folha, o governador contou que mantém a convivência com Guedes, que tem apresentado investidores para o estado de São Paulo e contribuindo na construção da agenda econômica, especialmente na área de energia renovável.

Segundo o diretor —o gaúcho Paulo Moura, da Ema Conteúdo—, o filme começou a ser gravado ainda no primeiro ano da gestão bolsonarista. Moura tem uma trajetória marcada por visões mais conservadoras, e a ideia inicial era fazer uma síntese das propostas dos chamados Chicago Boys, referência ao grupo de alunos da Universidade de Chicago (EUA), instituição em que Guedes estudou e que defende uma política econômica neoliberal.

A primeira gravação, conta Moura, ocorreu em agosto de 2019. A pandemia e a polarização política que se seguiu adiaram as filmagens e o projeto foi remodelado. "Caminho da Prosperidade" é nome do plano de governo de Guedes.

O filme foi financiado pelo empresário Winston Ling, fundador do Instituto Ling, também um nome mais à direita no espectro político e histórico defensor do neoliberalismo econômico. Ficou conhecido como o homem que apresentou Guedes ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2018. Ling também foi ao evento. À Folha, o empresário destacou que seu desejo é criar material para inspirar outras administrações.

"Minha motivação é deixar esse legado, essa 'fórmula do bolo' para as futuras gerações, não só do Brasil, como da América Latina e de outros países do mundo. O filme está legendado em espanhol e em inglês", afirmou.

"Com o mesmo propósito, o Adolfo Sachsida, que não esteve presente ontem por motivos emergenciais pessoais, está terminando de escrever um livro sobre o mesmo assunto, e o Waldery Rodrigues Júnior está escrevendo um livro-texto bastante técnico, em dois ou três volumes, destinado aos cursos de economia, aos professores e alunos de economia e aos técnicos das equipes econômicas do futuro, dos municípios, dos estados e do Brasil."

Após a exibição do filme, Guedes deu uma rápida entrevista, cercado de ex-integrantes de sua equipe que participaram do filme. Reafirmou suas posições e disse que aprofundaria a agenda se tivesse nova oportunidade.

"Faríamos tudo de novo, com mais intensidade. É o seguinte, começou o governo? Agora vai Petrobras e Banco do Brasil. Vamos ter mais concessões. Estava certo o Banco Central independente. Voltaríamos com a capitalização para a Previdência, porque vai dar problema em cinco ou dez anos."

Guedes defendeu a contribuição da economia embasada em ciência como princípio da gestão pública, afirmando que "existe o certo e o errado em economia. Existe ciência econômica". Tomou como exemplo a discussão sobre o uso da capitalização na Previdência, proposta dele que não emplacou, mas que ele ainda defende.

"A gente tem que estudar mais. Acreditar na ciência. Não gostamos de negacionistas [na economia]. Ah, mas dizem que o modelo de capitalização deu errado no Chile. Não. Pelo contrário. A renda per capita subiu tanto no Chile que, quando o cara se aposenta, ele não fica satisfeito. O que ele capitalizou é um pouco mais baixo. Então, você paga aquele suplemento."

Em vários momentos, o ex-ministro avisou que não queria polarizar. "Acabamos de sair, não quero entrar em confronto."

Não quis abordar temas políticos mais específicos, como avaliar por que o ex-presidente Bolsonaro preferiu fazer uma campanha focada nos temas da pauta de costumes em vez de destacar as iniciativas liberais na economia, esmiuçadas no filme.

"De forma alguma faria qualquer comentário desse tipo. Cada um fez o melhor que pode. Ninguém usou mal o legado de ninguém", disse Guedes. "É claro que houve fogo amigo, mas não de quem você falou [Bolsonaro]."

Também não quis discutir se o eleitor brasileiro rejeitou a sua agenda e mostrou na urnas preferir o modelo baseado em mais Estado e mais gasto, defendido na campanha pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —e que representa o inverso do apresentado por sua gestão.

"Tenho tantas coisas a dizer sobre por que isso acontece, mas não me interessa dizer. Não quero ser usado para discórdia. O país não precisa disso. O país já tem demais isso."

"Eu acho que tem que acabar com esse maniqueísmo de se foi o partido tal que fez é muito bom e tudo que o outro fez foi errado. Nós sentimos o peso da parcialidade. É ruim para o país."

No entanto, lamentou os picos de tensão política. "Espero que a gente consiga [agora] fazer o contrário do que foi feito conosco. Parcialidade. Jogo político acima dos interesses do país."

Guedes também preferiu a ponderação nas questões que tratavam de paralelos entre sua gestão e a do ministro da Fazenda Fernando Haddad.

No caso da gestão de crises, relembrou o que fez na pandemia, mas afirmou ser difícil dizer o que seria melhor agora, no desastre provocado por chuvas torrenciais no Rio Grande do Sul. Na pandemia, o Brasil precisou atacar uma problema sanitário, o que incluía medidas de saúde em nível nacional. Agora, é uma crise climática, com efeitos profundos sobre uma região.

"Eu não me atreveria a ir além do que nós fomos. Talvez haja desafios novos. O impacto sobre a infraestrutura é grande. Do ponto de vista de impacto sobre o dia a dia da população foi também devastador. Não ousaria ir além. Só com a capa de superministro você ousa fazer tantos movimentos. Agora, cidadão comum, já não ouso enxergar tanto."

Sobre sua proposta na crise com a Covid-19, disse que o ponto central foi aplicar a descentralização, com o repasse de recursos livres para estados e municípios.

"Deixamos um protocolo de como atacar uma crise. Se pessoas forem atingidas, você transfere os recursos, estritamente de renda, direto para as pessoas. Se empresas são atingidas, você pode transferir o recurso direto para as empresas", afirmou.

"Acreditamos no funcionamento da democracia. É o governador que sabe como o estado pode ajudar os municípios, e é o prefeito que sabe como o município pode usar aquele recurso. Você de Brasília não sabe exatamente o que a cidade de Canoas ou de Pelotas está precisando."

Entre os integrantes da equipe que participaram do filme e foram à apresentação estavam Marcelo Guaranys, que foi secretário-executivo, Marcelo Siqueira, ex-chefe da assessoria especial do ministro, Diogo Mac Cord, ex-secretário de Desestatização, Desinvestimento e Mercados.

Também foram à apresentação Gustavo Montezano, o ex-presidente do BNDES, e Fábio Abrahão, que foi diretor do banco na área de concessões e desestatização. Hoje são sócios, junto com Guedes, na gestão de um fundo de private equity que se dedica a fomentar projeto nas áreas de energia verde e segurança alimentar.

A repórter viajou a convite da Ema Conteúdo

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