sábado, 25 de outubro de 2025

Nova história econômica? - Marcelo de Paiva Abreu, Luiz Aranha Correa do Lago, André Arruda Villela (resposta a Edmar Bacha)

Nova história econômica?
Marcelo de Paiva Abreu
Luiz Aranha Correa do Lago
André Arruda Villela

Nota sobre o artigo de Edmar Bacha em O Globo de 6/10/2025

As diferenças de opinião sobre regimes políticos tendem a ser apaixonadas, até no Brasil, opondo simpatias republicanas e monarquistas. É saudável que as diferenças sejam baseadas em avaliações históricas objetivas.
Edmar Bacha, ao anunciar o seu artigo com Guilherme A. Tombolo e Flávio Rabelo Versiani (BTV), “Secular stagnation? A new view on Brazil’s growth in the 19th century” na Revista de História Econômica, em O Globo de 6.10.25, escolheu como título “Nova história econômica”. Pretensão descabida.
O principal argumento do artigo é que, ao contrário do que sugere a interpretação dominante na literatura, entre 1820 e 1850 o PIB per capita brasileiro, longe de estar estagnado, cresceu 0,8% ao ano. A argumentação revisionista não se sustenta. Se o PIB per capita do Brasil tivesse crescido 0,8% entre 1820 e 1850, como argumentado por BTV, teria superado o desempenho do PIB per capita da Europa Ocidental (incluindo o Reino Unido) e da América Latina (ambos 0,5% ao ano) e estaria próximo do crescimento do PIB per capita no mesmo período do Reino Unido (0,9%) e dos EUA (1,0%). Os resultados são questionáveis, a despeito de afirmações como a de que “o ritmo do crescimento brasileiro foi aparentemente bastante normal no contexto do padrão geral do século”.
As referências históricas de BTV são seletivas. Reconhecem que o Brasil esteve sujeito a uma tempestade perfeita na última década do século XIX. Mas, curiosamente, silenciam sobre as tempestades que afligiram o Brasil no período 1820-1850: Guerra da Independência 1821-1824, Guerra Cisplatina 1825-1828, crises de governabilidade, revolta dos Malês de 1835, Revolução Farroupilha 1835-1845, revolta Liberal da década de 1840, consequências do Bill Aberdeen de 1845 sobre o tráfico de escravos.
Entre as contribuições que, segundo BTV, endossariam a tese de estagnação no Brasil Império estaria o livro de Marcelo de Paiva Abreu, Luiz Aranha Correa do Lago e André Arruda Villela, A passos lentos. Uma história econômica do Brasil Império, São Paulo, Edições 70, 2022 [ALV]. Leitura desatenta: o livro de ALV não sugere estagnação no Brasil Império e sim, como pode ser lido à página 56, “uma conjectura de intervalo amplo para a taxa de crescimento do PIB per capita entre 0,2% e 0,5% para o período imperial poderia ser adotada como hipótese preliminar.”
Fragilidades metodológicas afetam a geração das duas séries centrais na pretendida revisão de BTV: o produto nominal e o deflator necessário para gerar o produto real. Os autores estimaram o produto nominal pela arbitrária combinação de três variáveis: a média aritmética das importações e exportações nominais, a média aritmética das receitas e despesas do governo e a oferta de moeda. A discutível agregação é resultado da inacreditável aplicação à primeira metade do século XIX de pesos computados para o período 1900-1947. E, já que até recentemente não existiam índices de preços confiáveis para o período anterior a 1870, os autores utilizaram a média dos índices de preços reconhecidamente precários de Mircea Buescu e Eulália Lobo et al. A tônica é: “quando não há dados, nós os criamos”. São ousadias analíticas indefensáveis.
Nova história econômica? O afã revisionista de BTV parece ter resultado da convergência de banzo monarquista – como os autores reconhecem – com empirismo inconsequente. A despeito da jactância, os resultados são fracos: a fragilidade da argumentação compromete de forma decisiva o ímpeto revisionista.



Nota PRA: Eu postei o artigo do Edmar Bacha no meu blog Diplomatizzando, em 6/10/2025, neste link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/10/nova-visao-da-historia-economica-do.html

Tradução de “A Formação do Espírito Científico”, de Gaston Bachelard, pela Editora Contraponto (Cesar Benjamin)

Vale a pena registrar este fabuloso empreendimento editorial, como esclarecido por César Benjamin. Como ele escreve, “ “… o filósofo não procura estabelecer a relação do saber, produzido pelos homens, com as coisas, mas a relação desses homens com seu próprio saber.” PRA


 Quando criei a Contraponto, comecei a procurar títulos fundamentais, mas que, por qualquer razão, não haviam chegado no Brasil. O primeiro deles foi “A formação do espírito científico”, de Gaston Bachelard, decisivo na minha própria formação intelectual. 

Escrevi para a Vrin, editora francesa. Eles me disseram que o livro estava sob controle de Madame Suzanne Bachelard, filha do mestre, que exigia aprovar as traduções, com sua equipe, antes de vender os direitos. Já havia recusado duas tentativas para a língua portuguesa e acabara de recusar uma, de Cambridge, para o inglês. Era isso que explicava a ausência. 

O desafio estava lançado. Fizemos a tradução sem ter os direitos de publicação. Tempos depois, recebi uma carta em que Madame Suzanne não só liberou a nossa edição, mas nos concedeu direitos para toda a obra científica do pai, que estamos publicando.

É muito bom ver este livro genial chegar à décima sétima reimpressão.

A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO

GASTON BACHELARD -- décima sétima reimpressão

Tradução de Estela dos Santos Abreu

316 páginas -- de R$ 96,00 por R$ 57,60 no site da editora

https://www.contrapontoeditora.com.br/produto.php?id=69

Pela primeira vez, o leitor de língua portuguesa tem acesso ao livro mais importante de um dos filósofos mais importantes de nossa época. Escrito em 1938, e desde então reeditado em todas as línguas de cultura, “A formação do espírito científico” tem sido adotado em universidades brasileiras sempre a partir de edições estrangeiras ou de traduções de pequenos trechos, veiculados de mão em mão.

Tal lacuna do nosso mundo editorial talvez se explique pelas excepcionais dificuldades que cercam a tradução deste livro: não obstante sua clareza e sua beleza, ele usa amplamente textos e conceitos da alquimia, da química e da física dos séculos XVII e XVIII. Foi o desafio que a Contraponto Editora aceitou enfrentar, entregando-o às mãos competentíssimas de Estela dos Santos Abreu, que, quando necessário, recorreu ao auxílio de especialistas para realizar um trabalho à altura da grandeza do autor.

A partir de 1940 e até sua morte, Gaston Bachelard (1884-1962) exerceu marcante atividade docente na Sorbonne, onde formou gerações de pensadores que nunca esconderam sua gratidão ao mestre. Escritor admirável, dono de um dos mais belos estilos que a prosa filosófica conheceu em todos os tempos, recebeu em 1961 o Prix National des Lettres.

“A formação do espírito científico” se insere numa sequência de obras que marca o período mais criativo do Bachelard “diurno”, aquele que pensa o saber científico: “Etude sur l´ évolution d´um problème de physique: la propagation thermique dans les solides” (1927), “Essai sur la connaisance approchée” (1928, também publicado pela Contraponto), “La Valeur inductive de la relativité” (1929), “Le Pluralisme cohérent de la chimie moderne” (1930, publicado pela Contraponto), “Le Nouvel esprit scientifique” (1936), “La Philosophie du non” (1940). A eles se somam os livros do Bachelard “noturno”, que se debruça sobre a criação artística, o devaneio, as imagens poéticas, as potências da imaginação.

Num e noutro caso, o filósofo não procura estabelecer a relação do saber, produzido pelos homens, com as coisas, mas a relação desses homens com seu próprio saber. Em “A formação...”, Bachelard destaca as armadilhas e dificuldades que cercam a descoberta de conceitos fundamentais, a função positiva dos erros nessa gênese (“O espírito científico se constitui como conjunto de erros retificados”) e, principalmente, o caráter recorrente e geral de certas resistências ao conhecimento científico. Ao contrário do que se poderia pensar, esses “obstáculos epistemológicos” não pertencem ao passado: “As forças psíquicas que atuam no conhecimento científico são mais confusas, mais exauridas, mais hesitantes do que se imagina quando consideradas de fora (...). Mesmo na mente lúcida há zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sombras. Mesmo no novo homem permanecem vestígios do homem velho. Em nós, o século XVIII prossegue sua vida latente.”

Justamente porque esses obstáculos ao conhecimento estão presentes dentro de nós e espalhados à nossa volta, e porque sua superação é um desafio que sempre se renova, “A formação do espírito científico” tornou-se um clássico, um texto perene, cujo potencial didático nunca se esgota: ele não nos ensina coisas, nos ensina a pensar.

César Benjamin 

40% de desconto em todo o catálogo para compras no site da editora. Você recebe os livros em casa. Pagamento por meio de boleto bancário, PIX ou parcelado em até três vezes nos cartões. Frete grátis em compras acima de R$ 250,00. Para mais informações, clique no link.

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sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Opções da diplomacia brasileira num mundo em desordem - Paulo Roberto de Almeida (Revista Será?)

Opções da diplomacia brasileira num mundo em desordem

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Publicado na revista digital Será?, ano xiv, n. 681, 24/10/2025, link: https://revistasera.info/2025/10/opcoes-da-diplomacia-brasileira-num-mundo-em-desordem/

            A questão completa deveria ser esta: quais são as possibilidades e limites da diplomacia brasileira no atual estado turbulento do mundo? À diferença dos dirigentes políticos que comandam o Estado, a diplomacia é uma instituição permanente, mas ela é uma simples ferramenta do Estado, na verdade, do governo de plantão, pois é este que dá instruções e fornece instrumentos de ação aos diplomatas que vão atuar no cenário mundial em função dos interesses nacionais desse Estado, ou num entendimento mais restrito, segundo a vontade do governo que comanda temporariamente ao Estado.
            O Brasil possui, dentre as suas instituições de Estado, uma diplomacia que já existe desde pouco mais de 200 anos, encarregada de operar a política externa definida pelos dirigentes do Estado, eleitos democraticamente ou instalados no comando do Estado em alguma dinâmica política qualquer: independência, constituinte, golpe de Estado, revolução, qualquer outra forma de inauguração de um novo regime político. O Brasil já passou por tudo isso e exibe, desde a redemocratização de 1985, um regime republicano de média qualidade institucional, pois que submetido ocasionalmente a tentativas de rupturas: são quatro décadas passavelmente democráticas, mas já com dois impeachments e várias mudanças nas leis eleitorais, desde 1997 com a possibilidade de reeleição, inexistente na origem.
        Ela possui grande credibilidade internacional, pela qualidade de seus quadros, assim como pelos padrões exibidos de trabalho, baseados em sólidos fundamentos doutrinários, dotado de valores e princípios que estão contidos em acordos e tratados internacionais, assim como em nossa própria Constituição, nas cláusulas de relações internacionais do seu Artigo 4o. Entre estes princípios estão a independência nacional, igualdade soberana dos Estados, a não interferência nos assuntos internos de outros Estados, a proibição das guerras de agressão ou de conquista, a solução pacífica dos conflitos, a prevalência dos direitos humanos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, e a cooperação entre os povos para o desenvolvimento pacífico da humanidade.
        Mas, no tratamento e encaminhamento dos temas da agenda internacional que são colocados em debate nos organismos intergovernamentais ou introduzidos pelos próprios países, por meios institucionais ou em oposição a determinados princípios do Direito Internacional, a diplomacia profissional do Brasil deve, obviamente, cumprir instruções que lhes são determinados pelos governantes eleitos democraticamente, supondo-se que essas determinações também representem certo consenso nacional, expressem os interesses nacionais do país e contem com respaldo suficiente no Congresso Nacional, o órgão do Estado que fiscaliza as ações do Executivo, que comanda as ações da diplomacia.
        As opções da diplomacia brasileira, portanto, não são apenas as que lhe são ditadas institucionalmente, mas também as do próprio Estado brasileiro, ou pelo menos as possibilidades e limites que figuram no programa, ou na vontade política, do governo que se assume temporariamente o comando do Estado. A diplomacia brasileira não é totalmente livre, nem para testar seus limites e possibilidades, nem para determinar, segundo seus próprios princípios e valores, segundo sua experiência ou vontade própria, a condução da política externa a ser tomada num tema preciso da agenda internacional.
        Vamos partir de um exemplo simplório, no caso alianças internacionais ou coalizão com outros Estados em caso de guerras entre eles, geralmente grandes potências. A situação se colocou concretamente ao Brasil no final dos anos 1930, uma década marcada pela emergência e afirmação de potências militaristas e expansionistas, geralmente de cunho totalitário (fascistas, mas incluindo também o comunismo bolchevique), que deslancharam guerras de agressão nos dois extremos da Eurásia: o Japão imperial contra a República da China, em 1931 na Manchúria e em 1937 contra o resto do país, e a Alemanha nazista contra Estados centro-orientais europeus, anexações da Áustria em 1938, a Boêmia no mesmo ano, depois o resto da Tchecoslováquia no ano seguinte, seguidas, a partir de uma coalizão com a União Soviética, de uma guerra de agressão e a anexação contra a Polônia, para, no seguimento, se lançar contra as democracias da Europa ocidental.
        O Brasil ao lado dos Estados Unidos, se declararam neutros, ao início, mas foram depois envolvidos no grande jogo estratégico da coalizão das potências agressoras. Nessa hora, a diplomacia brasileira poderia recomendar a manutenção da neutralidade, assim como o fez a Argentina, já dominada pelos militares do GOU, o Grupo de Oficiais Unidos, que não rompeu com as potências belicistas praticamente até o final da guerra. No Brasil, a condução do chanceler Oswaldo Aranha resultou na aliança com as Nações Aliadas do Ocidente, em primeiro lugar os Estados Unidos, a despeito de evidente simpatia de muitos próceres do Estado Novo, ele mesmo de natureza semifascista, pelas potências fascistas, aparentemente vencedoras ao início do conflito global. A política externa e a diplomacia se conjugaram na tarefa de consumar as alianças necessárias na defesa concreta dos interesses nacionais, já sob ameaça de afundamentos adicionais de navios nacionais nas águas do Atlântico Sul, o que levou forças militares do Brasil até os campos de batalha da Europa.
        Depois de oitenta anos sem novos conflitos globais, apenas proxy wars, guerras civis ou interestatais entre Estados menores, mas também muita violência patrocinada pelas mesmas grandes potências que patrocinaram dominações imperialistas no passado remoto e durante a primeira Guerra Fria – Suez, Vietnã, Oriente Médio, Afeganistão, Iraque e outras aventuras imperiais –, o mundo voltou a exibir sinais de “anos 1930” no grande jogo da geopolítica, no contexto de uma segunda Guerra Fria que já deixou para trás suas características econômico-tecnológicas do início dos anos 2000 para adquirir uma preocupante configuração geopolítica na faixa das disputas hegemônicas. Como antes, a violação dos princípios mais elementares do Direito Internacional se dá num contexto de corrida armamentista e de disputas por influência e dominação, em territórios novamente contestados ou historicamente reivindicados como fazendo parte de dominações imperiais do passado, o que ameaça fraturar de modo perceptível as relações internacionais da atualidade.
        O mundo se encontra novamente sob pressão, de um lado pelos efeitos diretos e indiretos de uma guerra de agressão no centro do continente euroasiático, que já é o mais importante conflito interestatal na região, desde o final da Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, pela turbulência causada no sistema multilateral de comércio, por uma “guerra de agressão tarifária” deslanchada unilateralmente, e ao arrepio dos princípios mais elementares derivados dos acordos realizados em Bretton Woods, nas áreas financeira e monetária, e nas negociações multilaterais de comércio de Genebra e Havana, em 1947-48, consagrando a aplicação incondicional e ilimitada da cláusula de nação mais favorecida, agora ignorada e praticamente destruída pelo dirigente do império ainda hegemônico, mas já em declínio, o que causou enorme instabilidade nas relações econômicas em nível global.
        Pois bem, quais são as possibilidades e limites da diplomacia brasileira nesse mundo que se ressente das pressões das grandes potências em ação para contemplar seus interesses propriamente imperiais, ignorando as regras e acordos intergovernamentais em vigor sob a égide da ONU e suas agências especializadas? Em princípio, a diplomacia deveria continuar pautando seu trabalho ancorada nos grandes eixos que a distinguiram desde o Império na conduta a ser adotada num mundo marcado por capacidades assimétricas derivadas dos potenciais próprios aos principais atores das relações internacionais: grandes e médias potências, dotadas de ativos diferenciados em função de suas respectivas inserções nos grandes fluxos econômicos, financeiros e militares em curso no cenário mundial.
        O Brasil possui um complexo de dotações físicas, de natureza econômica e comercial, que o colocam entre as dez maiores potências econômicas do mundo, mas também um ator respeitado no âmbito do G20, inclusive pela qualidade de sua diplomacia corporativa. O que ele ainda não possui são atributos militares e financeiros capazes de o colocarem na posição conhecida como de rule maker nos grandes jogos do poder mundial. Cabe, portanto, à sua diplomacia mantê-lo na posição que tem sido a sua numa trajetória bem-sucedida desde a conformação do moderno sistema multilateral: manter sua plena autonomia decisória nos grandes temas da política mundial, propugnar pela solução pacífica dos conflitos entre os Estados, sempre com base em seus princípios doutrinários e valores históricos, em total consonância com as regras mais elementares do Direito Internacional.
        Sobretudo, não caberia à diplomacia propor qualquer tomada de posição nas disputas e fricções imperiais entre as grandes potências, tendo em vista implicações geopolíticas que vão muito além dos interesses nacionais em termos de desenvolvimento econômico e social e cooperação tecnológica com todos os parceiros mais avançados nos setores de ponta da indústria mundial. Isso, a diplomacia profissional do Brasil saberia fazer com a desenvoltura que tem sido a sua num itinerário histórico marcado por grande coerência e credibilidade externa, pela solidez de seus fundamentos conceituais e estrita adesão aos grandes princípios do Direito Internacional. Mas não é certo que a política externa governamental siga posturas e recomendações vindas da ferramenta operacional das relações exteriores do Brasil.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5097, 22 outubro 2025, 4 p.

Esquecimento ou cara de pau? A declaração dos chanceleres do BRICS cancelou a Ucrânia do mapa do mundo

 Esquecimento ou cara de pau?

Os ministros de relações exteriores do BRICS se reuniram à margem da AGNU-80. Conseguiram fazer uma declaração extensíssima, em sua hipocrisia retórica, mas em nenhum momento se referem à guerra de agressão da Rússia contra a UCrânia. Nadica de peteberebas: a Ucrânia simplesmente não existe no mundo dos Brics. Nunca ouviram falar...
Não bastasse o "esquecimento", ainda cometeram a ignomínia de produzir afirmações como estas duas, aprovadas, (ou exigidas) pelo representante da Rússia:

"4. Os Ministros reafirmaram seu compromisso com o multilateralismo, a multipolaridade e a defesa do direito internacional, incluindo os propósitos e princípios consagrados na Carta das Nações Unidas (ONU), em sua totalidade e interconexão, como seu alicerce indispensável, bem como o papel central da ONU no sistema internacional, composto por Estados soberanos iguais, na manutenção da paz e segurança internacionais, na promoção dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável, e no estímulo à cooperação entre os Estados com base nos princípios de solidariedade, democracia, não interferência nos assuntos internos de outros Estados, inclusão, colaboração e consenso, igualdade soberana, equidade, respeito mútuo, compreensão e justiça.
(...)
12. Os Ministros reafirmaram seu firme compromisso com o fortalecimento da cooperação multilateral para enfrentar crises humanitárias em todo o mundo. Expressaram preocupação com o enfraquecimento das respostas internacionais, que já eram insuficientes, fragmentadas e frequentemente politizadas. Condenaram veementemente todas as violações do direito internacional humanitário, incluindo ataques deliberados contra civis e bens de caráter civil, incluindo infraestrutura civil, bem como a negação ou obstrução do acesso humanitário e o direcionamento de ataques contra o pessoal humanitário. Ressaltaram a necessidade de assegurar a responsabilização por todas as violações do direito internacional humanitário."


A declaração, em português e em inglês, está aqui:

https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/encontro-dos-ministros-das-relacoes-exteriores-do-brics-a-margem-da-80a-sessao-da-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-nota-conjunta-brics

Revista Será? Desde 2012 acompanhando o fluxo da história - Faço parte da tribo agora... Paulo Roberto de Almeida

PRA: Faço parte da tribo doravante. Je suis de la tribu, desormais... I'm member of the guys, onwards... (vou transcrever minha colaboração).


Revista Será?
Desde 2012 acompanhando o fluxo da história.
ANO XIV Nº681


Recife, 24 de outubro de 2025.

Caro leitor,

Nesta nova edição da Revista Será?, convidamos você a refletir sobre o choque entre progresso e prudência, poder e ética, razão e emoção — tensões que atravessam nosso tempo e animam as páginas que seguem. Do petróleo à política global, da diplomacia às artes, esta edição percorre os contrastes de um mundo em transição.

Abrimos com o editorial “A transição energética e o petróleo da Margem Equatorial”, que questiona as contradições entre o discurso verde do Brasil e a decisão de ampliar a exploração de combustíveis fósseis. Na sequência, Abraham B. Sicsú, em “O Petróleo é nosso, para quê?”, debate o dilema entre desenvolvimento econômico e responsabilidade ambiental. Sérgio C. Buarque, em “A guerra suja de Trump”, denuncia a brutalidade de uma política externa que viola direitos humanos em nome da hegemonia.

Com brilho analítico, o diplomata Paulo Roberto de Almeida, em “Opções da diplomacia brasileira num mundo em desordem”, defende uma política externa coerente e autônoma. Já Helga Hoffmann, em “Eleições parlamentares na Argentina e a aposta de Trump”, revela os riscos geopolíticos da nova “diplomacia financeira” americana na América Latina.

Na esfera da cultura, Rui Martins, em “O incrível roubo no Museu do Louvre”, transforma um crime em reflexão sobre a fragilidade simbólica da arte; Paulo Gustavo, em “O Que há Numa Voz?”, faz um elogio sensível à voz humana como expressão da alma; e José Paulo Cavalcanti Filho, em “Conversas de ½ Minuto (47), Charlas Portuguesas”, celebra com humor e ternura o espírito lusitano e a poesia do cotidiano.

Encerramos, como sempre, com a irreverência e a precisão crítica da charge de Elson.

*

Os editores da Revista Será? têm a satisfação de dar as boas-vindas ao professor e diplomata Paulo Roberto de Almeida, que passa a integrar, a partir desta edição, o nosso corpo de articulistas. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas e mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, Paulo Roberto de Almeida traz à Revista a experiência de mais de quatro décadas dedicadas à diplomacia brasileira, ao ensino e à reflexão sobre relações internacionais. Sua presença reforça o compromisso da Revista Será? com o pensamento crítico, plural e comprometido com o debate público de qualidade.

Boa leitura.
Os Editores

Índice

A transição energética e o petróleo da Margem Equatorial - Editorial
O Petróleo é nosso, para quê? - Abraham B Sicsú
A guerra suja de Trump - Sérgio C. Buarque
Opções da diplomacia brasileira num mundo em desordem - Paulo Roberto de Almeida
Eleições parlamentares na Argentina e a aposta de Trump - Helga Hoffmann
O incrível roubo no Museu do Louvre - Rui Martins
O Que há Numa Voz? - Paulo Gustavo
Conversas de ½ Minuto (47), Charlas Portuguesas (1ª Parte) - José Paulo Cavalcanti Filho
Última Página, a charge de Elson

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quinta-feira, 23 de outubro de 2025

O Brasil e a guerra de agressão da Rússia à Ucrânia - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil e a guerra de agressão da Rússia à Ucrânia 

Paulo Roberto de Almeida 

O Brasil não pode fazer muito para ajudar a Ucrânia a minimizar o sofrimento do seu povo, como aliás tenta fazer em relação ao sofrido povo de Gaza, que suporta uma agressão indiscriminada. 
Poderia fazer, de uma maneira ainda mais simples e direta, pois no caso da Ucrânia, à diferença de Gaza, existe uma distinção muito clara entre o agressor e o agredido. Poderia, mas não faz e não quer; mais do que isso: diplomaticamente fica do lado do agressor, e até o ajuda, ao aumentar exponencialmente as compras de produtos russos.
À diplomacia brasileira sabe que isso é errado, que isso contraria compromissos estabelecidos na Carta da ONU, que não só proibe e condena guerras de agressão e usurpação pela força de territórios de outros Estados soberanos, mas também comanda solidariedade de todos os membros da ONU à parte agredida. A diplomacia profissional sabe disso, mas tem de seguir as instruções do chefe de Estado, do governo e da diplomacia. Todos sabemos disso, especialmente os diplomatas.
Não posso fazer muito pela Ucrânia, não consigo mudar isso, mas posso pelo menos declarar com veemência minha oposição a essa postura covarde e contrário a tudo o que defendemos no Direito Internacional, que aliás figura claramente em nossa Constituição.
É o que faço constantemente, por sinal desde antes deste governo.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 23/10/2025

A Hipocrisia da Guerra às Drogas - JJ

 A Hipocrisia da Guerra às Drogas

Os EUA, a Colômbia e o mercado global da cocaína

O narcotráfico é uma das engrenagens mais lucrativas e perversas da economia global. Ele conecta pobreza e luxo, selvas e arranha-céus, comunidades rurais da América Latina e consumidores das metrópoles do Norte. Mas, acima de tudo, o tráfico de drogas expõe a hipocrisia das potências que dizem combatê-lo — e, ao mesmo tempo, dele se beneficiam.

Poucas relações demonstram essa contradição com tanta clareza quanto a aliança entre Estados Unidos e Colômbia, construída em nome do combate à cocaína, mas que, em mais de duas décadas, falhou em todos os seus objetivos declarados.

O Plano Colômbia e o avanço da cocaína

Lançado no fim dos anos 1990, o Plano Colômbia foi vendido como um ambicioso projeto de segurança e desenvolvimento, apoiado por bilhões de dólares em recursos norte-americanos. A promessa era clara: reduzir a produção e o tráfico de cocaína, desmantelar cartéis e fortalecer o Estado colombiano.

O que ocorreu foi o oposto. A produção de cocaína nunca foi tão alta. O cultivo da folha de coca, antes concentrado na Colômbia, se espalhou para o Peru e a Bolívia, criando uma economia transnacional ainda mais difícil de controlar. A política de erradicação forçada apenas deslocou agricultores pobres de um território para outro, sem oferecer alternativas econômicas reais.

Em vez de eliminar o problema, a “guerra às drogas” redesenhou o mapa do narcotráfico, ampliou o desmatamento, fragilizou comunidades rurais e aprofundou a dependência política e militar da Colômbia em relação a Washington.

O império do consumo e da lavagem

Enquanto o Sul produz, o Norte consome — e lucra.

Os Estados Unidos seguem entre os maiores mercados de cocaína do mundo, segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Embora Austrália e Nova Zelândia liderem o consumo per capita, o mercado americano continua sendo o mais lucrativo.

Mais que isso: os EUA são também um dos principais centros de lavagem de dinheiro proveniente do narcotráfico. As brechas regulatórias e a conivência do sistema financeiro tornam o país um refúgio seguro para capitais ilícitos, incluindo os que vêm da droga andina.

A contradição é gritante. Enquanto promovem uma retórica de guerra, as potências ocidentais toleram e se beneficiam da economia paralela que o narcotráfico alimenta. E dentro de suas fronteiras, enfrentam uma grave crise de saúde pública, marcada pelo aumento do consumo de drogas sintéticas — num país que sequer possui sistema público de saúde.

Trump e Petro: o novo capítulo da tensão

Em 2025, a relação entre Washington e Bogotá sofreu uma ruptura sem precedentes. O presidente Donald Trump anunciou a retirada da certificação da Colômbia como aliada na luta antidrogas, acusando Gustavo Petro de “liderar o tráfico de drogas” e permitir “campos de extermínio”. Nenhuma evidência foi apresentada.

A resposta de Petro foi imediata. O presidente colombiano denunciou a manipulação política e defendeu sua nova política antidrogas, centrada em desenvolvimento rural, proteção ambiental e combate às grandes máfias financeiras, em vez da criminalização do pequeno agricultor.

A reação de Trump revela o quanto o tema das drogas ainda é usado como instrumento de pressão geopolítica. Sob a retórica do combate ao crime, esconde-se uma longa história de controle e submissão econômica e militar sobre a América Latina.

A economia da cocaína e seus efeitos

A economia da droga move bilhões de dólares todos os anos.

Na Colômbia, um estudo recente apontou que o tráfico representa 4,2% do PIB nacional — valor equivalente ao da indústria da construção. Essa cifra ilustra o tamanho do desafio: o narcotráfico não é um fenômeno marginal, mas um sistema econômico estruturado, com impactos devastadores.

Violência: financia cartéis, grupos armados e corrupção institucional.

Ambiente: provoca desmatamento e contamina rios com insumos químicos.

Sociedade: aprofunda desigualdades e destrói comunidades rurais.

Saúde: gera dependência e sobrecarga nos sistemas públicos, quando existem.

O pequeno agricultor, empurrado pela miséria, é o elo mais fraco dessa cadeia. No outro extremo, bancos internacionais, intermediários e fundos de investimento se beneficiam da lavagem e reinjeção de dinheiro ilícito no sistema financeiro global.

Fracasso global e novo paradigma

O fracasso da “guerra às drogas” é hoje um consenso entre pesquisadores, organismos internacionais e governos progressistas. Nenhum país conseguiu reduzir de forma sustentável a produção ou o consumo de drogas por meio de políticas militarizadas.

A nova abordagem defendida por Petro e outros líderes regionais busca romper com esse paradigma. A prioridade passa a ser inclusão produtiva, reforma agrária, soberania territorial e alternativas sustentáveis para as comunidades que dependem da coca. Não se trata de legitimar o narcotráfico, mas de atacar suas causas estruturais: pobreza, exclusão e ausência do Estado.

Essa perspectiva se alinha às conclusões mais recentes do UNODC, que reconhece que a erradicação forçada e o encarceramento em massa falharam e precisam ser substituídos por políticas baseadas em saúde pública, desenvolvimento e direitos humanos.

A hipocrisia global

O discurso da guerra às drogas tem servido, historicamente, para legitimar intervenções, sustentar orçamentos militares e desviar o foco das responsabilidades do Norte global. Enquanto isso, as vítimas continuam sendo as mesmas: agricultores sem terra, jovens periféricos, comunidades indígenas e populações marginalizadas.

A cocaína é, nesse sentido, um espelho do mundo que a produz e consome: um mundo de desigualdades profundas, onde o lucro fala mais alto que a vida.

Conclusão: o verdadeiro combate

Não há saída para o narcotráfico sem enfrentar as estruturas que o sustentam.

Enquanto o dinheiro sujo circular livremente pelos sistemas financeiros do Norte, e enquanto países como a Colômbia permanecerem dependentes economicamente do que deveriam combater, a guerra às drogas continuará sendo apenas uma cortina de fumaça.

O verdadeiro combate exige coragem política, soberania e cooperação solidária entre as nações.

Não é uma guerra que se vence com helicópteros, mas com reforma agrária, educação, saúde e dignidade.

Porque enquanto o lucro estiver acima da vida, a guerra às drogas continuará sendo, na verdade, uma guerra contra os pobres.

Por JJ

(Artigo de opinião. Baseado em relatórios do UNODC, estudos econômicos e dados públicos sobre o narcotráfico global.)


Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...