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quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Itamaraty cumprindo o seu papel na diplomacia da saúde, vacinas da Índia a preços reduzidos, sem o Min. Saúde

 Em voo secreto, Itamaraty buscou vacinas da Índia por 10% do valor pago pelo Ministério da Saúde


Após dois fretamentos fracassados e prejuízo de US$ 500 mil para Fiocruz, diplomatas fizeram operação por US$ 55 mil sem conhecimento da pasta

26.ago.2021 às 4h00
Patrícia Campos Mello

Após as tentativas frustradas de buscar 2 milhões de doses de vacina na Índia em janeiro deste ano, que geraram um prejuízo de US$ 500 mil (R$ 2,6 milhões na cotação atual) para a Fiocruz, o Itamaraty negociou secretamente com o governo indiano e conseguiu transportar as mesmas doses por US$ 55 mil (R$ 288 mil na cotação atual), cerca de 10% do valor pago pela fundação.

Toda a operação foi feita em sigilo, e o Ministério da Saúde só soube quando a carga de vacinas já estava prestes a embarcar no avião da companhia aérea Emirates no aeroporto de Mumbai.

O afobamento e as trapalhadas do governo Jair Bolsonaro, principalmente da pasta da Saúde, já tinham produzido dois fiascos na busca de vacinas.

O ministério, na época sob o comando do general Eduardo Pazuello, havia determinado à Fiocruz que fretasse um avião para buscar as vacinas na Índia no dia 16 de janeiro. Ao mesmo tempo, negociou com companhia aérea Azul um outro voo para buscar as mesmas vacinas.

Bolsonaro havia determinado que as vacinas tinham que chegar, de qualquer jeito, antes do dia 20 de janeiro —data em que o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), iniciaria a vacinação com a Coronavac.

Telegrama diplomático mostra que, em 9 de janeiro, foi enviada uma carta de Bolsonaro ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, “recordando a importância do prazo do dia 20”, e o ministério indiano teria reiterado “não poder comprometer-se ainda com datas”.

Doria acabou começando a vacinação em 17 de janeiro. As vacinas da Coronavac, produzida pelo Instituo Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, foram transportadas ao Brasil em voo comercial da companhia turca Turkish Airlines.

A Fiocruz assinou em 13 de janeiro um contrato de fretamento de um avião para Mumbai com a DMS Agenciamento de Cargas e Logística, conforme instrução do Ministério da Saúde, para buscar as doses no dia 16.

Naquele momento, no entanto, não havia garantia de que o governo indiano fosse liberar as cargas dentro do período proposto. No dia 14, um porta-voz da chancelaria indiana, em briefing semanal à imprensa, disse ser "cedo demais" para o envio de vacinas a terceiros países naquela semana.

Um dia depois, segundo telegrama do Itamaraty, o embaixador da Índia no Brasil, Suresh Reddy, reiterou pedido para que não fosse enviado “o voo especial para transporte das vacinas até que sejam concluídas as autorizações formais pelo lado indiano".

A fundação teve de pagar antecipadamente o valor de US$ 500 mil, estipulado no contrato com a empresa de logística, conforme a Folha revelou em maio.

“O Ministério da Saúde solicitou à Fiocruz a contratação de voo fretado para a realização da operação”, disse a Fiocruz em nota. “Posteriormente a todos os procedimentos para a realização da operação de transporte, o Instituto Serum comunicou em 15.01.2021 à Bio-Manguinhos/Fiocruz que a data de 16.01.2021 programada para o recolhimento e transporte ao Brasil não seria mais factível e a carga não estaria mais disponível, e que a continuidade da operação dependeria de uma nova data a ser anunciada pelo Instituto.”

Segundo a Fiocruz, o contrato não previa reembolso. "Todos os contratos de fretamento no mercado estabelecem pagamento adiantado e reserva prévia, sem possibilidade de reembolso. Portanto, o valor investido nessa operação, de US$ 500 mil, não pode ser recuperado", disse o instituto em nota, em maio.

Ao mesmo tempo, e sem o conhecimento da Fiocruz, o Ministério da Saúde também contratou um avião da Azul para realizar o mesmo serviço.

No dia 13 de janeiro, o ministério divulgou uma nota afirmando: “Um avião da empresa aérea Azul sairá do Brasil na noite desta quinta-feira (14 de janeiro) com destino a Mumbai, na Índia, para buscar 2 milhões de doses da vacina contra a Covid-19 da AstraZeneca/Oxford, adquiridas pelo Ministério da Saúde para garantir o início da imunização dos brasileiros. O Airbus A330neo —maior aeronave da frota da companhia— decolará do Aeroporto de Recife (PE) às 23h. A previsão de retorno é no próximo sábado, dia 16.”

Na nota, havia também uma declaração do então ministro Pazuello: “É o tempo de viajar, apanhar e trazer. Já estamos com todos os documentos de exportações prontos".

No dia 14, a aeronave saiu de Viracopos, em Campinas (SP), para o Recife, de onde seguiria viagem. Chegou a ser adesivada com o slogan “Brasil imunizado: somos uma só nação” e exibida nas redes sociais do ministério. Os indianos foram pegos de surpresa. Logo depois, o governo anunciou que o transporte das vacinas teria de ser adiado.

Depois do fracasso na operação, o Ministério da Saúde anunciou que iria usar a aeronave na distribuição de cilindros de oxigênio. Indagada, a assessoria da pasta não especificou quanto foi gasto na operação com o voo da Azul, nem o motivo pelo qual foram contratados dois fretamentos ao mesmo tempo, sem garantia de que as vacinas estariam disponíveis na Índia.

A precipitação do governo brasileiro ao anunciar a chegada das vacinas causara saia justa para o primeiro-ministro Modi. O Brasil nem avisou aos indianos que iria anunciar a chegada das vacinas. O governo da Índia, por conta da pressão política interna, não podia anunciar exportação de vacinas antes de iniciar a vacinação no país, e antes de doar para países vizinhos.

Na terceira tentativa de buscar as vacinas, o Itamaraty e o Ministério das Relações Exteriores indiano resolveram fazer tudo em sigilo, sem o envolvimento da Saúde, para que não houvesse risco de vazar a informação ou de haver pressão do Palácio do Planalto para alguma divulgação.

Foi só no dia 19 de janeiro que o ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, comunicou que a carga de vacinas seria liberada no dia 21. Ele solicitou “reserva e discrição”, e as duas chancelarias acordaram a divulgação conjunta da informação somente às 6h do dia 22 de janeiro.

O Ministério da Saúde não participou das deliberações, e o Itamaraty atuou em paralelo.

“Tão logo recebida a decisão do governo indiano de autorizar a exportação de 2 milhões de doses da vacina Covishield para o Brasil, o Posto buscou assegurar que seu transporte fosse efetuado o mais rapidamente possível. Nesse contexto, chegou ao entendimento com a empresa Serum (SII) que a forma mais rápida e eficiente seria a opção de transporte por avião comercial de carga, conforme a prática usual do fabricante, que é o maior exportador de vacinas do mundo”, diz um segundo telegrama enviado pela Embaixada do Brasil em Déli, no dia 22 de janeiro.

O mesmo telegrama relata que o custo do transporte seria US$ 55 mil e pergunta de que forma o governo brasileiro iria fazer o pagamento

Pazuello só soube do voo na última hora, quando as vacinas já estavam no aeroporto de Mumbai.

A Folha questionou a Fiocruz sobre o motivo de o valor do contrato fechado com a empresa de logística ser quase dez vezes maior do que o pago para a Emirates fazer o mesmo serviço.

“O Ministério da Saúde solicitou à Fiocruz a contratação de fretamento para essas vacinas. O transporte não poderia ser realizado apenas mediante o fretamento de um voo comercial, uma vez que o transporte de imunobiológicos envolve um conjunto de serviços complexos que exigem a contratação de uma empresa especializada em serviços dessa natureza", respondeu a Fiocruz, em nota.

"No caso da operação para o fretamento das vacinas da Índia, os serviços contratados da empresa DMS Agenciamento de Cargas e Logística consideravam não apenas o fretamento do voo, mas toda a operação, ou seja, a cadeia logística desse transporte, desde a retirada da carga da farmacêutica na Índia até a sua chegada na Fiocruz, incluindo ainda o aluguel de equipamentos especiais para a manutenção de temperatura da carga durante todo o trajeto e a tramitação aduaneira", acrescentou.

Procurado diversas vezes por telefone e email, o Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem.

O Itamaraty afirmou que os custos da operação de importação foram cobertos pela Fiocruz. “A atuação do Itamaraty no enfrentamento da atual crise sanitária é coordenada com os órgãos do governo federal responsáveis pelo tema.”

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/08/em-voo-secreto-itamaraty-buscou-vacinas-da-india-por-10-do-valor-pago-pelo-ministerio-da-saude.shtml

terça-feira, 24 de agosto de 2021

200 anos da revolução do Porto de 1820; seminário internacional, um ano depois do previsto; programa

 Participo deste seminário: 

Congresso Internacional do Bicentenário da Revolução de 1820

11-13 de outubro de 2021, na Assembleia da República e na Fundação Calouste Gulbenkian

 com o seguinte trabalho: 

Paulo Roberto de Almeida:  A revolução liberal de 1820 como precursora da independência do Brasil: o papel do Correio Braziliense de Hipólito da Costa 

Os demais trabalhos deste painel são os seguintes: 

As revoluções na América do Sul | The revolutions in South America [17]

Adriana Pereira Campos e Kátia Sausen da Motta (Universidade Federal do Espírito Santo). Petições atlânticas: brasileiros dirigem-se às cortes de Lisboa por direitos de justiça | Atlantic petitions: brazilians go to Lisbon Courts for rights and justice

Alexandre Mansur Barata (Universidade Federal de Juiz de Fora). Das capitanias às províncias: discussões em torno do estabelecimento da província como unidade político-administrativa no Império do Brasil (1820-1834) | From captaincies to provinces: discussions concerning the province as a political-administrative unit in the Brazilian Empire (1820-1834)

Alfredo Avila (Universidad Nacional Autónoma de México). As declarações de independência na América do Norte 1821

Ana Frega Novales (Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación – Universidad de la República) Proyectos de unión confederal en el Rio de la Plata en la década de 1820 | Confederal union projects in the Rio de la Plata in the 1820s

Camila Borges da Silva (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). A soberania em debate: discursos políticos no alvorecer do Império do Brasil (1822-1824) | Sovereignty under debate: political discourses at the dawn of the Empire of Brazil (1822-1824)

Flavio José Gomes Cabral (Universidade Católica de Pernambuco). O exemplo da Revolução do Porto irromperá “no Brasil desejo de imitação”: Uma sedição malograda em 1820 em Pernambuco | The example of the Porto Revolution will arise in Brazil desire for imitation: A failed sedition in 1820 in Pernambuco

Guilherme Pereira das Neves (Departamento de História – Universidade Federal Fluminense). Política e religião, constituição e arbitrariedade: para pensar o processo de independência no Brasil (1815-1825com Marcel Gauchet | Politics and Religion, Constitution and Arbitrariness: Reaching for Marcel Gauchet in Order to Think About the Brazilian Process of Independence (1815-1825)

Juan Marchena Fernandez (Universidade Pablo de Olavide). O impacto das revoluções liberais de 1820 de Portugal e Espanha nos processos de independência latino-americana. O caso do Peru, Equador e Bolívia | The impact of the Liberal Revolutions of 1820 of Portugal and Spain on the processes of Latin American Independence. The case of Peru, Ecuador and Bolivia

Lucia Maria Bastos Pereira das Neves (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). O raiar da “aurora política” no Rio de Janeiro – leituras do movimento constitucional de 26 de fevereiro de 1821 | The Dawn of Politics in Rio de Janeiro – Reading the Constitutional Movement of February 26, 1821

Luiz Carlos Villalta (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Unversidade Federal de Minas Gerais). Apropriações e representações da História na crise do Antigo Regime no Brasil: da Revolução do Porto à Independência | Appropriations and representations of history in the crisis of the Old Regime in Brazil: from the Porto Revolution to Independence

Marcelo Cheche Galves (Universidade Estadual do Maranhão). Maranhão, abril de 1821: a Revolução de 1820 no norte da América portuguesa | Maranhão, April 1821: the 1820 Revolution in the North of Portuguese America

Maria Beatriz Nizza da Silva (Universidade de São Paulo). Pernambuco e a Revolução de 1820 | Pernambuco and the 1820s Revolution

Monica Duarte Dantas (Universidade de São Paulo). A revolução do júri: os “Juizes de Facto” como garantia dos direitos dos cidadãos (1821-1832) | The Revolution of the jury: trial by Jury as a fundamental cornerstone of Citizen’s Rights

Rafael Cupello Peixoto (Centro Universitário Celso Lisboa). “Como soldado, como Português, e como filho de uma Ilustre Pátria por quem ainda darei a vida, e fazenda […]”: Felisberto Caldeira Brant e a Revolução do Porto de 1820 | “As a soldier, as a Portuguese, and as the son of an Honorable Homeland for whom I will still give my life, and a estate […]”: Felisberto Caldeira Brant and the Liberal Revolution of 1820

Wilson González Demuro (Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación-Universidad de la República). O impacto do constitucionalismo ibérico nas práticas políticas e culturais do Rio da Prata. Atividade de imprensa e debate conceitual na Província Oriental/Cisplatina (1820-1830) | The impact of the Iberian constitutionalism in the political and cultural practices in the River Plate region. Press activity and conceptual debate in the Provincia Oriental/Cisplatina (1820-1830)


O programa completo pode ser visto neste link: 

https://cbr1820.com/programa/


Outras informações: 

PAINÉIS TEMÁTICOS: LISTA DAS COMUNICAÇÕES ACEITES

Sistema educacional chinês: Como a educação vem modificando o futuro do país - Alessandro Teixeira (Forum)

 Mais relevante do que o extraordinário crescimento econômico chinês nas últimas quatro décadas foi a verdadeira revolução educacional em curso no país desde o final da Revolução Cultural e o início dos processos de modernização, lançados por Deng Xiaoping. Cabe registrar que em 1949 a taxa de analfabetismo alcançava 80% da população. É isto que está na base do excepcional desempenho do país atualmente, não qualquer socialismo com características chinesas, que é pura propaganda do PCC.

Paulo Roberto de Almeida

Sistema educacional chinês: Como a educação vem modificando o futuro do país 

Coluna Desvendando a China: A redenção educacional surgiu no final na década de 1980, estendendo-se por toda a década de 1990, realizada por meio de reformas profundas, as quais permitiram a expansão do acesso à educação de qualidade 

Hoje, eu vou tratar do sistema educacional chinês. Como o leitor já deve ter visto, nas últimas três décadas, a China tem apresentado a maior taxa média de crescimento do PIB do mundo com uma média anual entre 7% e 8%, tornando-se a segunda maior economia mundial em termos de PIB nominal total (Banco Mundial, 2017). Como resultado, a nação chinesa possui não só o maior sistema de educação do planeta, compreendendo quase 260 milhões de estudantes, mais de 15 milhões de professores e cerca de 514.000 escolas — e não estou considerando aqui os números pertinentes às instituições de ensino superior —, mas que é também diverso.

Em termos históricos, o sistema de educação chinês é milenar e remonta ao período imperial de aproximadamente 2.000 anos atrás. Por muitos séculos, o ensino era excludente e só aceitava oficiais e burocratas pertencentes ao sistema imperial, os populares “mandarins”. Foi somente na dinastia Tang (618-907 d.C.) que esse sistema de ensino daria um salto qualitativo e inclusivo. Sob esse aspecto, diversos estudantes originários de famílias humildes passaram a ocupar cargos na corte, o que atenuou grandemente as discrepâncias de classe social. Mesmo assim, do final do período imperial (1912) até a formação da República Popular da China (1949), o nível de desenvolvimento educacional permanecia muito atrasado. Em termos numéricos, cerca de 80% da população era analfabeta, e a taxa de matrícula para o ensino fundamental e médio era de apenas 20% e 6%, respectivamente.

Infelizmente, ainda que o governo comunista chinês considerasse a educação básica universal como o principal objetivo do desenvolvimento educacional, durante a Revolução Cultural iniciada em 1966, a cultura e a educação permaneceram estagnadas. A redenção educacional surgiu no final na década de 1980, estendendo-se por toda a década de 1990, realizada por meio de reformas profundas, as quais permitiram a expansão do acesso à educação de qualidade. Com isso, o governo chinês assumiu, de fato, a educação como valor central, a qual deveria ser compatível com o desenvolvimento socioeconômico do país. Assim, nasceu o moderno sistema educacional chinês.

Com o enorme desenvolvimento socioeconômico na China, a educação ainda é gerida pelo Estado, proporcionando um ensino gratuito, o que agrada as famílias, não só pelas pequenas taxas que pagam pelo ensino público, mas por ser este também de altíssima qualidade. Mesmo assim, pode-se observar uma crescente participação do setor privado no ensino cada vez mais de maneira descentralizada.

Nos últimos anos, o Ministério da Educação tem transferido o controle direto da gestão do sistema educacional, na tentativa de descentralização, para os governos estadual e municipal, os quais se tornaram responsáveis pela administração e supervisão do ensino. Em grande parte, as autoridades regionais também administram instituições de ensino superior.

Outro ponto importante a destacar é a valorização crescente dos profissionais da educação. A China não só tem aumentado a remuneração dos professores e demais profissionais diretos da educação, mas também investido fortemente em qualificação, sobretudo dos profissionais das escolas primárias e secundárias. De acordo com a nova política de formação, cada professor de escola primária e secundária pública deve ter, no mínimo, 360 horas-aulas de formação de cinco em cinco anos. Essas formações são concebidas de acordo com as responsabilidades dos profissionais e dos professores, e elas visam a melhoria e a modernização das competências desses profissionais.

Soma-se a isso a necessidade de qualificar mais os professores das zonas rurais, os quais têm prioridade nesse programa. Nesse sentido, o governo chinês pretende investir, até 2025, o valor de US$1,3 bilhão no programa de qualificação que compreende cerca de 6,5 milhões de professores nas zonas rurais e nas partes central e ocidental do país, considerando-se, assim, o investimento em: (i) áreas rurais, remotas, pobres e minoritárias; (ii) educação pré-escolar, ensino primário e ensino profissional; (iii) subsídios para alunos de famílias carentes; e (iv) construção de uma equipe de professores de alta qualidade. Tem-se, assim, que as recentes reformas educacionais deram ênfase a: (i) erradicação do analfabetismo; (ii) aceleração do desenvolvimento do ensino pré-escolar; (iii) universalização do ensino obrigatório de nove anos; e (iv) melhoria da qualidade do ensino obrigatório, especialmente em zonas rurais, cujos esforços têm sido recompensados pelos resultados socioeconômicos.

No entanto, o leitor deve estar se perguntando o que há de tão especial nesse sistema de ensino. Embora possua uma estrutura muito do sistema educacional brasileiro — pré-escola, ensino primário, ensino secundário e ensino superior — os estudantes chineses devem completar nove anos de escolaridade obrigatória. Aqui na China, as crianças a partir dos três anos de idade já estão aptas a ingressarem na pré-escola, ou creche, se preferir, e permanecem até os seis anos. Detalhe, a educação pré-escolar não é obrigatória, e muitas pré-escolas são privadas.

A seguir, temos o ensino primário (ensino fundamental). Este começa aos seis anos de idade e no qual as crianças permanecem por um período de seis anos. Este é seguido do ensino secundário, o qual é dividido em dois, a saber, o ensino secundário júnior, no qual os alunos permanecem por mais três anos, seguido do ensino secundário sênior (ensino médio), por iguais três anos. Existem cinco tipos de escolas secundárias na China: (i) o geral; (ii) o técnico ou especializado; (iii) para adultos; (iv) profissional; e (v) a escola de artesanato. Estes quatro últimos são considerados como escolas de ensino secundário profissional. Os estudantes, ao concluírem o ensino primário, são submetidos a um exame público chamado de Zhongkao, o qual o governo utiliza para designar os alunos a diferentes escolas secundárias, e a admissão na escola secundária depende da pontuação obtida nesse exame. Nos últimos anos, governo chinês tem promovido esforços significativos para expandir a participação em escolas secundárias, sobretudo as profissionais, a fim de satisfazer as necessidades econômicas e de mão de obra do país, em rápida evolução, tendo em vista que, em 2014, as escolas secundárias profissionais representavam pouco menos de 22% do total de matrículas em escolas secundárias s sêniores na China (UNESCO-UIS, 2016). Por sua vez, ainda que o ensino secundário sênior não faça parte da escolaridade obrigatória na China, em 2018, 95% dos diplomados do ensino secundário júnior continuaram os seus estudos em escolas secundárias sêniores. Este número é notável porque, em 2005, apenas cerca de 40% dos jovens diplomados do ensino secundário júnior continuavam seus estudos.

Quando concluem o ensino secundário, os estudantes chineses são submetidos a um outro exame, que é muito parecido com o nosso vestibular, e o qual é chamado de Gao Kao. Essa prova, realizada em nível nacional, permite que os estudantes escolham, segundo a nota obtida no exame, a instituição de ensino na qual desejam ingressar. Vale ressaltar também que, devido à pressão extremamente elevada causada pela disputa dos estudantes que prestam anualmente esse o concurso — em 2019 foram 10,3 milhões para 9,1 milhões de vagas —, o segmento de “cursinhos pré-vestibulares”, tal como ocorre no Brasil, é outro componente do segmento educacional que tem crescido enormemente.

O ensino superior, na China, teve uma enorme expansão a partir do final da década de 1990. As taxas de matrículas no ensino superior aumentaram de 21%, em 2006, para 39%, em 2014, e mais de 45%, em 2018, no país. Hoje, a China possui mais de 2.700 instituições de ensino superior. Muito semelhante ao sistema brasileiro, no sistema chinês, os cursos de graduação exigem quatro anos de estudo, e na pós-graduação stricto sensu, o mestrado exige três anos, enquanto o doutorado exige de quatro a cinco anos.

As reformas educacionais compreenderam também a melhoria do currículo escolar, não se limitando às tradicionais disciplinas de idiomas como o mandarim e o inglês, ou disciplinas de ciências exatas como a matemática, física, química, biologia, ou mesmo atividades práticas abrangentes como a educação física e artes. O currículo estudantil é complementado por atividades extras como tecnologia da informação, pesquisa em ciência, serviços comunitários sociais, sociologia, música e, em alguns casos, robótica e tecnologias disruptivas como biotecnologias, tecnologias espaciais são disciplinas cursadas pelos estudantes dos ensinos primário e secundário, e as quais têm como objetivo melhorar a criatividade e o desenvolvimento de responsabilidade social através de experiências práticas dos jovens.

Mas a “revolução estudantil” chinesa não se limita às suas fronteiras. O país tem investido pesadamente em intercâmbio. Como exemplo, a China tornou-se o maior exportador mundial de estudantes estrangeiros. Em 2016, o número total de estudantes chineses que estudavam no exterior era de 545.000, e, em 2018, esse número cresceu para 663.000. Além disso, 80% em média dos estudantes intercambistas optam por retornar à China, bem como o país recebe aproximadamente 100 mil estudantes estrangeiros por ano, oriundos de um total de 205 países, tornando-se a o maior destino na Ásia para estudar. Também, as instituições de ensino chinesas estão entre as melhores da Ásia, tal como a Universidade de Tsinghua e a Universidade de Pequim ocupam a 23ª e 24ª posição, respectivamente, do Times Higher Education World University Rankings de 2020.

Em suma, essas melhorias sistêmicas na educação foram diretamente responsáveis por mudar o perfil da economia chinesa, na qual a inovação tem um papel central (em uma coluna futura abordarei a inovação na China). Os investimentos feitos pelo governo chinês (desde de 2012 a China investe 4% do PIB em educação) têm rendido frutos na medida em que as melhores oportunidades na educação dos cidadãos refletiram-se no nível de capital humano no país.

Por fim, quando a República Popular da China foi fundada em 1949, isto é, 72 anos atrás, possuía mais de 80% da população analfabeta. Em menos de um século o governo chinês reverteu essa realidade ao entender que não existe desenvolvimento de uma economia, de uma sociedade madura, de ciência, de tecnologia e inovação sem um alto nível de educação. A educação tornou-se um direito de todo cidadão chinês e a sua obrigatoriedade universal deve ser a base e o símbolo da moderna civilização chinesa. A educação é o fator central para o desenvolvimento em longo prazo de um país.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.


A rejeição de imigrantes chineses, na era do "perigo amarelo' - Book Review of Mae Ngai by Yunte Huang (NYT)

The Worldwide Effort to Bar Chinese Immigration

Credit...California Historical Society 

THE CHINESE QUESTION

The Gold Rushes and Global Politics
By Mae Ngai

Book Review by 

The New York Times Review of Books, Aug. 24, 2021


In his classic treatise on American pauperdom, “How the Other Half Lives” (1890), Jacob A. Riis, a Danish carpenter turned journalist and photographer, opines, “The Chinese are in no sense a desirable element of the population,” and “they serve no useful purpose here.” Ascribing his own failure in penetrating the inner soul of New York’s Chinatown to proverbial Oriental inscrutability, Riis asserts that each Chinese in America, unlike European immigrants, is “a homeless stranger among us.”

In hindsight, these racist statements from a progressive social reformer may sound shocking, but as Mae Ngai shows in her meticulously researched book, “The Chinese Question: The Gold Rushes and Global Politics,” views like Riis’s actually represented the prevailing sentiment toward Chinese, not just in the United States but throughout the Anglophone world in the 19th century. Tracking the migration of Chinese to California, Australia and South Africa, Ngai, a professor of history at Columbia University, locates the beginnings of Chinese communities in those far-flung gold-producing regions, where they faced marginalization, violence and exclusion from self-described “white men’s countries.”

The so-called Chinese Question (at the time thorny social issues were called questions: the Negro Question, the Jewish Question, the Woman Question and so on) boiled down to this: Are the Chinese a racial threat to white, Anglo-American countries, and should Chinese be barred from them?

Excavating rich deposits of the past, Ngai has certainly made striking discoveries. She ties the Chinese Question to a pivotal period in the 19th century that saw the ascendence of British and American financial power spurred by gold production, colonial dispossession and capitalist exploitation. Born out of an alchemy of race and money, the history of the Chinese communities in the West, Ngai cogently argues, were not extraneous to the emergent global capitalist economy but an integral part of it.

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However, making the Chinese Question central to global politics and economics is not the most noteworthy accomplishment of Ngai’s important book. From John Bigler riding the issue of Chinese exclusion successfully to the first California governor’s office in 1852 to the role that the Chinese Question played in the landmark 1906 victory by the Liberal Party in Britain, not to mention modern politicians who routinely bash China as a vote-getting ploy, Ngai’s narrative recounts events that sound all too familiar today. The Chinese became mere pawns in a cynical political game.

Ngai not only shows that anticoolieism was foundational to Western identities of nation and empire, she also demonstrates the many ways that the Chinese communities were themselves agents of change, not slavish coolies or passive victims of abuse and discrimination. Facing violence, harassment and institutionalized inequality, they looked within their own communities — forming huiguans (associations) and tongs (secret societies) when denied justice in a courtroom, building networks to the homeland when marginalized by mainstream society, seeking alternative means of influencing local politics when denied citizenship and the right to vote. Woven into these poignant and stirring stories of communal building are Ngai’s colorful profiles of little-known individuals like Yuan Sheng, Lowe Kong Meng and Xie Zixiu — “representative men” who rose to wealth and power from their humble origins in the mining camps. She describes as well accused murderers and petty criminals who tried to defend themselves in pidgin English but did not stand “a Chinaman’s chance.”

To be sure, the narrative pace is somewhat uneven and Ngai is not always successful in keeping a balance between her dry data and her storytelling. Still, her book is a deep historical study, and a timely re-examination of the persistent Chinese Question in America and elsewhere.


Vianna Moog e os paralelos culturais: bandeirantes e pioneiros - Arnaldo Godoy (Conjur)

 

EMBARGOS CULTURAIS

Vianna Moog e os paralelos culturais: bandeirantes e pioneiros

Por 

É preciso estudar os autores brasileiros, e com mais razão os que correm risco de algum esquecimento. Entre os chamados “intérpretes do Brasil” deve-se acrescentar Vianna Moog (1906-1988). Nascido em São Leopoldo (é um capilé, e o gentílico decorre de uma rivalidade folclórica com Novo Hamburgo) Moog formou-se em Direito (Porto Alegre, 1930), atuou em vários cargos tributários (foi agente fiscal), trabalhou na Delegacia do Tesouro que o Brasil mantinha nos Estados Unidos (1946-1950), foi presidente da Comissão de Ação Cultural da Organização dos Estados Americanos, vivendo na cidade do México (1952-1962). Foi membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 4. Ilustrado, parece que leu e entendeu tudo. Uma cultura abrangente.

Em 1943 esteve nos Estados Unidos, a convite da Fundação Guggenheim, e dessa experiência nasceu Bandeirantes e pioneiros, que consiste em estudo comparativo entre o Brasil e os Estados Unidos. É um clássico da literatura política e da sociologia comparativa. Moog está entre os brasileiros que refletiram sobre os Estados Unidos, onde esteve, a exemplo de Oliveira Lima, Gilberto Freyre e Érico Veríssimo, que também registraram as respectivas impressões. Em Bandeirantes e pioneiros (doravante B&P) a análise comparativa de Moog enfrenta algumas questões centrais na concepção de brasilidade. Nesse ponto, é um livro central no tema da compreensão do Brasil.

O livro é de 1955. Distancia-se 67 anos da abolição escravidão, por isso, talvez, alguns problemas cujas hipóteses de solução hoje não compreendemos. B&P é uma das últimas tentativas de fixação de uma visão compreensiva do Brasil. A obra de Moog consiste na retomada de uma questão recorrente: por que os Estados Unidos seriam mais avançados do que o Brasil? A colonização na América do Norte iniciou-se em 1620, com os peregrinos do Mayflower. Os portugueses estavam no Brasil desde 1532, com a criação da capitania de São Vicente.Qual a explicação para esse fato inegável?

Moog é encantado com a civilização norte-americana. Lembrava que circulava no país (em 1943, no meio da guerra) sem ter que exibir o passaporte, enquanto que no Distrito Federal precisava portar sua carteira de identidade. Moog é um forte nome para o argumento de Jessé Souza, no sentido de que diminuímos o Brasil e a nós brasileiros, quando contrastados com os Estados Unidos e com os norte-americanos, especialmente a partir das interpretações culturalistas, que radicam na tradição de Franz Boas, bem como em alguns tradutores de Max Weber. Já se argumentou que Weber seria um antídoto norte-americano a um outro alemão, Marx. Este último demonizava o capitalismo. Havia necessidade de quem o canonizasse: seria a força explicativa da “Ética protestante e o espírito do capitalismo”. Há vezes que as descrições de Moog (que visitou todo o país) se assemelham às descrições de Alexis de Tocqueville, outro viajante mesmerizado com os Estados Unidos. Democracia na América é talvez o mais convincente relato da democracia norte-americana.

Percebo em B&P alguns deslizes ou avaliações, hoje indefensáveis, mas que não retiram o mérito do autor, e de sua obra. Moog enfatizava que vivíamos uma democracia racial. Talvez tenha padecido da mesma euforia interpretativa de Gilberto Freyre, que comparou o sul dos Estados Unidos, onde estudou no fim dos anos 1910, com sua Recife natal. Moog era nascido e ambientado no Rio Grande do Sul, onde a escravidão fora vivida em outra dimensão, dada a economia extensiva do gado. O mundo do tropeiro em nada se assemelhava ao mundo do engenho. Uma comparação entre os romances de Erico Verissimo e de José Lins do Rego confirma a assertiva. Para Moog, e aqui errou, o Brasil não teria problemas raciais intransponíveis. O problema racial, argumentava, estaria dissolvido no social, e por isso já se encaminhava para a solução.

O subtítulo de B&P é “paralelo entre duas culturas”, o que explica o esforço metodológico desse precioso ensaio. O autor adianta que o livro também poderia ter como titulo Conquistadores e colonizadores, o que, ao lado do título original, explicita e adianta as conclusões. Nosso atraso se explicaria pela forma como fomos conquistados, a contrário do mundo norte-americano, que fora colonizado. O esquema expositivo de B&P é didático. São seis capítulos (Raça e geografia, Ética e economia, Conquista e colonização, Imagem e símbolo, Fé e império, Sinal dos Tempos) e um epílogo.

Nessa última parte há uma extensa análise psicanalítica comparativa entre Lincoln e o nosso Aleijadinho, o escultor barroco de Minas Gerais. Moog conhecia o freudismo e as teorias psicanalíticas. Sua avaliação de Lincoln merece leitura. Moog investiga a melancolia indisfarçável do presidente norte-americano. Investiga uma personalidade neurótica, cujo sofrimento radicava na perda da mãe, no casamento subsequente do pai, no abandono afetivo e na metáfora da quebra de um casco de tartaruga como representativo da quebra de um lar.

O núcleo do livro, insisto, é uma pergunta que exigia uma resposta. Nas palavras de Moog, “como foi possível aos Estados Unidos, país mais novo do que o Brasil e menor em superfície territorial contínua, realizar o progresso quase milagroso que realizaram e chagar (...) à vanguarda das nações?”. Analisou, em primeiro lugar, o argumento racial, que abominou. Não admitia o argumento de que o sucesso norte-americano predicaria no fato de que o anglo-saxão teria preservado uma “pureza racial” enquanto que os portugueses se mestiçaram. Refutou as teorias racistas do Conde Gobineau (que inclusive viveu no Brasil no século XIX). Afinal, os grandes navegadores portugueses e espanhóis, bem como os grandes artistas da renascença não eram anglo-saxões.

Também refutou a explicação culturalista que derivava da explicação etnocêntrica. Nesse passo, faz impugnações a Gilberto Freyre, a Roquete Pinto, a Artur Ramos e a Gilberto Amado. Criticou Joaquim Murtinho (que foi ministro da fazenda de Campos Salles) para quem não desenvolveríamos um parque industrial porque nos faltavam aptidões raciais, isto é, como poderia um jabuti acompanhar o voo da águia?

Partiu para uma explicação geográfica, que de algum modo o seduziu. A orografia (descrição das montanhas) norte-americana era melhor do que a nossa. Uma extensa planície ligava a Flórida ao Maine. Entre nós, a mata atlântica prendia o português no litoral. Quando os norte-americanos enfrentaram as montanhas do oeste, já tinham tecnologia. Comparou a extensão das ferrovias e rodovias norte-americanas com as nossas, e sugeriu que a natureza, nesse caso, fora mais amistosa com os norte-americanos.

Em seguida comparou os sistemas hidrográficos, e mais uma vez evidenciou vantagens para os Estados Unidos. O Mississipi cortava o país e realmente propiciava uma integração nacional. O Amazonas, monstruoso e indômito (Euclides da Cunha já o falara) era um rio nada patriótico: as terras que engolia eram despejadas no mar, e que levadas pelo gulf stream sedimentava o México e a Flórida. Talvez a crise hídrica contemporânea e nosso potencial o fizessem mudar de ideia. Moog também elogiou o clima norte-americano. Não havia doenças tropicais. Não levou em conta as temperaturas do inverno brutal da região de Boston.

Moog comparou o calvinismo que vicejou nos Estados Unidos (no início da colonização) com o catolicismo que se disseminou no Brasil, vinculando valores éticos com valores econômicos. O calvinismo se afastava dos pobres. Os pobres, nessa lógica, não foram eleitos para a salvação divina. Dos muitos chamados e dos poucos escolhidos, os pobres não estavam entre os poucos. Moog opôs Calvino a São Francisco de Assis, em passagem memorável. Calvinistas compartilhavam a vida com esposas que eram companheiras de trabalho e de vida. O conquistador português teria a mulher como uma presa. A violência contra índias e escravas, que Gilberto Freyre descreveu em pormenor é exemplo dessa conduta abominável.

O calvinista, no entanto, não admitia a miscigenação. Moog comparou o nosso Diogo Álvarez (o Caramuru, que se casou com a índia Paraguaçu) com John Smith (que voltou para a Inglaterra e que não se casou com Pocahontas). A diferença nessas duas histórias, ainda que mitológicas, pode ser uma chave interpretativa para o tema da aproximação entre culturas. Gilberto Freyre viu vantagens em nosso modelo. Moog apenas apontou as diferenças, não opinou assertivamente nesse caso.

Moog insistiu no tema do espírito do colonizador. Os peregrinos do Mayflower, argumentou, acreditavam que eram um povo eleito, que a Inglaterra era o Egito, que o rei Jaime I era o faraó, que o oceano atlântico era o mar vermelho, que a América era Canãa, a terra prometida. Associavam-se à ideologia do Velho Testamento, de onde retiravam os nomes das crianças: Jacob, Abraão, Joshua, Abigail, Eva, Raquel, Sara. No Novo Testamento, preferiam Marta a Maria. Marta estava o tempo todo ocupada, não era uma personagem bíblica contemplativa. As irmãs pensavam de um modo distinto, e aderiam ao cristianismo de forma distinta. Maria simboliza um comportamento feminino na América espanhola, o “marianismo”, marcado pela devoção, pelo sofrimento e pela aceitação do destino. Marta, de algum modo, é a insurgência, pelo trabalho, e pela devoção ao resultado do trabalho. Na concepção calvinista a contemplação é perda de tempo. O homem deve glorificar a Deus por intermédio de trabalho e dedicação. Moog leu e compreendeu Max Weber.

Os ingleses na América do Norte viam-se como americanos. Os espanhóis na América espanhola viam-se como criollos. Entre nós havia o “mazombo” o branco português nascido na América, permanentemente triste, sorumbático e macambúzio, um tema que foi explorado por Paulo Prado. Mazombos conviviam com mulatos (brancos e negros), com mamelucos (brancos e índios), curibocas (negros e mulatos) e cafuzos (negros e índios).

À desorganização desses grupos Moog opôs o ascetismo calvinista, a obsessão com o tempo, com o relógio, com a pontualidade. Lembrou a impetuosidade norte-americana para com o accomplishment, palavra que entendemos, mas que temos dificuldade para traduzir. Do mesmo modo, não traduzimos adequadamente accountability. E talvez os norte-americanos não conseguiriam traduzir “jeitinho brasileiro”. O problema não é de dicionário de equivalência, é de conceito. O diálogo entre culturas é prisioneiro de incompreensões mútuas. Não há esquemas explicativos simplificados. Enquanto acharmos que somos inferiores por conta do “jeitinho” não nos libertaremos de esquemas culturais que nos oprimem. Eu francamente não acredito que Vianna Moog tenha resolvido esse impasse[1].

[1] Dedico esse ensaio ao Dr. José Diogo Cyrillo da Silva, conhecedor da história rio-grandense, e colega na advocacia pública, há uma longa e agitada jornada.


 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Revista Consultor Jurídico, 6 de setembro de 2020, 8h02