Primeiro, o relato de Bolivar Lamounier, neste dia triste de 1ro de setembro. Depois, meus comentários a respeito.
Paulo Roberto de Almeida
FRAGMENTOS DE MEMÓRIA
Bolívar Lamounier – 01.09.2016
Não gosto de relatar episódios de minha vida pessoal, mas os acontecimentos de ontem (31.08) forçam-me a abrir uma exceção. Sei que todos ou quase todos os que me leem ficaram estupefatos ao acompanhar ao vivo e em cores a trapaça perpetrada contra o país pelo Senado Federal.
Mais que estupefatos, humilhados e indignados frente à sem cerimônia com que Renan Calheiros, o ministro Lewandovsky, Lula Primeiro e Único, o Notório, e muito provavelmente uma parcela do atual governo tramaram rasgar, como de fato rasgaram a Constituição Federal.
Os episódios que passo a relatar tiveram inicio no primeiro semestre de 1969. Os que viveram aquele período se lembram de que em dezembro de 1968, com a edição do Ato Institucional número 5, o Brasil entrara nos chamados “anos de chumbo”. Repressão intensa, arbitrariedades de toda ordem.
No dia 25 de abril de 1969, com base no Ato 5, o governo decretou a aposentadoria compulsória de dezenas de professores do sistema público. Fernando Henrique, Florestan Fernandes, Octávio Ianni e outros integravam a lista. Eu também fui agraciado, embora não estivesse na rede pública ou em qualquer outra função pública. Ensinava no IUPERJ – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro-, uma instituição privada.
Ou seja, fui aposentado de uma função que não exercia. Recorrer à Justiça? Ora, estávamos, como indiquei, nos “anos de chumbo”, e nem preciso lembrar que medidas baseadas nos atos institucionais eram insuscetíveis de apreciação judiciária.
Mercê da referida aberração, fiz toda a minha carreira acadêmica em pequenas instituições privadas: o já citado Iuperj e posteriormente o Cebrap, para cuja fundação, liderada por Fernando Henrique, tive o privilégio de contribuir na medida de minha capacidade e de minhas escassas credenciais. Dez anos mais tarde, no final de 1980, fundei o Idesp, Instituto de Estudos Econômicos e Políticos de São Paulo, que permaneceu em atividade até 2003. Lecionei na PUC-SP, num programa de mestrado em ciências sociais precariamente estabelecido, limitado ao período noturno.
Impedido de exercer função pública, só vim a ser admitido na USP em 1984, e mesmo então sem oportunidade de ensinar na pós-graduação, uma vez que, nos três anos em que lá permaneci, a universidade não deliberou sobre a validade ou não do doutorado que eu havia cursado e concluído na Universidade da Califórnia. Em 1985, nomeado pela Presidência da República para a comissão incumbida de redigir um anteprojeto constitucional – a chamada Comissão Afonso Arinos- desinteressei-me do ensino; desliguei-me de ambas as universidades e me dediquei por inteiro ao Idesp e a atividades privadas de consultoria.
Trocando em miúdos, a aberração jurídica de 1969 impediu-me não só de seguir a carreira acadêmica no padrão para o qual me julgava capacitado como de exercer alguma outra função pública.
À época não estranhei, como não estranho até hoje, que o regime militar, por meio do Ato 5, jogasse no lixo o pouco que o Brasil ainda possuía de vida constitucional. Assim proceder é da índole de regimes autoritários. Ontem sim, estranhei não só o conteúdo, mas também a frieza e a determinação com que Renan Calheiros, Ricardo Lewandovski et caterva representaram seus papéis numa farsa meticulosamente concebida para fazer em ambiente pacífico e em plena democracia o que os militares fizeram pela força em 1969: rasgar novamente a Constituição. Conspurcar com seus pés sujos a fonte cristalina do artigo 52 parágrafo único da Constituição Federal, cujo cumprimento acarretaria a suspensão dos direitos políticos de Dilma Rousseff e sua inabilitação para o exercício de qualquer função política. Foi mais uma vez, como temos visto desde a ascensão de Lula e Dilma ao proscênio nacional, uma manobra calcada numa concepção maliciosa e trapaceira da vida política.
Ainda não está claro se a parcela mais respeitável do Senado recorrerá ao STF. Se não o fizer, ficarei um pouco mais triste, mas não surpreendido.
Do que acima expus os meus caros leitores e leitores possivelmente concluirão que cometi crimes muito mais graves que os comprovadamente cometidos por Dilma Rousseff em sua nefasta passagem pela Presidência da República. Devo ter me levantado em armas e cometido atos terroristas, não? Ou me valido de recursos ilícitos para concorrer a mandatos eletivos. Ou, quem sabe, tomado ou influenciado medidas econômicas estúpidas, empobrecendo milhões de brasileiros e arrastando outros tantos para o desemprego.
Não, não fiz nada disso. Desde logo, quem estudou comigo sabe que minha orientação ideológica foi sempre liberal, sendo essa a razão pela qual as esquerdas nutriam a meu respeito uma atitude de desconfiança não inferior à dos famigerados órgãos de segurança. O fato de eu ter passado três meses preso em 1966 em nada alterava tal atitude; apenas confirmava, suponho, que aos olhos da esquerda eu não passava de um trouxa liberal.
Eu poderia ter pleiteado uma daquelas "indenizações" que o governo pagou a várias dezenas de antigos militantes e a alguns jornalistas. Optei por não fazê-lo. Não suportaria a vergonha.
Era minha intenção deixar este relato - este desabafo, melhor dizendo - para minhas memórias, se um dia vier a escrevê-las, mas confesso não ter resistido à emoção do dia de ontem; não sou jejuno em política, mas, otimista inveterado que sou, não imaginava presenciar tanta canalhice. Com uma indevida ponta de vaidade ou de orgulho, sabe Deus, me senti no direito de lembrar as palavras do apóstolo São Paulo: bonum certamen certavi, cursum consummavi, fidem servavi.
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Agora meu comentário a respeito do que foi transcrito acima:
Da arte de suportar o arbítrio reservadamente
Paulo Roberto de Almeida
Depoimento pessoal de Bolívar Lamounier sobre as graves consequências dos anos de chumbo da ditadura militar sobre sua carreira acadêmica, que ele relembra agora por motivo de mais um arbítrio cometido contra a democracia num momento em que todos acreditávamos ser justamente de início da correção dos muitos arbítrios cometidos contra essa mesma democracia já de muito baixa qualidade nos anos companheiros que agora se encerram (não por um bang, mas por um bimp, como se diz).
Compreendo inteiramente este tipo de rememoração dolorosa de Bolivar Lamounier pois eu também teria meu depoimento pessoal a fazer no momento em que encerro, já no atual "governo golpista", um longo ostracismo, um segundo exílio com o dobro da duração do primeiro (sob o regime militar justamente), a que fui levado durante todos os 13 anos do reinado companheiro, sem qualquer cargo ou função na carreira diplomática, por ter, desde o início, ousado escrever o que eu pensava sobre o o governo que se iniciava em 2003, e que despertaram o meu ceticismo desde aquele primeiro momento.
Só voltei a ter um cargo no Itamaraty agora, a partir de 3/08/2016, quando o último tinha sido no século passado, e ainda assim não exatamente no Itamaraty, pois se trata da função de Diretor do IPRI, um órgão subordinado à Fundação Alexandre de Gusmão, uma autarquia da administração indireta vinculada ao MRE.
Durante todos estes longos 13 anos suportei quase silenciosamente (a não ser por meus muitos escritos de resistência ao regime que eu sempre considerei espúrio) minha travessia de um deserto funcional humilhante, durante os quais fiz da biblioteca do Itamaraty o meu gabinete de trabalho, e do meu blog Diplomatizzando o meu "quilombo de resistência intelectual ".
Creio que terminou agora, mas não deixarei de oferecer, futuramente, o meu depoimento sincero sobre estes novos anos de chumbo, pelo menos no âmbito da diplomacia companheira, uma perversão completa do que possa ou deva ser uma política externa credível e legítima para uma nação democrática.
Nunca me rendi aos totalitários de um partido que agora se revela ser uma vulgar organização criminosa.
Paulo Roberto de Almeida
Gramado, RS, 2/09/2016
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