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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 18 de agosto de 2024

Notas de leitura: Emmanuel Todd: La Défaite de l’Occident (Paris: Gallimard, 2024) - Paulo Roberto de Almeida


Notas de leitura: 

Emmanuel Todd: 

La Défaite de l’Occident

Paris: Gallimard, 2024

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 18/06/2024

 

Já manifestei aqui mesmo meus comentários iniciais ao livro provocador de Todd. 

Ver aqui: La Défaite de l’Occident, d’Emmanuel Todd - notas de Paulo Roberto de Almeida

E esta outra postagem: La Défaite de l'Occident, d'Emmanuel Todd: um livro controverso - Marc Polonsky e Paulo Roberto de Almeida


Depois tive de interromper a leitura para atender a demandas mais urgentes, durante dois ou três meses. Retomo agora e vou registrar o que me parecem ingenuidades de um pesquisador sério, mas que obviamente não pode saber de tudo.

Ele acha que a Rússia é uma democracia autoritária; é seu direito. A Rússia  está apenas defendendo o seu espaço contra o Ocidente dominador e mandão. Seja! Ela quer permanecer uma nação soberana, exterior ao sistema ocidental. Será?

Mas, vamos ver o que ele diz de um país, um bloco, que conhecemos bem e ele conhece pouco. O Brasil, o Brics e suas três democracias mais pobres:

“Trois des Brics initiaux sont d’incontestables démocraties: le Brésil, l’Afrique du Sud et l’Inde: elles ont leurs imperfections, mais, si l’on considère l’état actuel de déliquescense des démocraties occidentales, devenues des oligarchies libérsmales, ces imperfections ne sont que des péchés véniels.”

Bem, então segundo Todd, os EUA e os europeus são oligarquias decadentes, mas os três do Brics são autênticas democracias, e nada nada oligárquicas. Eu chamaria isso simplesmente de cegueira.

Para ele, a guerra de agressão de Putin contra a Ucrânia é uma guerra econômica da Rússia contra o Ocidente, pois a Rússia não quer ser colonizada pelos ocidentais. Ou melhor, a guerra é o resultado da tentativa de dominação econômica ocidental contra a Rússia, inclusive pelo uso de sanções econômicas, como descritas no livro de Nicholas Mulder, The Economic Weapon (2022), que eu já usei em um dos meus textos.

Ele acha que o Resto do Mundo, ou seja, nós mesmos, sustentamos a Rússia contra o bloqueio ocidental, porque não gostamos da Otan. Por isso continuamos a comprar petróleo e gás da Rússia e a fornecer-lhe os materiais dos quais ela necessita para a sua economia de guerra. 

Ele acha que os bloqueios do Ocidente contra o Iraque e a Venezuela destruiram esses paises, que poderiam estar melhores sem as sanções. Para Todd, o Estado americano predador assusta as elites do Resto do mundo.

Todd acha que o Ocidente liberal é uma pequena ilha e que o Resto do mundo é antropologicamente diferente, portanto, não ocidental e não liberal.

Mas no caso Brasil isso não opera totalmente. Somos ocidentais, mas, como ele diz: “L’hostilité du Brésil [aos EUA] est économique et politique.”

Os outros povos se opõem ao Ocidente por uma questão de estruturas familiares patrilineares. O Ocidente acha que o mundo todo deveria aderir aos direitos LGBT, do contrário eles, os países do Resto, nunca serão modernos. A Rússia concorda com Putin na sua hostilidade aos gays. Será verdade?

O problema americano e ocidental seria que eles se tornaram niilistas e oligárquicos, ou seja, sem religião, sem valores morais, e dominados por elites autocentradas e predatórias. Se for isso, o Brasil também se tornou niilista e oligárquico, o que ele já era por sinal. Os EUA particularmente já estavam em decadência desde antes da implosão soviética, entregues ao “Estado Zero da religião”, niilista em suma.

No caso da Ucrânia, Todd acredita que são os EUA que estão em guerra contra a Ucrânia e não o contrário.

Essa é a principal acusação de Todd contra os EUA, e sua justificativa da derrota do Ocidente, a tese principal do seu livro, se deu por motivos antropológicos, culturais e espirituais. 

Todd parece apostar em uma vitória russa na Ucrânia, e creio que essa possibilidade o deixaria satisfeito, pois acabaria comprovando a justeza de sua “tese” - estabelecida a priori - que é a da DERROTA DO OCIDENTE. O Ocidente vai perder porque ele é decadente, não tem valores, é niilista e quer continuar a explorar o Resto do mundo. 

Ele acha que a derrota americana na Ucrânia vai terminar com uma reaproximação da Alemanha à Rússia, pois os dois países seriam complementares. É uma tese ousada, e apoiada numa certa semelhança antropológica entre os dois gigantes da Europa.

Ao fim e ao cabo, a Rússia é ou seria estável e o Ocidente se encontra num despenhadeiro irreversível.

Não tenho certeza de que a marcha da História confirmará a tese de Todd, um provocador por excelência.

Termino aqui, minhas observações sobre o seu livro, mas vou voltar em algum trabalho sobre as mudanças geopolíticas em curso no mundo.

O que posso afirmar com certa confiança é que o Brasil continuará marginal a todas essas mudanças, o que tampouco é negativo, pois nos livra de outros problemas além dos que já temos internamente. Entretanto, cabe registrar que Lula 3 fez uma opção deliberada de unir o seu governo - e não os interesses nacionais - ao campo autoritário da Rússia e da China, o que considero um erro estratégico maior, de todos os seus equívocos já cometidos na política externa. Voltarei a este assunto também.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 18/06/2024

 

Outra postagem sobre o mesmo autor: 

Emmanuel Todd: um demografo intelectual pouco convencional - Herodote 

divulgadas no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/06/emmanuel-todd-la-defaite-de-loccident.html),

 

4621. “La Défaite de l’Occident, d’Emmanuel Todd”, Brasília, 31 março 2024, 3 p. Resenha curta do livro do antropólogo francês. Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/03/la-defaite-de-loccident-demmanuel-todd_31.html)

 

domingo, 31 de março de 2024

La Défaite de l'Occident, d'Emmanuel Todd: um livro controverso - Marc Polonsky e Paulo Roberto de Almeida

 

 Um debate muito importante, não só em relação à Ucrânia, mas ao Ocidente, desafiado pela Rússia e pela China, ambas apoiadas por Lula, do Brasil, num entrevero que não deveria dizer respeito ao Brasil.

Remeto primeiro à postagem da resenha de Marco Polonsly, transcrita neste blog, e depois formulo minhas observações preliminares, pois que estou lendo seu livro no Kindle francês. 


Defeat of the West? 

Emmanuel Todd and the Russo-Ukrainian War

 

by  MARC POLONSKY

The Article, Tuesday March 26, 2024

 

Aqui: Defeat of the West? Emmanuel Todd and the Russo-Ukrainian War - Marc Polonsky (The Article)

Minhas duas últimas nota sobre o debate, prometendo voltar.

Paulo Roberto de Almeida

 

Defeat of the West? Emmanuel Todd and the Russo-Ukrainian War - https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/03/defeat-of-west-emmanuel-todd-and-russo.html?spref=tw

 

Para o Enfant Terrible do contrarianismo francês, o Ocidente e a Ucrânia já perderam a guerra contra a Rússia. Estou lendo o livro no original francês, e pretendo escrever a respeito. Considero exageradas algumas afirmações do Todd, como se a Rússia pudesse prevalecer sobre o conjunto da OTAN: só se os países forem muito covardes.

 

La Défaite de l'Occident, d'Emmanuel Todd é um livro inteligente, mas pré-concebido. Feito para contrariar o senso comum, como os livros anteriores sobre o fim da URRS e sobre o fim do império  americano (que ainda não aconteceu). A Rússia é muito mais frágil do que ele imagina.

Paulo Roberto de Almeida

 

Resumé Amazon.fr: 

L'implosion de l'URSS a remis l'histoire en mouvement. Elle avait plongé la Russie dans une crise violente. Elle avait surtout créé un vide planétaire qui a aspiré l'Amérique, pourtant elle-même en crise dès 1980. Un mouvement paradoxal s'est alors déclenché : l'expansion conquérante d'un Occident qui dépérissait en son coeur. La disparition du protestantisme a mené l'Amérique, par étapes, du néo-libéralisme au nihilisme ; et la Grande-Bretagne, de la financiarisation à la perte du sens de l'humour. L'état zéro de la religion a conduit l'Union européenne au suicide mais l'Allemagne devrait ressusciter. Entre 2016 et 2022, le nihilisme occidental a fusionné avec celui de l'Ukraine, né lui de la décomposition de la sphère soviétique. Ensemble, OTAN et Ukraine sont venus buter sur une Russie stabilisée, redevenue une grande puissance, désormais conservatrice, rassurante pour ce Reste du monde qui ne veut pas suivre l'Occident dans son aventure. Les dirigeants russes ont décidé une bataille d'arrêt : ils ont défié l'OTAN et envahi l'Ukraine. Mobilisant les ressources de l'économie critique, de la sociologie religieuse et de l'anthropologie des profondeurs, Emmanuel Todd nous propose un tour du monde réel, de la Russie à l'Ukraine, des anciennes démocraties populaires à l'Allemagne, de la Grande-Bretagne à la Scandinavie et aux États-Unis, sans oublier ce Reste du monde dont le choix a décidé de l'issue de la guerre.

 

Posted by Paulo Roberto de Almeida at 00:41 Nenhum comentário: 

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Labels: Emmanuel Todd: livro controversoLa Défaite de l'OccidentMarc PolonskyPaulo Roberto de Almeida


La Défaite de l’Occident, d’Emmanuel Todd - notas de Paulo Roberto de Almeida

 

 La Défaite de l’Occident, d’Emmanuel Todd

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Resenha curta do livro do antropólogo francês.

 

 

O título é nada menos do que espetacular e espetaculoso: A Derrota do Ocidente, do conhecido antropólogo, cientista político e historiador francês Emmanuel Todd é feito justamente para surpreender, confrontar e amedrontar os ingênuos ocidentais, que acreditam que a sua dominação sobre o mundo seria eterna. Obviamente que não é; como todos os impérios do passado, o ocidental — que na sua forma aglomerada, cristã-europeia, se estabeleceu nos últimos cinco séculos — também será fragmentado, “destruído”, mais exatamente superado por outras conformações civilizatórias, eventualmente imperiais, ou seja, preeminentes e dominantes sobre boa parte do mundo.

Mas Todd se apressa em já declará-lo derrotado, ou seja, vencido por alguma outra força maior. E qual seria essa força, ou quais seriam essas forças? Aparentemente uma, ou as duas grandes autocracias da atualidade, Rússia e China, na ordem de preeminência que se preferir.

O título é, portanto, assustador e prometedor, no sentido em que a decretação da “derrota” parece inevitável e inexorável. Mas já tinha sido assim com dois de seus livros anteriores, que lhe trouxeram fama, e talvez alguma fortuna: La Chute Finale (1976), sobre o fim do império soviético, e Après l’Empire (2002), sobre o declínio econômico dos Estados Unidos.

Nem um, nem outro acabaram ou desapareceram: o império soviético sobreviveu sob uma forma neoczarista, sem as satrapias da Ásia central ou o controle das repúblicas tuteladas e dominadas da Europa central e oriental, mas aparentemente em boas condições no seu novo formato de uma Federação Russa multinacional. O império americano, por sua vez, prossegue “declinando” muito lentamente, e relativamente a outros centros econômicos emergentes, a própria União Europeia a 27, com um PIB comparável, a China com seu capitalismo leninista, e finalmente a Rússia, grande potência militar, mas demograficamente em declínio e sem uma base econômica vigorosa, a não ser seus recursos naturais.

O Ocidente já foi derrotado? Segundo Todd sim, e ele usa como peça central de seu argumento a “vitória” de Putin em sua guerra de agressão contra a Ucrânia e a intimidação decorrente sobre as potências ocidentais, em especial as da Otan.

Seria isso verdade?

Meu argumento é que não, por uma série de razões que não vou expor neste momento, por razões de espaço e de oportunidade – reservando isso a uma resenha detalhada do livro –, mas que vou resumir na seguinte observação: o tal de Ocidente (que não existe como entidade homogênea e unificada, assim como não existe essa entidade mirifica de acadêmicos e demagogos políticos, chamado de Sul Global) não pode ser derrotado de forma integral e direcionada, pois que ele existe e sobrevive de diversas formas e formatos, alguns econômicos, outros políticos e mais geralmente culturais. 

Não se mata uma cultura, como se liquida um império, o que de resto foi provado pela própria sobrevivência do Império do Meio, ainda que o formato imperial tenha sido substituído há mais de um século por uma República, hoje dominada temporariamente por um partido leninista. Tampouco se liquidou a cultura imperial russa, agora na sua forma neoczarista, depois de 70 anos de um império escravocrata bolchevique, seguido por dez anos de confusões políticas e declínio econômico sob uma democracia de fachada, como já tinha sido o caso dos dez meses pré-putsch bolchevique de 1917.

O assim chamado “Ocidente” – muitas aspas, dado seu caráter multiforme – passa por mudanças, inevitáveis, como aquelas que afligem as duas grandes autocracias concorrentes, e aparentemente “vencedoras” na visão de Todd, mas esse “Ocidente” não está nem derrotado, nem será superado por algum outro império irresistivelmente ascendente (como poderiam ser os competidores russo ou chinês).

Os problemas atuais, políticos, econômicos, ou até culturais ou militares, desse "Ocidente" multiforme, serão acomodados e incorporados em novas formas de expressão de sua "fortaleza" cultural de caráter multinacional, multi religioso e multicultural, como é o destino de toda a humanidade no longo prazo.

No curto e no médio prazo, o "Ocidente" encontrará uma forma de salvar a Ucrânia, ainda que diminuída temporariamente territorialmente, e de incorporá-la em suas instituições mais proeminentes: a UE, no plano econômico e institucional, a OCDE, no plano da interdependência de políticas econômicas, ainda que por vezes contraditórias, e a OTAN, como ferramenta temporária de defesa militar, que se mantém há mais de 70 anos e ainda tem alguma utilidade (que o digam os bálticos, e agora a Finlândia e Suécia).

Todd não é um "putinófilo", como o acusam alguns no "Ocidente"; ele é apenas um provocador inteligente e bem articulado. Ele queria assustar os "ocidentais", épater les bourgeois, diriam os poetas e militantes antigamente, e o conseguiu. Seu livro é muito interessante e vale ser lido com o espírito desprevenido, aceitando algumas coisas, recusando certos exageros – como o do título, por exemplo – e sobretudo levando em consideração certos fatores que não dependem da vontade dos políticos, sejam eles estadistas – faltam muitos no Ocidente atualmente – ou os tiranos de autocracias aparentemente bem-sucedidas (no momento).

Vou fazer uma resenha completa assim que puder e terminar o livro. Já deve ter alguma edição brasileira em andamento, ou alguma inglesa já pronta.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4621, 31 março 2024, 3 p.

            Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/03/la-defaite-de-loccident-demmanuel-todd_31.html)

Academia.edu: (link:https://www.academia.edu/121207425/4688_Emmanuel_Todd_La_Defaite_de_lOccident_notas_de_leitura_2024_).

 

Prefácio de Rubens Ricupero ao livro do embaixador Synesio Sampaio Goes Filho sobre Alexandre de Gusmão (Vermelho)

 

 NACIONAL POLÍTICA

Leia o prefácio de Rubens Ricupero que foi censurado pelo Itamaraty 

O embaixador aposentado Rubens Ricupero, crítico da política externa do governo Bolsonaro, considerou “infantilidade” o veto do chanceler Ernesto Araújo a um livro do Itamaraty por questões pessoais. Ricupero fez o prefácio da biografia de Alexandre de Gusmão, escrita pelo embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, por encomenda da Fundação Alexandre de Gusmão, vinculada ao ministério. Em julho, ao entregar os originais, Goes Filho foi avisado de que o livro só seria publicado sem o prefácio.

Vermelho, 03/08/2019 10:03

https://vermelho.org.br/2019/08/03/leia-o-prefacio-de-rubens-ricupero-que-foi-censurado-pelo-itamaraty/

 


Com o título Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil, o livro deveria ser publicado neste segundo semestre. “É um texto dirigido, sobretudo, a interessados em história diplomática. Uma razão a mais para concluir que a atitude de vetar o prefácio é, no fundo, uma infantilidade de efeitos contraproducentes para os que a adotaram”, afirmou Ricupero, que também é historiador e foi embaixador em Washington.

Autor do ensaio sobre Gusmão – que é considerado o “avô” da diplomacia brasileira –, Goes Filho também protestou. “Isso é censura, obscurantismo. Desse jeito, nenhum embaixador de prestígio vai poder publicar”, afirmou ele à Folha de S.Paulo. “É um assunto do século 18, e o autor foi vetado porque critica o ministro – não pelo que escreveu.”

Ao lado de outros veículos e em solidariedade a Goes Filho e Ricupero, o Vermelho divulga abaixo a íntegra do texto censurado pelo Itamaraty.

Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil

PREFÁCIO 

Por Rubens Ricupero


Synesio Sampaio Goes Filho realizou neste livro em relação ao principal autor do Tratado de Madri o que havia feito para a formação das fronteiras do Brasil: tornou acessível ao leitor de hoje a compreensão de uma história que se convertera em algo de remoto e abstruso.

Nem sempre fora assim. Até sessenta ou setenta anos atrás, a história diplomática do Brasil parecia às vezes dominada pela história das fronteiras. Na atmosfera de justa satisfação pela solução definitiva dos problemas territoriais do país levada a cabo pelo barão do Rio Branco, multiplicaram-se os estudos das questões fronteiriças, frequentemente escritos por diplomatas de carreira com vocação de historiadores.

Um dos mais produtivos entre esses autores, o embaixador Álvaro Teixeira Soares, resumiu com felicidade o sentimento que animava tais estudos. A solução sistemática dos problemas fronteiriços iniciada sob a monarquia e concluída por Rio Branco, escreveu Teixeira Soares, merecia ser considerada como uma das maiores obras diplomáticas realizadas por qualquer país em qualquer época. Não havia exagero em descrever desse modo o processo pacífico de negociação ou arbitragem pelo qual se resolveu metodicamente cada um dos problemas de limites com nada menos de onze vizinhos contíguos e heterogêneos (na época do Barão, o Equador ainda invocava direitos de fronteira com o Brasil, em disputa resolvida com o Peru somente muito mais tarde).

Passada a fase em que era moda escrever livros sobre fronteiras, o assunto perdeu grande parte do atrativo. Julgava-se que nada mais havia a dizer a respeito de problema já resolvido. Desconfiava-se de obras assinadas por funcionários diplomáticos, confundidas com a modalidade de publicações destinadas a engrandecer a própria instituição. Livros sobre discussões limítrofes, antes tão populares, tornaram-se difíceis de encontrar e mais difíceis de ler. O estilo envelhecera, os métodos da historiografia passada davam a impressão de obsoletos, a narrativa soava monótona, demasiado descritiva, apologética, pouco crítica, cansativa na enumeração de intermináveis acidentes geográficos.

Foi nesse panorama estagnado que Synesio teve a coragem de escolher para sua tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco em 1982 o tema enganosamente escondido sob o modesto título de Aspectos da ocupação da Amazônia: de Tordesilhas ao Tratado de Cooperação Amazônica . Lembro bem da surpresa positiva que causou a dissertação, pois fazia parte na época da banca examinadora do exame. Fui assim testemunha do surgimento de uma vocação singular de historiador voltado para recuperar a desgastada tradição de estudos fronteiriços.

Estimulado pela recomendação de publicação da banca, o autor ampliou e enriqueceu o trabalho, editado pelo Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais (IPRI), em 1991, sob o título de Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas: Um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. O livro teve o efeito de uma janela que se abria na atmosfera bolorenta da antiquada história das fronteiras, fazendo entrar o ar fresco da renovação modernizadora.

Redigida em linguagem límpida, objetiva, expressiva na sóbria elegância, a narrativa envolve o leitor em viagem sem esforço pela fascinante evolução do território brasileiro na sua fase de expansão, de avanços e recuos na Amazônia, no Extremo Oeste, na região da Bacia do Prata. Demonstra como se revelou constante em toda essa história a articulação do impulso pioneiro de exploradores, homens práticos determinados na busca de compensações materiais, com o trabalho cuidadoso de diplomatas e estadistas que legitimaram em instrumentos jurídicos o que não passava no início de ocupação precária de terras duvidosas.

Um dos méritos originais do livro consistiu em resolutamente colocar de lado a mitologia criada em torno de uma suposta linha que teria sido invariavelmente seguida por todos os governos brasileiros, refletindo uma doutrina inabalável ao longo dos séculos. Segundo tal linha de argumentação, desde os primórdios os políticos e diplomatas do Império teriam sustentado que o Tratado de Santo Ildefonso (1777) havia perdido a validez ao não ser explicitamente revalidado depois da fugaz Guerra das Laranjas (1801) no Tratado de Badajoz. Não existindo, portanto, direito escrito para definir as fronteiras, estas deveriam ser estabelecidas – seria o segundo postulado pretensamente imutável – de acordo com o princípio do uti possidetis , isto é, obedecendo à posse efetiva no terreno. O Tratado de Santo Ildefonso serviria apenas de maneira subsidiária para ajudar a dirimir dúvidas onde não se verificasse a ocorrência de posse ou não houvesse contradição entre o tratado e a posse.

O argumento apresentava alguma utilidade para comprovar a antiguidade e constância das pretensões brasileiras. Não passava, no entanto, de artifício de negociação, sem amparo real na realidade histórica. Synesio Sampaio Goes não se intimidou com a longa sequência de respeitados estadistas e estudiosos que haviam cercado essas afirmações com a proteção de sua autoridade e de seu prestígio. Mostrou com exemplos irrefutáveis que nenhum dos postulados havia sido verdade absoluta adotada em todos os casos. Não faltavam decisões e pareceres do Conselho de Estado advogando em favor da adoção de Santo Ildefonso como orientação para fixar fronteiras. Nem de episódios em que o Conselho ou o governo tinham recusado recorrer ao uti possidetis como critério para traçar limites.

Longe de enfraquecer a tradição brasileira em matéria de negociação de fronteiras, o trabalho de reconstituição da verdade efetuado pela obra conferiu historicidade e verossimilhança às doutrinas defendidas pelo Itamaraty, voltando a situá-las no contexto próprio do tempo em que foram definidas e no das circunstâncias que as modificaram. O desmonte da retórica apologética permitiu que aparecesse a verdade de uma evolução gradual, de tentativas e erros, de afirmação progressiva das teses mais convenientes. A narrativa fiel aos fatos fez emergir do passado uma diplomacia conscienciosa de estudo de mapas, de exploração de velhos arquivos, de construção paciente de doutrinas jurídicas adaptadas à situação de país cujos títulos originais a boa parte de seu futuro território eram pobres ou inexistentes. O resultado final, além de verdadeiro, valorizava em vez de empobrecer os méritos dos diplomatas que construíram a história do mapa do Brasil.

Na origem de toda essa história encontrava-se o alto funcionário da Corte portuguesa a quem se devia, mais que a qualquer outro, a definição do perfil territorial do Brasil, Alexandre de Gusmão. Brasílico, como se dizia na época, nascido obscuramente na humilde, insignificante Vila do Porto de Santos, tratava-se de personagem que atuara de modo discreto nos bastidores do poder. Permanecera quase anônimo por longo tempo, mais de um século, apesar de um ou outro estudioso mais arguto como o barão do Rio Branco ter reconhecido o papel que desempenhara.

Coube a um exilado político no Brasil do regime salazarista, o historiador português Jaime Cortesão, a tarefa de resgatar da penumbra da história a figura de Gusmão, desentranhando do silêncio dos arquivos os documentos que praticamente revelaram ao mundo a história real que se escondia por trás da negociação do Tratado de Madri (1750). Synesio Sampaio Goes, que já produzira o moderno clássico do estudo e da análise da história geral das fronteiras brasileiras, retrocede agora ao ponto de partida de onde tudo começou a fim de examinar como se chegou a pacientemente preparar a maior de todas as vitórias da diplomacia luso-brasileira na consolidação da expansão territorial do Brasil, o Tratado de Madri.

Conforme afirmei lá no início do prefácio, as duas realizações de Synesio, a da história completa, abrangente das fronteiras, e hoje a do Tratado de Madri e de seu autor mais importante, possuem uma característica definidora comum. Ambas reexaminam com olhar crítico o volumoso material existente, desbastam esse acervo daquilo que apresenta relevância menor para o leitor culto de nossos dias, reconstruindo com estilo contemporâneo, metodologia e linguagem atualizadas, narrativas que corriam o risco de não mais serem lidas a não ser por raríssimos especialistas.

Tome-se, por exemplo, o caso da obra magna de Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, publicada nos anos 1950 pelo Instituto Rio Branco em nove alentados volumes com milhares de páginas de reprodução de documentos e mapas. Quem hoje em dia se disporia a ler a obra inteira? Mesmo a edição compacta em dois tomos restritos à vida e realizações de Alexandre de Gusmão, editada em 2016 pela Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, estende-se por mais de oitocentas páginas de letra miúda, recheadas de longas discussões de erudição de interesse relativamente menor para o leitor médio.

Synesio não só torna a história dos limites e a de Alexandre de Gusmão acessíveis e atrativas aos leitores e estudiosos atuais. Ao modernizar e submeter a rigoroso crivo crítico tais narrativas, realiza obra original de mérito indiscutível. Ao discutir as hipóteses mais especulativas a respeito de incidentes da biografia de Gusmão, a autoria pessoal das instruções que orientaram o negociador português do Tratado, concepções intelectuais que teriam inspirado as ações lusitanas, o autor pesa com cuidado os argumentos e chega a conclusões que comandam o consenso pelo realismo, prudência historiográfica e bom senso.

Essas qualidades se destacam, entre outras passagens, nas que relativizam e moderam o entusiasmo raiando ao misticismo de Jaime Cortesão ao tratar de alguns mitos da história colonial como o da célebre “ilha Brasil”, a existência de um território delimitado de um lado pelo oceano Atlântico e no oeste por dois grandes rios que confluiriam para um mítica lagoa no interior das terras sul-americanas. A sobriedade nas avaliações e juízos confere veracidade digna de fé às afirmações amparadas, na falta de documentos conclusivos, por critérios de probabilidade e verossimilhança.

O autor faz bem de chamar ensaio biográfico o estudo da vida e ação de um personagem que viveu na primeira metade dos Setecentos. Faltariam elementos probatórios para tentar reconstruir a respeito da figura de Gusmão aspectos minuciosos da infância, da formação da personalidade na adolescência e juventude, das leituras e experiências definidoras como pretendem às vezes realizar exaustivas biografias de personalidades mais perto de nós. Uma técnica de narrar que funcionou de modo eficaz na construção da obra foi a de alternar o tempo todo a vida de Alexandre de Gusmão e a evolução dos acontecimentos que criariam as oportunidades para suas realizações. Basta passar os olhos pelo índice para perceber a dosagem alternada de matérias de contextualização — o Brasil, Portugal na época — com os capítulos biográficos — começos de vida, diplomata aprendiz, secretário real — voltando à colônia no apogeu do ouro, mas sem fronteiras, a relação do brasílico com sua distante pátria, os problemas do contrabando.

O estudo se revela particularmente útil no exame minucioso do que viria a ser presumivelmente a mais importante negociação territorial da história brasileira, culminando num tratado que de certa forma equivaleria a uma espécie de “escritura de propriedade” do território que forma o Brasil de hoje. Já se disse outras vezes e ressalta bastante deste livro a originalidade múltipla do Tratado de Madri. Num período em que quase todos os tratados de limites se originavam de guerras e refletiam a correlação de forças no campo de batalha, o acordo de 1750 foi exceção, negociado e concluído depois de longos anos de paz entre Portugal e Espanha.

Em contraste com a maioria dos inúmeros acordos limítrofes que o Brasil independente assinaria no futuro, o de Madri se salientou por desenhar a linha completa do mapa do Brasil ao longo de milhares de quilômetros de fronteiras terrestre. Não era o que desejavam os espanhóis, mais uma vez empenhados em somente limitar o ajuste a alguns setores de seu particular interesse, sobretudo na região da permuta da Colônia do Sacramento pelos Sete Povos das Missões do Alto Uruguai. Graças à firme insistência dos negociadores lusos é que se conseguiu definir o que, com ajustes relativamente menores, haveria de ser na prática o perfil territorial do Brasil moderno.

O Tratado de Madri tornou possível outra originalidade da história da formação territorial brasileira: a de que ela se encontrava virtualmente terminada antes da Independência. Em termos gerais, o chamado expansionismo, que foi a rigor muito mais português que brasileiro, alcançava quase seu limite máximo na véspera da Independência. Compare-se com a expansão norte-americana, que tem início a partir da Independência de 1776, para perceber a diferença das implicações que esse fato acarretaria para o relacionamento do país independente — Estados Unidos da América ou Brasil — com seus vizinhos igualmente independentes, México, no exemplo norte-americano, os dez vizinhos brasileiros, com o enorme contraste em termos de herança de ressentimentos históricos.

Vários dos estudiosos do Tratado de Madri fizeram questão de destacar que ele se adiantou a seu tempo na razoabilidade e no equilíbrio das concessões, no seu legado central, que consistiu em reconhecer de direito o que já ocorrera no terreno da prática: a supremacia da expansão luso-brasileira na Amazônia e no centro-oeste da América do Sul em câmbio do prevalecimento dos interesses castelhanos na Região da Bacia do Prata. Talvez se deva, em última instância, a esse espírito avançado em relação à época que o tratado tenha sido tão fugaz na duração formal: pouco mais de dez anos até a anulação pelo Tratado de El Pardo (1761).

Um dos enigmas da história luso-brasileira é entender por que o governo português, principal beneficiário dessa obra-prima de sua diplomacia, se converteu, em poucos anos, num dos mais ativos fatores de sua destruição. Os historiadores, entre eles Jaime Cortesão, alinham, é claro, argumentos e razões, que soam desproporcionalmente fracos para explicar erro tão grave de avaliação. Não é este o lugar para examinar a questão, de que procurei tratar em livro recente. De todo modo, o que conta é que, depois de vicissitudes e revezes sem conta perfeitamente possíveis de evitar, o espírito do Tratado de Madri acabaria por prevalecer. Esta constatação é seguramente a maior demonstração do gênio criador de Alexandre de Gusmão, capaz de sobreviver até à maligna inveja do marquês de Pombal, seu poderoso e overrated rival.

Em vida, Gusmão não alcançou recompensa nem reconhecimento pelo que fizera. Morreu no ostracismo, sem poder, com dificuldades financeiras. A Representação que dirigiu ao rei D. João V em fins de 1749, pouco antes do desaparecimento do monarca, ficou sem resposta. Permaneceria no limbo da história até meados do século XX, quando, graças a Jaime Cortesão, viu finalmente apreciada e valorizada sua contribuição com as seguintes palavras:

“Precursor da geopolítica americana; definidor de novos princípios jurídicos; mestre inexcedível da ciência e da arte diplomática, Alexandre de Gusmão tem direito a figurar na história como um construtor genial da nação brasileira, pela clarividência e firmeza de uma política de unidade geográfica e defesa da soberania, que antecipam, preparam e igualam a do Barão do Rio Branco”.

O primoroso ensaio biográfico que Synesio Sampaio Goes Filho dedica a sua memória reexamina, atualiza e ratifica, ponto por ponto, a justiça e exatidão do julgamento tardio da posteridade.


Rubens Ricupero, São Paulo, 16 de junho de 2019.

 

Fracasso de pressão por democracia pode abrir precedente para invasão da Venezuela? - Sean Burges (Interesse Nacional, Estadão)

 Opinião

Fracasso de pressão por democracia pode abrir precedente para invasão da Venezuela?

O regime de Maduro não vai deixar o poder, o que deixa Lula e seus contemporâneos nas Américas com uma pergunta terrível

Por Sean Burges

Interesse Nacional, Estadão, 17/08/2024

 

Para surpresa de ninguém, o autocrata-chefe venezuelano Nicolás Maduro manipulou a eleição presidencial de 28 de julho para permanecer no cargo. A condenação da maior parte do mundo foi igualmente previsível, mas também tocante em suas esperanças ingênuas de que a pressão internacional trará mudanças.

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O regime de Maduro não vai a lugar nenhum, o que deixa Lula e seus contemporâneos nas Américas com uma pergunta terrível: é mais eficaz simplesmente conter o Estado falido na Venezuela ou deve-se estabelecer um precedente com uma invasão pró-democracia no país?

Um retorno muito rápido à teoria nos ajuda a explicar por que o mundo está tão impotente para precipitar mudanças positivas na Venezuela.

América Latina da década de 1980 foi uma espécie de laboratório para investigar transições do autoritarismo para a democracia. Os estudiosos analisaram as diferentes transições extensivamente, resultando em inúmeros estudos que continuam a oferecer lições inestimáveis para os dias de hoje, mesmo que os formuladores de políticas pareçam relutantes em aventurar-se nas prateleiras empoeiradas da biblioteca para recuperá-los.

Talvez o livro mais perceptivo (e também curto) seja o volume quatro da série Transitions from Authoritarian Rule publicado em 1986. Popularmente conhecido como o Livro Verde pela cor da sua capa e subtitulado Tentative Conclusions About Uncertain Democracies, o argumento escrito por Guillermo O’Donnell e Philippe C. Schmitter baseou-se nos três outros volumes da coleção para explicar quais condições precisam estar presentes para que uma transição democrática comece e tenha sucesso.

Como explicam os autores, existem dois grupos principais em qualquer regime autoritário. Os “dictaduros”, ou linha-dura, estão profundamente comprometidos em manter o poder e resistirão a qualquer tentativa de removê-los do cargo.

Por outro lado, os “dictablandos”, ou moderados, acreditam que permanecer no cargo não é do interesse pessoal deles, nem do interesse militar/país, e, portanto, apoiam uma transição controlada para o governo democrático. O autoritarismo persiste quando os “dictaduros” mantêm a vantagem; a democratização ocorre quando os “dictablandos” estão em ascensão e conseguem convencer seus colegas a ceder o poder.

 

O trabalho de O’Donnell e Schmitter enfatiza dois problemas imediatos para aspirantes a democratas na Venezuela, bem como uma mudança estrutural crítica na economia venezuelana para outros países que defendem a abertura política lá.

Primeiro, quase não há mais “dictablandos” no regime venezuelano. Um quarto de século de governo chavista praticamente expurgou os liberais da administração bolivariana. Pior, aqueles democratas que restam nas instituições e na sociedade venezuelanas estão atualmente sendo capturados e encarcerados pelas tropas de choque de Maduro.

Em segundo lugar, supondo que um pequeno grupo de “dictablandos” tenha conseguido sobreviver dentro das Forças Armadas – e são as Forças Armadas que, em última análise, determinarão se o regime permanece ou cai – as circunstâncias atuais sugerem que eles não terão sucesso em convencer os “dictaduros” a suavizar sua posição. Afastar-se do poder traria, no mínimo, uma perda de privilégio e riqueza pessoal, o que, dado o estado atual da economia venezuelana, não é algo que a maioria dos atores racionais consideraria. Mais francamente, ceder o poder atualmente não tem nenhuma vantagem para Maduro e seus “dictaduros”.

A comunidade internacional conseguiu pressionar as ditaduras latino-americanas porque as elites econômicas domésticas que as sustentavam precisavam de acesso aos mercados regionais e globais. (...) Nada dessa lógica econômica se aplica à Venezuela hoje.

Como foi o caso nas décadas de 1970 e 1980, a comunidade internacional está ciente desse dilema. A pressão política externa foi um componente crítico para tirar do poder ditadores tão diversos quanto Pinochet no Chile e Stroessner no Paraguai. A pressão sobre os atores econômicos domésticos pela comunidade internacional traduziu-se em apelos locais das elites por mudança de regime em setores dependentes de vínculos externos.

O desafio hoje é que a alavancagem usada no século passado não está disponível na Venezuela de hoje.

A comunidade internacional conseguiu pressionar as ditaduras latino-americanas porque as elites econômicas domésticas que as sustentavam precisavam de acesso aos mercados regionais e globais. Mesmo no caso do regime criminoso de Stroessner no Paraguai, o acesso ao mercado brasileiro permaneceu crucial, permitindo que os oficiais em Brasília obrigassem a adoção de uma democracia formulaica em 1989 e um governo representativo mais substantivo ao longo da década de 1990. Nada dessa lógica econômica se aplica à Venezuela hoje.

A ditadura de Maduro é sustentada por uma teia complexa de atores militares, gangues criminosas e facções de grupos paramilitares estrangeiros, como ELN e Farc da Colômbia. São esses atores que controlam a produção e o tráfico de cocaína, a mineração e os últimos vestígios de uma indústria petrolífera em rápida desintegração, além de uma série de outras empresas criminosas domésticas.

A pressão econômica do tipo visto na década de 1980 simplesmente não se aplica a essas empreitadas criminosas, isolando os poderosos na Venezuela da condenação internacional e das sanções econômicas. Onde a pressão internacional poderia importar, como nas exportações de petróleo e ouro, existem muitas alternativas com agentes baseados em países como Rússia, Irã, Turquia e Emirados Árabes Unidos.

Isso deixa as vozes do hemisfério ocidental que clamam por democracia – sejam elas as vozes quietas nos bastidores da equipe de Lula ou o mais confrontador diretamente Boric no Chile – gritando ao vento.

 

Governos como o de Lula no Brasil, portanto, enfrentam uma decisão desconfortável: é mais barato conter a crise ou invadir? Pior, dada a criminalização maciça do Estado e da economia venezuelanos, a remoção de Maduro poderia empurrar o país para o abismo de um verdadeiro estado falido?

Para o futuro previsível, parece que levar a democratização à Venezuela exigirá uma intervenção direta e aberta de algum tipo. Não apenas essa abordagem é contrária à tradição histórica nas Américas, mas impor a democracia externamente também é um negócio caro, demorado e incerto. A questão então é se os custos da instabilidade política, outra fuga em massa, colapso econômico, criminalidade crescente e degradação ambiental acelerada na Venezuela subirão a ponto de a comunidade interamericana ser forçada a passar da retórica à ação concreta.

Por enquanto, uma invasão democratizante da Venezuela é uma opção que deve ser deixada na gaveta. Os esforços devem ser dedicados à criação de “dictablandos”, fornecendo garantias àqueles em posição de conduzir a mudança de regime interno de que sua riqueza e privilégio sobreviverão à democratização, mesmo que isso signifique viver seus dias em uma cobertura no Rio de Janeiro ou em um condomínio em Miami.

Esperamos que essas sejam as promessas que Celso Amorim está sussurrando aos seus colegas em Caracas. O que parece quase completamente certo é que a democracia permanece uma miragem distante para o povo da Venezuela.


Opinião por Sean Burges

Sean Burges é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos globais e internacionais na Carleton University. É autor dos livros ‘Brazil in the World’ e ‘Brazilian Foreign Policy After the Cold War’. 

 

A raposa, o porco-espinho e Delfim Netto - Adolpho Bergamini (Veja)

 A raposa, o porco-espinho e Delfim Netto

Delfim Netto foi capaz de uma proeza ímpar, combinar dois perfis distintos em uma só personalidade, era ao mesmo tempo raposa e porco-espinho

 

Por Adolpho Bergamini

 

Conta a história que Isaiah Berlin, professor de Oxford, ficou intrigado ao deparar com um verso do poeta grego antigo Arquíloco de Paros, que dizia apenas “a raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe uma só, mas muito importante”. Não havia mais nada escrito. Ou Arquíloco parou aí, ou o resto de seu texto se perdeu. Mas Berlin mergulhou no tema e o abordou no livro Estudos sobre a Humanidade. Lá explica que porcos-espinhos relacionam tudo a um ponto de vista central, enquanto as raposas perseguem muitos objetivos, algumas vezes desconexos a princípio, mas sempre ligados a uma finalidade maior.

A teoria foi testada por Philip Tetlock, que reuniu pessoas “normais”, sem qualificações técnicas ou profissionais específicas ou pré-determinadas, para saber se haveria algum grupo ou população capaz de antever o que está por trás das incertezas do futuro. Suas conclusões estão em A arte e a ciência de antecipar o futuro e, segundo ele, o “perfil raposa” de pessoas teve mais acertos e algumas razões foram determinantes para isso. Em geral, elas se cercaram do maior número possível de informações e de variadas naturezas. Esse grupo tinha natural propensão a críticas, aceitando-as relativamente bem, e a princípio desconfiava dos temas colocados em debate. Já o “perfil porco-espinho” era formado por indivíduos capazes de formular complexas deduções, muito certos de suas conclusões e menos amigáveis a críticas. Demonstravam impaciência àqueles que não compreendiam suas razões e eram escravos de seus pressupostos.

Mas Antônio Delfim Netto, o influente economista, professor e político morto recentemente, foi capaz de uma proeza ímpar, a de ser raposa e porco-espinho. Como toda personalidade de projeção, angariou um sem número de admiradores e críticos. Há quem o ame, seja por ter sido o superministro do tempo da ditadura militar, mentor do chamado milagre brasileiro, ou por ter aconselhado informalmente os presidentes Temer e Bolsonaro, enquanto outros o odeiam justamente por essas razões. Há quem o respeite por ter sido próximo dos governos Lula e Dilma, mas também existem os desgostosos que viram com maus olhos essa aproximação. Não trarei reflexões de viés ideológico, apenas comentários aos seus pensamentos a respeito da tributação e do gasto público.

Em uma entrevista concedida ao site Consultor Jurídico em maio de 2008, Delfim Netto resumiu o seu pensamento a respeito do sistema tributário nacional. Disse que nossa Constituição Federal é o resultado do sonho de pessoas que não sabem aritmética, que estabeleceram demasiados direitos sem explicar de onde viriam as receitas para bancá-los. Disse, há mais de 15 anos, que não existe sistema tributário perfeito, sim o sistema conveniente, mas o nosso é inconveniente por ser complexo e regressivo. Foi enfático ao afirmar que não haverá redução de carga tributária enquanto não houver redução das despesas do governo, que gasta muito e mal, e que devolve serviços de má qualidade.

Em julho de 2020 foi a vez da VEJA trazer falas de Delfim Netto. Deixou claro que as pressões que estavam sendo feitas sobre o teto de gastos, aprovado no governo Temer, eram graves e ameaçavam a estabilidade. Também criticou o fato de a reforma tributária vir antes da reforma administrativa. Nas entrelinhas de sua fala reside uma obviedade ululante: os gastos públicos não podem ser ilimitados, não podem ser maiores do que as receitas e, por isso, devem ser debatidos antes de suas fontes de financiamentos – os impostos.

O tom foi o mesmo na entrevista concedida à revista Conjuntura Econômica, publicada pela FGV/Ibre em novembro de 2020. Lá já havia cravado que os Projetos de Emendas Constitucionais n. 45 e 110, hoje aprovados na forma da Emenda Constitucional n. 132, tinham problemas, principalmente pela falta de uma estrutura coerente, que pudesse lançar olhos aos tributos sobre consumo, renda e patrimônio, e construir um sistema tributário coeso. Tratar apenas dos encargos sobre consumo é, como ele disse, construir “telhado sem saber qual vai ser o andaime para suportar esse telhado”. Voltou a criticar os gastos públicos, muito maiores do que o país pode suportar.

O pensamento de Delfim Netto abordou agruras que nunca deixaram de existir e sempre tiraram o sono dos mais diversos governos, ditatoriais ou democráticos, de direita ou de esquerda. Muito por isso, vem influenciando o país desde a década de 1960. Mas hoje é mais atual do que nunca, porque os tributos pagos e suportados pelos contribuintes em 2024 ainda servem ao financiamento de uma máquina pública ineficiente, que continua gastando muito e alocando mal seus recursos, tal como 60 anos atrás.

O estudo Carga tributária e ineficiência no setor público, publicado em 2022 na revista Economia Aplicada, conduzido por economistas da USP, indicou que a máquina pública brasileira é ineficiente e simulou cenários de redução da carga tributária e dos níveis de ineficiência, isoladas e conjuntamente, para determinar o quanto haveria de ganho em bem-estar em cada cenário. Tiraram algumas conclusões, mas duas chamam mais a atenção. Primeiro, que a implementação isolada de medidas para redução de ineficiência do gasto público, por si só, sem aumento de tributos, já implicaria ganhos expressivos ao bem-estar geral. Segundo, que a redução da carga tributária só se sustenta mediante a redução da ineficiência.

Mais do que uma avaliação de economistas, é a sensação geral da população, que está insatisfeita em relação aos tributos que paga e os serviços que recebe. De acordo com o Retratos da Sociedade Brasileira, pesquisa divulgada pela Confederação Nacional das Indústrias em julho deste ano, para 77% dos entrevistados o peso fiscal atual já é alto demais e não pode ser aumentado; para 76%, os gastos do governo deveriam entregar serviços públicos melhores. Os campeões de desaprovação são os serviços de saúde, educação e estradas e rodovias, rejeitados por 78%, 77% e 76% dos entrevistados, respectivamente.

Mas as políticas públicas vão em sentido contrário. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, demonstra uma energia sem limites para implementar medidas que visam a supressão de benefícios tributários, restrição ao uso de créditos fiscais e outras ações para aumentar a arrecadação. Não é diferente quando a projeção está no médio e longo prazo, porque o governo movimenta recursos e influência para aprovar uma reforma tributária que, sem dúvida alguma, irá aumentar muito os tributos cobrados no país, tornar o sistema tributário ainda mais regressivo e, possivelmente, alimentar a escalada dos preços de bens e serviços. O resultado pode ser a diminuição do poder aquisitivo da população e o arrefecimento da economia nacional.

Temos, portanto, um cenário de aumento de tributos que vem na esteira da explosão das contas públicas. Ou seja, tudo o que criticava Delfim Netto. 

As figuras da raposa e do porco-espinho cabem em muitas situações. Por exemplo, o rei Xerxes, da Pérsia, queria vingar a humilhação que seu pai, o rei Dário, experimentou na mão dos gregos. O objetivo de sua vida era invadir a Grécia e, quiçá, a Europa. Mas, antes da empreitada consultou Artabano, seu conselheiro, que de imediato o alertou sobre os riscos da campanha militar. Os inimigos não seriam apenas os gregos, mas também o clima severo naquela época do ano, os milhares de soldados de seu exército, que deveriam ser alimentados durante a longa marcha, além de outros fatores, como a falta de portos para atracar os barcos em caso de tormentas inesperadas. Xerxes não deu ouvidos e foi adiante, Artabano voltou para administrar o reino. Xerxes era porco-espinho, que sabia uma coisa muito bem – guerrear – mas esse conhecimento não foi suficiente para salvar seus homens da fome, resgatar suas embarcações ou ajudá-lo em sua fuga desesperada à Pérsia. Artabano era raposa, sabia muitas coisas, ouvia conselhos de seus pares e tinha a capacidade de fazer ponderações a respeito das coisas a sua volta. Não tinha a audácia de um grande guerreiro para liderar exércitos e conquistar novos territórios, mas conseguiu manter de pé um reino que estava sem o seu rei.

Delfim Netto era a soma de Xerxes e Artabano. Foi um homem culto, exímio observador dos fatos ao seu redor, economista requisitado por todos e cujos conhecimentos foram divididos com governantes das mais variadas estirpes. Conhecia bem a psiquê humana, sabia se relacionar e, ele mesmo brincava, foi “exilado” em Paris regado a champanhe e caviar. Mas também era impetuoso, de opiniões fortes, e se lançava em disputas sem temer adversários.

Muitos lamentam o seu falecimento, outros não. Mas o que fica é que um homem memorável descansou, talvez o último que se importasse tanto com a redução dos gastos públicos e dos tributos que penalizam os brasileiros. Se não houver um candidato para ocupar seu lugar, torçamos para que a engenharia genética nos dê um novo híbrido de raposa e porco-espinho.

Plano Real, 30 anos: entrevista com Pedro Malan - Nara Boechat (Veja)

 Como Pedro Malan vê o Plano Real trinta anos depois da sua criação

Economista lançou recentemente ‘30 anos do Real: crônicas no calor do momento’

 

Por Nara Boechat

Revista Veja, 18/08/2024

 

No fim do primeiro mandato do presidente Lula, em 2004, Pedro Malan fez uma crônica avaliando o aniversário de dez anos do Plano Real e a conquista da estabilidade da moeda ao longo dos governos, “independentemente de sua ideologia ou coloração político-partidária”. Esta história é uma das reunidas no livro 30 anos do Real: Crônicas no Calor do Momento (ed. Intrínseca) escrito em parceria com Gustavo Franco e Edmar Bacha. Em conversa com a coluna GENTE, o economista, que foi ministro da Fazenda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e presidente do Banco Central na implementação do Real, avalia as mudanças nos últimos 30 anos, analisa o impacto da inflação na sociedade e opina sobre o atual momento da economia brasileira.

 

CONSEQUÊNCIAS DO REAL. “O Plano Real foi um divisor de águas, se estabeleceu num curto período de tempo. Foram 500 dias desde que Fernando Henrique (Cardoso) assumiu como quarto ministro da Fazenda do governo Itamar Franco até o lançamento do Real. E nesses 500 dias, o Brasil mudou, a inflação foi derrotada. A derrota da hiperinflação não significa que não exista inúmeros outros problemas, existia à época e continuam existindo hoje. O problema é que agora, ao longo dos últimos 30 anos, é possível tentar enfrentar esses problemas sem uma inflação alta, crônica e crescente, que foi a insensatez que tivemos durante décadas”.


EXIGÊNCIA DA SOCIEDADE. “O Brasil foi o recordista mundial de inflação entre o início dos anos 1960 e o início dos anos 90. Éramos vistos como uma coisa peculiar pelo mundo, mas voltamos a ser considerados um país mais normal, que vive com inflação civilizada. Teve muito trabalho ali para sanear o sistema financeiro, lidar com questões de bancos comerciais, fazer a renegociação de dívida de estados e municípios, a lei de responsabilidade fiscal. A tarefa é preservar a inflação sob o controle, que passou a ser exigência da sociedade”.


NEVOEIRO DA HIPERINFLAÇÃO.  “Costumo dizer que nenhum governante hoje no Brasil pode se permitir ser percebido tendo uma atitude excessivamente complacente em relação à inflação ou achando que a inflação não tem importância, porque ela come o salário do trabalhador. Ela come o valor dessas transferências de renda que são tão importantes. O significado do Real foi esse. O país pôde vislumbrar melhor os seus inúmeros desafios e oportunidades do que antes, quando ainda vivia sob o espesso nevoeiro da hiperinflação. A tarefa continua”.


DÓLAR ACIMA DE 5 REAIS. “Já chegou a cinco e oitenta e seis, baixou agora. Ah, mas temos o sistema de um regime de taxa de câmbio flutuante. Então flutua ao sabor de eventos internacionais e percepções domésticas. O Brasil é uma economia integrada no mundo nessa dimensão financeira. Essas situações são algumas vezes excessivas, parcialmente corrigíveis, mas expressam coisas que estão acontecendo no Brasil e nas interações do Brasil com o mundo”.


INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL. “Sempre usei a expressão ‘autonomia operacional do Banco Central’. Temos um regime que é definido politicamente, o regime de meta de inflação. É o governo que decide isso, não é o Banco Central. E o Banco Central tem autonomia operacional para dado regime, operacionalizar a política monetária. Não é o Banco Central que estabelece a meta de inflação, é o governo legitimamente eleito, é um comitê de três pessoas, duas são indicadas pelo presidente da república. Por isso prefiro o termo ‘autonomia’ do que independência. É autonomia operacional para implementar uma política definida pelo governo”.


Mort d'Alain Delon : 15 chefs-d’œuvre dans une incroyable carrière - Jean-Luc Wachthausen (Le Point)

 Mort d'Alain Delon : 15 chefs-d’œuvre dans une incroyable carrière

En 1960, l’acteur, décédé ce dimanche à 88 ans, devenait, à 25 ans, une star grâce à « Plein Soleil ». Voici notre sélection, subjective forcément, de ses plus grands films.

Par Jean-Luc Wachthausen/Le Point

Publié le 18/08/2024 

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Ému aux larmes, lors du Festival de Cannes 2019, il avait reçu des mains de sa fille Anouchka, la Palme d'honneur pour l'ensemble de sa carrière. Belle récompense pour célébrer plus de soixante ans de cinéma et beaucoup de films majeurs, voire des chefs-d'œuvre, de Luchino Visconti à Joseph Losey, d'Henri Verneuil à René Clément et Jacques Deray.

Au-delà d'un physique exceptionnel, Alain Delon, décédé dimanche 18 août à 88 ans, aura marqué de sa personnalité parfois ombrageuse l'histoire du cinéma et fait rêver des millions de spectateurs et de spectatrices dans le monde. Celui que Jean-Pierre Melville voyait comme un « seigneur », « un des grands samouraïs de l'écran » entre aujourd'hui dans la légende.


Plein soleil, de René Clément (1960)

L'adaptation du roman de Patricia Highsmith, Monsieur Ripley, par le grand scénariste Paul Gégauff. Alain Delon s'impose avec brio en Tom Ripley, parfait usurpateur et beau monstre, prêt à tout pour supprimer le riche Maurice Ronet, prendre sa place et séduire sa maîtresse, jouée par Marie Laforêt. Magnifié par la musique de Nino Rotta, les couleurs vives du procédé Estamancolor et la direction d'acteurs de René Clément, ce film, devenu un classique du cinéma français, révèle Alain Delon dans un rôle ambigu, à la fois irrésistible et repoussant, point de départ de sa longue carrière.


Rocco et ses frères, de Luchino Visconti (1961)

De sa rencontre avec le grand réalisateur italien Luchino Visconti qui tombe sous le charme naît ce film tendu et violent qui décroche le prix spécial du jury au Festival de Venise. Dans cette sombre chronique d'une famille pauvre de l'Italie du Sud qui monte à Milan et se désintègre, Alain Delon s'impose dans la peau d'un Rocco fascinant et sauvage face à Annie Girardot, Claudia Cardinale et Roger Hanin.

 

Le Guépard, de Luchino Visconti (1963)

Au côté de son maître et mentor Visconti, Alain Delon plonge dans un univers fascinant, celui de l'aristocratie italienne, avec ses codes et ses non-dits. Pour cette fresque, qui va devenir un des chefs-d'œuvre du 7e art (Palme d'or à Cannes), le cinéaste confie à Delon le rôle de Tancrède, le neveu du prince Salina, joué par Burt Lancaster. Dans ses habits de jeune partisan de Garibaldi, il brille de toute sa beauté éclatante face à la sensuelle Claudia Cardinale qu'il retrouve pour la seconde fois.


Mélodie en sous-sol, d'Henri Verneuil (1963)

Après avoir tourné en 1962 L'Éclipse, de Michelangelo Antonioni, au côté de la blonde Monica Vitti, Alain Delon enchaîne un autre film majeur avec un acteur qu'il admire : Jean Gabin. Henri Verneuil est à la réalisation et Michel Audiard aux dialogues. Du sérieux. Le jeune acteur apprend beaucoup au contact de son glorieux aîné et tire son épingle du jeu dans cette histoire de gangsters, dont la scène finale est d'anthologie.


Les Aventuriers, de Robert Enrico (1967)

Autre grande rencontre d'Alain Delon : Lino Ventura. Tous deux se retrouvent au côté de la belle Joanna Shimkus et de Serge Reggiani devant la caméra de Robert Enrico, qui les embarque sur un bateau à destination du Congo à la recherche d'une cargaison de diamants engloutis au fond de la mer. Une histoire d'hommes et d'amitié où Delon apparaît sous un jour plus fragile.


Le Samouraï, de Jean-Pierre Melville (1967)

Petit chef-d'œuvre et grand tournant dans la carrière de Delon avec ce film crépusculaire de Jean-Pierre Melville, tiré du roman The Ronin, de Goan McLeod. Borsalino, gabardine au col relevé, regard froid et détaché, beauté magnétique, il est de tout son être ce samouraï qui marche lentement vers sa mort. En ouverture du film, figure l'épigraphe extraite du Bushido : « Il n'y a pas de plus profonde solitude que celle du samouraï. Si ce n'est celle d'un tigre dans la jungle… Peut-être… » Impossible d'oublier son personnage de Jeff Costello, rôle majeur qui forge déjà la légende Delon que Melville voyait comme un « seigneur ».


La Piscine, de Jacques Deray (1969)

Dix ans après leurs fiançailles, il retrouve, autour d'une piscine à Saint-Tropez, une actrice qu'il qualifiera plus tard « d'amour de sa vie » : Romy Schneider. Alain Delon retrouve aussi Maurice Ronet, qu'il tue encore une fois dans cette histoire de triangle amoureux qui tourne mal. C'est peu dire que Delon et Romy Schneider forment l'un des plus beaux couples du cinéma de l'époque dans ce film sous tension et parfaitement maîtrisé de Jacques Deray.


Le Clan des Siciliens, d'Henri Verneuil (1969)

De nouveau Jean Gabin, Henri Verneuil et Lino Ventura, plus la musique d'Ennio Morricone. Trois acteurs fétiches dans une autre histoire de voyous siciliens et de hold-up. Dans la peau du taulard évadé, Delon n'a pas le beau rôle et fait tout foirer après la découverte de sa liaison avec une des filles du clan. Gros succès public.


Le Cercle rouge, de Jean-Pierre Melville (1970)

Nouvelle rencontre entre deux géants : Delon retrouve le réalisateur du Samouraï pour ce rôle d'un ancien détenu qui prépare un gros coup. Il est entouré par des pointures : Bourvil dans le rôle d'un commissaire de police tenace, Yves Montand en ex-flic alcoolique, François Périer en patron de cabaret, Gian Maria Volonte en truand en cavale. Tous sont liés par la fatalité et se retrouvent enfermés dans ce cercle rouge évoqué en ouverture du film par une citation de Krishna. Un film sombre et désenchanté pour un Alain Delon désormais abonné aux rôles de voyou.


Borsalino, de Jacques Deray (1970)

Marseille, dans les années 1920. L'histoire de Carbone et Spirito, deux truands marseillais à l'ancienne, écrite par Jean Cau, Claude Sautet et Jean-Claude Carrière et mise en scène avec brio par Jacques Deray. L'affaire n'a pas été simple : le « milieu » ne voit pas le projet d'un bon œil. Deray reçoit des menaces de mort. Delon se rend chez les Carbone en Corse, règle tout et produit le film. Hors champ, le réalisateur fait tout pour maîtriser les ego des deux stars, Delon et Belmondo, qui finiront tout de même au tribunal pour une histoire de nom sur l'affiche. Reste un film à succès avec quatre millions de spectateurs en salle.


La Veuve Couderc, de Pierre Granier-Deferre (1971)

L'adaptation réussie du roman de Georges Simenon qui se déroule en 1936 dans la campagne dijonnaise. L'histoire d'un bagnard en cavale qui se réfugie dans la ferme de la veuve Couderc, dont il devient l'amant. Un beau drame naturaliste amplifié par le jeu du couple exceptionnel formé par Alain Delon et Simone Signoret.


Deux hommes dans la ville, de José Giovanni (1973)

Dernier face-à-face de Delon et Jean Gabin, du disciple et de son maître, dans ce film noir de José Giovanni qui aborde les questions de la rédemption et de la réinsertion d'un ancien criminel pris en sympathie par un éducateur. Un grand rôle dramatique joué avec sobriété par l'acteur, bouleversant dans la scène finale de la guillotine.


Monsieur Klein, de Joseph Losey (1976)

Un des grands films auquel Alain Delon tenait le plus et dans lequel il avait investi personnellement en tant que producteur. Boudé au Festival de Cannes 1976 et absent du palmarès, il lui laisse un goût amer. Du coup, il a profité de sa Palme d'honneur décernée en 2019 pour présenter de nouveau en séance officielle ce chef-d'œuvre de Joseph Losey. Dans la peau de ce Monsieur Klein, un salaud ordinaire qui va prendre l'identité d'un homonyme juif et partir pour Auschwitz, il est sobre, bouleversant, mystérieux, exceptionnel.


Notre histoire, de Bertrand Blier (1984)

Delon dans les pattes du réalisateur des Valseuses qui aime dynamiter les genres : ici, le mélo, poussé du côté du roman-photo dans une histoire où il est question de solitude et d'amour-passion, le tout servi par des dialogues au couteau. Ça passe ou ça casse. Gros échec à sa sortie en salle, ce qui n'empêche pas Alain Delon de montrer l'étendue de son registre dans les bras de Nathalie Baye.


Pour la peau d'un flic, d'Alain Delon (1981)

Pour ce quinzième et dernier film d'une liste forcément subjective, honneur au Delon réalisateur qui, pour son premier essai, signe un polar solide et violent. À la fois derrière et devant la caméra, il joue un privé pris dans un piège diabolique. Scénario costaud, tiré du roman de Jean-Pierre Manchette, scènes spectaculaires, casting musclé (Daniel Auclair, Anne Parillaud, Daniel Cecccaldi, Jean-Pierre Darras), c'est un succès auprès de la critique et du public.