sábado, 9 de novembro de 2024

A diplomacia brasileira da Independência: primeiros obstáculos - Paulo Roberto de Almeida (Nuevo Mundo, Mundos Nuevos )

Mais recente trabalho publicado

1558. “Diplomacia brasileira da Independência: primeiros obstáculos”, revista Nuevo Mundo, Mundos Nuevos (Univ. Paris; número especial: O bicentenário da independência do Brasil. História e memória de uma nação no mundo global, coord.: Janina Onuki, Amancio de Oliveira et Daniel Rojas; Colloques 2024; ISSN électronique: 1626-0252; link do artigo: https://doi.org/10.4000/12hnw). Relação de Originais n. 4562.

Disponível Academia.edu (link: https://www.academia.edu/125412810/4562_Diplomacia_brasileira_da_Independ%C3%AAncia_primeiros_obst%C3%A1culos_2024_)


2024
O bicentenário da independência do Brasil. História e memória de uma nação no mundo global

A diplomacia brasileira da Independência: primeiros obstáculos

Brazilian diplomacy of Independence: first obstacles
Paulo Roberto de Almeida
Résumé | Index | Plan | Texte | Notes | Citation | Auteur

Résumés

O ensaio, de caráter histórico, trata das primeiras questões internacionais afetando o Brasil desde o início do XIX. Esses problemas foram: (a) o reconhecimento do novo Estado pelas potências da época; (b) a situação nas fronteiras do sul, guerrilha dos independentistas uruguaios e guerra contra Buenos Aires em torno do Uruguai; (c) a questão do tráfico e da escravidão, que se arrastava desde o Congresso de Viena em 1815 e que vai se prolongar por mais de três décadas, até 1850 e mais além. Se a primeira questão foi resolvida por meio de negociações diplomáticas, a segunda teve de passar pela mediação britânica para sua solução, ao passo que a terceira representou uma permanência estrutural negativa que projetou seus efeitos sobre a sociedade durante todo o século XIX.

Haut de page

Texte intégral

O reconhecimento internacional da independência do Brasil

1A afirmação autônoma do Brasil no cenário internacional teve início ainda antes da independência, em agosto de 1822, quando o príncipe regente D. Pedro autoriza a divulgação de um manifesto às nações amigas, redigido pelo brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), ocupando a pasta dos Negócios Estrangeiros. Por ele, D. Pedro as convida a continuar com o Reino do Brasil as mesmas relações de mútuo interesse e de amizade, que já mantinham com a Corte instalada no Rio de Janeiro desde 1808. El também aprova a ideia de José Bonifácio de enviar encarregados de negócios para Londres, assim como para outras capitais: Paris, Viena e Estados Alemães, ademais de Buenos Aires. Já tendo o governo português reconhecido, ainda em 1821, no Rio de Janeiro, a independência da Argentina e do Chile, Buenos Aires, no final de 1822, declara reconhecer o escudo de armas e a bandeira do Império brasileiro (não mais do que isso), mesmo se, em agosto do ano seguinte, o governo argentino convida o Império a desistir da posse da Província Cisplatina.

2Nesse manifesto, José Bonifácio deixou bastante claro sobre quais seriam as principais diretrizes que deveriam guiar a ação externa da quase nação independente. Os principais pontos do manifesto eram os seguintes: 1. manutenção das relações políticas e comerciais, sem dar prioridade a qualquer nação; 2. continuidade das relações estabelecidas desde 1808; 3. adoção plena do liberalismo comercial; 4. respeito mútuo ou reciprocidade no trato internacional; 5. abertura do país à imigração; 6. facilidade de entrada para a vinda de sábios, artistas e empresários; 7. abertura do país aos investimentos estrangeiros.

  • 1 Cf. João Alfredo dos Anjos, José Bonifácio, primeiro Chanceler do Brasil. Brasília: Funag, 2007, p (...)

3Ele também foi o primeiro chanceler brasileiro preocupado com a defesa da soberania e a implementação de uma diplomacia eficiente como o melhor instrumento para a política externa da nação emergente. Com Bonifácio, e a despeito do problema da Cisplatina, as prioridades brasileiras passam a ser a aproximação cooperativa com Buenos Aires, a preservação da autonomia decisória do Estado brasileiro em relação às potências hegemônicas, a estruturação de forças armadas eficientes na defesa da soberania, a proteção à indústria nacional. Uma vez obtida a independência, sua postura era a de que o reconhecimento do Império seria obtido mais cedo ou mais tarde, não cabendo ao Brasil fazer concessões às monarquias europeias.1

  • 2 Cf. J. Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império, vol. II: O Primeiro Reinado; edição fac-s (...)

4Tem início, logo após a promulgação da Constituição, outorgada pelo Imperador em março de 1824, o processo de obtenção do reconhecimento da independência, pelo envio de representantes aos principais países com os quais o Brasil português mantinha relações antes da separação. Esses países eram, pela ordem de importância econômica, comercial e política, os seguintes: Grã̃-Bretanha, França, a Santa Sé, Espanha, Áustria, estados da Alemanha, Estados Unidos, Argentina e, sobretudo, Portugal. Na verdade, os únicos reconhecimentos que interessavam ao Brasil, nessa fase, eram, segundo Calógeras, os seguintes: Portugal, pela legitimação do novo Estado e a cessação da situação de beligerância; Grã-Bretanha, pelo seu poderio naval, pela capacidade diplomática e como fonte dos financiamentos absolutamente necessários; Áustria e França, cuja política favorável às independências latino-americanas enfraqueciam os intentos agressivos da Rússia e da própria Espanha; Roma, pelas exigências da religião do Estado, reconhecida constitucionalmente; e as nações platinas, “pela contiguidade e pelas perturbações de ordem fronteiriça”.2

5A primeira missão foi feita em direção da Grã-Bretanha desde 1823. Ela prolongou-se no tempo, pois o governo inglês precisava explorar todos os aspectos da tripla relação com Portugal e o Reino Unido do Brasil: a extinção do tráfico negreiro, segundo compromissos de Portugal no Congresso de Viena, em 1815, e a continuidade dos tratados desiguais de 1810. Outra questão envolvia o interesse de Portugal em transferir para o Brasil a dívida financeira contraída junto aos banqueiros ingleses na fase dos reinos unidos, e pagamentos devidos a D. João VI por suas propriedades no Brasil. Tais assuntos se arrastaram nos dois anos seguintes, até que se logrou obter a assinatura do tratado de 1825 consagrando o reconhecimento formal, por Portugal, da independência do Brasil, assumindo este os ônus financeiros e diplomáticos tão criticados pela Assembleia Geral quando esta começou a funcionar.

6No intervalo, o Brasil obteve sucesso na missão de José Silvestre Rebelo em Washington, em 1824, na questão do reconhecimento formal da independência junto aos Estados Unidos, mas menos na intenção de José Bonifácio de se lograr um pacto defensivo entre os dois países contra tentativas de recolonização europeia das Américas, pela Santa Aliança. Tal medida foi feita pelo presidente Monroe, por meio de mensagem ao Congresso em 1823, pela qual a república americana declarava sua oposição a qualquer tentativa estrangeira de imissão nos assuntos hemisféricos.

7As relações com Buenos Aires tampouco foram isentas de atritos, a despeito do reconhecimento implícito da independência brasileira, mas não formalizada pelo envio de um plenipotenciário ao Rio de Janeiro, justamente em função das pendências sobre a Cisplatina, antes ocupada por tropas portuguesas e depois brasileiras, e anexada formalmente ao Brasil pela Constituição de 1824. Em 1825, Buenos Aires forneceu apoio à incursão do uruguaio Lavalleja contra as tropas brasileiras: a relação evoluiu para uma guerra aberta, que só seria resolvida por nova intermediação britânica, através do armistício de 1828, prevendo a independência do Uruguai. Mas se ele tinha a missão de ser “um algodão entre dois cristais”, esse amortecedor foi constantemente instável, dado o envolvimento dos dois grandes vizinhos nos assuntos internos do pequeno país, até a intromissão do paraguaio Solano Lopez, provocando a “maldita guerra” em função da qual se proclamou uma inédita “aliança tripartite” entre os três países na longa guerra travada contra o “Napoleão do Prata”.

8As relações com a Áustria não deveriam ser isentas de conflitos, dados os vínculos familiares estabelecidos entre os Habsburgos e os Braganças – formalizado no primeiro casamento de D. Pedro com Leopoldina –, mas o reconhecimento tardou, dada a complexidade dos interesses da Santa Aliança. O chanceler austríaco Metternich chegou a manter correspondência com D. Pedro I, e os dois travaram uma legítima “guerra diplomática”, que finalmente se dissolveu no reconhecimento quase geral das monarquias europeias ao Império sul-americano, depois do tratado entre Portugal e Brasil em 1825.

9Um reconhecimento que tardou em demasia foi o da Espanha, realizado apenas em 1834, depois da morte dos dois soberanos, Fernando VII da Espanha e D. Pedro de Portugal, depois do seu retorno ao país natal, em 1831, e de sua luta ganha contra o irmão para assegurar o trono português em favor de sua filha, D. Maria da Gloria. No caso do Brasil, o fator obstrutor da obtenção do reconhecimento pela Espanha foi a invasão portuguesa da Banda Oriental, posteriormente incorporada ao Império como “Província Cisplatina”. O fato de D. Pedro se alinhar aos liberais, e de poder ter sido eventual pretendente ao reino da Espanha, pode não ter sido indiferente ao longo processo de decisão adotado por ela.

10O estabelecimento de relações “normais” entre o novo Império do Brasil, herdeiro da casa dos Braganças, e os demais países, sobretudo as monarquias europeias, com as quais Portugal e Brasil tinham e mantiveram vínculos familiares e intensas trocas no início do século XIX, foram sendo normalizadas ao longo das Regências e, sobretudo, a partir do Segundo Império, mas sem mais tratados desiguais no plano comercial e sem as cláusulas iníquas impostas pela potência dominante da época.

A Bacia do Prata e a Cisplatina: a primeira guerra do Brasil

  • 3 Cf. Hélio Vianna, História do Brasil. 4ª ed.; São Paulo: Melhoramentos, 1966, 3 vols., II, p. 55.

11O Rio da Prata tinha sido devassado por navegadores portugueses desde 1513. Em 1680, depois de fundada Santa Maria de Buenos Aires em 1536, pelos espanhóis, na margem meridional, os portugueses fundar a Colônia do Sacramento no exato oposto setentrional, e também o fizeram em Montevidéu, em 1723. O Tratado de Utrecht de 1715 reconheceu os direitos portugueses sobre aquele posto, mas a luta entre portugueses e espanhóis pelo controle do estuário, e depois entre brasileiros e argentinos, durou um século e meio, até ser concluída em 1828.3 As iniciativas tomadas por José Bonifácio para criar uma possível aliança com os argentinos se chocavam com a ocupação da província oriental, primeiro por tropas portuguesas, depois brasileiras; as planícies uruguaias permaneciam agitadas pela guerrilha do líder independentista, José Gervasio Artigas.

  • 4 Cf. Rubens Ricupero, A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016. Rio de Janeiro: Versal, 2017 (...)

12Em 1825, Buenos Aires apoiou o desembarque de orientales que passam a lutar contra as forças do Imperador, sob o comando de Juan Antonio Lavalleja. “A guerra correu mal para o Império, cujas forças foram derrotadas na batalha de Passo do Rosário”.4 Depois de várias escaramuças terrestres e navais entre os dois vizinhos – inclusive com bloqueio de Buenos Aires pela Marinha imperial  –, decidiu-se, com a mediação inglesa, pela criação de um novo país independente, a República Oriental do Uruguai, em agosto de 1828, garantindo-se, a partir daí, a liberdade de navegação no Rio da Prata.

13A guerra da Cisplatina foi um erro, português, em seguida “brasileiro”, o que tisnou a imagem do novo Império do Brasil, uma designação que já denotava sombrias veleidades expansionistas, o que foi ainda aprofundado, anos depois, pelas contínuas intervenções nas constantes lutas entre blancos e colorados uruguaios, levando a um primeiro confronto com o ditador argentino Rosas, desembocando, mais adiante, na “maldita guerra” provocada pelo ditador paraguaio Solano Lopez contra um gigante pouco preparado para o conflito.

A lamentável diplomacia do tráfico escravo: defendendo o indefensável

14A questão do tráfico escravo ocupou as primeiras décadas de construção do instrumento diplomático brasileiro. O tráfico escravo mobilizava enormes capitais, conjugando os interesses de traficantes, em grande medida transportadores portugueses, e comerciantes e fazendeiros brasileiros. No plano interno, a prática da escravidão era uma instituição extremamente lucrativa, servindo-se dos poderes públicos, e mesmo de sua capacidade de projeção internacional, para promover ganhos privados.

  • 5 Ver Eduardo Silva, Dom Obá d’África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livr (...)

15A diplomacia brasileira foi mobilizada para o encargo pouco glorioso de conter o ímpeto dos ingleses, que pretendiam cortar o fornecimento de braços para a grande lavoura brasileira. O nefando comércio, assim como o próprio instituto da escravidão, sobreviveu durante tanto tempo porque logrou contar com o apoio das autoridades do país. De fato, a questão do tráfico negreiro configurou a mais perene e profunda tensão diplomática do Império, na medida em que condicionou as relações com a maior potência da época. Através de um percurso repleto de incidentes, o Estado imperial defendeu os interesses do conjunto do escravismo brasileiro, logrando manter o tráfico até meados do século.5

  • 6 Cf. Alberto da Costa e Silva, O Vício da África e outros vícios. Lisboa: Edições João Sá da Costa, (...)
  • 7 Cf. Alfredo Carlos Teixeira Leite, O Tráfico Negreiro e a Diplomacia Britânica. Caxias do Sul: Edu (...)

16A Inglaterra teve um papel decisivo nos contornos políticos e nas implicações econômicas do que se poderia chamar de “diplomacia do tráfico”. Esse papel não era evidente em princípios do século XIX, mas foi tornando-se mais e mais importante no período pós-napoleônico. “De grande mercadora de escravos, transformara-se em advogada ardorosa e militante da abolição do tráfico”.6 As colônias britânicas do Caribe também produziam açúcar: enquanto os produtores de açúcar no Brasil tinham garantida tal renovação, pelo tráfico negreiro, o mesmo não ocorria com os produtores das Antilhas, pois o governo britânico havia abolido a prática desde 1807. Portanto, para limitar ou afastar a concorrência brasileira, era preciso liquidar o tráfico para o Brasil, com vistas a criar condições de igualdade para a produção britânica no confronto com a brasileira.7

  • 8 Cf. Leslie Bethell, The abolition of the Brazilian slave trade: Britain, Brazil and the slave trad (...)

17Em 1826, o Brasil independente firmou um tratado com a Inglaterra pelo qual se comprometia a cessar o tráfico num prazo de três anos: efetivamente, lei de 1830 proibiu a introdução de escravos no Brasil, mas grandes quantidades de escravos continuaram a ser desembarcados ilegalmente nas costas do Brasil.8 O período posterior à independência, quando se tinha a perspectiva da supressão do tráfico em virtude dos tratados com a Inglaterra, e o anterior à sua abolição, quando tal evento se anunciava como fatalidade, conheceram aliás uma intensificação dos fluxos de navios.

18A primeira diplomacia brasileira teria na questão do tráfico um dos principais pontos de sua atuação negociadora externa, com repercussões diretas sobre princípios relevantes para a afirmação da nacionalidade, como os da soberania e intervenção externa em porções do território pátrio. A diplomacia britânica tentou condicionar o reconhecimento do Estado brasileiro à abolição do tráfico de escravos, o que foi obtido por tratado celebrado no Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1825, que previa os mesmos instrumentos de controle já estabelecidos no acordo de 1817 e fixava a abolição num prazo de quatro anos. Esse ato, porém, da mesma forma que o tratado de amizade, navegação e comércio da mesma data, não foi ratificado por nenhuma das partes, o que ensejou o envio de nova missão inglesa.

19A convenção sobre o tráfico, assinada em 26 de novembro de 1826, considerava subsistentes e obrigatórios para o Brasil as convenções de 1815 e 1817; essa convenção estabelecia o prazo de três anos para a abolição do tráfico, a contar da sua ratificação, efetuada em março de 1827, ou seja, previa-se a extinção do comércio negreiro em março de 1830. O primeiro gabinete regencial chegou a promulgar uma lei, em novembro de 1831, declarando livres todos os escravos vindos de fora do Império e impondo penas aos importadores. Essa lei, porém, “feita para inglês ver”, permaneceu letra morta, à falta de meios efetivos para a sua implementação.

20Nos anos seguintes, a diplomacia brasileira passa a ocupar-se das “Comissões Mistas” criadas pela Convenção de 1826. Nessa época, a parte brasileira não deixa de apresentar suas reclamações contra a Inglaterra, ficando muitas delas sem resposta: as petições são apresentadas por terem sido apreendidos barcos sem provas de que faziam tráfico, por terem sido queimados alguns brigues encontrados com escravos a bordo ou ainda pelo fato de outros terem sido condenados por tribunais puramente ingleses.

21Como a maior parte do tráfico se fazia sob navios de bandeira portuguesa, a partir de 1838, os ingleses, unilateralmente, “passaram a tratar como piratas todos os barcos portugueses empenhados no comércio escravista”. A medida, tomada em reação à recusa de Portugal de estender o tratado bilateral de 1817, materializou-se em 1839 no Palmerston’s Act do Parlamento autorizando a marinha britânica a dar busca em qualquer navio português em alto mar. Em 1842, Portugal concordou em pôr fora da lei o tráfico de negros. No caso do Brasil, o processo de extinção do tráfico demoraria alguns anos mais, ocupando sua diplomacia no absorvente e irritante trato com os britânicos a propósito de navios apresados, da validade dos artigos adicionais aos tratados de abolição do tráfico, de cruzeiros feitos em águas territoriais ou até em portos brasileiros, de pedidos de indenização por perdas ou do funcionamento das comissões mistas no Rio de Janeiro e em Serra Leoa. A partir dos anos 1840, as intervenções em alto-mar se fizeram em ritmo crescente.

22O contencioso com a Grã-Bretanha não se resumia apenas ao lado diplomático. A resistência das elites e a relutância do Governo em fazer cessar o tráfico do lado brasileiro se devia, obviamente, à magnitude dos interesses econômicos em jogo, não apenas os da grande lavoura, mas igualmente os dos comerciantes engajados no intercâmbio legal e ilegal com as costas africanas. De fato, como subproduto do tráfico, um fluxo regular de produtos naturais e de artigos processados de ambos os continentes se tinha estabelecido, desde antes da independência, entre o Brasil e a África. Foi esse comércio direto, que escapava aos circuitos frequentados pelas casas comerciais europeias, que começou a ser colocado em risco, e de fato veio a ser extinto, pela ação dos navios britânicos engajados no combate ao tráfico.

  • 9 Cf. Alan K. Manchester, British Preëminence in Brazil, its Rise and Decline: a study in European e (...)

23Essa resistência se exerceu, sobretudo, por meio da força do direito, quando a Grã-Bretanha recorreu seguidamente ao direito da força. A maior parte das disposições do tratado anglo-brasileiro de 1826 era de duração indefinida, mas os artigos tratando das buscas recíprocas e das comissões mistas remetiam à convenção luso-britânica de 1817, que tinha um prazo de 28 anos. Em consequência, em 1844, ao mesmo tempo em que o Brasil – numa tomada de posição que tem muito a ver com as pressões na área do tráfico – conseguia libertar-se dos efeitos desfavoráveis do tratado de comércio, têm início as tratativas com o Ministro britânico no Rio de Janeiro em torno de um novo projeto de convenção contra o tráfico negreiro. A questão do tráfico interferiu de tal forma “nas relações entre os dois países entre 1827 e 1842 que ela frustrou todos os esforços da Inglaterra em renovar o tratado comercial que ela tinha negociado como preço pelo reconhecimento da independência brasileira”.9

24A Secretaria de Estado passou Nota à Legação britânica, em novembro de 1844, declarando abolido, junto com outras disposições do tratado de 1827, o cargo de juiz conservador, símbolo secular das relações privilegiadas que a Inglaterra mantinha com Portugal desde o reino de D. Afonso V, o Africano, no século XV. A Constituição do Império tinha abolido o foro privilegiado, mas o tratado anglo-brasileiro de 1827 declarou-o subsistente até que se encontrasse solução satisfatória. Em março e julho de 1845, o Governo imperial passa novas Notas à Legação da Grã-Bretanha com vistas à cessação das convenções sobre escravidão de 1817 e de 1826. As comissões mistas do Rio de Janeiro e da Serra Leoa deviam cessar suas funções em setembro de 1845. Para o Brasil, as forças navais inglesas não mais poderiam perseguir navios brasileiros e levá-los a julgamento. A Inglaterra, que tinha aceitado, embora com visível antipatia, a caducidade do acordo de comércio, considerava, contudo, que os arranjos relativos ao tráfico tinham caráter de perpetuidade.

25A relutância do Brasil em renovar as cláusulas do direito de busca e as que tratavam das evidências materiais indiretas de transporte de escravos induziu o Governo britânico a reforçar as medidas punitivas. O ministro do Exterior, Lord Aberdeen, fez o Parlamento aprovar, em agosto de 1845, uma réplica do Palmerston’s Act, apenas que desta vez dirigido contra os negreiros brasileiros, equiparando-os, portanto, a piratas. As embarcações empregadas no tráfico seriam passíveis de julgamento no Alto Tribunal do Almirantado ou em qualquer tribunal do Vice Almirantado dentro dos domínios de Sua Majestade Britânica.

  • 10 Cf. Brasil, Ministério dos Negócios Estrangeiros. Relatório de 1846. Rio de Janeiro: Typographia N (...)

26O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Limpo de Abreu, passou Nota, em 22 de outubro, protestando contra o ato do Parlamento. A Nota representa uma aula de direito internacional, e nela também se procurava fazer uma distinção entre tráfico de escravos e pirataria: “O tráfico não ameaça o comércio marítimo de todos os povos como a pirataria”.10 O protesto foi entregue ao ministro inglês no Rio de Janeiro e chegou às mãos do governo britânico em dezembro de 1845; nunca teve resposta.

27Os protestos diplomáticos brasileiros a propósito dos arbítrios cometidos pela Royal Navy tornam-se uma constante nos relatórios de finais dos anos 1840, encontrando, porém, ouvidos moucos no Foreign Office. Em abril de 1850, Palmerston chegou mesmo a afirmar que o Aberdeen Act, permitindo a captura de navios brasileiros, não continha limites ou restrições à captura de navios traficantes. A resposta britânica, a partir de junho desse último ano, foi a intensificação da caça aos navios engajados direta e indiretamente no tráfico, com sua destruição ou aprisionamento inclusive em portos e rios brasileiros. Os custos financeiros, políticos e diplomáticos do tráfico estavam se tornando muito altos para o Brasil, mormente numa conjuntura de conflitos no Prata, em função dos quais o Governo imperial esperava obter suporte financeiro junto à praça londrina.

  • 11 Cf. Lydinéa Gasman, Documentos Históricos Brasileiros. Rio de Janeiro: Fename, 1976, p. 131-132.

28Em setembro de 1850, o Parlamento aprovou a lei Eusébio de Queiroz, proibindo o comércio de escravos e introduzindo ao mesmo tempo dispositivos eficazes para sua repressão. A lei 531, de 4 de setembro, estabelecia medidas para a repressão do tráfico de africanos, determinando a apreensão de embarcações, a imputação de crime, equivalente a pirataria, julgado pela Auditoria da Marinha em primeira instância e pelo Conselho de Estado em segunda, estipulando ainda a reexportação dos escravos para os portos de embarque; as medidas foram reguladas em decreto de 14/11/1850.11 A lei Aberdeen, contudo, foi revogada pelo Parlamento britânico apenas em 1869, numa conjuntura de conciliação de interesses entre os dois países, depois que a crise montante nas relações bilaterais, agravada pelo caráter arrogante do Ministro Christie, tinha conduzido, em princípios da década, à própria ruptura de relações diplomáticas.

Conclusão: a diplomacia brasileira na construção do Estado

29A despeito das frustrações e desacertos enfrentados nos dois grandes temas da primeira agenda externa do Brasil no momento da independência e nos anos seguintes – os conflitos com as Províncias Unidas na questão da Cisplatina e os com a Grã-Bretanha, na vergonhosa defesa do tráfico e da escravidão –, a diplomacia profissional brasileira representou, desde o período inicial da construção do Estado, um dos setores mais bem preparados e um dos mais eficientes e constantes na burocracia pública, cujos traços e características essenciais, nessa fase inicial do século XIX, eram, bem mais “patrimoniais” do que propriamente “racionais-legais”. Ao assegurar, nessa etapa formadora da nação, a representatividade internacional do Estado brasileiro, a classe diplomática brasileira contribuiu para a sua construção e fortalecimento. De fato, ao trabalhar, basicamente, no Estado, pelo Estado e para o Estado, ela ajudou a construir, com sua parcela de esforços, a própria identidade brasileira, embora bem mais voltada para a construção da Ordem política do que, propriamente, para a consolidação do progresso social. Mas, a diplomacia, em si, não poderia evitar os traços patrimonialistas e oligárquicos do novo Estado: ela também era uma de suas expressões mais acabadas, como eram, aliás, todas as demais diplomacias do mundo de Estados organizados então existentes.

30A despeito de não existir, formalmente, antes da conquista da autonomia nacional, ela começa a aprender de certa forma por osmose, uma vez que as relações internacionais do Brasil passaram a estar inseridas no quadro do primeiro grande arranjo “multilateral” do início do século XIX. No Congresso de Viena, em 1815, estiveram representadas apenas oito nações “cristãs”, o Brasil no contexto do “Reino Unido” ao de Portugal, em virtude da relação privilegiada da Coroa lusitana com a Grã-Bretanha e basicamente no contexto de seu envolvimento, embora involuntário, com o grande drama napoleônico que agitou a Europa na sequência da Revolução francesa. As relações de força e de poder desenhadas naquela primeira grande conferência diplomática da era contemporânea continuaram a dominar os desenvolvimentos diplomáticos (e militares) durante a maior parte do século XIX, tendo o Brasil se inserido desde o início no contexto regional, o que compreendeu igualmente a doutrina Monroe. Nessa primeira fase, caracterizada pelo realismo cru do início do século XIX, navios de guerra das nações “civilizadas” se achavam no direito de violar impunemente, em nome de um conceito peculiar de “justiça”, as águas territoriais de países periféricos e, como ocorreu em algumas ocasiões, até mesmo nos portos brasileiros.

31A diplomacia brasileira da independência pagou um alto preço na sua imagem externa em virtude das heranças recebidas do período português. A continuidade do tráfico e a da escravidão, no período brasileiro, a partir das Regências, não ajudou muito na construção de uma imagem melhor. Sua reconstrução viria aos poucos, de maneira muito lenta, talvez, para padrões civilizatórios mais aceitáveis no plano global.

Haut de page

Notes

1 Cf. João Alfredo dos Anjos, José Bonifácio, primeiro Chanceler do Brasil. Brasília: Funag, 2007, p. 91.

2 Cf. J. Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império, vol. II: O Primeiro Reinado; edição fac-similar; Brasília: Câmara dos Deputados, 1989, p. 386.

3 Cf. Hélio Vianna, História do Brasil. 4ª ed.; São Paulo: Melhoramentos, 1966, 3 vols., II, p. 55.

4 Cf. Rubens Ricupero, A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016. Rio de Janeiro: Versal, 2017, p. 138.

5 Ver Eduardo Silva, Dom Obá d’África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

6 Cf. Alberto da Costa e Silva, O Vício da África e outros vícios. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1989, p. 28.

7 Cf. Alfredo Carlos Teixeira Leite, O Tráfico Negreiro e a Diplomacia Britânica. Caxias do Sul: Educs, 1998, p. 9.

8 Cf. Leslie Bethell, The abolition of the Brazilian slave trade: Britain, Brazil and the slave trade question, 1807-1869. Cambridge: Cambridge University Press, 1970, p. 388.

9 Cf. Alan K. Manchester, British Preëminence in Brazil, its Rise and Decline: a study in European expansion. New York: Octagon Books, 1972, p. 159.

10 Cf. Brasil, Ministério dos Negócios Estrangeiros. Relatório de 1846. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1846, p. 12.

11 Cf. Lydinéa Gasman, Documentos Históricos Brasileiros. Rio de Janeiro: Fename, 1976, p. 131-132.

Haut de page

Pour citer cet article

Référence électronique

Paulo Roberto de Almeida« A diplomacia brasileira da Independência: primeiros obstáculos »Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Colloques, mis en ligne le 12 octobre 2024, consulté le 10 novembre 2024URL : http://journals.openedition.org/nuevomundo/96978 ; DOI : https://doi.org/10.4000/12hnw

Haut de page

Auteur

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor, doutor em Ciências Sociais, Diretor de Relações Internacionais do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal

Haut de page

Droits d’auteur

CC-BY-NC-ND-4.0

Le texte seul est utilisable sous licence CC BY-NC-ND 4.0. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.

 

Francis Fukuyama sobre Trump: o presidente mais inepto da história (Deutsche Welle)

 poLÍTICAESTADOS UNIDOS

"Trump não tem condição para ser presidente de nada"

Olga Tikhomirova
8 de novembro de 2024

Ainda antes da divulgação dos resultados oficiais nos EUA, a DW entrevistou Francis Fukuyama. Para o politólogo americano, a vitória do candidato republicano já era certa, e as consequências para o mundo serão drásticas.

Deursche Welle, 5/11/2024

O politólogo e economista nipo-americano Francis Fukuyama é famoso por traçar, em suas análises, vastas linhas históricas, com conclusões que beiram a predição profética. Sua obra mais popular, O fim da história e o último homem, publicado em 1992, portanto no ano seguinte à dissolução da União Soviética, exemplifica bem a amplitude de sua visão.

Com base na filosofia de Friedrich Hegel e Karl Marx, ele postula que naquele momento se alcançava "o fim da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma final de governo humano". Nos anos seguintes, Fukuyama foi também associado à ascensão do movimento neoconservador, do qual se distanciaria mais tarde.

A DW entrevistou o pesquisador de 72 anos sobre as eleições presidenciais de 5 de novembro de 2024 nos Estados Unidos, quando ele ainda acompanhava com seus estudantes o anúncio dos resultados oficiais. Na ocasião, Fukuyama já dava como praticamente certa a vitória do republicano Donald Trump – que acabou se concretizando –, resultando num preocupante impulso para o populismo de direita no mundo.

"Essa vitória vai mudar tudo. Trump não gosta de aliados, não gosta de ter que apoiá-los. Acho que ele vai conseguir um acordo de paz com Putin à custa da Ucrânia. Isso vai estabelecer um péssimo precedente para o resto da Europa."

Casa Branca em Washington, com letreiro "Stop" em primeiro plano
"Essa vitória vai mudar tudo", afirma autor Francis FukuyamaFoto: Getty Images/AFP/A. Caballero-Reynolds

DW: A eleição presidencial americana foi um dos eventos mais esperados no mundo em 2024; na Europa e na Alemanha, decisões importantes foram adiadas até após o resultado. Parece que chegamos a um ponto de inflexão, o começo de uma nova história. O senhor concorda?

Francis Fukuyama: Quanto a uma nova história, não sei, mas é certamente uma mudança importante para os Estados Unidos, e devido à influência que têm, acho que [uma vitória de Trump] vai afetar o mundo de modo negativo.

Na sua opinião, os americanos querem algumas mudanças?

Ainda é extraordinário quanta gente está disposta a votar em Donald Trump depois de tudo o que sabe sobre ele. Para mim é bem decepcionante, porque ele realmente não parece ter condição para ser presidente de nada. E acho que isso vai ter grandes consequências para o resto do mundo, pois encoraja todos os partidos populistas da Europa e de outros lugares.

Estamos vendo um alto nível de polarização na sociedade americana, mas ao mesmo tempo isso resultou numa participação eleitoral marcante. O número dos que votaram antecipadamente é fora do comum. Isso não é bom?

Bem, é bom se você não prestar a menor atenção nos resultados concretos que vão sair dessa votação. Penso que a participação pública não é a única coisa a se considerar, a gente também quer que as pessoas façam escolhas sábias quando votam. Acho que elas estão votando por causa de questões de curto prazo, como a inflação, sem atentar para outras, de longo prazo, muito mais importantes, como a sobrevivência do Estado de direito nos EUA.

Nós vemos certas semelhanças aqui na Alemanha, em termos do crescimento do populismo e da incapacidade dos partidos convencionais de se oporem a esse processo. Então, a verdade não vale?

Acho que os EUA permanecem muito influentes, a gente vai copiar o que acontece aqui, e me parece que isso vai provavelmente ocorrer na Alemanha. Então estou seguro de que a [sigla populista de direita Alternativa para a Alemanha] AfD vai se sair melhor, devido ao que acontece nos EUA.

De volta aos americanos e sua sociedade: parece que Trump apostou numa emoção, a de que o país deveria se concentrar mais em si mesmo, nos americanos, não no mundo inteiro. Isso vai resultar em mudanças no papel que os EUA vão desempenhar na ordem global, e na própria ordem, em si?

Vai mudar. Vai mudar tudo. Trump não gosta de aliados, não quer ter que apoiar aliados. Ele não gosta da Ucrânia, acho que vai conseguir um acordo de paz com [presidente da Rússia Vladimir] Putin à custa dela. Vai ser um precedente péssimo para o resto da Europa. No Extremo Oriente, não está claro que ele vá se dispor a defender os aliados dos EUA contra a China.

Entrevista: Francis Fukuyama

02:29

Então, esses riscos políticos em que estamos entrando agora são realmente de grande porte, e não só no setor de segurança. Afinal, ele quer impor uma tarifa aduaneira de 20% contra todos os outros países. E isso resultará numa depressão econômica global, pois vamos estar de volta ao tipo de situação dos anos 1930, depois que foi aprovada a lei de taxação Smoot-Hawley.

No tocante à interferência russa nas eleições americanas: a imprensa relatou diversos casos de manipulação, o jornal The New York Timesnoticiou sobre ingerências da Rússia, China e Irã. A influência foi tão grande assim?

Não sabemos. Não sabemos se houve interferência. Trump venceu. Não sei se algum dia vamos saber se houve aí uma relação causa e efeito forte, porque é muito difícil julgar essas coisas. Mas certamente a intenção estava lá. Acho que, para Putin, a principal esperança para uma vitória na Ucrânia era ter Trump como presidente.

Porque ele vai cortar o apoio à Ucrânia?

Isso.

Os principais tópicos da campanha presidencial foram as restrições à imigração e às importações, a economia e o acesso ao aborto. Tudo indica que os americanos estão se desviando dos valores liberais, em direção a posturas mais conservadoras, fechando o país e a sociedade. Isso é um movimento? Vai durar muito tempo?

Muito difícil dizer. O fato de Trump ter vencido duas eleições, apesar de tudo o que todo mundo sabe sobre ele, indica que há uma insatisfação real com o estado dos EUA. Não acho que as medidas políticas dele vão funcionar, acho que vão gerar inflação, recessão econômica, mais desemprego.

Então pode ser que daqui a quatro anos todo mundo vá ver que foi um grande erro reelegê-lo, e nesse caso as consequências de longo prazo serão muito diferentes. Mas no momento, eu simplesmente não considero um bom sinal que tantos americanos estejam dispostos a votar em alguém que é tão profundamente lesado.


Aqueles que não aprendem com a História, etc., etc., etc. e tal… - Paulo Roberto de Almeida

Aqueles que não aprendem com a História, etc., etc., etc. e tal…

Paulo Roberto de Almeida


Cansados de ler, repetidamente, que quando não aprendemos com a História, estamos nos condenando a repeti-la?

Pois é, é isso mesmo, e não adianta repetir o déjà vu costumeiro, mas, como também ensina a história, cada evento, cada processo, cada conjuntura histórica é sempre único, original e irrepetível, por mais que insistamos em fabricar ou manipular analogias históricas, geralmente erradas, mas que nos dão a falsa ilusão de que nós, os que repetimos a fatídica frase, é que aprendemos com o passado, todos os demais não.

Como somos arrogantes na nossa sapiência histórica, quase tanto quanto os completamente ignorantes, não só em História, mas em tudo o mais.

Na verdade, são esses que nos obrigam a, aparentemente, repetir a História, do alto de sua completa ignorância, com seus votos em democracia, com sua adesão a populistas espertalhões ou sua submissão a ditadores de plantão.

Os exemplos históricos são amplos e variados, mas os ignorantes ignoram sempre essas simples realidades.

Sorry, por ser decepcionante, repetidamente…

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 9/11/2024


Coligação anti-Haddad - Tiberio Canuto

Coligação anti-Haddad

Tiberio Canuto

Formou-se uma coligação de ministros do governo Lula contra o ajuste fiscal  pretendido por Haddad.  Quanto mais  Lula demora em bater o martelo, mais resistências se articulam. Dentro e fora do governo. Duas consequências são previsíveis:

  1 - Em vez de  um ajuste estruturante como prometiam o ministro da Fazenda e Simone Tebet  teremos um ajustezinho que  levará o Brasil, no médio  prazo, a mais um voo de galinha, com um pibinho, aumento da inflação e dos juros. Lula cede às pressões  dos seus ministros e das corporações, mas pode ter de disputar a reeleição em um quadro inflacionário e de baixo crescimento econômico e a consequente volta do desemprego. Se a sua preocupação é não ver  sua imagem agastada por ser obrigado a tomar medidas de reajustes antipáticas, mais à frente  sofrerá um desgaste bem maior se, como é previsível,  venha disputar a reeleição  em um quadro de crise econômica e social.  Os brasileiros aprenderam a não ter tolerância com a inflação.  O s anos Dilma, particularmente os do seu segundo mandato  fazem parte da memória recente dos brasileiros.

Imaginem o tamanho do estrago Lula tendo de disputar a reeleição  com inflação  de 7% a 8%,  dólar valendo sete reais, taxa básica de juros  básico  superior a 14%, a dívida pública chegando a 84%  do PIB. Isso não é terrorismo. É o que acontecerá  se o ajuste fiscal for um traque. 

2 – Ao não  conseguir convencer o governo – e aí principalmente ao não conseguir convencer Lula da necessidade de tomar medidas estruturantes – Hadad sofre  uma derrota séria. Sairá bem menor deste embate com a imagem desgastada.  Só um governo esquizofrênico  conspira para enfraquecer seu próprio ministra da Fazenda. O que pode acontecer de pior para a política econômica é ter  um ministro da economia  sem autoridade, combatido pelos seus próprios pares. Isso afeta  as expectativas, que em economia são fundamentais. 

O fato é mais grave  quando se leva em consideração  que Haddad é a única alternativa  do PT e do seu campo para ser o sucessor de Lula.  É  muita autofagia expô-lo, publicamente,  ao desgaste. Toda a credibilidade e respeitabilidade  do ministro da Fazenda está indo de água abaixo  por erros de condução de Lula, na definição do pacote a ser adotado.

A estratégia de Lula de deixar seus ministros se digladiar para depois arbitrar que caminho  seguir leva a um assembleísmo como estamos vendo. Isso alimenta a leitura que o próprio Lula tem interesses em desidratar o pacote e estimula seus ministros da área social a oferecer tenaz resistência  às propostas de Haddad.   É um absurdo o presidente assistir em seu gabinete os .inistros do Trabalho e da Fazenda  baterem boca.Ou alguém acredita que Rui Costa lideraria a coligação anti-ajuste fiscal  à revelia de Lula?

O governo e a autoridade do presidente também se enfraquece. Instala-se a anarquia, com ministros  publicamente dizendo que em suas áreas não se mexe  a não ser que os demitam. Outros dizem que deixam o governo se houver corte em suas áreas.  Ora, ao não efetuar cortes nas áreas dos ministros  verborrágicos Lula passa recibo de  que cedeu à chantagem.

Lula deveria fazer o que faria um presidente a altura das exigências. Inquerir e questionar seu ministro da Fazenda, até  chegar  a um consenso com o responsável pela política econômica sore as medidas necessárias. A partir daí comunicar aos outros ministros, proibindo-os de torpedear  publicamente o pacote do reajuste, que deixaria de ser do ministro da Fazenda para ser do próprio presidente da República. 

Mas é exigir muito que Lula  atue como um estadista que pense no Brasil, mesmo que isto provoque desgastes momentâneos à sua imagem.

Em vez disso, deixou correr solto   a coligação anti-haddad , engrossada pelas centrais sindicais e pela direção do PT.

A aliança Rui Costa-Gleisi Hoffman está desmoralizando Haddad.

Trotsky dizia que a revolução era como a figura mitológica Cronos, o deus do tempo que comia os próprios filhos.  É o que o governo e o PT estão fazendo com o seu melhor quadro.

Brasil: um passo à frente, dois para trás- Instituto Millenium, Paulo Roberto de Almeida

 Brasil: um passo à frente, dois para trás

 Instituto Millenium, Paulo Roberto de Almeida 

Primeiro a transcrição, depois o comentário:

“A alta de ontem [8/11/2024, na Selic] só coroou um movimento que já vinha acontecendo desde maio, com as projeções do mercado para a taxa Selic cada vez mais se descolando dos juros efetivos. No final de 2023, o boletim Focus mostrava um mercado otimista, que esperava terminar 2024 com a taxa de 9%, a sonhada Selic de um dígito. Hoje, no entanto, essa previsão já foi atualizada para 11,75%.”

Instituto Millenium

Comentário de Paulo Roberto de Almeida:

O Brasil nunca decepcionaria Roberto Campos, quem disse que o Brasil não perde oportunidade de perder oportunidades.

Com todo o aprendizado que já tivemos da má experiência da política econômica a partir de 2006, culmimando com a maior  crise e recessão econômica de nossa história, em 2014-15, seria de se esperar que os mesmos dirigentes petistas tivessem aprendido as lições de gastança desmesurada, do desequilíbrio fiscal e da irresponsabilidade orçamentária.

Não, parece que não aprendemos nada. Voltamos a cometer os mesmos erros.

Por acaso viramos argentinos?

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 9/11/2024


A decisão geopolítica mais relevante deste século - Paulo Roberto de Almeida

 A decisão geopolítica mais relevante para o resto deste século é a decisão de Trump se ele forçará, ou não, a Ucrânia a capitular em face de Putin. Se o fizer, estaremos de volta aos anos 1930. No comércio internacional já é o caso, aliás direto ao mercantilismo. 

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 9/11/3024

Surpresas da evolução “civilizatória” - Paulo Roberto de Almeida

Surpresas da evolução “civilizatória”

Paulo Roberto de Almeida


Em alguns momentos na vida de uma nação, qualquer uma das mais conhecidas, uma maioria de ignaros, preconceituosos e inconscientes vota em favos de um deles, tão ignorante quanto, mas suficientemente retórico, falador e convincente para lograr o apoio dessa maioria para se apossar do poder político nacional.

Já ocorreu na trajetória de muitos países. Relembrando apenas os casos mais notórios: Itália nos anos 1920, Alemanha nos anos 1930, Argentina nos anos 1940, continuando nos anos 1950 e mais além, Brasil em 1960 (elegendo Jânio, com consequências imprevisíveis nos anos seguintes), alguns europeus nos anos 1970 (Grécia, Itália etc.), vários países latino-americanos nos anos 1980 (levando todo o continente a estagnar em face de asiáticos nos anos seguintes), a Rússia nos anos 1990 (com consequências terríveis para o país e para o mundo todo nos 20 anos seguintes), os EUA duas vezes seguidas nos anos recentes, com efeitos inclusive sobre o Brasil, talvez durante mais anos no futuro previsível.

É uma espécie de maldição que se abate sobre diversas sociedades e nações: a ignorância também pode prevalecer pela via democrática mais de uma vez. Está aí a Argentina que não me deixa mentir.

Estou sendo muito irônico, sarcástico ou o quê? Por acaso estou errado nos registros históricos?

Paulo Roberto Almeida

Brasília, 9/11/2024


Rússia: “Vamos fazer Ciência, não a guerra” - Glauco Arbix

From: Glauco Arbix (Linkedin)

Putin conseguiu degradar uma ciência outrora pujante. Vigiados e amordaçados, pesquisadores de todas as áreas procuram outros países e ambientes para gerar conhecimento. Fora do complexo militar, que concentra o interesse do governo, os laboratórios se degradam e manifestações críticas à guerra são duramente reprimidas. A revista Science trouxe uma sequência de depoimentos de cientistas que, ainda na Rússia, mas protegidos pelo anonimato, relataram a censura e a vigilância sobre as universidades e a pesquisa. Cientistas, ainda na Rússia, na condição de anonimato, falaram da mordaça e do controle que constrange hoje a ciência russa. Mesmo assim, contra o medo, uma carta aberta com mais de 4 mil assinaturas de cientistas e estudantes contra a guerra conseguiu circular. E foi reprimida com milhares de prisões. Essa resistência é exemplo para quem acha que a ciência é neutra e nada tem a ver com a política. Ciência não floresce em torres de marfim. Precisa de liberdade e da troca de conhecimento. Seria oportuno que, no G20, a ciência brasileira se manifestasse contra a guerra da Ucrânia e repetisse a exclamação dos cientistas russos gravada na carta aberta: ‘Vamos fazer ciência e não a guerra!'.

https://lnkd.in/dmDxvgy3 


Russia problems are compoundig faster than you think - Operator Starsky

 Russia problems are compoundig faster than you think

https://youtu.be/3za70_RNitA?si=h6j-Jex347bbTX4z

Operator Starsky, the well-known Ukrainian veteran, reservist, blogger, and co-founder of the Propaganda Study Institute, says that Russia is anxious to prove to others that it is a global leader. However, the recent BRICS meeting in Kazan, Russia, like Moscow's move to import North Korean troops, are signs that all is not well in the Kremlin.

Russia has continued to struggle with a lack of manpower. To cope with this, Russia is offering new military recruits tens of thousands of dollars to join the military. The catch? Most never make it back home alive.

Russians, knowing that the odds are against them surviving for long in the army, are reluctant to join, hence Moscow's initiative to attract more mercenaries from the developing world.

Dealing with a lack of able-bodied soldiers and internal economic problems, whilst winter approaches, things are likely to get only worse for Russia.

Vladimir Putin is facing a quagmire from which he has few means by which he can escape.

Operator Starsky can be followed: /‪@StarskyUA‬ 

https://x.com/@starskyua 


sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Augusto de Franco faz uma análise preliminar da vitória de Trump - Identidade Democrática

Uma análise de um dos mais finos analistas do jogo democrático no Brasil e no mundo. 

Minha análise preliminar da vitória de Trump

La victoria aplastante de Trump en Iowa allana el camino a su nominación  como candidato republicano a presidente | Elecciones USA | EL PAÍS

Trump está eleito. Pelo voto popular e pelo colégio eleitoral. Elegeu também a maioria do Senado e da Câmara. Elegeu a maioria dos governadores. E pode ampliar sua maioria na suprema corte. Com isso, aumentam as chances de que ele inaugure uma nova era nos EUA. O que vem por aí, todavia, não será bom para a democracia e para a humanidade.

Será péssimo para a Ucrânia e muito ruim para a coalizão das democracias liberais que foram decisivas para impedir que o expansionismo neoczarista de Putin tomasse o país e dissolvesse aquela nação. Será ruim para a União Europeia, dinamitada por dentro por aliados de Trump, como Viktor Orbán e por salientes expoentes da extrema-direita como Ventura, Abascal, Wilders, Chrupalla e Weidel, Purra, Salvini, Le Pen. Será ruim para a OTAN e para os países por ela protegidos (sobretudo os bálticos, a Suécia e até a Polônia) contra a avanço do eixo autocrático tendo como ponta de lança a ditadura expansionista russa. Será ruim para as democracias liberais como um todo. E será ruim para os regimes eleitorais que estão resistindo à ascensão ou ao retorno de populistas de direita (por exemplo, no Brasil, para os que tentam impedir a volta ao poder do bolsonarismo).

Revista ID é uma publicação apoiada pelos leitores. Para receber novos posts e apoiar meu trabalho, considere tornar-se uma assinatura gratuita ou uma assinatura paga.

Será ruim para o desenvolvimento sustentável do planeta, na medida em que Trump é um negacionista das mudanças climáticas. Além disso, o isolacionismo trumpista tipo America First, será ruim para o desenvolvimento humano e social dos países periféricos que precisam da ajuda americana e ocidental. Por último, será ruim para a paz no mundo (se Trump estivesse vivo em 1942, falaria cinicamente em paz numa Europa ocupada pelos nazistas; aliás, os EUA nem teriam entrado na guerra contra Hitler). 

Claro que, mais diretamente, a primeira vítima será o próprio modo de vida democrático da sociedade americana: não que Trump e o trumpismo (MAGA) sejam capazes de acabar com a democracia americana; não, pelo menos, nos curto e médio prazos, mas os EUA iniciarão um longo processo de “mutação genética” capaz de alterar lentamente (ou não tão lentamente) o “DNA” do seu regime democrático.

A vitória de Trump pode - dependendo de como ele quiser e for capaz de governar - instalar ou acirrar uma guerra civil fria nos EUA, ainda que no início subterrânea. Se isso acontecer, num suposto estado de guerra não declarado, não haverá estabilidade a não ser no movimento de avanço da autocratização. Se a cultura democrática da sociedade americana não conseguir resistir a isso teremos uma desconstrução dos EUA tal como hoje se configuram. Não será mais, a rigor, mais uma (única) "nação": em breve teremos “estados progressivamente desunidos”. Impossível prever agora o desfecho desse processo nos médio e longo prazos.

Fala-se que as instituições americanas são resilientes e que o fato de o povo ter votado majoritariamente em Trump é uma prova disso. Venceu quem teve mais votos. Mas tal discurso parece mais aquelas recomendações de autoajuda. Um consolo ou autoconsolo. No entanto, é impossível deixar de ver que a vitória de Trump revela uma crise da democracia americana (e não só da democracia americana). A maioria dos americanos perdeu a confiança nas suas instituições tradicionais. Corporações, forças armadas, universidades, tribunais - muitos milhões de cidadãos do Estados Unidos não confiam mais em nada disso. Mas a provavelmente obscurantista Era Trump, que agora começa, é um dos efeitos da terceira grande onda de autocratização que já engolfa o mundo todo em meados da terceira década deste século. Vale a pena dar uma espiada no diagrama abaixo:

Imagem

Não sabemos se (e quando) haverá uma quarta onda de democratização; ou seja, não sabemos quanto vai durar esta terceira onda de autocratização na qual estamos imersos. Trump - ou o trumpismo MAGA - no poder não abrevia, antes prorroga a duração da terceira onda de autocratização. Seu provável sucessor, J. D. Vance, eleito agora vice-presidente, pode piorar muito as coisas porque é mais articulado intelectualmente, inclusive com bilionários e “ideólogos tecnológicos” que já descartaram abertamente a democracia (e agora a desafiam), como Musk e Thiel. 

Não foram os analistas políticos e sim as urnas que mostraram que as instituições americanas não são mais confiáveis para a maioria dos americanos. Se tivermos que apostar em alguma coisa daqui para a frente será na cultura democrática da sociedade americana. Vamos ver. Quase certo, porém, que vem por aí mais um período de trevas: a democracia, na história, já passou por muitos períodos assim. Aliás, a democracia já ficou sumida durante dois milênios, de 322 a.C., com o fim da democracia ateniense, até meados do século 17, quando o parlamento inglês resolveu resistir ao poder despótico de Carlos I - para ressurgir, ou ser reinventada, como regime eleitoral pré-democrático em 1790 na Inglaterra e Irlanda (seguida em 1792 pela França e em 1796 pelos EUA), mas somente como democracia liberal em 1919.

Há uma cultura democrática na base da sociedade americana, sobretudo nas grandes cidades das costas leste e oeste (mas não nas zonas rurais do grande "centrão" do país). É essa cultura que ainda mantém a democracia nos EUA - a defesa de um modo de vida democrático - não mais a cultura predominante no establishment político, não o sistema judicial (e a suprema corte), não o defasado sistema eleitoral, não as direções dos maiores partidos - que sempre quiseram, desde os Pais Fundadores, uma república governável (de inspiração romana, oligárquica e aristocrática, que tomava a ordem como sentido da política), muito mais do que uma democracia (de inspiração ateniense, que tomasse a liberdade como sentido da política). 

São míticas as afirmações de que os Estados Unidos foram o primeiro país democrático, são a maior e a melhor democracia do mundo e são modelo de democracia plena. Os EUA forem o quarto país a adotar um regime eleitoral, na onda pré-democrática que vai de 1790 a 1848. Os EUA também foram retardatários na primeira onda de democratização, que vai de 1849 a 1921. Além disso os EUA foram retardatários em termos de adotar a democracia liberal. A Suíça já foi democracia liberal em 1849, a Austrália em 1858, a Bélgica em 1897, a Dinamarca em 1902, a Noruega em 1906, a Nova Zelândia em 1913, a Holanda em 1918 e a Inglaterra em 1919. Os EUA só viraram uma democracia liberal em 1969. 

Cabe reconhecer, por último, que os EUA não são mais, há muito tempo, uma democracia plena (e sim flawed) (1) e está em jogo, neste momento, até quando vão poder continuar sendo considerados uma democracia liberal (categoria na qual, como foi dito acima, se juntou muito tardiamente). Mas há uma vigorosa cultura democrática na sociedade americana - que cresceu a partir da extraordinária acumulação de capital social, em especial na Nova Inglaterra, a partir de meados do século 19 - e essa cultura era o único fator que poderia ter impedido a nova eleição do populista-autoritário, escroque e boçal, Donald Trump. Não deu. Talvez porque o capital social americano venha sendo continuamente dilapidado, seja pela centralização em Washington e pela multicentralização governamental na maioria dos estados, seja pela recorrência sistemática aos tribunais para resolver qualquer dilema banal da ação coletiva, seja pelo complexo científico-industrial-militar e, claro, pelas guerras. Agora estamos prestes a ver se o que ainda sobrou dessa cultura democrática será suficiente para resistir à Era Trump.

As causas da vitória de Trump são, portanto, muito mais profundas do que a falta de um discurso "progressista" palatável ao homem e a mulher comuns de classe média que votam em massa no "agente laranja". Alguns dizem que os progressistas estão entregando o mundo de bandeja aos fascistas por uma espécie de deficiência de marketing eleitoral. É como se tivessem um discurso inadequado ou não conseguissem mais conversar com parte do eleitorado. Mas isso está, simplesmente, errado. E é uma narrativa enganadora. Está errada, em primeiro lugar, essa classificação das forças políticas em conservadores, liberais e socialistas - os dois últimos compondo um mesmo campo progressista. O que é progressista? Zé Dirceu é progressista? Se for, os democratas não podemos ser progressistas. Liberais e socialistas (hoje populistas de esquerda, iliberais) não podem compor um mesmo campo. Está errada, em segundo lugar, porque não diz uma palavra sobre a maior ameaça que paira sobre as democracias liberais na atualidade: a formação de um agressivo eixo autocrático reunindo as maiores e mais brutais ditaduras do planeta.

Sim, eleito Donald Trump, temos de ter cuidado com essa conversa (da esquerda, dita progressista) de que a "internacional fascista" é a principal ou a única ameaça à democracia. 

É verdade que agora temos mais um - o sexto - governante populista-autoritário, dito de extrema-direita, no mundo: Orbán, Erdogan, Meloni, Bukele, Milei e... Trump! Mas ainda é um número muito menor do que o de autocratas, ditos de esquerda, que governam ditaduras: Xi Jinping (China), Kim Jong-un (Coreia do Norte), Phạm Minh Chính (Vietnam), Díaz-Canel (Cuba), Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua), Sonexay Siphandone (Laos) - para não falar de Vladimir Putin (Rússia), que investe nos dois lados e, claro, dos autocratas islâmicos, como Ali Khamenei (Irã), Bashar al-Assad (Síria) e não menos do que outros quinze ditadores (2). E atenção: não estão incluídos aqui os chefes de governo de regimes eleitorais não-autoritários e não-liberais, parasitados por populismos de esquerda (ainda chamados de democracias apenas eleitorais ou defeituosas), que se alinham ao eixo autocrático, como López Obrador e Claudia Sheinbaum (México), Xiomara e Manuel Zelaya (Honduras), Luis Arce e Evo Morales (Bolívia), Gustavo Petro (Colômbia), Lula da Silva (Brasil), Cyril Ramaphosa (África do Sul), talvez Prabowo Subianto (Indonésia) et coetera.

Podem ser apontados outros fatores. Embora isso não tenha sido determinante para a derrota de Kamala, é claro que a esquerda identitária americana atrapalhou muito a postulação da candidata democrata. Como diz o Yascha Mounk, trata-se de uma visão "paralela à visão de mundo tribalista que historicamente caracterizou a extrema-direita". Kamala, que namorou com essa visão ao concorrer as primárias democratas em 2019, não conseguiu se desvencilhar totalmente desses aloprados que propunham desfinanciar a polícia ou descriminalizar travessias ilegais de fronteira - embora ela não tenha feito mais isso na campanha eleitoral de 2024. Mas a nódoa ficou porque ela não enfrentou abertamente os fundamentos dessa visão antidemocrática e eleitoralmente suicida.

Tais razões, entretanto, são menores diante da influência da ascensão de um eixo autocrático, o mais poderoso já articulado em toda a história humana e da segunda grande guerra fria que já está em curso. De certo ponto de vista, os EUA, nas eleições de ontem, foram um palco dessa guerra, que não é mais a confrontação de dois blocos geograficamente demarcados, como foi a primeira guerra fria e sim um conflito fractal que pervade todas as fronteiras instalando polarizações que dividem as sociedades nacionais. Sem tal polarização, Trump não teria vencido. Mas esse é tema para um próximo artigo.

Notas

(1) Os EUA figuram em vigésimo-nono lugar do ranking de democracia da The Economist Intelligence Unit (2023).

(2) Entre os quais Hibatullah Azhundzada (do Afeganistão), Mohammad bin Salman (da Arábia Saudita), Salman bin Hamad bin Isa Al Khalifa (do Barein), Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani (do Catar), Xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum (dos Emirados Árabes Unidos), Mohammed Ali al-Houthi (do Iémen), Abdullah II bin Al Hussein (da Jordânia), Mishal Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah (do Kuwait), Mohamed al-Menfi e Abdul Hamid Mohammed al-Dabaib (da Líbia), Maomé VI e Aziz Akhannouch (do Marrocos), Haitham bin Tariq Al Said (de Omã), Hassan Sheikh Mohamud (da Somália), Abdel Fattah al-Burhan (do Sudão). 

Revista ID é uma publicação apoiada pelos leitores.

Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...