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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Sete filmes sobre o Holocausto - My Jewish Learning

These under-the-radar movies are powerful viewing on International Holocaust Remembrance Day.
WORD OF THE DAY
Pronounced SIH-door, this Hebrew word from the root for "order" refers to the Jewish prayer book.
WEEKLY TORAH PORTION

Parashat Bo
Exodus 10:1 – 13:16
SUMMARY
In this Torah portion, God sends the eighth and ninth plagues, locusts and darkness, but Pharaoh still refuses to free the Israelite slaves. God tells Moses that the 10th plague will be killing all the firstborn Egyptians. God commands each Israelite home to slaughter a lamb and spread the blood on their doorposts, in order to protect their firstborns. After the death of the firstborns, Pharaoh demands that the Israelites leave.
Learn more.
COMMENTARY
Separateness is not the same as narrowness.

A saída do Reino Unido da UE - Rubens Barbosa

O REINO UNIDO DEIXA A UNIÃO EUROPEIA
Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 28/01/2020

A eleição parlamentar de 12 de dezembro resultou na maior derrota do Partido Trabalhista desde 1935 e na maior vitória dos Conservadores desde 1987. Apesar da divisão do pais, o PM Boris Johnson passou a ter ampla maioria e com maior liberdade para operar a saída do Reino Unido  da União Europeia.
Com a aprovação do Parlamento britânico, o Reino Unido deverá sair juridicamente da União Europeia, no final da semana, no dia 31, três anos depois do referendum de junho de 2016. Haverá um período de transição até 31 de dezembro de 2020, que o PM Boris Johnson pretende não prorrogar, mas que poderá se estender até dezembro de 2022, dependendo da evolução das negociações.
No corrente ano, a principal prioridade do governo britânico será abrir negociações comerciais com a UE e aprovar medidas legislativas internas em praticamente todas as áreas, colocando fim a um casamento que durou 45 anos. O Parlamento deverá examinar e aprovar legislação em todas as áreas para substituir `as normas e regulamentos da UE hoje em vigor. Johnson, na contramão de politicas do Partido Conservador, tem reafirmado que pretende ter mais flexibilidade no tocante a presença do Estado sobretudo nos programas sociais, ao contrário das politicas seguidas até aqui no âmbito da UE.
No período de transição, o Reino Unido deverá continuar a respeitar as regras da UE, apesar de não mais participar de sua elaboração. E acertar o pagamento de dividas resultantes da retiradas de diversos órgãos comunitários. A negociação do acordo comercial com a UE parece ser um projeto muito ambicioso, visto que normalmente levam cerca de dois anos. Se a saída efetiva do Reino Unido se der em janeiro de 2021, como quer Johnson, poderá haver a retirada sem negociação comercial, o pior cenário para Londres. A futura relação com a União Europeia torna-se, assim, incerta no tocante ao intercâmbio comercial, além de outras áreas como defesa e segurança, pesquisas, troca de estudantes, agricultura, pesca. Esses e outros acordos, como a presença de cidadãos europeus no Reino Unido e de imigrantes deverão ser aprovados pelos parlamentos de todos os países membros.
Com relação aos acordos comerciais, o Reino Unido deverá pedir admissão `a Organização Mundial de Comércio e negociá-los com a UE e outros parceiros, segundo as regras da OMC, em um momento em que a Organização está vivendo uma crise de identidades pelo esvaziamento a que é submetida pela ação dos EUA. Cabe notar, porém, que somente depois de o acordo com a UE ser ratficado por todos os países membros o Reino Unido poderá iniciar negociação com outros países, como os EUA e o Brasil.
                Uma das questões mais delicadas será conhecer o pensamento do novo governo,  fora da UE, no tocante a cooperação no âmbito da Defesa. Como será o papel do Reino Unido nos trabalhos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). É possível antecipar que o Reino Unido deverá respaldar as posições críticas dos EUA no tocante aos compromissos financeiros e outros da OTAN.
                Com relação ao impacto sobre as relações com o Brasil, a saída do Reino Unido representa uma perda nas negociações comerciais com a UE tendo em mente a politicas mais liberais de Londres sobretudo nas questões agrícolas. Por outro lado, o governo britânico, na época de Teresa May havia indicado publicamente o interesse em negociar um acordo de livre comercio com o Brasil quando fosse efetivado o divorcio com a UE. O Mercosul certamente deverá se posicionar quanto à negociação de um acordo de livre comércio com Reino Unido. Resta saber se Boris Johnson vai manter o interesse de avançar nessas negociações. Outra consequência será realocação de quotas atribuídas ao Reino Unido na UE em alguns produtos agrícolas. Será preciso compensar a perda de cotas de 11 produtos da agroindústria de acordo com as novas cotas anunciadas pela UE na OMC.
Os desafios do governo Johnson não são pequenos: terá de dissociar uma economia profundamente integrada ao bloco comercial a 45 anos, ao mesmo tempo em que procurará executar planos para o  post-Brexit e minimizar os danos imediatos que já estão acontecendo aos interesses das empresas britânicas, em especial no setor financeiro da City. A saída do Reino Unido da UE trará um forte impacto sobre o papel do Reino Unido no mundo e o futuro da união do  pais. O Partido Nacionalista Escoces, fortalecido nas eleições, já pediu um novo referendum sobre sua independência de Londres, recusado de imediato por Johnson.
A Europa também vai sentir as consequências do BREXIT. A saída do Reino Unido deve acelerar a perda de relevância da UE no mundo. Os lideres dos países europeus estão enfrentando problemas econômicos, a emergência do populismo e do nacionalismo conservador. A Alemanha e a França motores do crescimento e atores da importância europeia estão as voltas com crises econômicas e politicas internas. A UE perde uma voz enérgica e ativa no cenário internacional e o grupo de nações que dominaram o cenário global por muitos anos perderá espaço e se encolherá melancolicamente.


Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)

Política externa: rumo a lugar nenhum - Maria Herminia Tavares de Almeida (FSP)

     Rumo a lugar nenhum

Atual governo destrói com empenho a política internacional do país     

Maria Hermínia Tavares de Almeida
Folha de S. Paulo, 23/01/2020

No final de 2019, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, publicou no Twitter o balanço da política externa brasileira no primeiro ano de sua gestão.
Segundo ele, a ação exterior de sua pasta acumulara êxitos na área comercial, na afirmação da soberania e na promoção da democracia e dos valores do povo brasileiro. Há quem concorde com o ministro, enfatizando que nossa política externa, por ser coerente com a orientação do governo Bolsonaro, estaria no rumo certo.
Mas qual é mesmo o rumo? Isso existe no comércio internacional. Aí o dinamismo e os interesses do agronegócio definem o caminho. Fora disso, em meio a discursos grandiloquentes, ofensas gratuitas a parceiros e obsequiosa subserviência ao presidente Donald Trump, Bolsonaro e seu fiel ministro empurram o país rumo à insignificância internacional.
Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores - Ueslei Marcelino - 4.dez.2019Reuters
Muitas décadas atrás, o embaixador Araújo Castro (1919-1975), diplomata tarimbado, disse que, nos anos 1950, embora houvesse desenvolvido uma política externa, o Brasil ainda carecia de uma política internacional. Com isso distinguia as relações de um país com outros —fossem elas bilaterais ou no interior de organismos multilaterais— da existência de concepção mais ampla e de longo alcance do papel internacional que aspira a desempenhar bem como das estratégias para chegar lá.
Ao longo das últimas décadas, governos de diferentes orientações políticas foram construindo a visão de uma nação pacífica que desejava mais protagonismo nas decisões internacionais. Um país que buscava relações de cooperação com os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que reafirmava sua autonomia em relação à grande potência do Norte. E que se propunha a desempenhar função estabilizadora e de articulação política na América do Sul —além de se somar à causa da preservação ambiental. Para realizar seus objetivos, o compromisso forte com o multilateralismo tornou-se política de Estado, não por ideologia, mas por ser esse o arranjo no qual limitados recursos de poder disponíveis a uma nação emergente poderiam ser potencializados.
Assim, em sua ação externa, o Brasil somou-se à construção de regimes internacionais —entre eles o da mudança climática— e teve participação ativa nos organismos multilaterais, nos quais passou a demandar assento nos centros de decisão mais importantes, como, por exemplo, a direção da Organização Mundial do Comércio ou uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
É a política internacional do Brasil que o governo de extrema direita está destruindo com empenho. Sem ela, a política externa ruma certeiramente para lugar nenhum.


Maria Hermínia Tavares
Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras.       

domingo, 26 de janeiro de 2020

Criacionismo seria mais atraso na educação - Cientistas da USP se manifestam

O Núcleo de Apoio à Pesquisa em Educação, Divulgação e Epistemologia da Evolução “Charles Darwin” (NAP EDEVO-Darwin), ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo, que reúne diversos cientistas atuantes na área da evolução biológica, diante de matéria divulgada no site do jornal Folha de São Paulo de hoje (24/01/2020), sobre opinião emitida por pessoa que será encarregada de dirigir a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), ligada ao Ministério da Educação (MEC), vem a público esclarecer que:
1- O chamado “criacionismo científico” não é reconhecido pela comunidade científica de nenhum país, reunida em associação científica com membros acreditados junto a instituições acadêmicas desvinculadas de organizações religiosas ou por elas financiadas;
2- Literalmente todas as evidências disponíveis, corroboram a explicação da diversidade e estrutura da vida na Terra por meio de processos de descendência com modificação e que todos os seres vivos são conectados por relações de ancestralidade comum. Novas áreas da ciência, como a Genômica, continuamente fortalecem este paradigma. Não existem dúvidas plausíveis de que o processo evolutivo seja a melhor explicação para os fenômenos da vida, uma conclusão aceita há mais de um século e atualmente endossada inclusive por muitas instituições religiosas, como o Vaticano;
3- É amplamente reconhecido que o chamado “design inteligente” é simples eufemismo do dito “criacionismo científico”, sendo que o mesmo exato termo (“intelligent design”) já era usado com o mesmo sentido no século dezoito por teólogos protestantes, como Joseph Butler (1692-1752 ). A expressão foi utilizada originalmente naquele contexto para retomar as teses de Tomás de Aquino a fim de comprovar a existência de uma divindade criadora do universo, o que deixa claro como as expressões têm exatamente o mesmo sentido conceitual;
4- Apenas algumas denominações religiosas têm no criacionismo científico um de seus dogmas centrais, em especial as de maior expressão no chamado “cinturão evangélico” dos Estados Unidos, com tentativas de se introduzir o ensino do chamado “design inteligente” nos currículos escolares. O ensino religioso é permitido no Brasil, mas deve ser restrito à disciplina de ensino NAP EDEVO/Darwin – Av. da Universidade 308, sala 59 – Bl B – São Paulo – SP – Brasil – 05508-040 religioso, que não é de frequência obrigatória, e não pode incluir proselitismo religioso (Lei 9394/1996, Art 33). A última manifestação do Supremo Tribunal Federal examinou o conteúdo do ensino religioso definido nesse artigo, não abordando a inclusão de dogmas religiosos nas disciplinas científicas;
5- Ao impor aulas de “criacionismo científico” desde os anos iniciais do ensino fundamental a todas as crianças, em disciplina de frequência obrigatória, configura-se uma afronta ao regramento legal brasileiro, por obrigar os filhos de todas as famílias a aprender o que algumas denominações religiosas estadunidenses conservadoras elegeram como dogmas centrais obrigatórios para seus seguidores. Trata-se, portanto, de proselitismo religioso estatal compulsório, vedado expressamente por lei federal. Lembre-se que essa prática também é proibida nas escolas públicas estadunidenses.
6- Além de afrontar uma lei federal infraconstitucional, essa prática, se consumada, afrontará a própria Constituição Federal, ao colocar o estado brasileiro a favorecer certas denominações religiosas, em detrimento de outras. E ainda condenará o Brasil a caminhar de maneira cada vez mais lenta na trilha da melhoria da educação pública, comprometendo irremediavelmente a qualidade da educação, o que, aliás, contraria outro ditame constitucional;
7- Não bastassem as afrontas às leis e à própria Constituição Federal, essa imposição, se implementada, condenará a juventude do país a não compreender questões científicas básicas acerca da vida no planeta, como a origem e a importância da conservação da biodiversidade, o desenvolvimento de resistência a antibióticos por parte de certas bactérias, e tantas outras questões que o mundo moderno veio a entender graças à teoria da evolução.
8- O desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro estará ainda mais comprometido se a anunciada iniciativa vier a ser consumada nas escolas brasileiras de educação básica.
Universidade de São Paulo, 24 de Janeiro de 2020.
Núcleo de Apoio à Pesquisa em Educação, Divulgação e Epistemologia da Evolução “Charles Darwin” (EDEVO-Dawin/USP)

Lutar contra as estruturas do poder globalista? Estamos nessa agora? - Paulo Roberto de Almeida

Mini-reflexão, sob a forma de perguntas, sobre a grande missão do momento

Lutar “contra as estruturas do pensamento globalista”.
Seria esta a tarefa básica de um corpo diplomático profissional?
Seria esta a missão essencial de um ministério das relações exteriores?
Sério que diplomatas têm de se preparar para essa grandiosa tarefa? Estudaram para isso?
Estão sendo treinados nas novas técnicas de detecção e desmantelamento?
Quais são as ferramentas básicas da missão?
Onde está, o que diz o manual de destruição dessas “estruturas do pensamento globalista”?
E depois de cumprir essa nobre missão o que fica no lugar?
Quais “estruturas” ocuparão os antigos espaços destruídos?
Quais colunas sustentarão os novos templos?
O que vai ser colocado ali dentro?
Que mundo é esse?
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26/01/2020

sábado, 25 de janeiro de 2020

Rui Barbosa, o maior liberal brasileiro, para Christian Lynch, da Casa Rui Barbosa - João Paulo Charleaux (Nexo)

Qual a importância de Rui Barbosa para o liberalismo brasileiro

Cientista político Christian Edward Cyril Lynch fala ao ‘Nexo’ sobre o pensador que marcou a virada do Brasil Império para a República
Foto: Fritz Gerald/Domínio Público
Retrato antigo de Rui Barbosa
Rui Barbosa, advogado, escritor, político e diplomata brasileiro
O doutor em ciência política Christian Edward Cyril Lynch é um dos maiores pesquisadores da obra de Rui Barbosa (1849-1923), advogado, escritor e diplomata que marcou a história política do Brasil na passagem do Império para a República, na virada do século 19 para o século 20.
Além de membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Lynch trabalha desde 2014 na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, uma instituição do governo federal dedicada a preservar as ideias do pensador.
No dia 16 de janeiro, Lynch foi anunciado como o novo chefe do Setor Ruiano da Casa de Rui Barbosa. Horas depois, teve sua indicação recusada pelo então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim – o mesmo que seria exonerado do cargo no dia seguinte, depois de ter veiculado um discurso oficial no qual plagiava mensagens nazistas.
O episódio revelou as incongruências entre Alvim e Lynch, um cientista político crítico do governo Bolsonaro. Nesta entrevista concedida por telefone para o Nexo na terça-feira (21), Lynch também revela as incongruências de fundo que envolvem a própria instituição, que foi colocada no centro do episódio.
Para ele, Rui Barbosa foi “o maior liberal brasileiro”, um legado incompatível com o conservadorismo do governo Bolsonaro. Lynch diz que mesmo os apelos anacrônicos pela volta da monarquia entre membros do atual governo, hoje, são historicamente mal informados, e não resistem à leitura do legado deixado pelo patrono da fundação que se tornou pivô da disputa.
Na entrevista, Lynch dá atenção especial à influência de Rui Barbosa na área de política externa – coincidentemente, uma das áreas nas quais o conservadorismo do governo Bolsonaro é mais evidente. O jurista liderou a posição brasileira na criação do que hoje é a Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia, na Holanda, num episódio estruturante dos debates que viriam a desembocar, anos depois, na formação das Nações Unidas e de outras instâncias multilaterais, hoje criticadas abertamente pelo governo do Brasil.

Qual a importância de Rui Barbosa para a política externa brasileira?

Christian Edward Cyril Lynch Rui Barbosa não era diplomata profissional. O Brasil teve grandes diplomatas ao longo de sua história, mas Rui Barbosa não foi um deles, embora tenha dado contribuições importantes nessa área. Antes de Rui tivemos diplomatas como o Visconde do Uruguai [Paulino José Soares de Sousa], o Visconde do Rio Branco [José Maria da Silva Paranhos], o Barão de Cotegipe [José Maurício Wanderley]. Depois tivemos os contemporâneos de Rui Barbosa, como o Barão do Rio Branco [José Maria da Silva Paranhos Júnior] e Joaquim Nabuco, notadamente.
Rui era um fenômeno. Como ele falava muito bem, dominava muitos idiomas, estava bem informado sobre tudo o que acontecia no mundo e tinha convicções liberais muito fortes, ele foi aproveitado em três ocasiões como embaixador extraordinário do Brasil. Naquele tempo, ainda não havia embaixadas fixas, mas apenas legações, chefiadas por ministros. O Rio Branco foi ministro do Brasil na Alemanha, por exemplo, e Joaquim Nabuco [diplomata e abolicionista] foi ministro do Brasil em Londres, antes de assumir a primeira embaixada do Brasil em Washington [cargo que ocupou de 1905 a 1910].
Embora Rui Barbosa não fosse, como eles, um diplomata de carreira, ele teve duas participações muito importantes na história da diplomacia brasileira, sendo que uma dessas participações foi importante para a história das relações internacionais no mundo todo, não apenas no Brasil.
A primeira delas foi a participação na Segunda Conferência da Paz de Haia [Países Baixos], em 1907. A segunda foi em 1916, 1917 [período que corresponde à Primeira Guerra Mundial], quando ele foi enviado à Argentina como embaixador extraordinário do Brasil, e fez nessa ocasião uma conferência chamada “O dever dos neutros”, na Faculdade de Direito de Buenos Aires. A terceira, que não chegou a acontecer, é a representação que ele faria do Brasil na Conferência da Paz de Versalhes, ao final da Primeira Guerra Mundial [1914-1918], mas ele acabou não indo.
A primeira, então, a Conferência da Paz de Haia, era estratégica para o Brasil porque foi a primeira vez que o país apareceu [desde a Proclamação da República, em 1889] em um foro onde estavam representadas todas as nações do mundo à época. Não existia ainda o que hoje nós chamamos de sistema internacional. Havia um sistema pan-americano, que começava a se formar na América. Havia um sistema que era europeu, que estava em vigência desde a Paz de Westfália [nome dado a uma série de tratados que pela primeira vez reconheceram a soberania do Estado-nação na Europa nos moldes próximos aos existentes hoje], no século 17, mas não havia nenhum foro que tentasse reunir todas as nações independentes do globo. A primeira vez que isso ocorreu foi na Primeira Conferência da Paz de Haia [em 1899], à qual o Brasil não foi. O Brasil participou da Segunda, com Rui.

E qual foi o papel do Rui Barbosa nessa conferência?

Christian Edward Cyril Lynch A diplomacia brasileira, em termos gerais, era muito preocupada com a América do Sul. O Barão do Rio Branco [então ministro das Relações Exteriores] estava preocupado em tentar restabelecer a respeitabilidade do Brasil no cenário internacional, passar ao mundo a impressão de que o país continuava a ter hegemonia política no continente. Essa respeitabilidade havia sido baqueada pela [proclamação da] República, que tinha criado, aos olhos de Rio Branco, uma espécie de baderna. O Brasil havia deixado de ser um Império constitucional respeitável e tinha virado uma república das bananas, com ditadura militar.
Nessa Segunda Conferência de Haia, em 1907, estava sendo discutida a criação de um tribunal internacional de arbitragem, no qual os diferentes países estariam representados conforme o poder de cada um. O Barão do Rio Branco havia comprado a agenda pan-americanista de maneira tática para mostrar ao mundo que os EUA reconheciam o Brasil como potência na América Latina – e não a Argentina, que estava em ascensão – e que apoiariam o pleito brasileiro de ter um juiz nomeado nessa nova corte.
Rui Barbosa, nessa época, estava bem com o regime republicano – o que é relevante dizer, porque ele tinha um comportamento de oposicionista crônico. Rui Barbosa foi então convidado a ir a Haia representar o Brasil na conferência, o que foi um aceno de boa vontade e de reconhecimento da importância dele. Ele não era um profissional de relações internacionais e só tinha estado fora do Brasil uma vez, quando fugiu da ditadura do Marechal Floriano Peixoto [1891-1894].
O Joaquim Nabuco, que já era o embaixador brasileiro em Washington, foi a Paris para se encontrar com o Rui Barbosa e passar a ele o mapa da reunião, informar quem eram os aliados do Brasil na conferência. Depois disso, Rui foi para Haia e notou um cenário totalmente diferente do imaginado. Havia um escalonamento em curso que colocava o Brasil como um país de terceira categoria na indicação dos juízes do tribunal. O critério de composição não reconhecia a igualdade dos países no cenário internacional.
Rui escreveu de Haia ao Barão do Rio Branco no Brasil dizendo que a conferência era uma cilada. O Barão do Rio Branco perguntou qual era a posição dos EUA na conferência, e Rui respondeu que os EUA não estavam defendendo o Brasil. Isso deixou claro que a política do pan-americanismo, para os EUA, era uma política que visava apenas a aglutinar os países latino-americanos em torno deles e mostrar na Europa que os americanos tinham a liderança de todo o continente americano.
E o ponto extraordinário de Rui foi o seguinte: ele pediu carta branca para organizar a resistência dos países mais fracos para defender um critério de paridade dos países dentro desse órgão de arbitragem que estava sendo criado. Ele aplicou o princípio liberal de que todos são iguais perante a lei enquanto indivíduos e ampliou esse conceito para as nações. Ele passou a sustentar que todos os países deveriam ter o mesmo peso, que todos deviam ter o direito de indicar um juiz. O Rio Branco queria colocar o Brasil como o último dos melhores, e o que Rui Barbosa conseguiu fazer foi transformar o Brasil no primeiro dos últimos. E ele conseguiu.
O tribunal não saiu, porque Rui Barbosa liderou uma espécie de rebelião que inviabilizou a composição do tribunal. Essa foi considerada uma vitória, à medida que o Brasil não saiu humilhado como uma potência de terceiro mundo. Ele criou um precedente que seria observado a partir daí na Liga das Nações [precursora das Nações Unidas], de que todos os países têm de estar em condição de igualdade e têm direito a um voto.

Há mais de 100 anos, Rui Barbosa foi um defensor do multilateralismo, um homem que apoiou a criação de instâncias como a Corte Internacional de Justiça. Hoje, todo esse sistema que impõe limites à soberania total dos Estados vem sendo combatido pelo Itamaraty sob o governo Bolsonaro. Nesse sentido, a política externa brasileira de hoje renega o legado de Rui Barbosa?

Christian Edward Cyril Lynch Contradiz. A ideia de alinhamento do pan-americanismo com os EUA não era nem uma ideia originária do Barão do Rio Branco, mas de Joaquim Nabuco, na verdade. A adesão do Rio Branco a isso era uma adesão tática, tanto que, quando ele descobriu que os EUA não estavam apoiando o Brasil em Haia, ele endossou o Rui Barbosa para contrariar os EUA e resistir a essa proposta.
Rui Barbosa foi o campeão do liberalismo e foi um sujeito que o tempo todo advertiu para os riscos do imperialismo, qualquer que fosse. Rui Barbosa buscava que o Brasil tivesse uma certa autonomia para defender seus próprios interesses nacionais. Ele temia a ideia de protetorado americano.
Já Nabuco acreditava que, sem a monarquia, o Brasil ficaria tão fragilizado que ele temia que caíssemos no redemoinho das repúblicas ditas bananeiras da América Hispânica. Portanto, seria bom que o Brasil seguisse o exemplo dos EUA. Da parte do Rio Branco, a preocupação era garantir uma imagem de respeitabilidade do Brasil na América Latina e uma posição de liderança em relação à Argentina.
Hoje, a política de alguém como o chanceler Ernesto Araújo contém um paradoxo até em relação a alguém como Nabuco, porque Nabuco era um liberal, enquanto Araújo é um conservador. O paralelo da política externa atual é muito mais com a do governo Dutra [do presidente Eurico Gaspar Dutra, que governou o Brasil de 1946 a 1951]. Quando acabou a Segunda Guerra Mundial, o chanceler do Dutra [Raul Fernandes] apostou numa política de alinhamento automático com os EUA. À época, aquele era um governo liberal-conservador.
Além de Dutra, Araújo lembra também o governo Castelo Branco [que governou o Brasil de 1964 a 1967, durante os três primeiros anos da ditadura]. Havia ali também essa combinação do liberalismo conservador com o conservadorismo estatista, que aconteceu em 1946, 1947 e 1948, com a proibição do Partido Comunista no Brasil, por exemplo. O governo Castelo Branco tinha uma coalizão muito semelhante à que hoje sustenta o governo Bolsonaro, formada por conservadores estatistas, que são os militares; pelos liberais de mercado, que à época era o Roberto Campos e hoje é o Paulo Guedes; e por um grupo de conservadores culturalistas, que tratam a cultura brasileira como algo português e católico. A diferença é que a força do núcleo reacionário não era tão forte à época quanto é hoje.

Alguns temas discutidos por Rui Barbosa há 130 anos voltaram a ser contemporâneos, como o debate sobre o valor da Proclamação da República (1889) e o saudosismo em relação ao Brasil Império (1922-1889). Como o sr. interpreta o regresso a esses temas hoje, e o que Rui Barbosa deixou de legado a esse respeito?

Christian Edward Cyril Lynch No Brasil, o Império só foi conservador até em torno de 1870. Quando foi proclamada a Independência [1822] o Brasil não existia. Todos os países passam naturalmente por um período de construção do Estado. Nesse período, é adotada uma política de centralização, que é meio autoritária, porque você tem que combater coronel, tem que unificar, centralizar, criar burocracia, e você não faz isso com federalismo. Não foi só aqui que isso aconteceu, foi na Inglaterra dos Tudor [1485-1603], foi na França de Luis 14 [1643-1715]. No começo, esses governantes tentam juntar os cacos e monopolizar o exercício legítimo do poder. Então, o final da Regência [1831-1840] e o começo do Segundo Reinado [1840-1889] correspondem a esse período no Brasil.
Entretanto, de 1870 em diante, já há a sensação de que o Brasil estabilizou como nação. Aí começa a haver um movimento de liberalização das instituições, que é uma espécie de segunda fase do Segundo Reinado [de Dom Pedro 2º], que é uma fase liberal, em que os liberais vão fazendo reforma atrás de reforma: a reforma da instrução, a reforma bancária, a reforma eleitoral, a abolição da escravatura – que foi empurrada pelos liberais, embora as leis tenham sido aprovadas pelos conservadores. Há uma tentativa de reforma da educação, enfim, grandes reformas liberais acontecem no país.
Rui Barbosa, no fim do Império, começa a brigar com o próprio partido [liberal] porque ele, Rui, torna-se muito radical. Ele se torna federalista, mas nunca foi republicano. Ele achava que a monarquia brasileira devia ficar igual à monarquia inglesa, com um rei que reinasse mas não governasse, com um primeiro-ministro que mandasse.

Mas ele fez parte do primeiro governo da República.

Christian Edward Cyril Lynch Quando tem início a conspiração que vai dar no golpe militar [que inaugura a República, em 1889], Rui é procurado por Benjamin Constant [militar positivista envolvido no movimento republicano], que conta a ele sobre a conspiração para derrubar a monarquia e que o convida a fazer parte de um futuro governo provisório. Rui aceita, mas isso aconteceu menos de uma semana antes do golpe, e ele diz que só aceitou porque o golpe já era um fato consumado. Entre os conspiradores só havia gente antiliberal, a começar pelos positivistas, além de militares de mentalidade autoritária e civis conservadores, como Campos Sales [que presidiria o Brasil de 1898 a 1902]. Rui diz então que embarcou na República porque esse já era um fato consumado, e ele tentaria fazer uma República que se parecesse mais com a americana do que com a francesa de 1793 [período que corresponde ao Terror Jacobino].
O negócio do Rui sempre foi o liberalismo. As formas de governo foram, para ele, uma questão secundária. A monarquia inglesa era, para Rui Barbosa, tão boa quanto a república americana. Nessa condição, ele aderiu à República, virou ministro, mas depois se decepcionou. Depois de pouco mais de um ano no governo – um governo que fechou o Congresso, as assembleias estaduais – ele passou a enfrentar esse regime republicano jacobino, tentou apelar à moderação e por fim passou a dizer que o Império era mais liberal que a República. Mas ele nunca renegou a República. Como liberal democrata, as questões de monarquia ou república simplesmente sempre foram secundárias para ele.

Essa monarquia idealizada por Rui Barbosa é a mesma almejada pelos monarquistas de hoje?

Christian Edward Cyril Lynch Hoje, os monarquistas brasileiros querem uma monarquia que nunca existiu no Brasil. A tradição da monarquia brasileira e portuguesa é, desde o Marquês de Pombal [1699-1782], uma tradição na qual o Estado enquadra a Igreja, é uma tradição de monarquia guiada pela ideia do absolutismo ilustrado, uma ideia modernizadora, que é o que José Bonifácio pregava. Essa é uma tradição que continua no Brasil por meio da República, com os positivistas, com os desenvolvimentistas, com os tenentes, com Getúlio Vargas, todos eles com essa consciência de que o Brasil é um país atrasado que precisa de modernizar, e que o Estado tem que ser o motor dessa modernização.
Essa monarquia reacionária que se apresenta hoje, essa monarquia católica, de descendentes da família real beijando uma santa, isso nunca existiu no Brasil. Pelo contrário, Dom Pedro 2º prendeu bispos que se negaram a casar maçons, contrariando com isso posições do Vaticano, porque essas posições violavam as leis brasileiras. Dom Pedro 2º reafirmou, portanto, o valor das leis brasileiras e do Estado contra Igreja. Então, se nós temos alguma tradição aí é a tradição do regalismo, da supremacia do Estado sobre a Igreja. Não chega a ser a separação entre Estado e Igreja, mas a Igreja não manda no Estado no Brasil desde o Marquês de Pombal. Há então algo de ficcional no saudosismo brasileiro pela monarquia porque a monarquia da época era provavelmente mais liberal do que o governo Bolsonaro é hoje.

Outro tema que volta à tona hoje é a resistência de alguns setores à vacinação. Rui Barbosa também se opôs à campanha de vacinação em 1904. O que essa posição indica sobre o perfil dele de forma geral?

Christian Edward Cyril Lynch Ele nunca foi contra a ciência, era um homem moderno. Ele era um campeão entre os liberais democratas no Brasil, foi o maior liberal brasileiro, o de maior repercussão. Ele criou uma mentalidade e uma cultura política, uma forma de as classes médias pensarem a política.
O problema de Rui Barbosa com a vacina não era de ser contra ou a favor da vacina em si. A questão é que a vacinação obrigatória veio num contexto em que o presidente da República [Rodrigues Alves] tinha conferido ao prefeito do Rio [Pereira Passos] e ao [médico sanitarista] Oswaldo Cruz poderes ditatoriais. O governo impunha que os fiscais sanitários entrassem à força dentro das casas das pessoas e as vacinassem à força.
Rui Barbosa, no fundo, disse uma coisa óbvia: isso é contra a Constituição, porque isso violava a inviolabilidade do domicílio e a inviolabilidade do corpo. Eram princípios liberais contra o autoritarismo do governo, não era uma posição obscurantista. Tanto é assim que, hoje, quando é preciso vacinar, há uma campanha de vacinação. A campanha orienta as pessoas a se vacinarem. Ninguém entra na casa de ninguém à força.

O secretário que o retirou do cargo na Fundação Casa de Rui Barbosa foi exonerado por ter copiado um discurso nazista logo depois. O sr. espera que essa decisão do presidente altere sua situação? Que percepção o sr. tem desse episódio?

Christian Edward Cyril Lynch Eu não fui exonerado porque não fui nomeado. Foi manifestada a intenção de me nomear e, horas depois, o secretário [Roberto Alvim] expressou sua recusa pública em me nomear. Foi isso. Não chegou a haver um ato administrativo, eu não assinei nada. Esse episódio demonstra que existem em certos setores deste governo um espírito de intolerância que é incompatível com um regime democrático liberal, tal como previsto na Constituição.
Esse setor acha que é preciso fazer uma espécie de revolução autoritária e entrar num regime de expurgo de pessoas a partir de critérios ideológicos que, na verdade, são critérios de adesão incondicional ao governo, que impedem qualquer funcionário de emitir qualquer tipo de crítica ao chefe de Estado.
No caso do secretário Alvim, tratava-se de um caso delirante de culto à personalidade do chefe de Estado, o que é próprio de regimes totalitários. Espero que, com a substituição de Alvim, venha alguém animado de um espírito mais constitucional, mais liberal, democrático e tolerante. Pode ser conservador, porque o povo brasileiro escolheu esse governo e a Constituição autoriza a existência de um governo conservador, mas um governo que se atenha à Constituição, que seja liberal e respeite o pluralismo de opiniões, que respeite a liberdade, que não persiga ninguém.

João Paulo Charleaux é repórter especial do Nexo e escreve de Paris

Bolsonaro e sua circunstância - Editorial Estadão

Bolsonaro e sua circunstância

O assessor que se inspirou em Goebbels só foi exonerado porque houve uma grita generalizada. O conteúdo da fala é o que Bolsonaro já disse inúmeras vezes

Editorial Estadão, 18/01/2020


Não causa surpresa o derretimento acelerado da popularidade do presidente Jair Bolsonaro detectado por uma pesquisa XP/Ipespe recentemente divulgada. O levantamento mostrou que, em um ano, a expectativa positiva em relação ao desempenho do governo para o restante do mandato caiu nada menos que 23 pontos porcentuais, de 63% para 40%. O índice de entrevistados que consideram Bolsonaro “ruim” ou “péssimo” passou de 20% para 39% no mesmo período. Pode-se dizer que esses números refletem não um ou outro problema em especial, mas o conjunto da obra. 
O governo Bolsonaro parece se esforçar para inspirar em cada vez mais brasileiros a sensação de que suas decisões estapafúrdias, que carecem de lastro jurídico ou mesmo de racionalidade, não são meros acidentes ou fruto de circunstâncias passageiras, e sim reflexo preciso daquilo que o presidente é. 
Não se trata apenas de despreparo para o cargo, dificuldade que se poderia amenizar com alguma dedicação aos livros e atenção aos conselhos de quem já viveu a experiência de governar; a esta altura, passado um ano de mandato, já está claro que Bolsonaro desacredita deliberadamente o exercício da Presidência porque não saberia fazer de outra forma e, graças a essa limitação insuperável, convenceu-se de que foi eleito para desmoralizar a política e sua liturgia institucional, algo que ele faz como ninguém. Vista em retrospectiva, a reunião ministerial em que o presidente apareceu de chinelos e camisa (falsificada) de time de futebol logo nos primeiros dias de governo parece hoje, perto do que já vimos, um encontro de estadistas. 
Num dia, o ministro da Educação aparece num vídeo dançando com um guarda-chuva, numa imitação circense do filme Dançando na Chuva, para acusar seus críticos de difundirem fake news; noutro, o secretário da Cultura toma emprestado trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista, para anunciar o advento de uma cultura “nacional” financiada pelo Estado, causando horror e estupefação no País e fora dele. Entre um e outro desses momentos nada edificantes de seus assessores, o próprio presidente Bolsonaro achou tempo e oportunidade para fazer piadas de mau gosto sobre um vasto cardápio de temas grosseiros, como se estivesse em um churrasco com amigos. 
Enquanto isso, sempre que pressionado a tomar decisões realmente relevantes para o País, como autorizar privatizações potencialmente polêmicas, cortar privilégios de servidores públicos e reduzir subsídios, o presidente hesitou. Mesmo a reforma da Previdência, que o governo celebra como um feito de Bolsonaro, foi sabotada em vários momentos pelo presidente, tendo sido aprovada graças à mobilização de parlamentares e alguns técnicos do governo. Preocupado em construir seu próprio partido e sua candidatura à reeleição, sobre a qual fala quase todos os dias, Bolsonaro dedica todo o seu tempo não a pensar em maneiras de promover o desenvolvimento do País, mas a alimentar polêmicas de cunho claramente eleitoreiro, enquanto assina medidas destinadas à irrelevância – mas só depois de causar tumulto e insegurança jurídica no País. 
Quando confrontado pelos jornalistas a respeito disso ou a respeito dos cada vez mais volumosos problemas do clã Bolsonaro e de alguns de seus assessores mais próximos com a Justiça ou com a lisura administrativa, o presidente reage de forma truculenta. Mais recentemente, disse que os jornalistas são uma “espécie em extinção” e mandou que a imprensa tomasse “vergonha na cara” e tratasse de “deixar o governo em paz”. (Ver editorial A tenacidade da imprensa.) 
Não são rompantes, e perde tempo quem acredita na possibilidade de que, com o tempo, Bolsonaro vá temperar seu comportamento. O assessor que se inspirou em Goebbels para anunciar o “renascimento da cultura nacional” só foi exonerado porque houve uma grita generalizada diante de tamanho absurdo. Noves fora o plágio nazista, o conteúdo da fala que custou o cargo ao tal secretário é essencialmente o que Bolsonaro já disse e repetiu inúmeras vezes, mesmo antes da eleição. Portanto, ninguém pode se dizer surpreendido, nem mesmo os eleitores mais ingênuos. Bolsonaro é Bolsonaro há muito tempo.

Holocausto: memória e reflexão - Benoni Belli (OESP)

Holocausto: memória e reflexão

O dia 27 de janeiro é reservado, todos os anos, a uma homenagem que é também um momento de reflexão. O dia internacional em memória das vítimas do Holocausto marca o aniversário da liberação do campo de concentração de Auschwitz, que em 2020 completa 75 anos. Além de ser ocasião de lembrar os milhões que perderam a vida ou foram de algum modo submetidos à máquina mortífera do Holocausto, a data nos intima a deixar de lado a indiferença e a condescendência diante da discriminação, da exclusão e da injustiça.
A reflexão deve ter sempre presente os relatos das vítimas. O testemunho dos que enfrentaram a provação e o horror do Holocausto é o mais poderoso antídoto contra qualquer tentativa de normalizar ou relativizar o significado desse crime atroz e imperdoável.
Em seu relato como interno de Auschwitz, Primo Levi conta que tentou matar a sede com um pedaço de gelo que havia se formado no exterior de uma janela. Uma sentinela nazista, ao assistir à cena, aproxima-se e arranca brutalmente o gelo das mãos de Levi, que, assustado, pergunta: “Warum?” (Por quê?). O guarda o repele respondendo: “Hier ist kein warum” (aqui não há ‘por quê’).
Como o próprio Levi conclui, a explicação é monstruosa, mas simples: tudo naquele lugar era proibido; essa era a razão de ser do campo de concentração. E, no entanto, é justamente esta a indagação que devemos continuar fazendo ainda hoje: Por quê? Como o indizível pôde ter lugar, apesar de todo o desenvolvimento tecnológico e sofisticação cultural, e a despeito de atrocidades passadas que deveriam ter servido de aprendizado? Por que esse monstro surgiu no seio da sociedade bem pensante, moderna e orgulhosa de seus feitos nacionais e seus avanços econômicos?
Há uma vasta literatura que investiga as causas imediatas e remotas do nazi-fascismo e do Holocausto. Até hoje, a pergunta continua sendo feita sem que uma resposta consensual tenha sido encontrada. Mais do que garantir uma resposta definitiva, a pergunta e o questionamento incessante permitem desvendar alguns mecanismos que tornaram o Holocausto um crime único, sem igual e particularmente repulsivo.
É verdade que outros regimes autoritários e totalitários causaram devastação e número impressionante de mortos e perseguidos. Ao examinar o passado com as lentes e os padrões que o Holocausto nos legou, é também possível encontrar exemplos de massacres que podem ser enquadrados na definição de genocídio. Até mesmo os judeus já contavam com uma longa e lastimável história de perseguição e de pogroms nos séculos XIX e XX. Os crimes nazistas encontraram um terreno propício para deitar raízes no antissemitismo previamente disseminado, o que foi fundamental para o êxito da empresa macabra do Holocausto.
O impacto do Holocausto, pela natureza do crime perpetrado, mudou os parâmetros do direito e da moral pública para medir o grau de civilização de uma sociedade. A própria noção de genocídio e de crime contra a humanidade deriva do esforço empreendido por especialistas e juristas com o objetivo de encontrar tipos penais que pudessem responder ao grau de ignomínia que caracterizou o Holocausto. O antissemitismo elevado à enésima potência e a desumanização de adversários políticos do nazismo foram muito além do conhecido raciocínio instrumental dos fins que justificam os meios.
Muitas atrocidades antes e depois da Segunda Guerra Mundial foram cometidas com objetivos variados relacionados à concentração de poder, recursos e territórios. Massacres no contexto da Primeira Guerra Mundial ou ao longo do século XX, como na Ucrânia, no Camboja, em Ruanda ou em Srebrenica, por exemplo, tiveram elementos de desumanização do outro, utilizando como combustível o ódio irracional a uma identidade étnica, religiosa ou nacional. Um ódio provocado pela manipulação da memória coletiva com fins claramente políticos, em geral criando ou exacerbando artificialmente oposições históricas entre grupos étnicos e nacionais.
Apenas sob o nazismo, porém, uma doutrina de superioridade racial conduziu à redução oficial e explícita de grupos com identidades particulares e variadas (judeus, homossexuais, ciganos, comunistas, socialistas) à condição sub-humana, tornando os integrantes desses grupos totalmente descartáveis, independentemente de qualquer ação prática ou papel social dos indivíduos em questão. Em certos casos, como no dos judeus, bastaria o nascimento para terem arrancado automaticamente seu direito a ter direitos, para usar um termo cunhado por Hannah Arendt. Bastava nascer para ser jogado na categoria de indesejável e estar sujeito à eliminação.
Essas características odiosas do nazismo explicam o Holocausto como um crime único, e como consequência de um sistema de pensamento que disseminava o ódio e a necessidade de eliminação física de seres considerados nocivos e previamente marcados por sua identidade étnica e racial. Passados 75 anos, é preciso seguir perguntando por que isso ocorreu e por que a sociedade bem pensante não conseguiu construir uma contenção eficaz contra o colapso moral generalizado. Como e por que pessoas comuns, e não necessariamente monstruosas, tornaram-se veículos, pilares ou engrenagens úteis de um sistema que encarnou o mal extremo?
Nem todos sucumbiram à ordem injusta imposta pela força ou à ideologia nefasta. Foi o caso, por exemplo, dos dois “justos entre as nações” brasileiros, ambos do Itamaraty, Luiz Martins de Souza Dantas e Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, que, para salvar judeus das garras do nazismo, descumpriram instruções superiores. Houve outros como eles, que tiveram coragem para desobedecer ordens superiores com o objetivo de salvar vidas. Pessoas realmente extraordinárias, que arriscaram sua posição e seu conforto para defender os valores da humanidade, em circunstâncias em que era mais fácil e cômodo permanecer inerte frente ao opróbrio das vítimas inocentes.
No prefácio de seu livro “Homens em Tempos Sombrios”, Hannah Arendt lembra que a humanidade como um todo passou por diversas experiências trágicas. Esses momentos sombrios não seriam uma raridade. Arendt nota que todos os países e sociedades têm sua parcela, passada e presente, de crimes e catástrofes. Inspirada no exemplo dos que resistiram ao Holocausto, ela considera que mesmo no tempo mais sombrio “temos direito de esperar alguma iluminação”, que pode bem emanar “menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra”.
Esses indivíduos que mantiveram a capacidade de pensar e julgar, mesmo quando tudo à sua volta demandava a adesão cega aos códigos vigentes e às palavras de ordem totalitárias, foram capazes de manter a chama da humanidade acesa. Mais do que esquemas conceituais, a resistência prática à desumanização permitiu iluminar o caminho em meio à escuridão.  Talvez aí resida uma das chaves para evitar novas recaídas e colapsos morais em sociedades que se consideram destinadas ao progresso. Não é preciso ser herói para se insurgir contra a injustiça e a discriminação, basta cultivar a empatia e o compromisso com a dignidade humana, e pautar-se por esses valores nas esferas pública e privada.
Quando recordamos o Holocausto, dois sentimentos se avivam na alma. Em primeiro lugar, a compaixão pelas vítimas, em particular as que tiveram suas vidas ceifadas, desestruturando famílias, abreviando sua contribuição à sociedade, privando parentes e amigos de entes queridos, deixando uma dor incalculável. Ao lado desse sentimento, emerge também a esperança de que o exemplo das vítimas e sobreviventes constitua uma lição permanente na prevenção da desumanização do outro, qualquer que seja sua identidade e sua condição social. A provação e o sofrimento dos que sobreviveram e não perderam a esperança, assim como o exemplo dos que resistiram, são um farol que projeta sua luz sobre o presente e o futuro. 
Saberemos agir animados por esses sentimentos de compaixão e esperança? Utilizaremos esses sentimentos e a memória do Holocausto para manter o mundo livre dos abusos, da violência odiosa do racismo e da discriminação? Saberemos identificar, na sociedade dita bem pensante e respeitável, o insidioso vírus da desumanização do outro, a ameaça da retirada do direito a ter direitos inerente à cidadania, antes que degenere em um colapso moral mais amplo? Diante das pequenas e grandes injustiças, teremos a empatia e, sobretudo, disposição e coragem de dizer “basta”? Seremos capazes de perguntar “por quê”, exigir explicação e reparação, quando seres humanos forem submetidos ao arbítrio ou quando novas manifestações de antissemitismo e racismo baterem à porta?
A melhor forma, hoje, de rememorar o Holocausto e homenagear suas vítimas é responder sim a essas perguntas. Um forte e retumbante sim, para que a luz que emanará de nossos atos e palavras, ainda que seja bruxuleante como a de uma vela, ajude a iluminar o caminho e afaste as trevas. E para que jamais tenhamos de nos curvar ao “Hier ist kein warum” que sufoca o pensamento e nos transforma em meros autômatos de uma máquina infernal, cujo rastro será sempre de destruição e sofrimento humano. Que a memória das vítimas do Holocausto não nos deixe esmorecer na defesa de nossa humanidade comum.

Benoni Belli é diplomata de carreira. Este artigo foi escrito a título pessoal, não refletindo posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores.