Posse na Academia de Letras de Brasília
( 14 de agosto de 2024 )
Senhor Presidente da Academia de Letras de Brasília
Senhoras e Senhores Acadêmicos e Acadêmicas
Parentes, amigos e amigas
Os afetos
Este é um momento singular em minha vida. Sempre gostei de escrever, mas nunca pensei em tornar-me membro de uma academia de letras. Ao longo da vida, publiquei três livros e escrevi muitos artigos. Mas confesso que não me sinto escritor. O verdadeiro escritor não consegue viver sem a escrita. Eu apenas vivo melhor escrevendo. Sou alguém que desde a infância gostou de livros e histórias. Por isso, meus agradecimentos iniciais vão para o amigo Embaixador Sergio Couri que, na qualidade de acadêmico, submeteu meu nome à consideração dos demais; e vão também para o poeta e presidente desta casa, Raul Carnal, que gentilmente aceitou falar sobre minha trajetória nesta solenidade de posse.
Talvez possa sintetizar o tema deste meu discurso de posse com uma pergunta – o que me fez estar aqui hoje? A primeira resposta é a palavra forte que acompanha a humanidade desde seu surgimento – amor.
Estou aqui porque, um belo dia, um nordestino se encantou por uma carioca, se casaram, tiveram dois filhos, eu e minha irmã Noia. Assim, antes de tudo, sou produto do amor. Tenho uma foto dela muito jovem, vestido elegante da década de 1930, rosto e corpo de manequim, no cenário de uma calçada desenhada de pedras do centro do Rio. Dele tenho uma foto com uniforme de trabalho da companhia canadense de bondes e um boné escrito Conductor.
Minha mãe estudou no Sacré-Coeur, onde cedo aprendeu francês, piano e boas maneiras. Meu pai veio do sertão do Seridó, de Caicó, onde menino andava a cavalo, nadava nas cheias dos açudes e sabia vaquejar. Fugindo da seca, ele rumou para o Sul, adolescente com o primário incompleto. Sentou praça no Exército, entrou para a polícia, foi condutor de bonde, tudo isso junto com os estudos. Mais tarde foi trabalhar no Ministério da Justiça e Negócios Interiores, onde a função do pai e da mãe também refletia contraste – ele Almoxarife, ela Perito Contadora.
A segunda razão para eu estar aqui agora também deriva da mesma palavra – amor. Tudo começou numa feste de São João. Eu muito alto, ela de pileque. Depois era ela na Literatura e eu na Economia. “Eu sou funcionário, ela é dançarina”, como na música do Chico. O tempo foi passando, eu fazia o curso Rio Branco e dava aula de economia numa faculdade particular, ela era integrava a primeira e pioneira turma de revisoras mulheres do saudoso Jornal do Brasil. Aí nos casamos, ambos com dinheiro quase imaginário - eu com o curto FGT da Faculdade, ela também com poucos trocados. Mas, como dizem os sábios, nunca se deve desperdiçar uma crise. O Itamaraty demorou a me chamar para assumir em Brasília e fomos viver três meses de encantamento em uma barraca nos campings de Araruama, Cabo Frio, Friburgo e Campos do Jordão.
Cinco décadas depois, eu escrevia para os filhos essa mensagem. “Cinquenta anos atrás eu partia com sua mãe, um Fusquinha branco, uma barraca, para uma aventura que gerou quatro filhos, sete netas, dois netos, vinte e sete mudanças de casa, sete países, uma Revolução Islâmica , um golpe de Estado latino-americano e muitas coisas que as estatísticas não sabem contar.”
Sobre os quatro filhos, a alegria maior vem do afeto e da diversidade de personalidades. Talvez a origem resida naquilo que aprendemos nos versos de O Profeta, do Khalil Gibran. “Seus filhos não são seus filhos. São filhos e filhas da Vida que anseia por si mesma. Podem abrigar o corpo deles, mas não a alma. Podem se esforçar para ser como eles, mas não tentem fazer com que eles sejam como vocês. Porque a vida não retrocede nem se detém no ontem.”
O primeiro filho, Pedro, tem o atributo mais escasso no Brasil de hoje – um profundo espírito público. Abraçou a carreira de Estado de Gestor de Políticas Públicas, concluiu doutorado na Inglaterra em Direito Econômico, conhece a fundo a máquina do Estado brasileiro. Mas é também o Filho Psicólogo - quando os pais divergem ou se sentem tristes, ele é a fonte de bom senso e de alegria.
O segundo, Leonardo, a mente clara e brilhante, após concluir um mestrado naLondon Business School decidiu, para grande preocupação dos pais, sair do Banco Central e ir para o setor privado. Sua exitosa trajetória como Executivo de grandes empresas e as atividades inovadoras que desenvolve na avaliação de empresas e arbitragem de litígios revelam o dinamismo e as potencialidades de nossa economia.
O terceiro, Thiago, iraniano, foi estudar História, apesar da insistência da mãe para que seguisse Direito. Eu sempre a contradizia – quem nasceu no meio de uma grande revolução não pode seguir Direito, porque Revolução e Direito são adversários irreconciliáveis. Essa discussão eu ganhei. Hoje ele é professor de História da Cultura Afro-brasileira e Indígena em universidade pública do Cariri cearense e é babalaô do Ifá, uma linha do Candomblé.
O quarto filho, Eduardo, começou na Economia, migrou para a Sociologia, mudou para a Antropologia e terminou diplomata. Encontrou Eva, uma médica alemã, viveram em Tel Avive, Berlim, Dakar, Itzehoe e produziram quatro lindas alemãzinhas. Há um ano se licenciou do Itamaraty, Eva conclui a residência médica perto de Hamburgo, e ele educa as quatro alemãzinhas. Assim, prova que igualdade de gênero não é só retórica.
Os filhos e as quatro lindas noras geraram sete netas e dois netos, que são nosso grande tesouro.
Estou aqui hoje também graças aos amigos e amigas do Itamaraty - a instituição de excelência a que tenho a honra de pertencer. Em primeiro lugar, gratidão aos colegas de nossa turma do Instituto Rio Branco (IRBr), em especial ao saudoso Sérgio Amaral, com quem trabalhei no governo Fernando Henrique e muito aprendi.
Sou igualmente grato a diplomatas de muito valor com quem tive a honra de conviver e trabalhar. Rubens Ricúpero, o “Apóstolo do Real”, autor da obra seminal A Diplomacia na Construção do Brasil, que adotei como livro texto nas minhas aulas no IRBr. Rubens Barbosa, incansável formulador, divulgador e analista de nossa política externa, autor de numerosos livros, artigos e incentivador de pesquisas sobre “o lugar do Brasil no mundo”.
Minha gratidão a outros diplomatas de reconhecido mérito com quem trabalhei, como Paulo Tarso, Ronaldo Sardenberg, Seixas Correa e Marcos Azambuja. Meu reconhecimento ao amigo Paulo Roberto de Almeida, analista sólido, corajoso e combatente em defesa de nossa política externa, a quem chamei de “Embaixador Ombudsman”.
Na volta final ao Brasil, em 2013, trabalhei seis anos no Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (IPEA), primeiro como pesquisador e depois como Diretor de Política e Economia Internacional. Lá convivi com economistas brilhantes - como Renato Baumann - de sólida formação e com importantes contribuições na área de economia e políticas sociais.
Estou também aqui hoje graças a meus amigos-irmãos de infância e adolescência da Silva Teles, uma encantadora rua de Vila Isabel, com quem me encontro para uma comidinha e um chope gelado à beira mar, sempre que vou ao Rio.
Sou grato a meus ancestrais, ao Abreu e Lima, revolucionário do Pernambuco vanguardista de 1817. Devo muito à minha família ampliada – tios (as), primos(as), sobrinhos(as). Ela tem o elo agregador do saudoso Tio José - o Tio da Eterna Alegria. Já no final da vida, ainda se divertia, com suas quatro cuidadoras, que me remetiam a Pantaleão e As Visitadoras, a sensual história de Vargas Llosa. Essa família ampliada continua sendo fonte de afetos, conflitos e reconciliações, no melhor estilo do programa de televisão A Grande Família.
Minha gratidão a dois amigos eternos. Em alusão a Sigmund Freud, pai da psicanálise, eu o chamava de Sig da Democracia – Luis Carlos Sigmaringa Seixas. Foi embora cedo demais. Mas lá em cima, em caso de polarização celestial, ele deve estar pregando alguma forma de conciliação democrática. O outro, meu amigo-irmão iraniano Majid Abaiian. Ele me ensinou um triste axioma da história – as revoluções devoram seus próprios filhos.
Dou graças a Deus, a Jesus, ao cristianismo dos primeiros séculos, e a San Charbel, meu santo de devoção. Minha gratidão à psicanálise, que me acompanhou pela vida afora, a Freud e Jung, e a dois grandes amigos - Elias Abdalla e Wagner Rosa. A eles devo a aprendizagem com algumas depressões, um certo amadurecimento e alguma sanidade mental. Com eles aprendi que mergulhar nas nossas sombras pode muitas vezes ensinar o caminho das luzes.
Meu antecessor na Academia
Cumprindo a boa tradição desta Casa, tenho a honra de saudar meu antecessor nesta Academia. Infelizmente não conheci João Francisco Guimarães. Entretanto, de seus contemporâneos colhi testemunhos todos muito positivos desse engenheiro eletrônico, matemático, mestre em redes de computadores e professor da Universidade de Brasília.
Seus livros refletem, além dessa sólida formação científica, uma mente eclética, aberta tanto à espiritualidade –Tudo que seu mestre mandar, e Deus te faça feliz - como ao mundo maçônico – Amo a Verdade, Procuro-a e Gotas Maçônicas, Conceitos e Crenças.
O colega Guimarães granjeou, nesta Academia, a admiração de seus membros, graças à cortesia e à cordialidade que sempre marcaram sua convivência com os demais acadêmicos. Esses traços de sua personalidade ficaram inscritos na memória desta instituição. Sua partida prematura deixou saudade que não posso deixar de evocar neste momento.
O Desafio da Cadeira Roseana
Há poucas semanas soube que a cadeira que vou ocupar nesta academia tem como patrono apenas, simplesmente, João Guimarães Rosa. Aquele saudado, no livro Primeiras Histórias, por Carlos Drummond, com o poema Um chamado João, cheio de perguntas: “João era fabulista? Fabuloso? Fábula? Sertão místico disparando, no exílio da linguagem comum?”
Lógico que me senti honrado com essa ponte com Rosa - o escritor encantado, encantador de palavras de mil dicionários de centenas de línguas, existentes ou por ele criadas.
Essa ponte com o grande Rosa muito me honra. Mas também nela sinto-me perdido, como o filho de A Terceira Margem do Rio. Perdido naquele momento, em que, “ sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. ... Perguntei ´Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa? Ele só retornou o olhar em mim. ... Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte”.
Nesses momentos sombrios, tão distantes do self, da chama da alma do Jung, eu começava a ter consciência de que, lá em casa, quem nasceu para literatura foi Sônia, minha mulher, graduada em Letras, Mestre em Linguística, e fina sensibilidade que lembrava aquela livraria de Paris – Le Plaisir du Texte. Ou Thiago, o Filho da Revolução, nascido em Teerã, que por isso mesmo foi estudar História, doutorou-se em Literatura, escreveu o belo livro Nativo Ausente e é hoje Babalaô. Esses dois entendem do riscado das letras. Mas, curiosa contradição, quem escreve histórias e ama de paixão a Terceira Margem do Rio sou eu e o filho Pedro – outro economista, vejam só.
Nesses momentos sombrios, eu queria mesmo era engolir a sabedoria resignada do personagem daquela estória que começa assim. “Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado. ... Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. ... Trouxera, um dia, do pasto ... uma jararacussú, pendurada do focinho, como linda tromba negra com diagonais amarelas, da qual não morreu porque a lua foi boa e o benzedor acudiu pronto.”
Às vezes também pensava que o melhor mesmo era telefonar para meu amigo de muitos anos, João como o Rosa, mas Almino Inteligente de nascimento, para me dar algum consolo. Ele, que ensinou Rosa a centenas de estrangeiros, em lugares de tanto prestígio como a Universidade Autônoma do México, Berkley, Stanford e Chicago. Ou então, pensei, apelar para a doce, sensível Heloisa Vilhena, escritora de cinco inspirados livros sobre Rosa. Ela bem que podia me dar um Chá de Erva Cidreira de Rosa, e me deixar mais sossegado nessa nobre e inquietante cadeira.
Mas não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe. Por isso, também tive meus momentos de êxtase. Era quando eu saía da imaginária Terceira Margem para ingressar na primeira das Primeiras Estórias , aquela que exalta As Margens da Alegria. Aquela que começa quando “ia um Menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho.”
De repente, nuvens escuras, sentimentos tristes me carregavam para outras margens, outras viagens, como a última estória – Os Cimos - do mesmo livro, com o mesmo Menino de letra maiúscula. “Outra era a vez. ... Entrara aturdido no avião, a êsmo tropeçante. ... Sabia que a Mãe estava doente.”
De volta à Terceira Margem, fico matutando, o que pensaria Rosa de tudo isso? Jamais saberemos, nem ele provavelmente sabia. Mas para onde nos levam essas idas e vindas roseanas, “numa canoinha de nada”? Para onde nos leva, em Grande Sertão: Veredas, aquela fala de Diadorim para Riobaldo – “Viver é muito perigoso. Carece de ter muita coragem.”
Cada cabeça, uma sentença. Juntando os quebras e as cabeças, a gente vai encontrando sentidos. Para isso, tem serventia aquela Conversa de Bois. Também nos ajuda muito a pensar e a buscar significados aquela malvadeza sem fim de Nhô Augusto, e a redenção espiritualizada de Matraga, em A Hora e a vez de Augusto Matraga. Também nos serve de inspiração o provérbio capiau “Sapo não pula por boniteza, mas porém por percisão”. Mas, para entender os sabores e os ventos do mundo, eu prefiro mesmo a sabedoria mansa, resignada do Burrinho Pedrês.
O Inconsciente
Além daquela palavra mágica – amor - as razões para estar aqui nesta Academia de Letras de Brasília remontam também à missão impossível - qual Pedra de Sísifo - de tentar entender esse país que não é para principiantes. Isso me levou a estudar economia e depois política.
O interesse pela política mora no meu inconsciente e tem uma gênese curiosa. Nasceu num episódio de infância que conto no livro Diplomacia, Revolução e Afetos. De Vila Isabel a Teerã, uma historinha que tem como título Pai, Padeiro e Política, aqui reproduzida em parte.
“Todo dia de manhã, sentado na varanda de nossa casa da vila, meu pai abria o jornal. Lia e esperava o padeiro. Seu Horácio chegava carregando uma cesta enorme de pão nos ombros. Ele era filiado ao Partido Comunista, e meu pai, getulista. Eu ficava ouvindo, não entendia nada da discussão dos dois, mas mesmo assim achava o máximo.
Para mim, aquilo era uma espécie de jogo de futebol. O padeiro sempre tinha a iniciativa, falava com grande convicção, parecia marcar um gol, mas vinha meu pai com uma ideia que colocava Seu Horácio na defensiva, até engrenar outro forte argumento “Florêncio. Não adianta falar de nacionalismo, criticar o Brigadeiro Eduardo Gomes e defender Getúlio! Enquanto você não aceitar a Luta de Classes, estará sempre equivocado! É isso que move a história. O resto são mentiras para iludir o povo.”
Eu achava aquilo tudo fantástico. Muitas vezes o argumento de seu Horácio era um chute certeiro, entrando no gol. Mas meu pai conseguia retomar a pelota e a levava até o meio de campo adversário. Era sempre uma notícia que fazia o padeiro hesitar, e colocava meu pai na pequena área, muito perto de fazer um gol.
Mas, novamente Seu Horácio defendia. Vinha com a história da Luta de Classes e trazia o exemplo da União Soviética, que eliminou a pobreza, a exploração do homem pelo homem com a revolução socialista.
Aí eu pensava. Pronto. Acabou o jogo, Seu Horácio venceu. Mas, que nada, vinha meu pai com o argumento sempre utilizado nesses momentos decisivos - Ideias Fora do Lugar. Seu Horácio respirava fundo em silêncio. Eu ficava feliz da vida.
Luta de classes versus Ideias Fora do Lugar. Mas a palavra final não vinha do Movimento Operário nem das Forças Nacionalistas. Esse jogo não tinha juiz, mas tinha fim, com o Imperativo Categórico Kantiano que calava os dois. Seu Horácio, envergonhado, não mais parecia o Senhor do Materialismo Histórico. O padeiro amigo resgatava sua cesta de pão e, dentro dela, lá ia embora o meu doce de bata doce. Dona Arlete, vizinha de porta, gritava bem alto para toda a vila da rua Silva Teles 14-A escutar. “Seu Horácio! Chega de conversa fiada com o Florêncio. Entrega logo o pão que chegou quentinho, mas vou comer frio!”
A razão
Assim sempre terminavam as discussões diárias que povoaram o imaginário de minha infância. A lembrança dessa dialética é para mim repleta de significados. Hoje vejo aqueles debates matinais envolvendo dois contendores, ou dois tipos ideais weberianos: um partidário do totalitarismo, outro defensor do autoritarismo, sendo que a ideia de democracia nem sequer era ventilada.
Anos mais tarde, estudante da Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), tive um encontro mais íntimo com a sociologia política. O mestre Guerreiro Ramos, nosso professor e um dos pais da sociologia no Brasil, formou um grupo de cinco alunos, como assistentes. Nossa função era ler livros e resumir oralmente, para subsidiar sua pesquisa que resultou no livro Administração e Estratégia do Desenvolvimento. Ganhava meio salário-mínimo por mês, mas foi o melhor emprego da minha vida!
Dessa convivência com o mestre Guerreiro, muita coisa ficou registrada para sempre. Por exemplo, do livro Agrarian Socialism, de Seymour Lipset, ficou aquela frase, discutida entre o mestre e o pupilo, que até hoje muito me intriga. “Você pode ensinar socialismo em poucas semanas para um engenheiro. Mas você não pode ensinar em poucas semanas engenharia para um socialista.”
Muitas décadas mais tarde, nos quatro anos que vivi no Irã como jovem diplomata, no final dos anos 1970, me defrontei empiricamente com o embate entre aqueles dois conceitos – o totalitarismo stalinista do padeiro, versus o autoritarismo getulista do pai. O binômio era o mesmo, mas os atores eram diferentes. Quando lá cheguei, o Xá estava no poder, governava com mão de ferro e o braço dos EUA, praticava um autoritarismo repressivo há quase quatro décadas. Mas sua monarquia desmoronou no início de 1979. A Revolução Iraniana, por poucos meses viveu o sonho de uma democracia liberal, e rapidamente o autoritarismo do Xá se transformou no totalitarismo do Aiatolá Khomeini.
Assim, essa vivência com um Irã autoritário e depois totalitário estimulou em mim o desejo de compreender mais a fundo as razões históricas que levavam países como o Brasil ao pêndulo sem fim que ia de democracias imperfeitas para regimes autoritários.
As Visões do Brasil. Sérgio Buarque e Raimundo Faoro.
Muitas décadas mais tarde, quando regressei ao Brasil após ter sido Embaixador do Brasil em Quito, Genebra (ONU), México e Cônsul Geral em Vancouver, fui trabalhar como pesquisador do IPEA, ao mesmo tempo em que dei aula de História da Política Externa Brasileira (HPEB), no Instituto Rio Branco, durante sete anos, entre 2016 e 2022. Sempre entendi a política externa como a resultante do encontro (ou desencontro) de dois universos - o mundo aqui dentro e o mundo lá fora, ou seja, nunca divorciada da realidade doméstica. Por isso, começava os cursos no Instituto Rio Branco com uma pergunta - Que País é Esse? - inspirada na música da Legião Urbana, de Renato Russo.
Com essa pergunta em mente, me dediquei a estudar os grandes Intérpretes do Brasil. Mergulhei então na leitura de muitos autores – Guerreiro Ramos, Gilberto Freire, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Caio Prado Junior, José Murilo de Carvalho, Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro. Os dois últimos são para mim as mais importantes fontes para compreender o Brasil de hoje, porque um analisa as raízes de nossa imperfeita democracia e o outro, o resiliente patrimonialismo/corporativismo.
Sergio Buarque prioriza a “ética de fidalgos”, traço do espírito personalista do português, que marcou a conquista e a colonização do novo mundo. Essa ética condicionou o tipo ideal do aventureiro, que valoriza a audácia, o desafio, ao mesmo tempo que despreza a estabilidade e a segurança. Tem seu contraponto na figura do trabalhador, voltado para a rotina e para o trabalho árduo.
Aquela “ética de fidalgos” se revela no horror ao trabalho manual e na admiração da atividade intelectual vista como dádiva – talento –, e não como produto do esforço e da disciplina Essa análise vai convergir para o homem cordial(que age com o coração), dotado de uma personalidade emotiva, avessa às convenções e às regras sociais.
Tudo isso fica muito distante da ideia de associativismo, de trabalho em equipe, de solidariedade social. Os diversos prismas e tipos ideais pelos quais Sergio Buarque analisa nossa sociedade – o aventureiro, a ética de fidalgos, o homem cordial – revelam as origens mais profundas e inconscientes de nosso sistema político. Daí a conhecida afirmação de Raízes do Brasil. “A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”.
Raymundo Faoro procura desvelar a etiologia nossas duas resilientes doenças irmãs – patrimonialismo e corporativismo. Os Donos do Poder denuncia a opressão do Estado sobre a sociedade, considerada a semente dos grandes males do país.
Faoro parte de uma crítica ao marxismo, que apenas em momentos históricos excepcionais – absolutismo, bonapartismo – admite a autonomia do Estado. Em contraste, segue Max Weber, ao atribuir grande peso ao Estado e ao estamento burocrático. A origem seria o Estado absolutista precoce em Portugal, que abriu caminho, no Brasil, para o patrimonialismo e para um capitalismo politicamente orientado, em que as atividades mercantis se subordinariam a um Estado patrimonial-estamental.
Rupturas com esse modelo são ensaiadas, mas terminam fracassando. A Coroa exercia seu domínio hegemônico e, assim, impedia o avanço do liberalismo.
A cisão entre Estado e nação é a grande chave explicativa para a recorrência de soluções autoritárias. O Estado patrimonial- estamental foi o grande inimigo da modernidade econômica e do Estado de direito.
Esse adiamento de uma efetiva modernidade no Brasil engloba também o nacional-desenvolvimentismo e a ideologia nacionalista, uma vez que não se orientam pela ruptura com o arcaico Estado patrimonial-estamental.
As intervenções autoritárias recorrentes têm papel semelhante. Como ele próprio afirma em Os Donos do Poder, “ o autoritarismo político seria constitutivo à nossa formação, ora sob formas brandas, ora exasperadas”.
Minha visão do Brasil de hoje
O que penso sobre o Brasil de hoje talvez tenha seu começo no registro inconsciente das conversas do padeiro com o pai. Daí passaram, na adolescência, pela conhecida História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, prosseguiram com O Conceito Marxista do Homem, do popular Erich Fromm, e os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de Marx. As leituras avançaram (ou regrediram) com os grupos de estudo de Poulantzas, Althusser.
Já ingressando na graduação em Economia, as atenções se voltaram para a controvérsia Eugênio Gudin versus Roberto Simonsen, para as leituras sobre economia brasileira - Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Fernando Henrique Cardoso da Teoria da Dependência e muitos cepalinos. Depois vieram as influências de grandes professores do início de Mestrado na Universidade de Brasília – Dionísio Carneiro, Edmar Bacha, Lauro Campos.
No Mestrado concluído na Universidade de Ottawa, as divergências se ampliaram e englobaram ícones da teoria econômica. Alfred Marshall, o formulador original da teoria neoclássica e dos fundamentos de uma economia competitiva. Joseph Schumpeter, para quem a “destruição criativa” era o motor essencial do capitalismo. Joan Robinson, contestadora do modelo de concorrência perfeita e aguda analista das imperfeições de mercado que explicavam as discrepâncias nos salários e no emprego. Milton Friedman, reconhecido pela rigorosa análise das causas da Grande Depressão, mas popularizado como o inspirador de regimes autoritários, como o do general Pinochet. Finalmente, John Maynard Keynes, o formulador da Revolução Keynesiana, base do New Deal de Roosevelt, e da visão do déficit público como ferramenta para corrigir uma economia funcionando abaixo da plena capacidade. No plano da filosofia e da sociologia política, o fio condutor residiu, entre outros, em John Stuart Mill, do célebre ensaio Sobre a Liberdade, e em Max Weber, da Ética protestante e o Espírito do Capitalismo.
Aqueles Intérpretes do Brasil e esse diversificado conjunto de economistas são os pilares de meu pensamento sobre nosso país. Dois são os grandes desafios. Primeiro, fazer com que a democracia deixe de ser aquele “lamentável mal-entendido” do Sérgio Buarque. Segundo, curar as duas resilientes doenças denunciadas por Raymundo Faoro - o patrimonialismo e o corporativismo. A meta a alcançar será sempre a democracia liberal, baseada no avanço da economia e na ampliação da justiça social.
Ao fim, relembro a miscigenação cultural que me trouxe ao mundo – o sertanejo do Seridó, que gostava de Humberto Teixeira, Catulo da Paixão Cearense, e a moça do Sacré Coeur, que falava francês e tocava piano. Resgato também o encontro com minha mulher Flor Amorosa, filhos, netos e netas. E finalizo como episódio preferido de meu pai - a sábia tirada do matuto nordestino. Quando perguntado sobre o que achava da vida, respondia sempre “Vivendo e achando bom”.
Muito obrigado
Sergio Florencio de Abreu e Lima Sobrinho